Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 260/2015-T
Data da decisão: 2015-12-21  IUC  
Valor do pedido: € 648,75
Tema: IUC – Incidência subjectiva.
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

 

1.      A…, S.A., pessoa colectiva n.º…, com sede no…, …, Lote…, …, em Lisboa, requereu a constituição do tribunal arbitral em matéria tributária suscitando pedido de pronúncia arbitral contra os actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) relativo ao período de 2013 e aos veículos automóveis que, em tabela anexa à petição, identifica pelo respectivo número de matrícula. Como consequência da referida anulação, requer a condenação da Administração Tributária ao reembolso da importância que considera indevidamente paga, no montante global de € 648, 75, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios.

 

2. Como fundamento do pedido, apresentado em 16 de Abril de 2015, a requerente alega, em síntese, que, embora os veículos em causa se encontrassem registados em seu nome à data a que se reportam os factos tributários a que respeitam as questionadas liquidações, não assume, quanto aos mesmos, a qualidade de sujeito passivo da obrigação tributária, porquanto:

 

a) os veículos a que respeitam as liquidações haviam sido já transmitidos a terceiros, por contratos de compra e venda; ou

 

b) os veículos se encontravam entregues aos respectivos locatários ao abrigo contratos de locação financeira em vigor, nos quais a requerente assume a posição de locador.

 

3. Em resposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) pronunciou-se no sentido da improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários impugnados e, em conformidade, pela absolvição da entidade requerida, suscitando, porém, questão prévia relativa a ausência de documentos comprovativos da tempestividade de apresentação do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

4. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 20 de Abril de 2015.

 

5. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 12 de Junho de 2015.

 

6. Devidamente notificadas dessa designação, as partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro. nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

7. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 10 de Julho de 2015.

 

8. Regularmente constituído o tribunal arbitral é materialmente competente, face ao preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.

 

9. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22/03).

 

10. Por despacho de 4 de Novembro de 2015, foi designado o dia 15 do mesmo mês para a realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT. Oportunamente notificadas as partes, veio a requerida solicitar a dispensa da realização da referida reunião. Com a concordância da requerente e atento o conhecimento que decorre das peças processuais, julgado suficiente, foi aceite o pedido de dispensa, sendo facultada às partes a possibilidade de apresentarem alegações escritas.

 

11. Não foram apresentadas alegações. Contudo, a requerente remeteu, para serem juntas aos autos, cópias das liquidações impugnadas, ao que se opõe a requerida com fundamento na extemporaneidade dessa junção.

 

II. Matéria de facto

 

12. Com relevância para a apreciação das questões suscitadas, destacam-se os seguintes elementos factuais, que, com base na prova documental junta aos autos, se consideram provados:

 

12.1. A requerente é uma instituição financeira de crédito, sujeita à supervisão do Banco de Portugal.

 

12.2. No âmbito da sua actividade, concede financiamentos destinados à aquisição de viaturas automóveis, nomeadamente através da celebração de contratos de locação financeira.

 

12.3. A requerente foi oportunamente notificada de actos de liquidação oficiosa de IUC, relativas aos períodos de imposto e veículos identificados em tabela anexa à petição, que aqui se dá por inteiramente reproduzida, no montante total  de € 648,75,  sendo € 616,01 respeitante a imposto e € 32,74 a juros compensatórios.

 

12.4. A requerente efectuou o pagamento voluntário do imposto a que se referem as referidas liquidações oficiosas, conforme vem informado pelo competente Serviço de Finanças.

 

13. Não existem factos relevantes para a decisão de mérito que não se tenham provado.

 

III. Cumulação de pedidos

 

14. O presente pedido de pronúncia arbitral reporta-se a diversas liquidações de IUC. Todavia, atendendo à identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, o tribunal considera que nada obsta, face ao disposto nos artigos. 3.º do RJAT e 104.º do CPPT,  à cumulação de pedidos.

