Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 722/2022-T
Data da decisão: 2023-07-25  IRC IVA  
Valor do pedido: € 394.730,10
Tema: IRC – IVA – Gastos não aceites fiscalmente; Regularizações contabilísticas; Princípios da especialização dos exercícios, da justiça e da capacidade contributiva; Tributações autónomas em falta.
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Sumário:

 

I - Não vem colocada em causa a efetividade dos gastos ou a sua dedutibilidade, não tendo em nenhum momento a AT suscitado a questão da intencionalidade fraudulenta da empresa reclamante, não tendo sido provada qualquer intenção de omitir custos ou de deferir ilegitimamente o seu pagamento, não se provando qualquer duplicação de gastos e, finalmente, não se provando que qualquer prejuízo venha a resultar para a Requerida do facto de o gasto ser deduzido;

II - Assim sendo, numa situação em que a Requerida se limita a alegar a violação do princípio da especialização dos exercícios e, considerando que a Requerente  está impossibilitada de deduzir os gastos em que incorreu,  ponderando os interesses e princípios jurídicos em jogo, a saber, por um lado, o princípio da especialização dos exercícios e, por um lado, os princípios da justiça e da capacidade contributiva do contribuinte, afigura-se desproporcionada a não aceitação dos gastos incorridos, no contexto apontado.

 

 

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Fernanda Maçãs, Hélder Faustino e Daniel Taborda, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Coletivo, decidem o seguinte:

 

 

I. Relatório

 

  1. A A..., LDA., pessoa coletiva n.º ..., com sede na ..., n.º ..., ...-... Porto (doravante “Requerente”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa por si apresentada a 29-04-2022, veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 10.º todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, requerer a constituição de Tribunal Arbitral, nos seguintes termos e fundamentos:
  1. A Requerente requereu a constituição de Tribunal Arbitral e a pronúncia arbitral em matéria tributária na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa n.º ...2022..., apresentada contra as liquidações de IRC e juros compensatórios n.º 2021... e n.º 2021..., relativas ao ano de 2017, das quais resultou um montante total a pagar de € 71.353,16, e n.º 2021... e n.º 2021..., relativas a 2018, das quais resultou um montante total a pagar de € 370.658,95, e das liquidações de IVA e juros compensatórios n.º 2021..., n.º 2021..., n.º 2021..., n.º

 2021..., n.º 2021..., n.º 2021..., n.º 2021... e n.º 2021..., relativas aos meses de Setembro a Dezembro de 2018, das quais resultou um montante total a pagar de € 4.135,00.

