Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 745/2022-T
Data da decisão: 2023-06-13  IRS  
Valor do pedido: € 91.315,88
Tema: Cláusula geral antiabuso. Elementos meio e normativo. SGPS. Mais-valias. Dividendos. Elemento meio. Elemento normativo.
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

Os árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof.ª Doutora Eva Dias Costa e Dr. António Pragal Colaço (árbitros vogais) designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15-02-2023, acordam no seguinte: 

 

 

1.       Relatório 

 

A... com o NIF..., (doravante “Requerente”), veio, nos termos Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a anulação do indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2022... e das liquidações de IRS identificadas pelos n.ºs de documento 2021... e 2021..., em que se incluem juros compensatórios.

O Requerente pretende ainda juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 07-12-2022. 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 25-01-2023, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 15-02-2023.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Em 11-05-2023, foi realizada uma reunião em que foi produzida prova testemunhal e decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas simultâneas.

As partes apresentaram alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2.       Matéria de facto 

 

2.1.  Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

A)   Em 30-12-2009 foi criada a sociedade B...-SGPS, S.A. (“B...”), com o capital distribuído da seguinte forma:

B)   Na mesma data de 30-12-2009, a B... adquiriu as ações representativas do capital da sociedade C..., S.A (“C...”), aos seus accionistas, com os prazos de pagamento indicados no quadro que segue:

C)   Na mesma data de 30-12-2009, a B... adquiriu, também, aos accionistas infra indicados, as acções representativas do capital da sociedade D..., S.A., “D...”, nas seguintes condições:

D)   A C... dedica-se à produção de software de gestão (depoimentos das testemunhas E... e F...);

E)   Foi efectuada uma inspecção tributária ao Requerente relativa a IRS dos anos de 2017 e 2018, ao abrigo das Ordens de Serviço OI2021... e OI2021...;

F)    Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

II.5.1.2. Da atividade da B... SGPS

Coloca-se a questão se a constituição da SGPS (sociedade gestora de participações sociais) teria por objetivo o desenvolvimento ou a diversificação das áreas de atividade exercidas indiretamente pela Sociedade, na sua qualidade de sociedade gestora de participações sociais.

Ora vejamos, relativamente ao exercício de 2018, o conjunto das participações detidas pela sociedade B... SGPS:

 

Como se pode verificar, as participações detidas pela sociedade B... SGPS, para além da C..., 3,A., representam apenas 0,73% dos capitais próprios antes de resultados e 0,48% depois de resultados e um resultado líquido, no seu conjunto, negativo (- €10 783.70), não gerando rendimentos capazes de justificar a própria criação da SGPS.

Face à análise do conjunto das participações detidas pela sociedade B... SGPS, verifica-se que o desenvolvimento e diversificação das áreas de atividade exercidas indiretamente pela B... SGPS simplesmente, desde a sua constituição, nunca sucedeu verdadeiramente, o que se compreende à luz dos atos e negócios jurídicos acima descritos, uma vez que é a sociedade C... que gera quase na totalidade os resultados da sociedade B... SGPS.

 

A: Dos colaboradores da B... SGPS

Da consulta e análise à informação aportada aos procedimentos, nomeadamente, as IES, regista-se que a B... SGPS não tem, no seu quadro, ao longo dos exercícios, qualquer trabalhador ou colaborador, facto que reforça a nossa posição de que a constituição da sociedade B... foi meramente instrumental.

 

B: Dos serviços contratados pela B... SGPS

Resumo, extraído da informação contabilística, relativa aos gastos com Fornecimentos e Serviços Externas (FSE) - conta SNC #62.

Da análise aos gastos com Fornecimentos e Serviços Externos pela B... SGPS, resulta que materialmente estes respeitam a:

(i) serviços bancários, representaram em 2017 - 35% e em 2018 - 81% dos gastos totais; (ii) trabalhos especializados, relativos ao pagamento à sociedade de revisores oficiais de contas representaram em 2017 - 59% e em 2018 - 35%, correspondendo a 17% dos gastos totais.

Verifica-se, em reforço do afirmado, que a B... SGPS não dispunha nem dispõe de qualquer colaborador, nem contratou serviços para esse efeito, que lhe permitissem desenvolver qualquer atividade sem recorrer aos serviços dos colaboradores da sociedade C...- demonstrando-se, de forma inequívoca, que o objetivo da sua constituição não foi mais que proporcionar vantagem fiscal para os seus acionistas.

 

II.5.1.3. Análise das participações cruzadas e alterações societárias

Como acima precisado, a sociedade C...era acionista maioritária da sociedade D... com 49,71 % do capital social.

Apenas um (1) dia antes da aquisição, por parte da B... SGPS, de ações representativas do capital da sociedade D..., seja em 2009/12/29, foi, conforme informação constante na certidão permanente desta deliberada, com a entrada de novos sócios, o aumento do capital social, a "transformação" da D... de sociedade por quotas em sociedade anónima e a composição do conselho de administração.

(...)

Importa dar nota que relativamente à sociedade D..., de acordo com a informação constante na Conservatória do Registo Comercial, em maio de 2013 ocorreu a sua dissolução e encerramento da liquidação.

 

Anexo 4- Certidão permanente D... 

As sociedades C... e a D... partilhavam recursos e clientes. Após a cessação da D..., a C... integrou ambos (recursos e clientes) passando a operar no mercado antes "dominado" por ambas as sociedades.

 

II.5.1.4. Créditos gerados na B... SGPS para com os seus acionistas

Das operações de aquisição acima identificadas e efetuadas pela sociedade B... SGPS, foram constituídos, em 2009, face à incapacidade patrimonial / financeira para solver o pagamento das ações adquiridas aos alienantes com maior representatividade no capital social das sociedades C... e a D..., os seguintes créditos contabilísticos a favor dos vendedores infra identificados e que cumulam simultaneamente a qualidade de acionistas da sociedade B... SGPS:

Valor em dívida, que, 1 (um) dia após a sua constituição, se encontrava registado no balanço na rubrica outros credores como se pode verificar no print abaixo, retirado da IES 2009 da B... SGPS:

 

Anexo 5 -Pág. 5 (balanço) da IES 2009 da B... SGPS.

 

Atentos os valores em dívida e como referido à incapacidade patrimonial / financeira da sociedade B... SGPS em solver os valores contratualizados relativos ao preço de aquisição, foi determinada a fixação dos infra indicados prazos de pagamento.

Atento aos valores em dívida e prazo de pagamento, resultavam os seguintes valores médios a receber anualmente:

Contabilisticamente o preço contratado pelos acionistas comuns às sociedades C..., D... e B... SGPS foi creditado, nesta, nas contas #268 acionista respetivas.