 

IV. Matéria de direito

 

15. No pedido de pronúncia arbitral a requerente submete à apreciação deste tribunal a legalidade dos actos de liquidação de IUC, relativos ao período de 2013 e aos veículos que identifica em tabela anexa ao referido pedido, invocando a circunstância de, à data a que se reportam os factos tributários que as originaram, terem os veículos sido já objecto de transmissão para terceiros ou encontrarem-se entregues aos respectivos locatários ao abrigo de contratos de locação financeira, em que figura como locadora, pelo que, consequentemente, não assume a qualidade de sujeito passivo do imposto que lhe foi liquidado.

 

16. Está, pois, em causa determinar se a requerente deve ou não ser considerado sujeito passivo de IUC quanto aos veículos e período a que o tributo respeita, devidamente identificados no pedido, que haviam sido já transmitidos a terceiros ou relativamente aos quais vigoravam contratos de leasing, ainda que as transmissões ou tais contratos não tendo sido objecto de registo junto da Conservatória de Registo Automóvel, neste se mantendo identificado como proprietário, a locadora.

 

17. Relativamente a este matéria, dispõe o artigo 3.º do CIUC, nos seus números 1 e 2, que:

 

"1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

2. São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes co reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força de contrato de locação"

 

18. Segundo entendimento da requerida, a referida norma não comporta qualquer presunção legal, considerando que "o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se considerem como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais os mesmos (os veículos) se encontrem registados..."

 

19. Por seu lado, sustenta a requerente que aquela norma consagra uma presunção legal, ilidível nos termos gerais e, em especial, por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária segundo o qual as presunções de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

 

20. Esta matéria tem vindo a ser objecto de numerosas decisões no âmbito dos tribunais arbitrais a funcionar no CAAD, em geral no sentido da procedência dos respectivos pedidos, com o fundamento de que a norma em causa encerra uma presunção legal que admite prova em contrário [i].

 

21. Aderindo sem reservas à posição acima referida, dispensa-se, por desnecessária e fastidiosa, a reprodução da respectiva fundamentação, porquanto no presente processo nada de novo se adianta nessa matéria.

Questão prévia

 

22. Sintetizados os elementos factuais relevantes bem como as posições que, em matéria de interpretação do direito aplicável, vêm sustentadas pelas partes, importa, antes de mais, analisar e decidir a questão prévia suscitada pela requerida que se prende com o facto de a requerente não ter junto ao pedido cópias das liquidações impugnadas.

 

23. De tal circunstância, segundo alega a requerida, resulta que "ao optar por não juntar as cópias de todas as liquidações agora contestadas, quando não apenas o podia, mas o deveria ter feito, a Requerente impede que o Tribunal possa verificar o respectivo prazo de pagamento voluntário do imposto e o cumprimento, ou não do prazo do pedido de constituição do Tribunal Arbitral."

 

24. E, com tal fundamento, vem a requerida a contestar a tempestividade do presente pedido de pronúncia arbitral.

 

25. Na sequência da resposta da requerida, em que é suscitada a referida questão prévia, veio a requerente a juntar ao presente processo os documentos em causa. Considera, no entanto, a requerida que tais documentos deveriam ter sido entregues conjuntamente com o pedido de pronúncia pelo que, não havendo, justificação, designadamente a superveniência, não podem  ser posteriormente apresentados (CPC, art. 423.º).

 

26. Depois de tecer várias considerações sobre o correcto funcionamento do Tribunal Arbitral, designadamente sobre a relevância do formalismo processual, a requerida conclui solicitando ao Tribunal que "determine o desentranhamento dos documentos agora juntos ao processo ou pelo menos que o doutro tribunal não possa considerar provados os factos que dos mesmos constam".

 

27. Relativamente a esta questão, considera o Tribunal que estando as liquidações impugnadas devidamente identificadas pela requerente no pedido que formulou, constando de tabela que lhe é anexa a identificação de cada veículo, por indicação do respectivo número de matrícula, o período a que o imposto respeita bem como o número do correspondente documento de cobrança, não assume relevância para a decisão os documentos a que a requerida se refere.