  1. Os atos tributários ora em crise assentam nas seguintes correções em sede de IRC e IVA:
  1. Não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no exercício de 2017, do gasto no montante de € 242.692,06, relativo a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registado sob o n.º ... do diário de 33, contabilizado alegadamente sem suporte documental e sem justificação comprovada do diferimento;
  2. Não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no exercício de 2018, do gasto no montante de € 138.840,00, relativo a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), inadequadamente registado na contabilidade no exercício de 2018 e alegadamente sem suporte documental;
  3. Não aceitação como fiscalmente dedutíveis em IRC, no exercício de 2018, de gastos no montante total de € 16.180,12, relativos a fornecimentos e serviços externos (gastos em obras e equipamentos), porquanto todas essas obras e todos esses equipamentos estariam alegadamente conectados com um imóvel que não pertence à Requerente;
  4. Não aceitação como dedutível do IVA suportado com os gastos mencionados no ponto anterior, do que resulta a obrigação de proceder ao pagamento do IVA no montante de € 3.721,44;
  5. Não aceitação como fiscalmente dedutíveis em IRC, no exercício de 2018, de gastos no montante total de € 51.708,70, em face da inexistência de suporte documental;
  6. Tributação autónoma sobre despesas alegadamente não documentadas na conta #6251101, referentes ao ano de 2018, no montante de € 25.854,35;
  7. Tributação autónoma sobre despesas alegadamente não documentadas na conta #27221901, referentes ao ano de 2018, no montante de € 120.149,37;
  8. Tributação autónoma sobre despesas alegadamente não documentadas decorrentes de débitos bancários não contabilizados, referentes aos anos de 2017 e 2018, nos montantes de € 13.083,00 e € 14.500,00, respetivamente;
  9. Tributações autónomas sobre encargos relativos a ajudas de custo e encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, referentes aos anos de 2017 e de 2018, nos montantes de € 2.822,77 e € 3.613,01, respetivamente;
  1. Face à prova documental e testemunhal produzida em juízo, defende a Requerente que:
  1. Correcções relativas a gastos suportados com fornecimentos e serviços externos – trabalhos especializados (registo n.º... do diário de 33):
    1. Os gastos relativos a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registados sob o n.º ... do diário de 33, reportam-se à aquisição de serviços de consultadoria e a prestações de serviços pela Requerente no exercício de 2016, com vista a obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC, estando relacionados com a manutenção da plataforma informática FUTURE DOC;
    2. Os gastos relativos a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registados sob o n.º ... do diário de 33, e respetivos documentos de suporte foram lançados na contabilidade da Requerente referente ao exercício de 2016, mas, por lapso de reconhecimento contabilístico, não foram levados à conta de gastos correspondente, não tendo sido relevados no apuramento do lucro tributável do referido exercício;
    3. A Requerente regularizou o lançamento contabilístico dos gastos relativos a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registados sob o n.º ... do diário de 33, no exercício de 2017, relevando tais gastos para o apuramento do lucro tributável de IRC desse exercício;
    4. O lapso no reconhecimento contabilístico dos gastos relativos fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registados sob o n.º ... do diário de 33, não originou um prejuízo para a receita fiscal, nem tão-pouco originou uma vantagem para a Requerente;
  2. Correções relativas a gastos suportados com fornecimentos e serviços externos – trabalhos especializados (registo n.º ... do ano 2018):
    1. Os gastos relativos a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registados sob o n.º ... do ano de 2018, no montante de € 138.840,00, respeitam à fatura n.º 2018/3769, emitida a 28 de Dezembro de 2018, referente a serviços de gestão documental e processual prestados à B... no âmbito de um contrato de prestação de serviços celebrado no dia 17 de Julho de 2018, no contexto de um concurso público com financiamento europeu;
    2. No referido contrato de prestação de serviços, a Requerente e a B... acordaram um prazo de execução meramente indicativo de 29 dias, tendo acordado, posteriormente, a extensão desse prazo por razões inerentes à natureza pública da B..., que não se encontrava preparada para a implementação do projeto, tendo sido necessário criar condições e infraestruturas para essa implementação;
    3. O contrato celebrado com a B... começou a ser executado após a respetiva celebração e foi concluído com a emissão da última fatura, no dia 19 de Junho de 2020;
    4. Apesar de o cumprimento do referido contrato se ter estendido por três exercícios fiscais, os proveitos decorrentes do mesmo foram registados contabilisticamente com referência à fatura n.º 2018/3769, emitida a 28 de Dezembro de 2018, em virtude dos requisitos de facturação associados a projetos com financiamento europeu;
    5. No contexto da execução do contrato celebrado com a B..., a Requerente incorreu em determinados custos, os quais foram registados na contabilidade da Requerente e relevados para o apuramento do respetivo lucro tributável de IRC do exercício de 2018;
  3. Correções relativas a fornecimentos e serviços externos – gastos em obras e equipamentos:
    1. A fatura n.º 0871, emitida pela C..., UNIPESSOAL, LDA., respeita à aquisição de uma chaminé em cobre que compõe o ativo da Requerente e que foi utilizada em eventos de “team building” organizados pela Requerente, designadamente no ano de 2018;
    2. As faturas emitidas pelo fornecedor D..., LDA., pessoa coletiva n.º..., respeitam a custos assumidos pela Requerente como contrapartida da realização da actividade anual de “team building” na QUINTA ... em 2018;
    3. Como contrapartida da utilização da QUINTA ..., espaço detido pela E..., LDA., a Requerente suportou custos com a ampliação da infraestrutura desse local, os quais se enquadraram nos valores de mercado pagos em outros eventos organizados pela Requerente em estruturas do mesmo tipo;
  4. Correções relativas a tributações autónomas sobre despesas não documentadas – deslocações e estadas (contabilizadas nas contas #6251101, #27221901 e #59304):
    1. Os gastos registados na contabilidade da Requerente nas contas #6251101 (referentes a deslocações e estadas não correspondem a gastos incorridos por aquela), #27221901 (registo n.º ... do diário 33 no montante de € 240.298,74) e #59304 (registo n.º ... do diário 3 do ano 2018, no montante de € 257.362,77) consubstanciam movimentos contabilísticos meramente internos que tiveram como objetivo proceder à correção dos saldos de, respetivamente, € 51.708,70, € 240.298,74 e € 257.362,77 das referidas contas, tendo como contrapartida a conta #... – SANTANDER TOTTA;
  5. Correções relativas a tributações autónomas sobre Despesas não documentadas – débitos bancários não contabilizados:
    1. As correções referentes a despesas alegadamente não documentadas decorrentes de débitos bancários não contabilizados, nos montantes de € 13.083,00 em 2017 e € 14.500,00 em 2018, relacionam-se com o levantamento de cheques que se destinaram a ser integrados na caixa da Requerente, com vista ao pagamento de despesas correntes da sua atividade;
    2. Os cheques em causa foram emitidos ao portador, com a identificação das trabalhadoras da empresa pertencentes ao departamento financeiro, que procederam ao levantamento dos cheques e à incorporação dos montantes aí refletidos na caixa da Requerente;
    3. O pagamento de serviços efetuado a 22 de Março de 2018, no montante de € 2.000,00, respeita ao pagamento parcial de um cartão de crédito que tem condições especiais para pagamento de viagens e compras no estrangeiro, por repartir o pagamento em três ou seis prestações sem juros;
    4. Através do referido cartão de crédito foi paga a quantia de € 7.393,86, respeitante a viagens, estadias e deslocações que o gerente da Requerente efetuou em nome e em representação da desta última em Agosto e Setembro de 2017;
  6. Correções relativas a tributações autónomas sobre ajudas de custo e encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador:
    1. A Requerente dispõe da totalidade dos mapas justificativos da atribuição das ajudas de custo e de deslocação em viatura própria do trabalhador, elaborados por funcionário, com a indicação do serviço prestado com direito a ajudas de custo, do montante diário atribuído e do valor total a pagar;
    2. As ajudas de custo e a compensação por deslocação em viatura própria do trabalhador foram sempre levadas a efeito no âmbito de projetos dos seus clientes, não sendo facturadas autonomamente, mas, pelo contrário, estando incluídas nos serviços prestados pela Requerente, inexistindo fundamento para as sujeitar a tributação autónoma;
  1. Os gastos suportados com fornecimentos e serviços externos – trabalhos especializados (registo n.º ... do diário de 33), registados na conta #6221099, para o apuramento do lucro tributável da Requerente do exercício de 2017, devem ser relevados para o apuramento do lucro tributável de IRC, prevalecendo os princípios da verdade material, capacidade contributiva e justiça;
  2. Para vedar à Requerente a possibilidade de relevar tais gastos no exercício de 2017, deveria a AT, em sede de inspeção tributária, ter demonstrado que a Requerente já havia relevado tais gastos noutro exercício ou que, de alguma forma, os duplicou, designadamente, noutra conta da classe #6 do exercício de 2016, o que não aconteceu;
  3. Não tendo a Requerente tido a intenção de omitir custos ou diferir ilegitimamente o seu pagamento, a não aceitação dos gastos acima referidos traduz-se na violação do princípio da justiça, ficando a Requerente definitivamente impossibilitada, por razões meramente formais, de deduzir gastos em que efetivamente incorreu para obter rendimentos tributados em sede de IRC, por já terem decorrido os prazos legais para a substituição das declarações de rendimentos ou para a apresentação de reclamação graciosa da liquidação de IRC de 2016;
  4. Não tendo a AT comprovado a existência de uma duplicação de gastos e tendo a Requerente demonstrado ter suportado os gastos acima referidos, inexistem motivos para presumir a má-fé da Requerente e não se aceitarem os referidos gastos no exercício de 2017;
  5. A liquidação de IRC e juros compensatórios de 2017 em crise é ilegal anulável com fundamento em erro nos pressupostos de facto e de direito e por violação dos princípios previstos nos artigos 8.º, 55.º, 58.º e 74.º, da LGT e do princípio da justiça, ínsito artigo 266.º, n.º 2, da CRP, ex-vi artigo 163.º do CPA;
  6. A desconsideração dos gastos correspondentes ao «[...] registo sob o n.º ..., do ano de 2018, no valor de EUR 138.840,00», em que a Requerente incorreu no decurso da execução do contrato público celebrado com a B..., consubstancia uma violação de lei e, simultaneamente, uma clara violação dos princípios da justiça, da legalidade da tributação e da capacidade contributiva, ínsitos nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, 8.º, 55.º e 74.º da LGT, sendo a correspectiva liquidação de IRC e juros compensatórios ilegal e consequentemente anulável, ex-vi artigo 163.º do CPA;
  7. A AT não aceitou como «encargos fiscalmente dedutíveis, no ano de 2018, um total de € 16.180,16» incorrido em obras e equipamentos, considerando serem os mesmos relacionados com um imóvel localizado em Vila Nova de Famalicão, concluindo não ser «possível estabelecer uma conexão directa com as instalações utilizadas pelo sujeito passivo»;
  8. As faturas emitidas pelos fornecedores de tais obras e equipamentos consubstanciam gastos relacionados com a atividade da Requerente, os quais foram suportados para garantir os seus rendimentos sujeitos a tributação em sede de IRC, razão por que a dedutibilidade dos referidos custos deveria ter sido aceite pela AT;
  9. Neste contexto, deverá concluir-se pela ilegalidade e consequente anulabilidade da liquidação de IRC e juros compensatórios referente aos gastos acima referidos, ex-vi artigo 163.º do CPA, por erro nos pressupostos de facto e por violação dos princípios ínsitos nos artigos 8.º, 55.º, 58.º, 74.º e 77.º da LGT e, bem assim, do princípio da justiça previsto artigo 266.º, n.º 2, da CRP;
  10. Os atos de liquidação de IVA e juros compensatórios em crise nos presentes autos devem ser declarados ilegais e consequentemente anulados nos termos do artigo 163.º do CPA, na medida em que os bens e serviços a que os mesmos respeitam foram utilizados na realização de transmissões de bens e de serviços sujeitos a imposto, nos termos e para os efeitos do artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA;
  11. Sem embargo, na medida em que a Requerente não foi, até à presente data, notificada das liquidações adicionais de IVA decorrentes das correções determinadas no Relatório Final de Inspecção Tributária, mas apenas das demonstrações de acertos de contas através das quais é identificado o montante de imposto em falta, importa salientar que só serão válidos os atos tributários que tenham sido levados ao conhecimento da Requerente, o que importa a violação das normas vertidas nos artigos 38.º, n.º 1 e n.º 3, e 39.º, n.º 1, do CPPT e 268.º, n.º 3, da CRP, inquinando os referidos atos de liquidação de IVA de nulidade, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alíneas d) e g), do CPA, com os efeitos previstos no artigo 162.º do CPA;
  12. Os gastos registados na contabilidade da Requerente nas contas #6251101 (referentes a deslocações e estadas não correspondem a gastos incorridos por aquela), #27221901 (registo n.º ... do diário 33 no montante de € 240.298,74) e #59304 (registo n.º... do diário 3 do ano de 2018, no montante de € 257.362,77) consubstanciam movimentos contabilísticos meramente internos que tiveram como objetivo proceder à correção dos saldos de, respetivamente, € 51.708,70, € 240.298,74 e € 257.362,77, das referidas contas, tendo como contrapartida a conta #... – SANTANDER TOTTA, sem que a AT tenha verificado a correspondência com efetivas disponibilidades financeiras;
  13. Por esse motivo, inexiste no exercício de 2018 qualquer movimento bancário a débito ou a crédito nos montantes de € 51.708,70, € 240.298,74 e/ou € 257.362,77, sendo os saldos a 31 de Dezembro de cada ano, consideravelmente inferiores sequer ao primeiro daqueles valores, o que demonstra que a 1 de Janeiro de 2017 aqueles valores não se encontravam depositados na conta bancária da Requerente;
  14. Não tendo a AT logrado demonstrar, como lhe competia, a existência das despesas, o seu montante, o momento em que foram efetuadas, os contratos, faturas ou outros elementos subjacentes que demonstrem a saída dos meios de pagamento da esfera jurídica da Requerente, verifica-se a violação do ónus da prova, nos termos do artigo 74.º da LGT, devendo, em consequência, ser anuladas as correspondentes liquidações de IRC e de juros compensatórios ex-vi artigo 163.º do CPA;
  15. As correções relativas a tributações autónomas sobre despesas não documentadas violam o princípio da especialização e da periodização do lucro tributável, pois as despesas qualificáveis como factos tributários de natureza instantânea jamais ocorreram no exercício de 2018, mas em exercícios anteriores, de que são oriundos os saldos de caixa elevados;
  16. No Relatório de Inspeção Tributária, a própria AT assinala que «o registo contabilístico efectuado em 2018 traduz uma anulação do saldo», tendo por referência eventuais despesas ocorridas no período de investimento previsto no contrato, entre 1 de Setembro de 2011 e 31 de Agosto de 2014, o que demonstra não ter ocorrido qualquer movimento financeiro passível de originar uma despesa não documentada sujeita a tributação autónoma no exercício em análise;
  17. A aplicação da presunção que conduziu às correções com impacto nas tributações autónomas sobre despesas não documentadas apenas teriam cabimento num procedimento de avaliação indireta, nos termos dos artigos 87.º e seguintes da LGT, o que igualmente não se verificou;
  18. Ao ter efetuado as correções ao imposto relativo a tributação autónoma sobre despesas não documentadas, a AT violou os princípios da capacidade contributiva, da justiça e da tipicidade da lei fiscal, entrando assim no domínio da discricionariedade pura e, por via disso, tecnicamente indefensável, o que importa a anulação das liquidações de IRC e de juros compensatórios referentes ao ano de 2018, ex-vi artigo 163.º do CPA;
  19. As correções referentes a despesas alegadamente não documentadas decorrentes de débitos bancários não contabilizados, nos montantes de € 13.083,00 em 2017 e € 14.500,00 em 2018, relacionam-se com o levantamento de cheques que se destinaram a ser integrados na caixa da Requerente, com vista ao pagamento de despesas correntes da sua atividade, não se encontrando verificados os requisitos legais para sujeitar tais montantes a tributação autónoma, estando as correspondentes liquidações de IRC e de juros compensatórios feridas do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, devendo ser anuladas nos termos do artigo 163.º do CPA;
  20. Por último, os registos contabilísticos na conta #6327 - «Ajudas de custo», nos montantes de € 53.466,19 em 2017 e € 67.805,08 em 2018, e na conta #6251103 – «Deslocação em viatura própria do trabalhador», nos montantes de € 2.989,28 em 2017 e € 4.455,18 em 2018, referem-se a ajudas de custo e compensação por utilização de viatura própria do trabalhador incluídos no preço dos serviços faturados pela Requerente aos seus clientes, realizados no seu próprio interesse, não se encontrando verificados os requisitos legais para sujeitar tais montantes a tributação autónoma, estando as correspondentes liquidações de IRC e de juros compensatórios feridas do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, devendo ser anuladas nos termos do artigo 163.º do CPA;
  21. Tendo a Requerente efetuado o pagamento das liquidações de IRC e IVA objeto dos presentes autos, e assentando esses atos tributários em erro imputável aos Serviços da AT, conclui a Requerente dever ser determinado o pagamento de juros indemnizatórios, os quais devem ser computados desde a data do pagamento dos impostos em crise até efetivo e integral reembolso, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, 100.º, da LGT e 61.º, n.º 5 do CPPT.