 

II.5.1.5. Valores pagos pela B... aos seus acionistas

Pela sua importância, infra, apresenta-se um registo contabilístico efetuado pela B... SGPS relativamente ao pagamento das Identificadas dívidas (conta SNC #268), nos exercícios de 2017 e 2018.

De referir que os registos contabilísticos integram os documentos de prestação de contas da sociedade B... SGPS que foram, conforme estipulado pelo artigo 65.º e ss do CSC, elaborados pelos membros da administração e as contas aprovadas pelos sócios, seja os acionistas mencionados.

(...)

II.5.1.6. Dividendos recebidos pela B..., da sua participada

Da análise da declaração IES relativa à saciedade B... SGPS, concretamente ao Mapa de Fluxos de Caixa, e aos períodos 2016/2019, foi possível extrair a seguinte informação:

O pagamento dos dividendos pela sociedade C... à sociedade B... SGPS processou-se da seguinte forma, de acordo com os elementos obtidos (€) no âmbito das diligências efetuadas:

 

II.5.1.7. Evolução da política remuneratória dos órgãos sociais

Após a constituição do crédito aos acionistas das sociedades B... / C.../ D... na sociedade B... SGPS, supra identificado, observou-se, vide quadro infra, que a política de salários da administração das sociedades C... e D... sofreu uma alteração materialmente significativa6, nomeadamente nos anos de 2009 para 2010 e de 2011 para 2012. Tendo permanecido com relativa estabilidade quantitativa nos anos de 2013 a 2018.

Política salarial da qual não resultou redução dos meios financeiros disponibilizados aos acionistas, uma vez que, conforme Infra se dá nota, apesar de se ter verificado a diminuição do montante dos rendimentos da categoria A (IRS) do sp, assistiu-se ao recebimento, através da B...  SGPS, de parte dos lucros provenientes da sociedade C..., transferidos para aquela sob a forma de dividendos e reencaminhados para o(s) acionista(s), já não sob a forma de rendimento mas, como já referido, sob a forma de amortização da dívida constituída.

Nesse sentido, a possibilidade de receber rendimentos da categoria E sem tributação motivou a alienação à B... da participação na D... de A... que auferia 500.332,84 € de rendimentos da categoria A provenientes da D... no ano 2009 e em 2010, após a alienação, passou a auferir apenas 14.960,00 €. Não tendo em 2011 e 2012 auferido qualquer rendimento da categoria A pago pela D... .

Regista-se, no intervalo temporal de 2009 a 2018, uma redução global de cerca de 1,5 milhões de euros despendidos pela C... em remunerações com os membros do seu conselho de administração.

Subjacente às diminuições remuneratórias verificadas, refiram-se as diminuições, em sede das sociedades C... e D..., com os gastos relativos a encargos legais, nomeadamente, as contribuições para a Segurança Social e eventuais seguros.

A nível individual do sp assistiu-se a uma diminuição seja no valor do IRS suportado, decorrente das retenções na fonte, seja no dos descontos para a Segurança Social, que deixaram de ser efetuadas.

 

II.5.2. Da vantagem fiscal

Com os atos e negócios jurídicos acima descritos foi possível aos acionistas das sociedades B... /C... / D... receber importâncias monetárias pagas pela B... SGPS, que tiveram a sua origem nos dividendos pagos a esta pela sociedade C..., sem que tenham sido sujeitos a tributação em sede de IRS, enquanto rendimentos da categoria E. Valores estes que, decorrente do negócio jurídico celebrado, estão relacionados com a dívida constituída na esfera patrimonial da B... SGPS decorrente da alienação pelos acionistas das suas participações nas sociedades C.../D... à B... SGPS, sem que se vislumbre desta reorganização empresarial qualquer outra vantagem económica conforme será demonstrado neste relatório.

 

II.5.3. Da análise verificada

Face a tudo exposto, visto o quadro fatual elencado numa perspectiva conjunta, objetiva e de modo indireto, é suficiente para considerar que outra conclusão não é passível de se retirar senão a de que os atos ocorridos e negócios jurídicos celebrados foram utilizados essencial ou principalmente para concretizar o resultado de evitação fiscal através da aplicação fraudulenta de normas jurídico-tributárias de exclusão da tributação a negócios jurídicos que numa situação considerada normal/usual/habitual, não estariam por elas abrangidas mas sim por normas de incidência tributária.

O resultado final alcançado foi de exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida, proveniente do preço das ações, quando a operação real constituiu uma distribuição de lucros, respeitante a entidade sujeita a IRC, colocados à disposição do respetivo associado ou titular, qualificados como rendimentos de capitais e subsumíveis na norma de incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS.

 

III. Descrição dos Factos e Fundamentos das Correções Meramente Aritméticas à Matéria Tributável

III.1. Fundamentação da aplicação da CGAA

O conjunto de atos e negócios jurídicos anteriormente analisados e pormenorizadamente descritos, foram essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, a redução ou eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios.

Encontrando-se assim plenamente verificados os pressupostos legais de aplicação da norma legal antiabuso (Cláusula Geral Antiabuso - CGAA) prevista no n.º 2 do art.º 38.º da Lei Geral Tributária (LGT).

Prevendo e estatuindo, o n.º 2 do art. 38.ºda LGT, conforme redação à data dos factos, "São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de Impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se se produzindo as vantagens fiscais referidas."

Esta norma consagra no ordenamento jurídico tributário nacional uma cláusula geral anti abuso, isto é, um dispositivo legal que, sendo um instrumento de aferição e delimitação concreta dos casos de elisão fiscal, estatui a ineficácia ao nível tributário de atos jurídicos praticados com evidente abuso de formas jurídicas, os quais conduzem à eliminação, total ou parcial, ou ao diferimento temporal dos tributos que de outro modo seriam devidos, nos cofres do Estado.

Da avaliação de Iodos os elementos que foram dados a conhecer ao procedimento é passível verificar as condições referidas no citado normativo e no cumprimento do disposto no n.º 3 do art.º 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributária (CPPT).

Importa, pois, no caso em apreço, aferir da verificação cumulativa de tais requisitos, sendo eles:

a) Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de Idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam;

b) A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.

A alínea a) do n.º 3 do art.º 63º do CPPT exige a observação cumulativa de três requisitos:

I. Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado;

II. Descrição dos negócios ou atos de idêntico fim económico; [II. Indicação das normas de incidência que se lhas aplicam, os quais serão objeto de demonstração nos pontos seguintes.