 

28. Com efeito, os referidos documentos constituem documentos oficiais, emitidos pela própria Administração Tributária, constantes dos respectivos registos, nomeadamente informáticos, não podendo deixar de integrar o respectivo processo administrativo, porquanto a notificação da liquidação constitui, nos termos legais, condição de eficácia desta.

 

29. Solicitada a remessa do mencionado processo, o Tribunal obteve, do competente Serviço da AT, a informação de que " todas as tramitações foram feitas automaticamente , razão porque  em rigor não existem  processos administrativos físicos." Da mesma informação, consta, ainda, que a requerente efectuou o pagamento do imposto e juros objecto de contestação no presente processo. Todavia, digitalizado ou não, não foi remetido o processo em causa.

 

30. Os documentos comprovativos da notificação das liquidações e do respectivo prazo de pagamento voluntário, pelos quais se poderia aferir da tempestividade do pedido, seriam desnecessários, caso aquele processo tivesse sido remetido ao Tribunal, conforme determina o artigo 17.º, n.º 2, do RJAT e, por aplicação subsidiária, o n.º 3 do artigo 8.º do CPTA. Não o foi oportunamente nem, posteriormente, quando expressamente solicitado.

 

31. Salienta-se, ainda, que, de acordo com o n.º 6 (anterior n.º 5), do artigo 84.º do CPTA, a falta do envio do processo administrativo não só não obsta ao prosseguimento da causa como determina que os factos alegados pelo autor se considerem provados, se aquela falta tiver tornado a prova impossível ou de considerável dificuldade.

 

32. Assim, considerando a exclusiva responsabilidade da requerida pela falta do envio do processo administrativo, conjugada com a circunstância de os documentos em causa serem documentos oficiais emitidos pela AT e que, pela razão exposta, deveriam constar do referido processo e, ainda, tendo em atenção os princípios enunciados nos artigos 16.º, alínea c) e 29.º, n.º 2, do RJAT, relativos à autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e da celeridade, simplificação e informalidade processuais, o Tribunal decidiu aceitar os documentos apresentados pela requerente, pelos quais se constata que o presente pedido foi tempestivamente apresentado.

 

33. Do exposto resulta, pois, ter-se por inconsistente a questão prévia suscitada pela Requerida, pelo que, consequentemente, o Tribunal considera improcedente o pedido por ela formulado.

 

Do mérito do pedido

 

34. Concluindo-se, na esteira da orientação que invariavelmente vem sendo seguida pela jurisprudência arbitral, que a norma de incidência subjectiva do IUC consagra uma presunção ilidível, importa analisar-se a documentação oferecida pela requerente no sentido de se saber se a mesma constitui, ou não, prova bastante para a sua elisão.

 

35. Como acima referido, em sede de matéria factual, são duas as situações a que se refere o presente pedido: a tributação, em IUC, de viaturas que, à data da exigibilidade do tributo, seriam já propriedade de terceiros, transaccionadas por contratos de compra e venda celebrados com a requerente ou que, mantendo-se na propriedade desta, se encontravam entregues aos respectivos locatários, ao abrigo de contactos de locação financeira.

 

36. Relativamente à situação primeiramente referida são apresentadas, como elemento de prova, cópia das facturas que titulariam a transacção (Docs. 1 a 7) e, quanto à segunda, cópia dos contratos de locação financeira (Docs. 8 e 9).

 

 

Da elisão da presunção

 

37. As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no artigo 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos actos tributários que nelas se baseiem.

 

38. No presente caso, a requerente não utilizou aquele procedimento específico, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjectiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objecto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência material deste tribunal arbitral (arts. 2.º e 4.º do RJAT).