 

  1. A AT, na sua resposta, argumenta o seguinte:
  1. A AT pugna pela manutenção na ordem jurídica dos atos de liquidação em crise, nos termos expostos no Relatório de Inspeção Tributária, conforme processo administrativo junto aos autos.
  2. Não obstante, e para efeitos da (re)apreciação prevista no artigo 13.º do RJAT, a DSIVA propôs a anulação parcial dos actos tributários contestados, concedendo somente a anulação dos valores de IVA de € 637,12, € 1.282,99 e € 92,19, com referência, respetivamente, aos períodos 2018-10, 2018-11 e 2018-12, e correspondentes juros compensatórios, conforme informação junta aos autos.
  3. Defende a AT que as alegações da Requerente terão de claudicar, sendo de manter as correções, conforme descrito no RIT e que determinaram a emissão da liquidação adicional de IRC aqui em crise;
  4. Pelo que atentos os fundamentos apresentados pela Requerente, na petição inicial do pedido de constituição de tribunal arbitral, aqui em crise, afigura-se serem de manter totalmente válidos os pressupostos que alicerçaram a prática dos atos tributários aqui em causa, não tendo a requerente apresentado argumentos que possam alterar o entendimento da AT, com ressalva da revogação efetuada pela DSIVA.

 

 

3.O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi apresentado em 28-11-2022, foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 30-11-2022. Em 19-01-2023, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As Partes foram devidamente notificadas dessa designação, em 19-01-2023, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

O Tribunal Arbitral Coletivo ficou, assim, constituído em 06-02-2023, tendo sido proferido despacho arbitral em 07-02-2023 em cumprimento do disposto no artigo 17.º do RJAT, notificado à AT para, querendo, apresentar resposta.

 

4.A AT apresentou Resposta, em tempo, em 13-03-2023.

 

5.Em 15-03-2023, a AT veio juntar o processo administrativo e informar o Tribunal Arbitral de que, no âmbito da reclamação graciosa n.º ...2022..., já havia sido proferido despacho de deferimento parcial em 02-12-2022, não tendo sido efetuada a sua notificação para efeitos do exercício da audição prévia, uma vez que, entretanto, havia sido apresentado o pedido de constituição de Tribunal Arbitral.

Na sequência do deferimento parcial, foram mantidas todas as correções constantes no RIT com exceção dos encargos com FSE, sendo aceite a sua dedução para efeitos de IRC e IVA:

 

  • IRC
    2018: € 8.749,12 (€ 2.270,09 + € 5.578,22 + € 400,81).
  • IVA
    2018/10:€ 637,12;
    2018/11:€ 1.282,99;
    2018/12:€ 92,19.

 

Em 18-04-2023, foi proferido Despacho arbitral com o seguinte teor:

“1. Para efeitos da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT fixa-se o dia 10 de Maio às 15, 00 horas.

2. Nessa reunião terá lugar a audiência de julgamento.

a. Para esse efeito, devem as partes informar o CAAD, num prazo razoável anterior à diligência agendada, sobre a vontade de deslocação às instalações do CAAD, em Lisboa, ou no Porto, ou em alternativa participar na diligência on-line, via WEBEX, e se as testemunhas serão apresentadas nas instalações do CAAD no Porto ou em Lisboa. Presume-se, na ausência tempestiva em sentido contrário, que as partes e as testemunhas se irão apresentar nas instalações do CAAD em Lisboa. 

b.Na reunião proceder-se-à à inquirição de testemunhas a apresentar pelas partes.

c.Na reunião será fixada a data para alegações escritas, a menos que as partes optem por alegações orais.

Do presente despacho, notifiquem-se ambas as partes.”

 

6.Em 10-05-2023, teve lugar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo sido inquiridas as testemunhas indicadas pela Requerente: Dra. F... (Diretora do Departamento Administrativo e Financeiro da Requerente); Dra. G... (Diretora do Departamento de Software e Serviços da Requerente) e Dra. H... (contabilista certificada da Requerente).

 

7.Em 26-05-2023, a Requerente apresentou alegações.

 

 

II. Saneamento

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

III. Fundamentação

 

III.1. Matéria de facto

 

§1.ºFactos dados como provados

1. A Requerente impugnou as seguintes liquidações:

A - de IRC e juros compensatórios relativas a:

  • 2017: n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., com montante total a pagar de € 71.353,16;
  • 2018: n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., com montante total a pagar de € 370.658,95.

B - de IVA e juros compensatórios n.º 2021 ..., n.º 2021 ..., n.º 2021 ..., n.º 2021 ..., n.º 2021 ..., n.º 2021..., n.º 2021 ... e n.º 2021 ..., relativas aos meses de Setembro a Dezembro de 2018, com montante total a pagar de € 4.135,00.

Estas liquidações foram objeto de reclamação graciosa apresentada em 29-04-2022, com o n.º ...2022..., tendo a requerente presumido o seu indeferimento tácito.

2. Na sequência do Relatório de Inspeção Tributária, as regularizações voluntárias por parte da requerente foram as seguintes (em euros, Quadro 1):

 

Lucro tributável declarado

Regularizações voluntárias

Lucro tributável corrigido

Tributações autónomas declaradas

Regularizações voluntárias

Tributações autónomas corrigidas

2017

61.639,35

 

40.168,85

 

101.808,20

 

8.536,36

 

25.524,81

 

33.061,17

 

2018

66.737,90

 

16.073,12

 

82.811,02

 

9.794,78

 

14.237,71

 

24.032,49

 

 

3. Com base nas demonstrações de liquidação e de juros, foram emitidas as demonstrações de acerto de contas n.ºs 2021 ... e 2021 ..., apurando-se os valores pagos pela Requerente nos dias 6 e 9 de dezembro de 2021, de € 38.015,65, referente ao ano de 2017 e de € 19.515,26, referente a 2018.

4. Do Relatório Final de Inspeção Tributária resulta que a Requerida fez as seguintes correções ao lucro tributável e ao imposto:

a) não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2017, do gasto com o valor de € 242.692,06;

b) não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2018, do gasto com o valor de € 138.840,00;

c) não aceitação como fiscalmente dedutíveis em IRC, no ano de 2018, de gastos num total de € 16.180,12;

d) não aceitação como dedutível o IVA suportado com os gastos referidos na alínea anterior, levando ao pagamento de IVA no montante de € 3.721,44;

e) não aceitação como fiscalmente dedutíveis em IRC, no ano de 2018, de gastos num total de € 51.708,70, em face da inexistência de suporte documental;

f) tributação autónoma sobre despesas não documentadas na conta 6251101, referentes ao ano de 2018, no valor de € 25.854,35 (como resultado da alínea anterior);

g) tributação autónoma sobre despesas não documentadas na conta 27221901, referentes ao ano de 2018, no valor de € 120.149,37;

h) tributação autónoma sobre despesas não documentadas na conta 59304 (referentes ao ano de 2018, no valor de € 128.681,39;

i) tributação autónoma sobre despesas não documentadas decorrentes de débitos bancários não contabilizados, referentes aos anos de 2017 e 2018, nos valores de € 5.583[1] e de € 14.500 respetivamente; 

j) tributações autónomas sobre encargos relativos a ajudas de custo e encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, referentes aos anos de 2017 e de 2018, nos valores de € 2.822,77 e € 3.613,01, respetivamente.

 

Correções ao Lucro tributável (gastos não aceites fiscalmente)

Tributações autónomas em falta

IVA indevidamente deduzido

2017

242.692,06

 

8.405,77

 

-

2018

206.728,82

 

292.798,12

 

3.721,44

 

5. Em face do exposto, os valores corrigidos pela AT constam do quadro seguinte (em euros,

 Quadro 2):

 

6. A AT apresentou um requerimento, juntando ao processo a revogação parcial dos atos tributários objeto deste pedido de pronúncia arbitral. Segundo esse requerimento, no âmbito da reclamação graciosa n.º ...2022..., já havia sido proferido despacho de deferimento parcial em 2/12/2022. Porém, a notificação para o exercício da audição prévia não foi feita, porque, entretanto, fora apresentado o pedido de constituição do Tribunal Arbitral. Daqui resulta que algumas correções apresentadas no Relatório de Inspeção Tributária, e incluídas no suprarreferido ponto 4, alíneas c) e d), tenham sido revogadas. Logo, no total corrigido relativo aos encargos em IRC (€16.180,12), referentes ao exercício de 2018, deve ser subtraído, porque aceite fiscalmente, o montante de € 8.749,12 (€ 5.578,22 + € 2.270,09 + € 400,81). O IVA correspondente a estes encargos passa a ser considerado dedutível, no total de € 2.012,30 (€ 1.282,99 + € 637,12 + € 92,19), devendo, pois, ser abatido ao valor de € 3.721,44. Assim, os valores em contenda referidos no ponto 4, alíneas c) e d) dos factos provados, passam a ser de € 7.431 em IRC e € 1.709,14 em IVA, respetivamente.