 

III.1.1 Descrição dos negócios jurídicos celebrados

No excurso do referido no Capítulo II deste relatório e que aí se encontra detalhadamente descrito, mas que aqui, em síntese, se convoca para melhor apreensão cognoscitiva dos atos e negócios jurídicos celebrados por parte do(s) destinatário(s) da presente informação, temos que, dos factos:

l) A 30 de dezembro de 2009 foi constituída a sociedade B... SGPS pelos acionistas mais relevantes das sociedades C... e D..., ocupando estes cargos nos conselhos de administração das referidas sociedades; na mesma data da sua constituição, a sociedade B... SGPS adquire aos seus acionistas as ações representativas do capital da sociedade C..., S.A., NIF -..., pato preço de 7.100.219,00 €.

II) A sociedade B... SGPS adquire também, as ações representativas do capital da sociedade C..., S.A., NIF-..., pelo preço de €1.464.979,76.

III) O capital social da B... SGPS, perfazia, à data das referidas operações aquisitivas, apenas €50.000,00. Para solver a obrigação legal de pagamento das ações adquiridas importa referir que a B... SGPS não recorreu (v.g.) quer ao aumento de capital quer ao financiamento externo da operação.

IV) A incapacidade patrimonial / financeira para solver o pagamento das ações adquiridas aos alienantes com maior representatividade no capital social da C... e da D..., determinou a fixação de um prazo de pagamento de quinze anos, com a constituição de um crédito contabilístico a favor destes nos montantes Infra.

 

 

V) Valor, contabilisticamente registado, 1 (um) dia após a sua constituição, no balanço (rubrica outros credores), da sociedade B... SGPS, conforme se extrai da IES/2009:

VI) Nos exercícios de 2017 e 2018 a sociedade B... SGPS recebeu da sua participada C..., os fluxos financeiros infra a título do dividendos. O pagamento dos dividendos pela sociedade C... à sociedade B... SGPS processou-se da seguinte forma, de acordo com os elementos obtidos (€) no âmbito das diligências efetuadas:

Vil) Nos anos em análise a sociedade B... SGPS, como referido, recebeu fluxos financeiros provenientes da distribuição de lucros da C... e transferiu para a conta bancária de que é titular o sp A... os seguintes montantes monetários a título de amortização parcial do crédito constituído na esfera da B... SGPS a favor daquele:

 

VIII) As transferências monetárias foram efetuadas da conta de depósitos à ordem titulada pela sociedade B... SGPS, com o n.º ... e do Banco Comercial Português, para a conta n.º PT50... do mesmo banco, de que é titular A...(com o descritivo LP, designação dada nos registos contabilísticos a A... como se verifica no extrato acima).

X) Por fim, refira-se, como se dá evidência no ponto II.5.1.2, e que aqui se convoca, as participações detidas pela sociedade B... SGPS, para além da C..., S.A., representam apenas 0,73% dos capitais próprios antes de resultados e 0,48% depois de resultados e um resultado líquido, no seu conjunto, negativo (- €10 783.70), não gerando rendimentos capazes de justificar a própria criação da SGPS.

X) Face à análise do conjunto das participações detidas pela sociedade B... SGPS, verifica-se que o desenvolvimento e diversificação das áreas de atividade exercidas indiretamente pela B... SGPS simplesmente nunca sucedeu verdadeiramente, o que se compreende à luz dos atos e negócios jurídicos acima descritos, uma vez que é a C... que gera quase na totalidade os resultados da sociedade B... SGPS.

XI) O sp A... e os restantes acionistas lograram assim, nos anos em análise, tomar possível alcançar uma vantagem fiscal, através da transformação de fluxos financeiros qualificados como rendimentos de capitais e subsumíveis na norma de incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art.º 5º do CIRS (pagamento de dividendos com origem na sociedade C...), em fluxos financeiros não sujeitos - pagamento (amortização) por parte da sociedade B... SGPS aos acionistas, do preço (dívida) determinado (constituída) no negócio de aquisição, pela sociedade B... SGPS, de ações representativas do capital social das sociedades C..., e D... .

 

III.1.2 Descrição dos negócios jurídicos de idêntico fim económico

Os negócios jurídicos em análise resultam de um esquema, pré-planeado, com a interposição da B... SGPS entre as sociedades C... e D... e os seus quatro acionistas mais relevantes, acima melhor identificados.

Este esquema compreende um conjunto complexo de atos sujeito a uma arquitetura global, como seja:

I) A constituição em 30 de dezembro de 2009, da B... SGPS, com um capital de €50 000 e a aquisição por € 8 544 854,50, no dia 30 dezembro de 2009, das ações das sociedades C... e D... aos  acionistas mais relevantes, que são comuns em ambas as sociedades.

II) A aquisição de ações representativas da totalidade do capital social da C... e da D... pela B... SGPS em 30/12/2009, no dia em que esta última foi constituída, fez com que esta incorresse num encargo financeiro com o pagamento do preço no montante de €8 544 854,50, quando a sua situação patrimonial /financeira, objetivamente, não o permitiria.

III) A incapacidade patrimonial /financeira para solver o pagamento das ações adquiridas aos alienantes com maior representatividade no capital social das referidas sociedades - como é o caso do sp A... com 2.992.787 ações da D... representativas de 49,71% do capital da sociedade (quota idêntica à da C...), determinou a fixação de um prazo de pagamento de quinze anos, com a constituição de um crédito contabilístico a favor deste no montante de €1.464.635,50.

IV) A não ter ocorrido a interposição da sociedade B... SGPS, os dividendos distribuídos pelas sociedades C..., e D... (Norte) aos seus acionistas singulares seriam objeto de tributação à taxa liberatória prevista na alínea a) do nº. 1 do art.º 71 º do CIRS.

V) Por sua vez, na esfera pessoal do acionista singular seriam qualificados como rendimentos de capitais e  subsumíveis na norma de incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS.

VI) Com a sucessão de atos e negócios jurídicos, coordenados entre si, que embora ocorressem em momentos temporais diversos, o resultado final alcançado resultou na exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida, proveniente do preço das ações.

Por todo o referido, decorre que um negócio jurídico normal de idêntico fim económico seria a distribuição direta de dividendos pela C... ao(s) acionista(s), o qual ocorre de facto quando a B... SGPS lhe(s) reembolsa o crédito contabilístico, mas cujos fundos provêm dos dividendos distribuídos pela C..., na medida em que todos os restantes atos e negócios jurídicos praticados tiveram em vista a obtenção das vantagens fiscais descritas, e foram praticados com abuso das formas jurídicas.

 

III.1.3. Indicação das normas de incidência aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico

Como já acima detalhadamente precisado, os dividendos da C... colocados à disposição do respetivo associado ou titular, seriam qualificados como rendimentos de capitais e subsumíveis na norma de Incidência constante da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS. Sobre os mesmos incidiria a taxa liberatória de 28%, prevista, à data dos factos, na alínea a) do n.º 1 do artº 71.º do Código do ÍRS.