 

39. Figurando a requerente no Registo Automóvel como proprietária dos veículos identificados no pedido no período de tributação a que as questionadas liquidações respeitam e tendo os veículos em causa, na data da exigibilidade do imposto, passado já para a propriedade de terceiros, por contratos de compra e venda, ou, noutros casos, encontrando-se cedidos a terceiros ao abrigo de contratos de leasing, resta avaliar-se a prova apresentada, no sentido de se determinar se é a mesma bastante para ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do mesmo Código.

 

40. Para elisão da referida presunção, derivada da inscrição do registo automóvel, a requerente oferece cópia das facturas de venda bem como dos contractos de locação financeira celebrados em data anterior à da ocorrência do facto tributário e em vigor à data da exigibilidade do imposto.

 

Da elisão da presunção com base nas facturas comerciais

 

41. Pronunciando-se sobre a prova documental apresentada, alega a Requerida que as facturas juntas aos autos não constituem documentos idóneos a efectuar a prova pretendida no sentido de não ser a Requerente proprietária dos veículos nos períodos de tributação a que se reportam as liquidações em causa.

 

42. Nesse sentido, sustenta a requerente que "As facturas não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois tais documentos não revelam por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e, a aceitação) por parte dos pretensos adquirentes."

 

43. Além do aspecto acima referido, a requerida assinala que da análise das 2.ªs vias das facturas juntas pela requerente se pode verificar que as mesmas apresentam no seu descritivo menções distintas.

 

44. Com efeito, observa a requerida, "em algumas facturas juntas pode-se ler no campo da descrição a menção "VENDA NÃO LOCADO" por exemplo viatura com a matrícula…-…-…, "VALOR RESIDUAL", por exemplo viatura com a matrícula …-…-…, "RESCISÃO" por exemplo viatura com a matrícula …-…-….".

 

45. Perante as discrepâncias assinaladas sustenta a requerida que estando em causa "um suposto único tipo contratual (i, e, contrato de compra e venda de veículo automóvel) seria expectável constatar a existência de um descritivo uniforme, o que não se verifica no caso vertente, dado que diversas facturas juntas ao pedido de pronúncia arbitral incluem descritivos diferentes, pelo que forçosamente se é levado a concluir pela existência de várias realidades distintas."

 

46. Pelo que conclui a Requerida que "mostrando-se as facturas desconformes, como se mostram, então forçoso é concluir que tais documentos jamais podem beneficiar da presunção de verdade a que alude o artigo 75,º da LGT."

 

47. Está, pois, em causa, saber se as facturas que titulam transacções comerciais constituem elemento de prova para elisão da presunção constante do artigo 3.º do CIUC e, se assim se admitir, se as cópias de facturas apresentadas pela Requerente constituem prova bastante para o efeito.

 

48. Para tanto, importa ter-se presente que, na situação em análise, se está perante contratos de compra e venda que, relativos a coisa móveis e não estando sujeitos a qualquer formalismos especial (C. Civil, art. 219.º), operam a correspondente transferência de direitos reais (C. Civil, art. 408.º, n.º 1).

 

49. Tratando-se de contratos que envolvem a transmissão da propriedade de bens móveis, mediante o pagamento de um preço, têm aqueles, como efeitos essenciais, entre outros, o de entregar a coisa (C. Civil, arts. 874.º e 879.º).

 

50. No entanto, estando em causa um contrato de compra e venda que tem por objecto um veículo automóvel, em que o registo é obrigatório, o seu cumprimento pontual pressupõe a emissão da declaração de venda necessária à inscrição no registo da corresponde aquisição a favor do comprador, conforme vem sendo entendido pela jurisprudência dos tribunais superiores.[ii] Tal declaração, relevante para efeitos de registo, poderá constituir prova da transacção, mas não constitui o único ou exclusivo meio de prova da transacção. 