 

7. Daqui resulta que os ajustamentos controvertidos são os seguintes (em euros, Quadro 3):

 

Correções ao Lucro tributável (gastos não aceites fiscalmente)

Tributações autónomas em falta

IVA indevidamente deduzido

2017

242.692,06

 

8.405,77 = 50% x 11.166 + 5% x 56.455,47

 

-

2018

 

197.979,7 = 138.840 +51.708,7 + 7.431

292.798,12 = 50% x 27.000 + 50% x 2.000 + 50% x (51.708, 70 + 240.298,74 + 257.362,77) + 5% x 72.260,26

 

1.709,14

 

 

 

8. Sobre as correções relativas a tributações autónomas sobre despesas não documentadas- débitos bancários não contabilizados, foram apresentados os seguintes cheques ao portador (total de € 38.166, sendo € 11.166 de 2017 e € 27.000 de 2018):

  1. CGD, 3/4/2017, € 3.450 (I..., no verso)
  2. CGD, 28/4/2017, € 1.946 (I..., no verso)
  3. CGD, 31/5/2017, € 1.770 (I..., no verso)
  4. CGD, 31/8/2017, € 1.600 (F..., no verso)
  5. CGD, 29/9/2017, € 1.200 (I..., no verso)
  6. CGD, 4/12/2017, € 1.200 (I..., no verso)
  7. CGD, 3/1/2018, € 1.500 (I..., no verso)
  8. STD, 31/1/2018, € 1.300 (F..., no verso)
  9. CGD, 11/4/2018, € 2.500 (F..., no verso)
  10. STD, 30/4/2018, € 4.500 (F..., no verso)
  11. STD, 1/6/2018, € 4.000 (J..., no verso)
  12. STD, 29/6/2018, € 2.200 (J..., no verso)
  13. STD, 30/7/2018, € 3.000 (J..., no verso)
  14. STD, 31/8/2018, € 3.600 (F..., no verso)
  15. STD, 28/9/2018, € 2.500 (J..., no verso)
  16. STD, 31/10/2018, € 1.900 (J..., no verso)

 

9.Ainda sobre as tributações autónomas que incidiram sobre os € 2000, a Requerente alegou que “o pagamento de serviços efectuado a 22 de Março de 2018, no valor de EUR 2.000,00, respeita ao pagamento parcial de um cartão de crédito que tem condições especiais para pagamento de viagens e compras no estrangeiro, por repartir o pagamento em três ou seis prestações sem juros”, e que “através do referido cartão de crédito foi paga a quantia de EUR 7.393,86, respeitante a viagens, estadias e deslocações que o gerente da Requerente efectuou em nome e em representação da desta última em Agosto e Setembro de 2017”.

10.A testemunha Dra. F... declarou que o levantamento dos cheques era feito diretamente por si ou dava indicações a algum funcionário para o fazer. Que o seu destino era para fazer face a despesas diárias (pagamentos a fornecedores que não aceitavam cheques, pagamento de refeições, comunicações, impostos e equipamentos, nomeadamente telemóveis). Os documentos relativos às despesas pagas em numerário eram depois entregues aos serviços de contabilidade.

11.A testemunha Dra. H..., contabilista certificada, confirmou que lança os documentos de despesa na contabilidade que lhe eram entregues pelo departamento administrativo. Apenas no final do ano, em que faz a conciliação bancária, é que identifica eventuais diferenças entre as despesas apresentadas e os valores dos levantamentos bancários. Sobre essas eventuais diferenças, a recorrida não se manifestou, nem no Relatório de Inspeção nem nas contra-alegações. De todo o modo, não foram exibidos pela Requerente os documentos de despesa que suportavam os montantes levantados em numerário e que foram solicitados pela requerida.

12.Sobre as correções relativas a tributações autónomas sobre ajudas de custo e encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, a testemunha Dra. F... declarou que os funcionários da requerente têm de se deslocar em viatura própria às instalações dos clientes para fazerem a configuração e parametrização do sistema informático e dar formação aos utilizadores finais. Essas despesas são registadas num mapa, objeto de controlo pelos chefes de departamento, e processados pela testemunha. Como o contrato com o cliente é feito por um preço global, as despesas processadas aos funcionários não são direta e autonomamente debitadas ao cliente na faturação emitida.

13.A testemunha Dra. G... corroborou que o modelo de negócio da Requerente exigia a utilização de viatura própria dos trabalhadores para se deslocarem às instalações dos clientes. Também confirmou que a requerente não pode discriminar as despesas nas faturas emitidas aos clientes abrangidas pelas regras relativas à contratação pública.

14.Sobre as correções relativas a tributação autónoma sobre despesas não documentadas (alíneas f), g) e h) do ponto 4), a testemunha Dra. H... explicou que as regularizações ocorreram na sequência das dúvidas suscitadas por uma entidade externa sobre a composição de alguns saldos que constavam há muitos anos da contabilidade. Tratando-se de valores indevidamente registados naquelas contas, foram saldadas por contrapartida da conta de depósitos à ordem.

15. Sobre as despesas relacionadas com a atividade de team building, a testemunha Dra. F... confirmou que o referido equipamento respeitante à chaminé é transportável e é usado nas atividades de team building realizadas pela requerente.

16. Por sua vez, a testemunha Dra. G... descreveu a utilização do referido equipamento na atividade de team building que ocorreu na Quinta ... (explorada pela E..., Lda., detida por uma sócia da requerente).

17. Segundo a testemunha Dra. F..., que descreveu as atividades realizadas no evento de team building de 2018, o orçamento fixado para esse evento foi afeto às obras de melhoria da Quinta ..., designadamente construção de casas de banho, como forma alternativa ao aluguer do espaço. A testemunha referiu ainda que o custo dessas obras se enquadrava no preço das atividades de team building realizadas em anos anteriores. As atividades de team building em 2018 e o acordo celebrado com a Quinta ... foram descritas pela Dra. G..., que também confirmou que o orçamento atribuído para 2018 era comparável com o de anos anteriores.

18.As liquidações de IRC, IVA e juros compensatórios acima referidas foram pagas pela Requerente dentro do prazo concedido para o efeito – cfr. documentos n.os 31 a 35.

19.A Requerente não se conformou com as correções em referência nem tão-pouco com os consequentes atos tributários, reputando-os por isso de ilegais e anuláveis, o que a levou a apresentar, a 29 de Abril de 2022, reclamação graciosa das liquidações de IRC e IVA acima identificadas, referentes aos anos de 2017 e de 2018, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º e 71.º do CPT, 137.º do Código do IRC e 97.º do Código do IVA – cfr. documento n.º 1.

20.Na presente data, o referido procedimento de reclamação graciosa encontra-se pendente junto da Administração Tributária, correndo os seus termos sob o n.º ...2022... .

21.Volvidos mais de quatro meses sobre a data de apresentação do referido pedido de revisão oficiosa, a ora Requerente não foi ainda notificada pela Administração Tributária de decisão final em sede do correspondente procedimento, verificando-se assim uma situação de indeferimento tácito.

 

§2.ºFactos dados como não provados

Os factos dados como provados são aqueles que o Tribunal Arbitral considera relevantes, não se considerando factualidade dada como não provada que tenha interesse para a decisão.

 

 

§3.ºFundamentação da matéria de facto provada e não provada

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a convicção ficou formada com base nas peças processuais e requerimentos apresentados pelas Partes, bem como nos documentos juntos aos autos.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal Arbitral não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi das alíneas a) e e) do n.º do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do n.º 7 do artigo 110.º do CPPT, a prova documental, testemunhal e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13, “o valor probatório do relatório da inspeção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a decisão, em relação às provas produzidas, na íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC.

Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

Na valoração do Tribunal Arbitral foi tida em conta a prova testemunhal, tendo as testemunhas inquiridas demonstrado conhecimento da situação e prestado depoimento com convicção.

 

 

 

 

 

III.2. Matéria de direito

 

III.2.1-Quanto à ilegalidade dos atos tributários

 

A) - Quanto às correções ao lucro tributável

 

1 - Quanto à não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2017, do gasto com o valor de € 242.692,06.

 

Sobre a não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2017, do gasto com o valor de € 242.692,06, relativo a fornecimentos e serviços externos (trabalhos especializados), registo n.º ... do diário de 33, contabilizado alegadamente sem suporte documental e sem justificação comprovada do diferimento [alínea a) do ponto 4)].

A Requerente alega que estes gastos dizem respeito à aquisição de serviços de manutenção da plataforma informática FUTURE DOC, efetuados no ano de 2016. No entanto, apesar de terem sido efetivamente lançados na contabilidade no exercício de 2016, por lapso de reconhecimento contabilístico, não foram levados à conta de gastos correspondente. Assim que a irregularidade foi detetada e uma vez que não foram considerados em 2016, estes montantes foram lançados nas contas de gastos de 2017.

A Requerente alega que se trata de lapso no reconhecimento contabilístico dos gastos, que não originou um prejuízo para a receita fiscal, nem tão pouco originou qualquer vantagem para si. E tenta justificar o seu comportamento dizendo que “Não tendo a Requerente retirado qualquer vantagem ou benefício (legítimo ou ilegítimo) do facto de não ter reconhecido tais gastos em 2016 e tê-lo feito em 2017, pois que tal situação consubstanciou um lapso da contabilidade, cujo responsável foi alterado no decurso desse mesmo ano, que foi particularmente turbulento na esfera da empresa” (ponto 80.º do Pedido).

“Não tendo havido qualquer intenção de omitir custos ou de diferir ilegitimamente o seu pagamento, a não aceitação dos gastos incorridos seria violadora do princípio da justiça e, simultaneamente, extremamente penalizadora para a Requerente, que ficaria definitivamente e por meras razões formais impossibilitada de deduzir gastos em que efectivamente incorreu para obter rendimentos tributados em IRC por já terem decorrido os prazos legais para a substituição das declarações de rendimentos ou para a apresentação de reclamação graciosa da liquidação de IRC de 2016” (ponto 81.º do Pedido).

Apoiando-se na jurisprudência do STA (Acórdão de 14 de Março de 2018, Processo n.º 0716/13, a Requerente argumenta que, no contexto apontado, “o princípio da especialização dos exercícios deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal” (artigos 266.º, n.º2, da CRP e 55.º da LGT), “por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios”.  

Conforme se pode ler no Relatório de Inspeção, a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) n.º 4 dedica-se ao tratamento contabilístico dos erros de períodos anteriores, quando são detetados.  No seu parágrafo 5 define-os como “omissões, e declarações incorrectas, nas demonstrações financeiras da entidade de um ou mais períodos anteriores decorrentes da falta de uso, ou uso incorrecto, de informação fiável que: (a) Estava disponível quando as demonstrações financeiras desses períodos foram autorizadas para emissão; e (b) Poderia razoavelmente esperar-se que tivesse sido obtida e tomada em consideração na preparação e apresentação dessas demonstrações financeiras”.

Naquele Relatório considera-se que: “(…) embora não tenha sido possível comprovar duplicação de gastos, concluímos que o lançamento em questão não se tratou de um lapso, mas de uma ação deliberada, porquanto aqueles documentos encontravam-se registados numa conta de gastos, apenas deixando de o estar após movimento contabilístico para o efeito”, concluindo-se pela violação do princípio da especialização dos exercícios.