Nos quadros abaixo vem determinado o valor do Imposto que seria devido, caso não se tivesse registado um conjunto de "step by step transactions" com o fim último do valor recebido deixar de ser subsumível à norma de incidência e de sobre o mesmo incidir a taxa de liquidação de 28%.

O sp A..., recebeu da B... SGPS, a título de amortização parcial da dívida constituída na esfera patrimonial desta, € 219.600,00 no ano de 2017 e€ 69.600,00 no de 2018, respetivamente.

De salientar que, se tivesse sido efetuada a respetiva retenção na fonte a título definitivo (IRS), pela sociedade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 71.º do CIRS, à taxa de 28%, o imposto apurado seria o constante no quadro seguinte:

 

III.1.4. Demonstração de que a celebração do negócio jurídico foi essencial, ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais

Face a todo o exposto, é manifesto que estamos perante uma situação de esquema fiscal elisivo, concebido e executado numa sequência lógico-temporal de modo a alcançar um resultado de evitação fiscal, designadamente:

I) A sequência das operações é indiciadora de que a atuação dos diversos acionistas, concertada e concertados entre si, que conduziu à celebração dos atos e negócios jurídicos acima detalhadamente descritos, teve como último desiderato a finalidade fiscal (a eliminação da tributação dos dividendos distribuídos pela sociedade C...) dos mesmos.

II) Finalidade fiscal essa que consistiria em receber os dividendos da sociedade C... (a D... Norte cessou atividade em 2012/09/30) como se fora o pagamento do valor em dívida constituída na esfera patrimonial da B... SGPS, sem que os mesmos "caíssem" nas normas de incidência do CIRS e concomitantemente fossem objeto de tributação.

III) Como referido, a inserção da sociedade B... SGPS entre as sociedades C... e D... (Norte) e os acionistas, comuns, não apresentou nem apresenta substância ou vantagem económica que sustente a constituição da SGPS.

IV)As sociedades gestoras de participações sociais são, de acordo com o regime jurídico consagrado, previsto no Decreto-Lei nº. 459/88, de 30 de dezembro, um instrumento de gestão de um determinado tipo de ativos, gerador de valor acrescentado pela gestão integrada dos mesmos e não, como referido pela doutrina, um mero "cofre" de participações sociais do tipo holding de investimento que visa a mera detenção de títulos, de modo a faturar dividendos e mais-valias,

V) Temos que ter presente que a atividade de gestão das participações sociais envolve uma série integrada e coordenada de atos projetados sobre um conjunto de participações sociais que têm como objetivo o lucro. Todavia, para que tal gestão configure uma atividade económica, devemos encontrar-nos perante algo mais do que o exercício individual e ocasional por um acionista dos direitos e deveres resultantes da detenção de uma participação social.

VI) Com o objetivo de concretizar esta gestão ativa e dinâmica das participações sociais detidas pela SGPS, para além do exercício dos direitos sociais inerentes às participações sociais detidas, o legislador no diploma supra citado, admite a realização de diversas operações pela SGPS na prossecução dos seus interesses e das relações com as suas participadas, o que não se verifica de todo no caso da B... SGPS, conforme demonstrado acima no ponto II.5.1.2.

 

Em síntese, resulta que da B... SGPS, não encontramos, como referido, razões económicas válidas para a sua constituição e existência, desde logo porque:

a) a sociedade não exerceu, no lapsus temporal analisado, de facto a atividade de gestora de participações sociais, tal como preconizado no respetivo diploma legal;

b) a sociedade não procedeu à distribuição de resultados aos seus acionistas, os acima sobejamente identificados, que lembremos, são pessoas singulares e comungavam de idêntica qualidade nas sociedades C... e D... (Norte);

c) a sociedade B... SGPS assumiu face à sua incapacidade patrimonial / financeira para solver o pagamento das ações adquiridas aos seus acionistas, como é o caso do sp A..., a constituição de um crédito contabilístico a favor deste e dos demais, a ser amortizado durante 15 anos;

d) a amortização parcial do crédito constituído na esfera da B... SGPS a favor do sp A..., durante os anos de 2017 e 2018, foi realizado com os fluxos financeiros provenientes da distribuição de lucros da C... à B...SGPS;

e) a sociedade B... SGPS não aufere praticamente outros rendimentos, nem tão pouco se lhe conhece qualquer outra fonte de financiamento;

f) Não se lhe identificaram colaboradores/ trabalhadores.

VII) Esta sociedade teve gastos associados à sua constituição e existência, que só são compreensíveis e economicamente racionais, com o pressuposto da vantagem fiscal obtida, porque outra não se vislumbra.

VIII) A constituição da SGPS não trouxe qualquer mais-valia de índole económico-financeira para o detentor do capital da sociedade D... (Norte) que apenas passou de acionista direto para indireto.

IX) A celebração do contrato do compra e venda das ações no mesmo dia da constituição da SGPS adquirente, pelos mesmos acionistas que já participavam no capital social da sociedade C... e D... (Norte) determinando a sua intervenção simultânea na qualidade de adquirentes e vendedores, fruto das participações sociais cruzadas, evidencia inequivocamente uma motivação que não económica ou financeira.

X) Igualmente se refira que o resultado desta vantagem fiscal permitiu que os acionistas/administradores das sociedades alterassem a política salarial das sociedades C... e D... (Norte), sabendo que poderiam receber rendimentos da categoria E do CIRS, sem que sobre eles impendesse qualquer carga fiscal, que não fora o esquema criado, seriam tributados.

XI) A distribuição dos dividendos da C... para a B... SGPS não concorre para a determinação do seu lucro tributável, nos termos do n.º 1 do art.º 51.º do CIRC (participation exemption) e encontrava-se dispensada de retenção na fonte, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art.º 97º do CIRC.

XII) De onde somos a concluir que a sociedade B... SGPS - serviu única e exclusivamente para receber os dividendos pagos pela(s) sua(s) participada(s) e permitir a sua retirada pelos acionistas que controlam  esta sociedade agora transmutados sob as vestes de amortização de crédito(s).

XIII) Assim, os fluxos financeiros provenientes da sociedade C... passam a afluir ao acionista A..., não como dividendos sujeitos a tributação em IRS, mas, por via indireta, com a utilização da sociedade veículo B... SGPS, unicamente sob a forma de amortização de crédito, sem serem objeto de tributação em sede de IRS.

 

Não obstante os atos e negócios jurídicos que compõem a estrutura, acima descrita, sejam, em si mesmos, válidos e lícitos, e correspondam à efetiva vontade dos sujeitos passivos, não se lhes vislumbra, como detalhadamente descrito, qualquer substância económica.