 

51. Para efeitos registrais, também não é exigível qualquer formalismo especial, bastando a apresentação à entidade competente de requerimento subscrito pelo comprador e confirmado pelo vendedor, que, através de declaração de venda confirma que a propriedade do veículo foi por aquele adquirida por contrato verbal de compra e venda (vd. Regulamento do Registo Automóvel, art. 25.º, n.º 1, alínea a).[iii]

 

52. Não obstante serem estas as regras decorrentes das disposições da lei civil, relativas ao informalismo da transmissão de coisas móveis e, sendo o caso, do respectivo registo, não pode deixar de ter-se também presente que, na situação em análise, estamos perante transacções comerciais, efectuadas por uma entidade empresarial no âmbito da actividade que constitui seu objecto social.

 

53. Nesse âmbito, a empresa vendedora está vinculada ao cumprimento de normas contabilísticas e fiscais específicas, em que a facturação assume especial relevância.

 

54. Desde logo, por força de normas fiscais, a entidade transmitente dos bens está obrigada a emitir uma factura relativamente a cada transmissão de bens, qualquer que seja a qualidade do respectivo adquirente (CIVA, art. 29.º, n.º 1, alínea b).

 

55. Também de acordo com o disposto em normas tributárias, a factura deve obedecer a determinada forma, detalhadamente regulada nos artigos 36.º do Código do IVA e 5.º do Decreto-Lei n.º 198/90, de 19 de Junho.

 

56. É com base nesse documento emitido pelo fornecedor dos bens que o adquirente, quando se trate de um operador económico, irá deduzir o IVA a que tenha direito (CIVA, art. 19.º, n.º 2) - salvo se o imposto suportado na aquisição do veículo, pelas características deste, não for dedutível - e contabilizar o gasto da operação (CIRC, arts. 23.º, n.º 6 e 123.º, n.º 2).

 

57. Por seu lado, é também com base na facturação emitida que o fornecedor dos bens deverá contabilizar os respectivos rendimentos, conforme decorre do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 123.º do CIRC.

 

58. Desde que emitidas na forma legal e constituam elementos de suporte dos lançamentos contabilísticos em contabilidade organizada de acordo com a legislação comercial e fiscal, os dados que delas constem são abrangidos pela presunção de veracidade a que se refere o artigo 75.º, n.º 1, da LGT.

 

59. Considerada, pois, a relevância atribuída pela legislação tributária às facturas emitidas, nos termos legais, pelas empresas comerciais no âmbito da sua actividade empresarial e a presunção de veracidade das operações por elas tituladas, não pode deixar de considerar-se que as mesmas podem constituir, só por si, prova bastante das transmissões invocadas pela Requerente.

 

60. Porém, a emissão das facturas, na forma legal, pressupõe que das mesmas conste, entre outros elementos relevantes, a denominação usual dos bens transmitidos. conforme resulta da lei fiscal (Vd. CIVA, art. 36.º, n.º 5). 

 

61. Como bem assinala a Requerida, não é, manifestamente, essa a situação evidenciada no presente processo.

 

62. Com efeito, analisando as cópias das facturas apresentadas como prova da transmissão, por compra e venda, de diversas viaturas, verifica-se que, no tocante à menção do objecto da transacção, vêm descritas operações como "Venda não locado", "valor residual", "Rescisão" (Docs. 1 a 7). Tal descrição, não traduzindo a denominação usual do bem transmitido exigida pela lei fiscal, não permite concluir que as mesmas titulem um contrato de compra e venda do quer que seja.

 

63. A requerente apresenta ainda, para efeitos de elisão daquela presunção e como suporte documental de eventual transacção de viatura cópia de um contrato de mútuo (Doc. 10). Considera o Tribunal que tal documento apenas poderia fazer prova do mútuo que titula, mas não já da transacção da viatura automóvel a cuja aquisição parece destinar-se.