Vejamos. 

O citado artigo 18.º do Código do IRC, na parte que mais interessa considerar, dispõe o seguinte:

 1 – Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

 2 – As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas. (…).

Consigna o n.º 1 o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, que consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efetivo recebimento ou pagamento. O n.º 2 permite que proveitos ou custos respeitantes a exercícios anteriores sejam imputáveis a um outro exercício apenas quando à data do encerramento das contas daquele eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos. O que significa que o custo ou proveito está tendencialmente associado ao momento da emissão do documento. Trata-se de um critério contabilístico que reflete o princípio da periodização anual do imposto.

Constitui, no entanto, jurisprudência uniforme e reiterada que não se vê motivo para interpretar esse princípio em sentido estritamente literal quando da imputação do proveito ou custo a um exercício diverso daquele a que respeitava não resultar prejuízo para a Fazenda Nacional e a correção poder vir a traduzir-se num agravamento fiscal do contribuinte.

Como consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 422/2016-T, podemos ler que:  

“(…) Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a administração ter em conta as consequências da sua actividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto

A aplicação do princípio da justiça sobrepondo-se ao princípio da especialização dos exercícios tem sido efectuada em situações deste tipo, conduzindo a que não seja efectuada qualquer correcção quando não é possível imputar os gastos ao exercício a que deveriam ser imputados, à face daquele princípio, e os sujeitos passivos não actuaram intencionalmente com o objectivo de obterem alguma vantagem.

O Supremo Tribunal Administrativo tem adotado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios». ( [1] ) ( [2] )

Com efeito, constitui jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Administrativo “(…) que a rigidez deste princípio tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado – vide, neste sentido, acórdãos da Secção de Contencioso Tributário de 19.11.2008, recurso 325/08, de 02.04.2008, recurso 807/07, de 19.05.2010, recurso 214/07, de 25.06.2008, recurso 291/08, de 09.052012, recurso 269/12 e de 02.03.2016, recurso 1204/13.”

Como consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 874/2019-T, pode ler-se que :“Como se afirma no acórdão do STA de 13 de outubro de 1996 (Processo n.º 20404), sem pôr em causa a relevância fiscal do princípio da especialização dos exercícios, é de admitir a imputação de custos a exercícios anteriores, quando ela não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios, como é o caso em que está prestes a acabar ou iniciar um período de isenção, quando há interesse em reduzir prejuízos de determinado exercício ou retirar benefícios do seu reporte e quando se pretende reduzir o montante dos lucros tributários.”

No mesmo sentido, na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 263/2022-T, seguindo o Acórdão do STA, proc. 0716/13 de 14-03-2018, pode ler-se: (…) “A jurisprudência do STA, desde há já largos anos, é no sentido de que a violação do princípio da especialização dos exercícios deve irrelevar quando a sua observância legitimar um resultado claramente ofensivo do princípio da justiça. Com tal jurisprudência, diremos que esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

“Jurisprudência que é pacífica e aparece refletida em numerosas decisões, quer dos tribunais estaduais, quer arbitrais.

“Na doutrina, na obra que é referência maior sobre o tema, Tomás Cantista Tavares analisa, detalhadamente, a questão dos “erros temporais”. Entre as suas várias conclusões, que partilhamos, defende a positivação legal de uma norma semelhante à que existe na Ley del Impuesto sobre Sociedades espanhola, a qual aceita tais erros (i. e., a violação do princípio da periodização do lucro) siempre que de ello no derive una tributación inferior a la que hubiera correspondido por aplicación de las normas de imputación temporal prevista en los apartados anteriores.”

“É manifestamente o presente caso: não houve prejuízo para o Estado e a manutenção da liquidação impugnada resultaria na tributação de um rendimento de elevado valor que, em termos reais, a Requerente nunca obteve, ou seja, em ofensa grave ao princípio da capacidade contributiva ou, se se quiser, ao princípio constitucional da tributação das empresas pelo rendimento real.

“Estes dois princípios são, pela sua natureza, estruturantes do nosso sistema fiscal. Já o princípio da periodização do lucro tem caráter meramente instrumental (é uma convenção contabilística) que visa, em primeira linha, o correto balanceamento de ganhos perdas como condição de apuramento de um resultado que espelhe a realidade económica da empresa.

“A previsão deste princípio na lei fiscal (artº 18º do CIRC) – caso único de expressa consagração na lei fiscal de um princípio contabilístico – obedece, necessariamente a um intuito fiscal: proteger os interesses fazendários, sempre que, através da sua violação por alguma forma seja reduzido ou adiado o montante do imposto legalmente devido.

“Não havendo prejuízo para o Estado, ou, mais ainda, havendo um ganho em resultado da violação de tal princípio, a questão será, em princípio, fiscalmente irrelevante, tal como sucede relativamente à não observância de outros princípios contabilísticos. (…)”.

Finalmente, numa situação similar à dos presentes autos, ficou consignado no Acórdão do TCA-S de 13-05-2021 (proc. 1528/07.7BELSB):

“In casu, não há dúvida que os custos no valor de €547.844,01, assentam em faturas datadas de 2001, porquanto face a todo o supra expendido a sua imputação deveria ter sido realizada nesse mesmo ano.

Aliás, a Recorrente assume tal circunstância, no entanto advoga que tal prática tem vindo a ser implementada desde a sua transformação em sociedade anónima, e que a mesma não constituiu qualquer omissão voluntária e intenção deliberada de transferir resultados entre os exercícios com o intuito de diminuir a carga fiscal e tributação.

De facto, há um erro contabilístico reconhecido e o mesmo assume um carácter recorrente, não procedendo a esteira de razão invocada no sentido de que esta prática é adotada face a critérios de gestão interna cujo encerramento de contas do exercício ocorria no termo do mês de janeiro, desde logo, porque é desconforme com o artigo 115.º, nº4 do CIRC, descurando, outrossim, o teor do artigo 114.º, nº2, do CIRC.

No entanto, conforme já evidenciado anteriormente e, como propugna, a Recorrente o princípio da especialização dos exercícios deve ser sopesado com o princípio da justiça, sendo que numa situação em que não é colocada em causa a efetividade dos custos e a sua documentabilidade, e já não é possível fazer-se a correção simétrica, designadamente, por já não ser possível apresentar reclamação de autoliquidação, requerer a revisão do ato tributário, ou mesmo diligenciar a AT nessa correção por estar caducado o direito à liquidação, então a AT deve abster-se de tributar, ressalvadas, claro, as situações em que tenha existido uma intenção deliberada de transferência de custos com o intuito de lesar o Estado.”

No caso dos autos ficou provado que os gastos suportados em 2016 poderiam ter sido imputados a este exercício, cumprindo com o disposto do artigo 18.º, n.º 1 do CIRC, segundo o qual “os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica”.

Em princípio não se vislumbram razões para que os gastos não tenham permanecido registados em 2016. A Requerida limita-se, porém, a alegar a violação do princípio da especialização dos exercícios. E assim foi, mas a Requerente alega ter-se tratado de um lapso contabilístico. 

Ou seja, não obstante não se perceber aparentemente a razão que conduziu à violação do princípio da especialização dos exercícios, a Requerida limita-se a alegar a violação do princípio contabilístico, mas não logrou fazer prova de se tratar um comportamento intencional por parte da Requerida no sentido de prejudicar o Estado. Em nenhum momento a Requerida suscitou a questão da intencionalidade dolosa ou fraudulenta da Requerente, no sentido de o movimento contabilístico estar ao serviço da prossecução de intuitos fiscais. Não existem sequer quaisquer indícios de que a Requerente tenha sido movida por intuitos duvidosos.

Também não vem demonstrado, como impendia sobre a Requerida, que a Requerente já havia relevado os gastos em causa noutro exercício ou que, de alguma forma, os duplicou. Pelo contrário, pode ler-se no Relatório de Inspeção “(…) que não foi possível comprovar uma eventual duplicação de gastos…”.

Em suma, aplicando ao caso a jurisprudência atrás mencionada temos:

Não vem colocada a efetividade dos gastos ou a sua dedutibilidade.

Em nenhum momento a AT suscitou a questão da intencionalidade fraudulenta da empresa reclamante, não tendo sido provada qualquer intenção de omitir custos ou de deferir ilegitimamente o seu pagamento.

Não se provou qualquer duplicação de gastos.

Também não se provou que qualquer prejuízo venha a resultar para a Requerida do facto de o gasto ser deduzido no exercício de 2017.

A Requerente fica definitivamente impossibilitada de deduzir gastos em que efetivamente incorreu por já terem decorrido os prazos legais para substituição das declarações de rendimentos ou para apresentação de reclamação graciosa da liquidação de IRC de 2016.

Como ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 256/2022-T “(…) estando afastada a possibilidade de correção simétrica, designadamente, por já não ser possível apresentar reclamação da autoliquidação, requerer a revisão do ato tributário, ou mesmo diligenciar a AT nessa correção por estar caducado o direito à liquidação, então a AT deve abster-se de tributar.”

Assim sendo, ponderando os interesses e princípios jurídicos em jogo, a saber, por um lado, o princípio da especialização dos exercícios e, por um lado, os princípios da justiça e da capacidade contributiva do contribuinte, afigura-se desproporcionada a não aceitação dos gastos incorridos, no contexto apontado.

Termos em que se conclui que serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, os atos de correção da matéria tributável em causa.

 

2 - Quanto à não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2018, do gasto com o valor de € 138.840,00

 

         A Requerente argumenta que “o documento de suporte da operação em crise decorre do registo da factura n.º 2018/3769, emitida em 28 de Dezembro de 2018, que titula os serviços prestados à B..., no valor de EUR 138.840,00, a que acresceu IVA à taxa legal pelo valor de EUR 31.933,20, num total de EUR 170.773,20, no âmbito do contrato de prestação de serviços inerente ao desenvolvimento da solução de gestão documental dos Municípios ..., celebrado em 17 de Julho de 2018 e com o valor global de EUR 231.258,45 (IVA incluído)”. Acrescenta que o projeto começou a ser implementado logo após a celebração do contrato de prestação de serviços e que a última fatura referente a este projeto foi emitida em 19-06-2020, ultrapassando em quase dois anos o prazo previsto para a respetiva conclusão.