Na aplicação da Cláusula Geral Antiabuso importa aferir se o ato ou negócio jurídico escolhido tem uma substância, económica ou outra, que se possa dizer predominante na sua relação com a vantagem fiscal (comparativa) objetivamente decorrente dessa escolha. Analisando a sequência dos factos não se vislumbra substância económica na operação para além da vantagem fiscal.

Neste contexto, o nº. 3 do art.º 11º da LGT, ao afastar-se das regras gerais de interpretação da norma, aderindo expressamente à tese da substância sobre a forma, legitima a não vinculação da Autoridade Tributária à qualificação efetuada pelas partes deste negócio jurídico, prevalecendo, no âmbito de aplicação da CGAA, a substância sobre a formatação jurídica do negócio, dado que ao direito fiscal interessa mais a substância económica dos factos tributários, do que a sua forma.

Aqui chegados, em reforço do referido, concluímos pela existência de uma motivação fiscal preponderante, que se manifestou nas formas adotadas e que faz prevalecer a finalidade fiscal do negócio sobre a finalidade não fiscal, pelo que se verifica, de acordo com o supra exposto, estarem reunidas as condições para a aplicação do disposto no art.º 38.º, n.º 2, da LGT e no art.º 63.º do CPPT.

Assim sendo, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a consideração como reembolso de dívidas / amortização do crédito, o valor dos dividendos distribuídos aos acionistas da C.../ B... SGPS, uma vez que esta operação foi praticada com abuso das formas jurídicas e teve como objetivo essencial a eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

 

III.2. Conclusões

Entende-se que o conjunto de operações levadas a cabo pelos acionistas das sociedades C... e B... SGPS, são negócios que devem ser objeto de qualificação como "meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, os atos de aquisição de ações das sociedades C... e D... (Norte) pela B... SGPS foram objeto de uma utilização distorcida destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, a distribuição de dividendos oriundos da C..., mediante distribuição "encapotada", "indireta" de dividendos a A... (e aos restantes acionistas) com o fim de evitar que os montantes recebidos fossem subsumíveis na norma de incidência constante do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS, segundo os quais os lucros/adiantamentos por conta de lucros, das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, constituem rendimentos de capitais (categoria E) sujeitos a IRS.

A sociedade criada, B... SGPS, foi utilizada e serviu de sociedade veículo para elidir o disposto no citado normativo, através de uma configuração artificiosa do pagamento de uma dívida em vez da obtenção de dividendos distribuíveis, de modo a obter uma vantagem fiscal. Configurou-se, sem qualquer substância económica, por razões estritamente fiscais, uma situação negocial que produz idênticos resultados materiais e financeiros, mas que possibilita evitar as consequências tributárias aplicáveis à distribuição de dividendos, nos termos do art.º 5º n.º 2 alínea h) do CIRS, incorrendo-se numa prática abusiva de elisão fiscal.

Face a todo o exposto, entende-se estarem verificadas as condições para que se possa lançar mão do mecanismo previsto no n.º 2 do artº 38º da LGT.

Por fim, é de referir que estes Serviços de Inspeção Tributária não têm conhecimento da existência de qualquer informação vinculativa, solicitada em nome dos sujeitos passivos, sobre os factos na origem da aplicação da disposição antiabuso atento a disposto no n.º 8 do art.º 63º do CPPT.

 

III.3. Proposta de tributação

A sociedade C..., colocou à disposição da sua acionista, a sociedade B... SGPS, as seguintes importâncias a título de dividendos:

Dividendos 2017: com origem na sociedade C...- 3.050.000,00 €, Dividendos 2018: com origem na sociedade C...- 2.100.000,00€.

A sequência das operações, anteriormente descritas, é Indiciadora da intenção de eliminar a tributação, pretensão dos acionistas da C... e D... (Norte), alcançada através dos atos e negócios jurídicos anteriormente descritos.

O resultado pretendido - receber dividendos da C... (a D... Norte cessou atividade em 2012/09/30) como se de pagamento do valor em dívida de tratasse -foi alcançado.

Caso não existisse, entre A... pessoa singular e A... ex. acionista da D... (Norte) e administrador da C... a sociedade B... SGPS, a distribuição desses lucros ao sp, seria considerada rendimentos de capitais sujeitos a IRS nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º do CIRS.

Não obstante a tributação dos rendimentos de dividendos operar por retenção na fonte, a título definitivo, por aplicação de taxa liberatória de 28%, como previsto na alínea a) do n.º 1 do art.º 71º do CIRS, pela entidade que coloca esses rendimentos à disposição, neste caso a B... SGPS, a dilação temporal entre a ocorrência do facto gerador do rendimento e a reconstituição tributária, operada através da aplicação da CGAA, tornam impossível a retroação temporal das obrigações de retenções na fonte. Essa impossibilidade resulta - para além da óbvia ultrapassagem dos respetivos prazos legais de cumprimento - da própria natureza da correção operada pela requalificação negocial da CGAA.

A eliminação das operações elisivas e a respetiva reconstituição negocial considerada normal, efetuadas a posteriori, não pode originar  a aplicação do regime tributário normalmente aplicável ao mesmo tipo de rendimentos auferidos em circunstâncias não elisivas, na medida em que a natural dilação temporal própria da aplicação da CGAA o impede, não sendo, portanto, possível a sua retroação.

Nos termos do n.º 1 do art.º 5.º do CIRS, consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outras rendimentos tributados noutras categorias. Os frutos e vantagens económicas referidos compreendem, designadamente: os lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o art.º 20.º; nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º do CIRS.

A sociedade B... SGPS transferiu, conforme referido, para a conta bancária titulada pelo seu acionista A..., € 218.600.00 em 2017 e € 69.600,00 em 2018,

Estes rendimentos consubstanciam, atento o acima exposto, rendimentos de capitais, paio que devem ser incluídos no anexo E da declaração de rendimentos modelo 3, pelo sp A..., NIF -..., nos referidos anos, conforme previsto no n.º 1 do art.º 57.º do CIRS.

Conforme referido anteriormente, a dilação temporal entre a ocorrência do facto gerador do rendimento e a reconstituição tributária, operada através da aplicação da CGAA, tornam impossível a retroação temporal das obrigações de retenções na fonte, pelo que a tributação destes rendimentos é efetuada através da aplicação do regime de tributação autónoma à taxa de 28%, consagrado na alínea d) do n.º 1 do art.º 72.º do Código do IRS.

No caso do sp vir a manifestar a opção pelo englobamento nos termos do n.º 8 do supracitado artigo, o rendimento anual respetivo será considerado em 50% nos termos do n.º 1 do art.º 40.º-A, do CIRS.

De tudo o exposto resultam as seguintes correções, em sede de IRS: í) Correções (Imposto a pagar - categoria E)

 

ii) No caso do sp vir a manifestar a opção pelo englobamento, as correções operam ao nível do rendimento coletável.