 

64. Nestes termos, acompanhando-se a posição da requerida, considera-se que os elementos apresentados pela requerente (Docs. 1 a 7 e 10), não constituem prova bastante dos factos alegados para efeitos de elisão da presunção em causa, devendo, pois, manter-se na ordem jurídica os actos tributários a que se referem os documentos de cobrança identificados no quadro seguinte:

 

Matrícula

Doc. de cobrança

Imposto (€]

Juros [€)

Total(€)

…-…-…

2013 …

51,00

2,71

53,71

…-…-…

2013 …

51,00

2,71

53,71

…-…-…

2013 …

32,00

1,70

33,70

…-…-…

2013 …

35,06

1,86

36,92

…-…-…

2013 …

138,95

7,39

146,34

…-…-…

2013 …

51,00

2,71

53,71

…-…-…

2013 …

32,00

1,70

33,70

Total2013 …

…-…-…

 

445,77

23,69

469,46

 

 

 

 

 

 

 

Da elisão da presunção com base nos contratos de leasing

 

65. Relativamente a situações, devidamente identificadas na tabela anexa ao pedido de pronúncia, a requerente fundamenta a impugnação das respectiva liquidações com base na circunstância de se reportarem a veículos que à data da exigibilidade do imposto, se encontravam entregues aos locatários ao abrigo de contratos de leasing então em vigor.

 

66. Nestas condições, atendendo ao disposto no artigo 3,º, n.º 2, do Código do IUC, que prevê a equiparação a proprietários dos locatários financeiros, considera a requerente que não lhe pode ser imputada, relativamente aos referidos veículos, a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto.

 

67. Como prova do alegado, a requerente junta ao pedido cópia de contratos de locação financeira relativos aos veículos com as matrículas …-…-… - com inicio em 24.12.2011 e termo em 24.12.2015 - e …-…-… - com inicio em 24.8.2008 e termo em 24.8.2014 (Docs. 8 e 9). 

 

68. Quanto a esta matéria, entende a requerida  que a "a seguir-se a tese propugnada pela Requerente quanto ao facto do artigo 3.º do CIUC consagrar uma presunção ilidível"  ter-se-ia necessariamente de concluir que tal presunção apenas seria afastada pelo cumprimento atempado da norma do artigo 19.º do mesmo Código, que estabelece, para os locadores a obrigação de comunicar à Administração Tributária a identificação dos locatários

 

69. Para além da posição que expressa quanto ao incumprimento do dever de comunicação previsto no artigo 19.º do CIUC, a Requerida entende que os referidos contratos, "para além do mais acompanhados de documentação sem qualquer data, não faz qualquer prova, designadamente na ausência dos pagamentos das rendas de locacção, de que efectivamente os veículos se encontravam no ano de 2013 nas situações referidas pela Requerente."

 

70. Porém, não sendo directamente questionada a validade formal dos contratos de locação financeira juntos pela Requerente, nem se vendo das cópias apresentadas quaisquer irregularidades ou insuficiências, considera-se documentalmente provado que à data da exigibilidade do imposto os veículos a que os mesmos se referem, sendo embora propriedade da requerente, se encontravam por esta dados em regime de locação financeira a terceiros. 

 

71. Consideradas as posições das partes, conforme acima em síntese expostas, e considerado documentalmente provado o alegado pela requerente, verifica-se que a questão a decidir centra-se saber se a verificação da circunstância prevista no n.º 2 do artigo 3.º CIUC afasta ou não a regra de incidência consagrada no n.º 1 do mesmo artigo, designadamente no caso de não ter sido dado cumprimento ao disposto no artigo 19.º do CIUC.

 

72. Estabelece este preceito que " Para efeitos do disposto no artigo 3º do presente código, bem como no n.º 1 do artigo 3.º da lei da respectiva aprovação, ficam as entidades que procedam à locação financeira, à locação operacional ou ao aluguer de longa duração de veículos obrigadas a fornecer à Direcção-Geral dos Impostos os dados relativos à identificação fiscal dos utilizadores dos veículos locados."