         Da matéria de facto dada como provada resulta que a fatura e o correspondente rendimento foram registados no exercício de 2018. Porém, dado que o contrato de prestação de serviços se prolongaria por mais tempo e para evitar o diferimento do rendimento para exercícios futuros (porque estava em causa um projeto com financiamento europeu), a empresa registou numa conta do passivo – acréscimo de gastos – por contrapartida de gastos do exercício, um valor equivalente ao da fatura, significando, em termos práticos, a anulação do rendimento correspondente. A empresa alega que “incorreu igualmente nos custos inerentes à execução do projecto, tendo-os registado em conformidade no ano de 2018, inexistindo qualquer fundamento para a desconsideração do gasto fiscal no total de EUR 138.840,00”.

 

Vejamos.

Estes gastos foram acrescidos ao exercício de 2018 e têm um valor igual ao da fatura emitida em 28 de Dezembro de 2018, relativa aos serviços prestados à B..., no valor de € 138.840,00.

A Requerente invoca a NCRF 20 parágrafo 20, segundo a qual “Quando o desfecho de uma transacção que envolva a prestação de serviços possa ser fiavelmente estimado, o rédito associado com a transacção deve ser reconhecido com referência à fase de acabamento da transacção à data do balanço” para justificar o acréscimo de gastos. Com efeito, o chamado método da percentagem de acabamento (NCRF 20, parágrafo 21) procura concretizar o princípio do balanceamento entre gastos e rendimentos.

Porém, o que a NCRF 20 refere no seu parágrafo 21 é que “Os réditos relativos a prestações de serviços consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data em que o serviço é concluído, exceto tratando-se de serviços que consistam na prestação de mais de um ato ou numa prestação continuada ou sucessiva, que são imputáveis proporcionalmente à sua execução”. Em sentido aproximado, o artigo 18.º n.º 3, alínea b), do CIRC refere que “Os réditos relativos a prestações de serviços consideram-se em geral realizados, e os correspondentes gastos suportados, na data em que o serviço é concluído, exceto tratando-se de serviços que consistam na prestação de mais de um ato ou numa prestação continuada ou sucessiva, que são imputáveis proporcionalmente à sua execução”.

Não foi este o procedimento que a empresa utilizou para imputar os gastos e os rendimentos aos exercícios a que dizem respeito. O procedimento utilizado pela empresa só faria sentido se se tratasse de gastos de 2018, cuja documentação apenas estivesse disponível no ano seguinte (o que não aconteceu).

Também aqui o procedimento contabilístico derivou da errónea interpretação dos normativos aplicáveis. No entanto, em nenhum momento a AT suscitou a questão da intencionalidade fraudulenta da empresa reclamante, não tendo sido provada qualquer intenção de omitir custos ou de deferir ilegitimamente o seu pagamento.

Assim sendo, em termos substantivos, valem aqui as mesmas razões atrás apontadas para considerar desproporcionada a não aceitação dos gastos incorridos, no contexto apontado.

Termos em que se conclui que serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, os atos de correção da matéria tributável em causa.

 

3 - Quanto aos gastos desconsiderados em 2018, no valor de € 51.708,70

 

            A Requerente não apresenta quaisquer justificações para discordar da exclusão deste montante no lucro tributável de 2018. Apenas invoca argumentos para afastar a tributação autónoma destas despesas (referentes a deslocações e estadas que não correspondem a gastos incorridos), analisada mais adiante.

A testemunha Dra. H... explicou que se trata de meras regularizações contabilísticas que ocorreram na sequência das dúvidas suscitadas por uma entidade externa sobre a composição de alguns saldos que constavam há muitos anos da contabilidade. Tratando-se de valores indevidamente registados naquelas contas, foram saldadas por contrapartida da conta de depósitos à ordem.

Assim sendo, da conjugação da prova documental e testemunhal resulta que este montante foi registado numa conta de gastos (#6251101), porque se trata de um movimento de regularização, pelo que este gasto contabilístico não é gasto fiscal.

 

4 - Quanto à não aceitação como fiscalmente dedutíveis em IRC, no ano de 2018, de gastos num total de € 7.431 e a dedução de IVA no valor de € 1.709,14.

 

A Requerente argumenta que dizem respeito a:

(1) aquisição de uma chaminé em cobre utilizada nas atividades de team building, armazenada na sua sede, no Porto (fatura n.º 0871 de 4/10/2018, no valor de € 375, acrescendo IVA no valor de € 86,25).

(2) aquisição de serviços de aplicação de vidros e espelhos na Quinta ..., encargos assumidos pela requerente como contrapartida pela realização de uma atividade de team building no referido local (faturas n.º 2018/2884, de 18/10/2018, no valor de € 3.257,5; n.º 2018/2886, de 18/10/2018, no valor de € 541 e n.º 2018/2661, de 26/9/2018, no valor de € 3.257,5).

O IVA destes encargos, desqualificados para efeitos de IRC, foi considerado não dedutível pela AT, totalizando € 3.721,44 (alínea d) do ponto 4).

O gasto com a aquisição da chaminé e a dedução do respetivo IVA não foram aceites pela Requerida, com base na evidência de que o local de descarga da chaminé não corresponde ao da sede da empresa (mas em “... – Vila Nova de Famalicão”).

            Em relação ao gasto com a aquisição da chaminé, a testemunha Dra. F... confirmou que o referido equipamento é transportável e é usado nas atividades de team building realizadas pela Requerente. Por sua vez, a testemunha Dra. G... descreveu a utilização do referido equipamento na atividade de team building que ocorreu na Quinta ... (explorada pela E..., Lda., detida por uma sócia da Requerente).

Por sua vez, segundo a testemunha Dra. F..., que descreveu as atividades realizadas no evento de team building de 2018, o orçamento fixado para esse evento foi afeto às obras de melhoria da Quinta ..., designadamente construção de casas de banho, como forma alternativa ao aluguer do espaço. A testemunha referiu ainda que o custo dessas obras se enquadrava no preço das atividades de team building realizadas em anos anteriores. No montante de gastos corrigidos, inclui-se, assim também a contrapartida paga pela reclamante pela realização de um evento de team building, que consistiu na assunção de custos com obras de ampliação na Quinta ..., criando as condições necessárias para que o referido evento aí fosse realizado.

         As atividades de team building em 2018 e o acordo celebrado com a Quinta ... foram descritas pela Dra. G..., que também confirmou que o orçamento atribuído para 2018 era comparável com o de anos anteriores. Não foi apresentado qualquer contrato que suportasse este acordo, sendo desconhecido pela testemunha se assumira a forma escrita. Mas foi apresentada cópia de um e mail com a programação daquela atividade.

           A Requerente registou essas despesas com as obras de ampliação nas suas contas de gastos, deduzindo o respetivo IVA. Esta opção, que se traduziu na assunção de gastos com obras de beneficiação em propriedade alheia, substituiu a assunção destas despesas diretamente pela sociedade que explora a Quinta ... e a faturação dos serviços de team building prestados à Requerente, que geraria gastos fiscais e o direito à dedução do respetivo IVA. Trata-se de uma entidade relacionada com a Requerente (nos termos do artigo 63.º do CIRC). Porém, aceita-se que o seu valor corresponde ao valor de mercado tanto pela prova testemunhal, como pelo facto de esta questão não ter sido alegada pela Requerida, sendo que recaía sobre a mesma o respetivo ónus da prova.

Isto posto, atenta a prova documental e testemunhal produzida deve concluir-se pela aceitação do gasto fiscal e da dedução do IVA suportado com a sua aquisição.

 

 

B) - Quanto às tributações autónomas

 

Tributações autónomas e despesa não documentadas - algumas considerações

 

Como ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 735/2019-T “As despesas não documentadas previstas no art. 88.º, nº 1, CIRC são, antes de mais, “despesas.” A existência de uma despesa implica uma saída efetiva de meios de pagamento a favor de terceiros ou, pelo menos, a assunção de uma dívida para com terceiros”, (…) sendo com “esse sentido, de saída efetiva de meios de pagamento (ou de assunção de responsabilidades financeiras) que o Código do IRC emprega o termo “despesa”, por oposição a “gasto”, em múltiplos locais, como, a título de exemplo, nos arts. 23º-A, nº 1 d), 31º, nº 2 a), 32º, nº 2 ou 43º, nº 2. (…) “O entendimento de “despesa” como saída efetiva de meios de pagamento ou assunção de uma responsabilidade financeira decorre também da ratio da própria tributação autónoma estabelecida no art. 88º. Com efeito, a despesa, por consistir num efluxo de meios financeiros (ou a assunção de uma dívida) a favor de um terceiro, gera para este um rendimento que deveria ser sujeito a tributação na esfera deste, não sendo possível tal tributação na esfera do terceiro beneficiário exatamente por não se conhecer a sua identidade.”

Quanto ao conceito de “despesas não documentadas”, atendendo à mesma ratio acima descrita, a falta de documentação relevante é a que impede o conhecimento da natureza, origem e finalidade das despesas, conforme tem sido afirmado pelos tribunais superiores (STA, 5/7/2000, proc. nº 24.632; TCA-Sul, 27-04-2017, proc. nº 1514/13.8BELRA; TCA-Norte, 20-01-2005, proc. nº 305/04), ao que devemos acrescentar a identidade dos beneficiários. Ou seja, para que a despesa não possa ser considerada indocumentada para efeitos do art. 88º, nº1, o que importa é que a documentação existente dê a conhecer a razão (natureza, origem, finalidade) da despesa, para que se possa avaliar a sua justificação, e os respetivos beneficiários, para que estes possam ser tributados. Desta forma, não é a existência de um qualquer documento relativo à despesa, como por exemplo um extrato bancário, que mostre o fluxo financeiro associado à despesa, que impede que a mesma se considere não documentada, pois esse documento nada diz sobre a razão da despesa e pode nada dizer sobre os respetivos beneficiários. “(…)”. Contudo para efeitos da aplicação das tributações autónoma previstas no art. 88º, não há que apurar qualquer relação entre a despesa e o fim lucrativo. Por outras palavras não é relevante saber se a despesa se traduz num verdadeiro gasto.”