Nos termos do n.º 1 do art.º 40.º- A do CIRS, os lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas do IRC, são no caso de opção pelo englobamento, considerados em apenas 50 % do seu valor. De ressalvar que nos termos do n.º 5 do art.º 22.º do CIRS (redação à data dos factos), quando o sujeito passivo exerça a referida opção, fica, por esse facto, obrigado a englobar a totalidade dos rendimentos da mesma categoria de rendimentos, sendo a existência de demais rendimentos desta categoria desconhecida e por esse fato não considerada.

 

(...)

IX. Direito de Audição – Fundamentação

 

(...)

 

Dos argumentos

Os pontos 1.º ao 9.º do direito de audição, são fundamentalmente introdutórios, sendo que nestes efetua a sua descrição sucinta dos factos e pressupostos legais, descritos no projeto de relatório, que conduziram a AT à aplicação da norma legai antiabuso.

Afirmando no ponto 10º o seu desacordo.

Nos pontos 11º a 12º, convoca os factos, detalhadamente descritos no projeto de relatório, sobre a operação da venda das ações por parte do sp à sociedade B...,  da existência de uma dilação no pagamento dos valores por parte desta.

Concluindo (pontos 13º e 14.º) que teria o sp (i) sempre direito a receber o valor acordado referente  á  operação de alienação das ações.

(i) Os fundamentos da aplicação da CGAA invocados no presente relatório não versam sobre a sujeição a imposto das eventuais mais-valias com a venda das ações, mas sim sobre o recebimento de dividendos sem a correspondente sujeição a imposto.

Nos pontos 14.º a 25.º, é justificada a operação de alienação das ações a uma sociedade sem meios financeiras para o efeito como sendo normal à luz do (ii) regime fiscal em vigor  à data dos factos, o que não constituí qualquer tipo de artificialidade ou fraude à lei que pudesse Justificar a aplicação da norma geral antiabuso.

(ii) Não fosse o facto dos acionistas da B... e da C.../D...Norte serem os mesmos, a referida operação de alienação de participações sociais, sem que o adquirente tivesse meios financeiros para o efeito, não teria ocorrido; foi esse quadro societário que permitiu a natureza das operações acima descritas, nomeadamente a constituição da B... e a alienação das participações sociais por parte do acionista, ocorrido com um espaço temporal de 1 dia, a celebração do acordo de pagamento nas condições referidas e a criação de um crédito/dívida de tão elevado montante.

O sp refere também: a não contestação por parte da AT do preço das ações e a não sujeição a IRS do valor da operação de alienação das mesmas. No que concerne à primeira referência não foi questionada pela AT porque não foi colocado em causa o preço determinado para o negócio. Quanto à segunda referência no exercício de 2009 o regime legal em sede de IRS assim o determinava, o que permitiu fazer o negócio nas condições acima descritas e o posterior recebimento dos dividendos sem tributação nos anos em análise.

Nos pontos 26.º a 28.º, é referido que a redução das remunerações decorreu da (iii) intervenção financeira em Portugal do FMI/União Europeia.

(iii) Como referido na presente relatório a política remuneratória da sociedade D... (Norte) sofreu uma alteração materialmente significativa, nomeadamente nos anos de 2009 para 2010 e, no mesmo sentido, a política remuneratória da sociedade C... nos anos de 2011 para 2012, tendo permanecido com relativa estabilidade quantitativa nos anos de 2013 a 2018, o que contraria a argumentação do sp.

Nos pontos 29.º a 45.º discorre sobre o regime jurídico das SGPS e os motivos da constituição da mesma, concluindo que a (iv) criação da B... como SGPS foi determinada pela convicção do requerente e restantes accionistas de que esta seria a forma de estruturação empresarial adequada.

(iv) Como acima demonstrado verifica-se, que a B... SGPS não dispunha nem dispõe de qualquer colaborador, nem contratou serviços para esse efeito, que lhe permitissem desenvolver qualquer atividade sem recorrer aos serviços dos colaboradores da sociedade C... - demonstrando-se, de forma inequívoca, que o objetivo da sua constituição não foi, como referido no exercício do direito de audição, o de proceder a uma restruturação empresarial, mas o de proporcionar vantagem fiscal para os seus acionistas.

No ponto 46.º conclui o sp (v) que não tem qualquer fundamento legal a qualificação da criação da B... SGPS como artificiosa ou fraudulenta ou constituir abuso das formas jurídicas uma vez que não se trata de uma operação insólita ou invulgar.

(v) Não está, por tudo o referido, em discussão, o caráter mais ou menos legal, mais ou menos em conformidade com a lei, dos negócios e atos jurídicos em apreço, importa sim perceber se estes foram pensados e praticados com o objetivo último de reduzir ou evitar a tributação respetiva dos rendimentos postos à disposição do sp, Nesse contexto, foram adotadas práticas fiscalmente menos onerosas, o que é aceitável no âmbito de qualquer sistema fiscal e incentivado pelo próprio Estado com a criação de benefícios fiscais que "premeiem" determinadas escolhas ou comportamentos do sp. Não é o caso da elisão fiscal, o qual se traduz num comportamento formalmente não contrário à lei, mas pelo qual se atinge resultado idêntico ao que esta visa impedir.

No caso em apreço, e é disso que estamos a tratar, com os negócios e atos jurídicos praticados logrou-se evitar a obrigação fiscal, obtendo, no entanto, o resultado económico-financeiro pretendido. Na prática, como descrito no relatório em confronto, o sp contornou as normas tributárias de forma a atingir efeitos equivalentes sem a correspondente tributação.

Em nada do alegado, se vislumbra razão, que não a de evitar a efetiva tributação dos dividendos distribuídos, que afaste a fundamentação que serve de base à aplicação da disposição antiabuso a as correcções em matéria tributária dal decorrentes.

Por fim, no ponto 47º, vem o sp (vi) declarar que não pode optar pelo englobamento dos rendimentos, mediante a opção prevista no n.º 1 do art.º 40.º- A do CIRS, por ter sido não residente fiscal em Portugal nos anos em apreço, como decorre do n.º 2 do art. 40.º- A do CIRS.

(vi) Decorre da letra da norma, infra, que a opção pelo englobamento e a consequente tributação em 50% dos rendimentos derivados dos lucros devidos por pessoas coletivas, no caso os dividendos recebidos, somente é aplicável, por força do n.º 2, se os beneficiários do(s) rendimento(s) residirem em Portugal.

Como referido no ponto II.3.1.1 deste relatório, o sp Declarou nos anos em apreço ser não residente em Portugal (situação que se verificou entre 2015-07-17 e 2021-01-26), tendo optado pela tributação pelo regime geral.