 

73. Da norma do n.º 2 do artigo 3.º, do CIUC, conjugada com o citado artigo 19.º, do mesmo Código, não subsistem, pois, dúvidas de que estando os veículos regime de locação financeira, o sujeito passivo deste imposto será o locatário e não o respectivo proprietário, ficando, assim, afastada a regra de incidência subjectiva do n.º 1 daquele artigo, desde que efectuada aquela comunicação ou, em alternativa, feita prova bastante para ilidir a presunção que o mesmo encerra.

 

74. Não será esse, porém, o entendimento da requerida que, admitindo por mera hipótese que "a seguir-se a propugnada tese defendida pela Requerente quanto ao  facto do artigo 3.º do CIUC, consagrar uma presunção ilidível, então forçoso é concluir que o funcionamento daquele artigo (i.e, a elisão da presunção) depende igualmente do cumprimento do estatuído no artigo 19.º do CIUC, conforme se retira do seu elemento literal ("para efeitos do artigo 3.º do presente Código...")

 

75. Na sequência desse entendimento, sustenta a requerida que "Em matéria de locação financeira e para efeitos da elisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele Código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto."

 

76. Concluindo a requerida que "nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação ... como aliás lhe competia, pelo que necessariamente terá de improceder a pretendida elisão do artigo 3.º aqui em causa" e "...não tendo a Requerente dado cumprimento àquela obrigação, forçoso é concluir que aquela é o sujeito passivo do imposto."

 

77. Reconhecendo, embora, que os locadores financeiros de veículos automóveis estão vinculados à obrigação de comunicar à Administração Tributária a identificação fiscal dos locatários, não é possível acompanhar-se o entendimento da requerida no sentido de que os proprietários só se desoneram da obrigação de imposto se deram cumprimento à referida obrigação.

 

78. Esta matéria tem vindo a ser objecto de diversas decisões arbitrais, recordando-se, a este propósito a Decisão Arbitral, de 14 de Julho de 2014, no Proc. 136/2014-T:

 

" Com efeito, o disposto no art. 3º, nº 2 do CIUC é bem claro relativamente à incidência subjectiva do IUC, na vigência de contratos de locação financeira, sujeitando o locatário a essa obrigação, quando o equipara ao proprietário para este efeito.

Assim sendo, não atribuindo a lei essa obrigação ao proprietário-locador, não haverá lugar a nenhuma desoneração por parte deste, com a comunicação prevista no referido art. 19º do CIUC, pela razão simples de nunca ter estado sujeito ao pagamento do imposto.

A incidência subjectiva do IUC está estabelecida, em todos os seus elementos, no art. 3º do CIUC, e será através da aplicação deste normativo que será apurado o sujeito passivo, não relevando para efeitos da incidência do imposto a falta de cumprimento da mencionada obrigação acessória. " [iv]

 

79. É, pois, a esta orientação jurisprudencial, a que, sem reservas, se adere.

 

80. Concluindo-se, assim, que, na situação em análise, tendo sido feita prova documental de que à data da exigibilidade do imposto, estavam em vigor contratos de locação financeira relativos aos veículos com as matrículas …-…-… e …-…-… e considerada ilidida a presunção de propriedade derivada do registo automóvel acolhida no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, deverá proceder-se à anulação das respectivas liquidações, com fundamento em ilegalidade e erro nos pressupostos, com o consequente reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Do pedido de juros indemnizatórios

 

81. A par da anulação das liquidações, e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas, a requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do art. 43.º da LGT.

 

82. A apreciação do pedido apenas se situa no que concerne às liquidações cuja anulação se determina, nos termos acima referidos.

83. Trata-se de matéria que tem sido já objecto de diversas decisões arbitrais, destacando-se, desde logo, a que foi proferida no proc. n.º 26/2013-T que, não se vendo razão que justifique a sua alteração, se seguirá de perto no presente caso.

 

84. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 daquele artigo 43.º da LGT, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.

 

85. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao legalmente devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.