Sobre o conceito de despesa não documentada, pode ainda ler-se na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 281/2019-T: “Como despesas não documentadas devem entender-se aquelas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental a nível contabilístico, e, como tal, não especificam a sua natureza, origem ou finalidade (acórdão do TCA Sul de 7 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 04690/11). Havendo de distinguir-se entre as despesas não documentadas e as despesas não devidamente documentadas, isto é, aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação" e que apenas acarretam a não dedutibilidade para efeitos fiscais.

Ainda segundo o acórdão do STA de 7 de Julho de 2010 (Processo n.º 0204/10), “[a] apreciacão da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se substância a despesa” (a despesa confidencial encontra-se integrada agora no conceito amplo de despesas não documentadas). Neste sentido, pode ler-se na Decisão arbitral proferida no processo n.º 105/2020-T, “as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC são em concreto saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. Este entendimento é o que melhor garante o sentido útil e a finalidade regulatória do preceito em causa, portanto o entendimento que adequadamente valora o elemento finalístico da lei.

“Revelando assim, de interesse para a presente causa, a questão da distinção “despesas não documentadas e indevidamente documentadas”, veja-se os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 08/05/2019 processo n.º 1119/16.1BELRA, e o processo n.º 9941/16.2BCLSB de 13/12/2019. Como escreve este último, “V. despesas não documentadas são aquelas em relação às quais não existe prova documental, embora não haja ocultação da sua natureza, origem ou finalidade. VI. Despesas indevidamente documentadas são aquelas em relação às quais existe alguma documentação de suporte, ainda que insuficiente. VII. Apenas as despesas não documentadas (e não as indevidamente documentadas) são passíveis de tributação autónoma.”

Importa, ainda, proceder à distinção entre as despesas não documentadas e as despesas não devidamente documentadas, isto é, aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação" e que apenas acarretam a não dedutibilidade para efeitos fiscais.

 

Apliquemos estes conceitos e esta doutrina aos factos que a AT, no caso dos autos, considerou como despesas não documentadas.

 

1 - Sobre os levantamentos de € 11.166 (em 2017) e de € 27.000 (em 2018):

 

A Requerente alega que se trata da emissão de cheques para fazer “levantamentos que se destinaram a ser integrados no caixa da Requerente, tendo em vista o pagamento das despesas correntes da actividade da sociedade comercial”, apresentando cópia dos mesmos.

Foram apresentados os seguintes cheques ao portador (total de € 38.166, sendo € 11.166 de 2017 e € 27.000 de 2018):

  1. CGD, 3/4/2017, € 3.450 (I..., no verso)
  2. CGD, 28/4/2017, € 1.946 (I..., no verso)
  3. CGD, 31/5/2017, € 1.770 (I..., no verso)
  4. CGD, 31/8/2017, € 1.600 (F..., no verso)
  5. CGD, 29/9/2017, € 1.200 (I..., no verso)
  6. CGD, 4/12/2017, € 1.200 (I..., no verso)
  7. CGD, 3/1/2018, € 1.500 (I..., no verso)
  8. STD, 31/1/2018, € 1.300 (F..., no verso)
  9. CGD, 11/4/2018, € 2.500 (F..., no verso)
  10. STD, 30/4/2018, € 4.500 (F..., no verso)
  11. STD, 1/6/2018, € 4.000 (J..., no verso)
  12. STD, 29/6/2018, € 2.200 (J..., no verso)
  13. STD, 30/7/2018, € 3.000 (J..., no verso)
  14. STD, 31/8/2018, € 3.600 (F..., no verso)
  15. STD, 28/9/2018, € 2.500 (J..., no verso)
  16. STD, 31/10/2018, € 1.900 (J..., no verso)

  O Relatório de Inspeção refere que “tais movimentos correspondem a retiradas da empresa não documentadas”, originando liquidações adicionais de € 5.583 (ver nota de rodapé n.º 1) e de € 14.500. A Requerente apresentou cópias dos cheques que identificavam os trabalhadores que procediam aos levantamentos e as testemunhas (responsáveis pelos levamentos e sua contabilização) explicaram os motivos para o fazer.         

Porém não foram identificados os lançamentos contabilísticos de transferência da conta de depósitos à ordem para a conta caixa, a qual seria creditada à medida que o pagamento em numerário das despesas diárias fosse feito. Também não foram apresentados os documentos de suporte das despesas em que aquele numerário fora aplicado, possibilitando estabelecer uma conexão do fluxo financeiro entre os cheques e as aquisições de bens e serviços pagas em numerário.

     Não sendo os funcionários identificados nos cheques levantados os destinatários finais desse numerário, a materialidade das operações não é cognoscível. Só o seria, caso se documentassem as despesas pagas com o numerário proveniente do levantamento dos cheques por aqueles funcionários, provando, designadamente, os destinatários finais e a finalidade do gasto, sendo que, como ficou dito, ao contrário do alegado pela Requerente, o ónus da prova impende sobre o Sujeito Passivo.

 Assim, a saída de meios monetários por via de cheques (ou “retiradas da empresa”) correspondem a despesas não documentadas “tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A” (artigo 88.º, n.º 1 do CIRC).

 

2 - Sobre o pagamento de € 2.000 (em 2018)

 

Neste caso coloca-se a questão de saber se estão em causa despesas não documentadas ou despesas indevidamente documentadas.

Em sede de IRC, a questão de direito que se coloca prende-se com o sentido e alcance do artigo 23.º do respetivo código para efeitos de aceitação como gasto fiscal de determinadas despesas reconhecidas na contabilidade da Requerente.

            A norma central nesta matéria é, assim, o nº 1 do referido artigo 23.º do CIRC, nos termos da qual, “para a determinação do lucro tributável, são dedutíveis todos os gastos e perdas incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”, articulada com os nºs 3 e 4 no mesmo preceito que referem:

“3 — Os gastos dedutíveis nos termos dos números anteriores devem estar comprovados documentalmente, independentemente da natureza ou suporte dos documentos utilizados para esse efeito. 

4 - No caso de gastos incorridos ou suportados pelo sujeito passivo com a aquisição de bens ou serviços, o documento comprovativo a que se refere o número anterior deve conter, pelo menos, os seguintes elementos: 

a) Nome ou denominação social do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário; 

b) Números de identificação fiscal do fornecedor dos bens ou prestador dos serviços e do adquirente ou destinatário, sempre que se tratem de entidades com residência ou estabelecimento estável no território nacional; 

c) Quantidade e denominação usual dos bens adquiridos ou dos serviços prestados; 

d) Valor da contraprestação, designadamente o preço; 

e) Data em que os bens foram adquiridos ou em que os serviços foram realizados. “

 

Interessa, igualmente, conjugar a análise com o disposto nas alíneas a) e b) do artigo 23º-A, que igualmente se transcrevem:

“1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

(...)

b) As despesas não documentadas;

c) Os encargos cuja documentação não cumpra o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 23.º, bem como os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou inválido ou por sujeitos passivos cuja cessação de atividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do n.º 6 do artigo 8.º;

(…).

 

Como se pode ler na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 793/2021-T, “são três requisitos para que um gasto possa ser deduzido.

O primeiro requisito encontra-se na primeira parte do n.º 1 do art.º 23.º e consiste em que o gasto tenha efetivamente ocorrido. Trata-se do requisito da “efetividade” do gasto, que a jurisprudência há muito estabeleceu (ac. STA de 22-01-2014, proc. nº 01632/13). Ter o gasto efetivamente ocorrido implica que tenha sido efetuado um pagamento, ou a obrigação de pagamento tenha sido satisfeita e extinta por outra forma que não o pagamento (compensação ou dação em pagamento, por exemplo), ou que tenha sido criada na esfera do sujeito passivo uma obrigação de pagamento.

Assim sendo, de uma forma genérica, não é possível aos sujeitos passivos deduzirem um gasto, ainda que bem documentado e ainda quando os documentos de suporte mostrem que tal gasto seria perfeitamente justificado pelo fim de realização do lucro, se não se demonstrar que o gasto é real, seja por existir um pagamento, seja por se ter extinguido por outra forma a dívida respetiva (vg. por compensação de créditos), seja ainda por ter sido gerada para o sujeito passivo uma obrigação de pagamento.

O segundo requisito encontra-se na segunda parte do n.º 1 do artigo 23.º do CIRC, sendo este um requisito de natureza finalística, que consiste em que o gasto deve ter sido realizado “para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC”. A lei deixou de falar em indispensabilidade dos gastos, como fazia anteriormente, exigindo agora que o gasto tenha sido incorrido para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. Determinante para a dedutibilidade do gasto na atualidade é que o gasto tenha como objetivo contribuir para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC. A este segundo requisito, a fim de facilitar a exposição, daremos a designação de “justificação do gasto”.

O terceiro requisito diz respeito à documentação do gasto, subdividindo-se em dois aspetos. Em primeiro lugar, é necessário que o gasto se encontre documentado, ou seja que exista prova documental que permita verificar, pelo menos, a existência do gasto. Em segundo lugar, é necessário que o documento que prova a existência do gasto cumpra, ele próprio, vários requisitos quanto ao seu conteúdo, nomeadamente que contenha os elementos de informação elencados nas alíneas a) a c) do nº 4 do artigo 23º.”

Aplicando o exposto ao caso dos autos, verifica-se que a Requerente alegou que “o pagamento de serviços efectuado a 22 de Março de 2018, no valor de € 2.000,00, respeita ao pagamento parcial de um cartão de crédito que tem condições especiais para pagamento de viagens e compras no estrangeiro, por repartir o pagamento em três ou seis prestações sem juros”, e que “através do referido cartão de crédito foi paga a quantia de € 7.393,86, respeitante a viagens, estadias e deslocações que o gerente da Requerente efectuou em nome e em representação da desta última em Agosto e Setembro de 2017”.