Assim sendo, assiste razão ao sp, não lhe sendo aplicável o regime de tributação previsto no n.º1 do art. 40.º-A do CIRS.

Artigo 40.º-A

1 - Os lucros devidos por pessoas coletivas sujeitas e não isentas do IRC são, no caso de opção pelo englobamento, considerados em apenas 50 % do seu valor.

2- O disposto no número anterior é aplicável se a entidade devedora dos lucros ou que é liquidada tiver a sua seda ou direção efetiva em território português e os respetivos beneficiários residiram neste território (sublinhado nosso).

Em face do referido, não tendo o sp direito à opção pelo englobamento, os rendimentos de capitais corrigidos devem ser tributados da acordo com a proposta de tributação descrita no capítulo III - ponto i) (Correções (Imposto a pagar - categoria E)) à taxa autónoma de 28% - nos termos da al. d) do n. º 1 do art.º 72.º do CIRS.

 

Conclusão:

Face ao exposto, é nossa convicção que o direito de audição em apreço não trouxe quaisquer elementos novos suscetíveis de modificar as conclusões do Projeto de Relatório relativamente aos anos de 2017 e 2018, pelo que se mantêm no presente Relatório Final.

 

X. Da autorização para a aplicação da disposição antiabuso

Nos termos do disposto no n.º 7 do art. 63.º do CPPT, e para efeitos da autorização da aplicação da disposição antiabuso, propõe-se o envio do presente relatório, contendo, para cada ano em análise, uma proposta de aplicação da cláusula geral antiabuso, prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT e n.º 1 do art.º 63.º do CPPT, à Sra. Diretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.

G)        Por despacho de 26-11-2012, a Senhora Directora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira autorizou a aplicação da cláusula geral antiabuso com os fundamentos invocados no RIT (página 2 do documento n.º 14);

H)        Na sequência da inspecção e autorização para aplicação da cláusula geral antiabuso, foram emitidas as liquidações de IRS n.ºs 2021 ... e 2021..., bem como as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2021 ... e 2021..., que constam do documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

I)          O Requerente apresentou reclamação graciosa das referidas liquidações, que foi indeferida por despacho de 06-09-2022 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido), que remete para a fundamentação do projecto de decisão de indeferimento que consta do processo administrativo, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

Da apreciação do pedido

No caso sub judice, os fundamentos da reclamação em epígrafe têm subjacente o Relatório da Inspeção Tributária, titulado pelas ordens de serviço internas de âmbito parcial, 012021..., para o ano de 2017 e 012021..., para 2018.

Estas ordens de serviço tiveram origem em elementos recolhidos no âmbito de ações inspetivas 012019... O e 012021..., relativas aos anos de 2017 e 2018, efetuadas à B...-SGPS, SA, da qual é acionista o ora reclamante, tendo sido detetado um conjunto de fluxos financeiros entre a B... e o reclamante, que indiciavam a existência de atos e negócios jurídicos que teriam sido essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, constituindo fundamento para proceder à aplicação da clausula geral anti-abuso, (adiante CGAA) plasmada no n.º 2 do artigo 38.º da LGT.

A B... foi constituída em 2009-12-30 e logo de seguida adquire as ações representativas do capital da sociedade C..., SA, NIPC ... e da sociedade D..., SA, NIPC ... .

De acordo com o RIT a B... SGPS não dispunha nem dispõe de qualquer colaborador, nem contratou serviços para esse efeito, que lhe permitissem desenvolver qualquer atividade sem recorrer aos serviços dos colaboradores da sociedade C... .

As sociedades C... e D... (Norte) partilhavam recursos e clientes. Após a dissolução e

encerramento da D... (Norte) em maio de 2013, a C...  integrou ambos, passando a operar no mercado, antes dominado por ambas as sociedades.

Como a B... não dispunha de capacidade patrimonial/financeira para efetuar o pagamento das ações adquiridas aos alienantes com maior representatividade no capital social das sociedades C... e D... (Norte) e que eram também acionistas da B..., foram constituídos créditos contabilísticos a favor dos vendedores, registados no balanço na rúbrica de outros credores, no valor de € 8.544.854,50.

O valor em dívida para com o reclamante era de€ 1.464.635,50, com um prazo de pagamento de 15 anos devendo o pagamento médio anual ser de€97.642,37.

De acordo com o RIT verificou-se o recebimento de dividendos por parte da B..., da sua participada C..., que constam da declaração IES, mais precisamente no Mapa de Fluxos de Caixa.

Os negócios jurídicos celebrados foram utilizados essencial ou principalmente para concretizar o resultado de evitação fiscal através da aplicação fraudulenta de normas jurídico-tributárias de exclusão da tributação a negócios jurídicos que uma situação considerada normal, usual, não estariam por elas abrangidas mas sim por normas de incidência tributária.

O resultado final alcançado foi de exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida, proveniente do preço de ações, quando a operação real constitui uma distribuição de lucros, respeitante a entidade sujeita a IRC, colados à disposição do acionista, tratando-se de rendimentos de capitais, conforme ínsito na aí h) do n.º2 do artigo 5.º do CIRS.

O n.º 2 do artigo 38.º da LGT consagra no nosso ordenamento jurídico tributário uma clausula geral anti-abuso, um dispositivo legal que, sendo um instrumento de aferição e delimitação concreta dos casos de elisão fiscal, consagra a ineficácia ao nível tributário de atos jurídicos praticados com evidente abuso de normas jurídicas, que conduzem à eliminação, total ou parcial, ou ao diferimento temporal dos tributos que de outro modo seriam devidos.

Estatuem as ais. a), b) e c) do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT a exigência do preenchimento

cumulativo de três requisitos: descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado, descrição dos negócios ou atos de idêntico fim económico e indicação das normas de incidência que se lhes aplicam.

 

Negócio jurídico celebrado:

A B... foi constituída em 2009-12-30, pelos acionistas mais relevantes da C... e D... (Norte) adquirindo na mesma data a C... pelo valor de €7.100.219,00, e a  D...(Norte) pelo montante de € 1.464.979,76.

O capital social da B... SGPS, à data das operações supra referidas era de€ 50.000,00. Para pagamento das ações adquiridas, não recorreu ao aumento de capital nem ao financiamento externo da operação, mas constituiu um crédito contabilístico a favor dos acionistas com maior representatividade, sendo o montante do crédito a favor do reclamante de€ 1.464.635,50, com um prazo de pagamento de até 15 anos.

Nos exercícios de 2017 e 2018 a B... recebeu da sua participada C... os fluxos financeiros, no valor de € 8.544.854,50, a título de dividendos.