 

86. No presente caso, ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, relativamente ao IUC respeitante às viaturas com as matrículas …-…-… e …-…-… e ao período de imposto de 2013, por não ser aquela o sujeito passivo da obrigação tributária, e se determine, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito a favor do contribuinte.

 

87. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que, como acima se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

 

88. Por outro lado, também como já se concluiu, a referida norma tem a natureza de presunção legal, de que decorre, para a AT, o direito de liquidar o imposto e exigi-lo a essas pessoas, sem necessidade de provar o factos que a ela conduz, conforme expressamente prevê o n.º 1 do artigo 350.º do C. Civil.

 

89. Na situação em causa, abrangida pela norma de incidência do n.º 2 do referido artigo, que estabelece a sujeição a imposto do locatário, em caso de existência de contrato de locação financeira, caberia à requerente comunicar à Administração Tributária a identificação dos respectivos locatários, conforme decorre do artigo 19.º do Código o IUC. Não dando cumprimento a esta obrigação, a requerente, com o seu comportamento, legitimou a liquidação que lhe foi imputada, com base na presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 3.º do referido Código.

 

90. Do exposto, pode concluir-se pela inexistência de erro imputável à Administração Tributária, pelo que a requerente não tem direito a juros indemnizatórios que peticiona com referência às importâncias indevidamente pagas relativas às liquidações cuja anulação agora se decide.

 

V. Decisão

 

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:

 

a) Julgar improcedente a questão prévia suscitada pela Administração Tributária.

 

b) Julgar improcedente o pedido no que respeita às liquidações relativas aos veículos identificados no quadro inserto no ponto 64 que antecede.

 

c) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, no que concerne à ilegalidade das liquidações relativas aos veículos com as matrículas …-…-… e …-…-…, a que respeitam os documentos de cobrança 2013 … e 2013…, determinando-se a sua anulação e consequente reembolso das importâncias indevidamente pagas.

 

d) Julgar improcedente o pedido no que respeita ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

Valor do processo: € 648,75

 

Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 306,00, a cargo da requerente e da Requerida (AT), na proporção do respectivo vencimento, sendo € 221,54 e € 84,46, respectivamente.

 

Lisboa, 21 de Dezembro de 2015,

 

O árbitro, Álvaro Caneira.

 

 



[i] A título meramente exemplificativo, cfr. Procs.14/2013-T, 26/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T, 170/2013-T, 217/2013--T, 256/2013-T, 289/2013-T, 294/2013-T, 21/2014-T, 42/2014-T, 43/2014-T, 50/2014-T, 52/2014-T, 67/2014-T6, 68/2014-T, 77/2014-T, 108/2014-T, 115/2014-T, 117/2014-T, 118/2014-T, 120/2014-T, 121/2014-T, 128/2014-T, 140/2014-T, 141/2014-T, 152/2014-T, 154/2014-T, 173/2014-T, 174/2014-T, 175/2014-T, 182/2014-T, 191/2014-T, 214/2014-T, 219/2014-T, 221/2014-T, 222/2014-T, 227/2014-T, 228/2014-T, 229/2014-T, 230/2014-T, 233/2014-T, 246/2014-T, 247/2014-T, 250/2014-T. 262/2014-T, 302/2014-T, 333/2014-T,  414/2014-T, 646/2014-T, todos disponíveis em www.caad.org.pt.

[ii]cfr. STJ, Acs. de 23.3.2006 e de 12.10.2006, Procs. 06B722 e 06B2620.

[iii]  Assinala-se que, no âmbito do procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquiridos por contrato verbal de compra e venda, aprovado pelo Dec.Lei n.º 177/2014, de 15 de Dezembro, a factura constitui, entre outros, documento que indicia a efectiva compra e venda do veículo, desde que dela conste a matrícula do veículo bem como nome do vendedor e do comprador.

[iv]Cfr., entre outros, Procs. 128/2014-T, 134/2014-T, 136/2014-T, 137/2014-T, 224/2014-T, 228/2014-T, 232/2014-T, 233/2014-T e 341/2014-T.