Embora não tenha sido exibido o documento de despesa, afetou-se este pagamento à liquidação do saldo de um cartão (contrato ... do Unibanco), que a Requerente alega servir para fazer face a pagamentos em nome e por conta da sociedade, não controvertidos pela AT. Trata-se de uma despesa não devidamente documentada, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 23.º do CIRC e, como tal não dedutível no lucro tributável. Porém, não sujeita a tributação autónoma.

 

3 - Sobre as regularizações contabilísticas: € 51.708, 70 + € 240.298,74 + € 257.362,77.

 

A Requerente alega que “os gastos registados na contabilidade da Requerente nas contas #6251101 (referentes a deslocações e estadas não correspondem a gastos incorridos por aquela), #27221901 (registo n.º ...  do diário 33 no valor de € 240.298,74) e #59304 (registo n.º ... do diário 3, no ano de 2018, no valor de € 257.362,77) consubstanciam movimentos contabilísticos meramente internos que tiveram como objectivo proceder à correcção dos saldos de, respectivamente, € 51.708,70, € 240.298,74 e € 257.362,77, das referidas contas, tendo como contrapartida a conta ... – Santander Totta, sem que a Administração Tributária tenha verificado a correspondência com efectivas disponibilidades financeiras, o que inquina as correcções ao imposto efectuadas”.

Com efeito, trata-se de regularizações contabilísticas de erros ocorridos em anos anteriores (apesar do primeiro valor estar refletido numa conta de gastos do exercício de 2018), cuja contrapartida foi a conta #...a crédito. Esta conta não corresponde ao extrato bancário, que a Requerente exibiu, mas à conta de depósitos à ordem do plano de contas da empresa. No entanto, atenta a natureza desta conta, que segundo as notas de enquadramento do sistema de normalização contabilística (SNC), publicadas pela Portaria n.º 218/2015, de 23 de julho, a Classe 1 - Meios Financeiros Líquidos - “destina -se a registar os meios financeiros líquidos que incluem, quer o dinheiro quer depósitos bancários, bem como ativos ou passivos financeiros mensurados ao justo valor”. Assim sendo, fazendo fé na contabilidade da Requerente, os valores relevados a crédito nesta conta traduzem-se em efetivas saídas de dinheiro, ainda em momento diferente do fluxo evidenciado nos extratos bancários da entidade. Após o chamado procedimento de conciliação bancária, que, como o próprio nome indica, consiste em conciliar as diferenças entre o saldo das contas contabilísticas e os extratos bancários, os créditos na conta #12 – depósitos à ordem deverão ficar espelhados, ainda que em momento não coincidente, nas contas de depósitos bancários da entidade. Daí que, tal como na situação anterior, tais saídas de dinheiro se subsumam ao conceito de “despesas não documentadas”, sujeitas à aplicação do regime excecional da tributação autónoma.

 

 

4 - Sobre as ajudas de custo e compensações por deslocações

 

Sobre as correções relativas a tributações autónomas sobre ajudas de custo e encargos relativos à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador (alínea j) do ponto 4), a Requerente argumenta que estas “foram sempre levadas a efeito no âmbito de projectos dos seus clientes, não sendo facturadas autonomamente, mas, pelo contrário, estando incluídas nos serviços prestados pela Requerente, inexistindo fundamento para as sujeitar a tributação autónoma”.

Na verdade, a Requerente demonstrou que os encargos incorridos com as ajudas de custo pagas aos trabalhadores e com a compensação pela distância percorrida em viatura própria são necessários à prestação dos serviços aos seus clientes. Considera que, demonstrada que está a empresarialidade destas despesas, deve concluir-se pela sua não sujeição a tributação autónoma.

A avaliação da empresarialidade dessas despesas, cuja dedutibilidade não foi questionada pela Requerida, envolve exigências documentais acrescidas. Assim, o artigo 23.º- A do CIRC, na sua alínea h) estabelece que não são dedutíveis  “as ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não possua, por cada pagamento efetuado, um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário”.

A Requerente apresentou prova documental e testemunhal para justificar as razões para que estes estes encargos não fossem faturados separadamente, o que foi acolhido por este Tribunal. Compreende-se que, a par de outros, estes encargos necessários à prestação dos serviços aos clientes estejam repercutidos no valor global das faturas emitidas. Porém, mesmo não sendo estes pagamentos expressamente discriminados nas faturas emitidas aos clientes, nem incluídos no rendimento tributável em IRS dos seus beneficiários, os mapas preenchidos pelos funcionários que lhes servem de suporte foram suficientes para concluir pela sua dedutibilidade.

No caso em apreço, está em causa a sujeição destas despesas, aceites fiscalmente, a tributação autónoma. Segundo o artigo 89.º, n.º 9 do CIRC, são tributados autonomamente à taxa de 5% “os encargos efetuados ou suportados relativos a ajudas de custo e à compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário”.

Estas despesas estão sujeitas a tributação autónoma, quando não forem faturadas aos clientes ou quando não forem sujeitas a tributação em IRS. Esta norma não consagra qualquer presunção de empresarialidade, não sendo possível apresentar prova que a ilida.   Neste sentido, o Acórdão uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Processo n.º 021/20.7BALSB, de 24/3/2021) concluiu que “as disposições legais que estabelecem a tributação autónoma objecto dos n.ºs 3 e 9 do art. 88.º do CIRC constituem normas de incidência tributária que não consagram qualquer presunção que seja passível de prova em contrário”.

 

III.2.2-Dos juros indemnizatórios

 

Como ficou dito e resulta do probatório, as liquidações de IRC, IVA e juros compensatórios foram pagas pela Requerente, que solicita a restituição do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, ter havido erro imputável aos serviços do qual resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vd. art. 43.º, n.º 1, da LGT). Como ficou dito na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 296/2019-T, “É, por isso, condição necessária para a atribuição dos referidos juros a demonstração da existência de erro imputável aos serviços. Nesse sentido, vejam-se, por ex., os seguintes arestos: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do art. 43.º da LGT [...] depende de ter ficado demonstrado no processo que esse ato está afetado por erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à AT.” (Acórdão do STA de 30 de maio de 2012, proc. 410/12); “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação «houve erro imputável aos serviços», entendido este como o «erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal»” (Acórdão do STA de 10 de abril de 2013, proc. 1215/12).”

No caso dos autos, tendo-se concluído, como decorre do que foi atrás dito, erro imputável aos serviços – o qual conduz à anulação parcial dos atos tributários em causa e à consequente devolução do montante pago pela Requerente, nos termos do disposto no artigo 173.º, n.º 1, do CPTA, ex vi art. 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT –, conclui-se, sem necessidade de mais considerações, pela procedência do pedido de pagamento de juros indemnizatórios, na proporção do respetivo vencimento e nos termos legais .

 

 

IV- DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Coletivo:

  1. Julgar procedente o pedido no que se refere às correções relativas à não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2017, do gasto no valor de € 242.692,06, relativo a serviços externos, com a consequente anulação da respetiva liquidação de IRC e juros compensatórios;
  2. Julgar procedente o pedido no que se refere às correções relativas à não aceitação como fiscalmente dedutível em IRC, no ano de 2018, do gasto no valor de € 138.840,00, relativo a serviços externos, trabalhos especializados, com a consequente anulação da respetiva liquidação de IRC e juros compensatórios;
  3. Indeferir o pedido no que se refere às correções relativas à desconsideração de gastos, relativos a IRC de 2018, no valor de € 51.708,70, com a consequente manutenção da respetiva liquidação de IRC e juros compensatórios, mantendo-se o indeferimento tácito;
  4. Julgar procedente o pedido no que se refere às correções relativas à desconsideração de gastos, relativos a IRC de 2018, no valor de € 7.431,7, com a consequente anulação da respetiva liquidação de IRC e juros compensatórios, assim como a relativa à não dedução de IVA no valor de € 1.709,14;
  5. Indeferir o pedido quanto aos levantamentos de € 11.166 (em 2017) e de € 27.000 (em 2018), incluindo os respetivos juros compensatórios, mantendo-se o indeferimento tácito;
  6. Julgar procedente o pedido quanto à não incidência de tributação autónoma sobre o pagamento de serviços de € 2.000;
  7. Indeferir o pedido quanto às regularizações contabilísticas (€ 51.708,70 + € 240.298,74 + € 257.362,77), incluindo os respetivos juros compensatórios, mantendo-se o indeferimento tácito;
  8. Indeferir o pedido quanto às ajudas de custo e compensações por deslocações (€ 56.455,47+€ 72.260,26), incluindo os respetivos juros compensatórios, mantendo-se o indeferimento tácito;
  9. Condenar a Requerida na devolução do imposto indevidamente pago, incluindo o pagamento de juros indemnizatórios, na proporção do respetivo vencimento da Requerente, contados desde a data do pagamento até à data da sua efetiva e total restituição.

 

V-VALOR DA CAUSA

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 394.730,10.

 

 

 

VI- CUSTAS

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem no valor de € 6.426,00 sendo 50% a cargo da Requerida e 50% a cargo da Requerente.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de julho de 2023.

 

O Tribunal Coletivo,

 

 

                                              (Fernanda Maçãs-árbitro presidente)

 

 

 

                                                    (Hélder Faustino-árbitro vogal)

 

                                                  

                                                  (Daniel Taborda-árbitro vogal)

 

 



[1] A Requerente, na petição inicial e nas contra-alegações, mantém o valor de € 11.583, que consta do projeto de relatório. Porém, no exercício do direito de audição, a requerente apresentou uma fatura no valor de € 15.000 para documentar um cheque sobre o Santander, no mesmo valor, emitido a favor de uma ourivesaria em 3/2/2017. Daí resultou que no relatório final da Autoridade Tributária e Aduaneira (p. 41), a tributação autónoma sobre essa despesa tenha sido suprimida (no montante de € 7.500). Portanto, ao contrário do que peticiona a requerente (o que se mantém nas alegações finais), o valor da tributação autónoma impugnado relativo a esta rubrica é de € 5.583 (conforme Quadro 3, infra).