Efetuou transferência bancária para o reclamante a título de amortização parcial de crédito, no valor de€219.600,00 de 2017 e € 69.600,00 de 2018.

As participações detidas pela sociedade B... SGPS, para além, da C..., SA, representam apenas 0,73% dos capitais próprios antes dos resultados e 0,48% depois dos resultados e um resultado líquido, no seu conjunto negativo de - €10.793,70, não gerando rendimentos capazes de justificar a criação da SGPS.

Verificou-se uma vantagem fiscal, através da transformação de fluxos financeiros qualificados como rendimentos de capitais, subsumíveis na norma de incidência da aí h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, (pagamento de dividendos com origem na sociedade C...), em fluxos financeiros não sujeitos, amortização por parte da B... ao reclamante, da dívida constituída no negócio de aquisição, de ações representativas do capital social das sociedades C... e  D... (Norte). 

 

Negócios jurídicos de idêntico fim económico:

Se não houvesse a interposição da sociedade B... SGPS, os dividendos distribuídos pelas sociedades C... e D... (Norte) aos seus acionistas seriam tributados à taxa liberatória estatuída na al. a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.

Por outro lado, na esfera pessoal do reclamante, seriam qualificados como rendimentos capitais, cuja norma de incidência está consagrada na al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS. 

Nesta senda, o resultado final foi a exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida.

Do exposto decorre que um negócio jurídico normal de idêntico fim económico seria a distribuição direta de dividendos pela C...  ao acionista, que se verifica quando a B... SGPS reembolsa o crédito contabilístico, sendo os fundos provenientes dos dividendos distribuídos pela C..., verificando-se que os atos e negócios jurídicos tiveram em vista a obtenção de vantagens fiscais, verificando-se um abuso das normas fiscais.

 

Normas de incidência aplicáveis aos negócios com idêntico fim económico:

Os dividendos da C... colocados à disposição do reclamante, seriam qualificados como

rendimentos de capitais e subsumíveis na norma de incidência da al. h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, incidindo a taxa de 28%, de acordo com o plasmado na aí a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS.

O RIT demonstrou que a celebração do negócio jurídico foi essencial, ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou deferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio com idêntico fim económico.

O DL n.º 495/88 de 30 de dezembro consagra o regime jurídico das SGPS, em que estas são um instrumento de gestão de um determinado tipo de ativos, gerador de valor acrescentado pela gestão integrada dos mesmos.

O legislador admite a realização de diversas operações pela SGPS na prossecução dos seus interesses e nas relações com as suas participadas, não se verificando no caso da  B... como se demonstrou ao longo de todo o RIT.

A B... não exerceu de facto a atividade de gestora de participações sociais, no período analisado no procedimento inspetivo.

O RIT concluiu que existiu uma motivação fiscal preponderante, que se manifestou nas formas adotadas e que fez prevalecer a finalidade fiscal do negócio sobre a finalidade não fiscal, pelo que estavam reunidas as condições para a aplicação do consignado no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e artigo 63.º do CPPT.

Como se demonstrou supra, estão reunidos os 3 requisitos plasmados nas als. a), b) e c) do n.º 3 do artigo 63.º do CPPT, para a aplicação da CGAA.

Alega o reclamante que não foi levado em consideração os argumentos por si presentados em sede de direito de audição, tal não corresponde à verdade, foram apreciados todos os argumentos, no entanto não foram apresentados elementos novos suscetíveis de modificar as conclusões do projeto de relatório.

Também os argumentos apresentados ao longo da p.i. da reclamação graciosa em epígrafe, não colocam em crise o RIT e o recurso à Clausula Geral Anti-Abuso.

 

Conclusão

Entendemos que deverá ser indeferida a pretensão do reclamante.

Da presente informação, deverá o reclamante ser notificado para, querendo, vir exercer o direito de audição prévia nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 60.º da LGT.

 

J)    A criação da B... e as aquisições de acções foram feitas em concretização do «Plano Estratégico C...» cuja cópia consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte:

Antecedentes

Ao iniciar a sua actividade a C... vendia directamente ao público. Em 1994 arrancou com a criação de uma rede de distribuição que passava por deixar de vender ao público directamente, mas sim através de parceiros que executavam as fases de pré-venda e pós-venda do software.

Neste âmbito, a expansão a norte começou por ser através de parceiros, mas rapidamente se verificou que era necessária a presença da própria C... para melhor atender os parceiros locais. Com este objectivo foi criada a D... Norte, uma empresa que tinha como objectivo criar a rede de parceiros a norte e mantê-los activos.

Apesar de ter resultado durante muitos anos, ultimamente verificou-se que a estratégia baseada em empresas diferentes não era adequada, em virtude da necessidade de existir uma mensagem única e procedimentos únicos perante os parceiros e clientes finais, ou seja, o nosso mercado. Na verdade, o facto de existirem duas empresas distintas faz com que a C... passe uma cultura diferente a Norte e a Sul. Este facto é claramente reconhecido pelos parceiros que actuam a nível nacional, sendo actualmente um dos maiores factores de desvantagem- que a C... apresenta perante o seu mercado. Urge corrigir este facto, principalmente quando a C... enfrenta vários desafios de crescimento para os quais tem de se apresentar una. São essas as necessidades actuais que passamos a apresentar.

 

As necessidades actuais

No presente momento a C... depara-se com vários desafios muito exigentes.

Desde logo, a sua segunda fase de internacionalização. Depois de termos conseguido criar uma rede de parceiros em Moçambique com uma empresa controlada por nós e em Angola uma empresa Independente, estamos há dois anos a desenvolver esforços para criar a rede de parceiros em Espanha. Para criar esta rede são necessários mais recursos e investimentos dos que nós alocamos até este momento. Resulta, por isso, a necessidade da C... se apresentar com maior massa crítica, criando uma equipa alargada mais capaz e focada neste ponto estratégico, o crescimento da C..., a partir de recursos disponíveis debaixo de uma única organização.

Outro desafio é o desenvolvimento e comercialização de um software desenhado especificamente para micro empresas, mercado este em que não estávamos presentes até ao momento, e que Irá ser comercializado num modelo de aluguer com alojamento incluído. Por ser um conceito novo em Portugal e por (incluir o alojamento, algo que até hoje a C... não necessitou de fazer, é um desafio à nossa competência, que irá necessitar de investimentos significativos no desenvolvimento e marketing. As sinergias resultantes da reestruturação das duas empresas permitiram ter outra capacidade de investimento para este enorme desafio que é endereçar soluções inovadoras para um mercado onde a C... nunca esteve.

Por último, a C...  tem o desafio de manter o entusiasmo e o desempenho da actual rede de parceiros nacional, os quais comercializam um software já muito estabilizado, maduro e completo, mas cuja inovação é cada vez mais difícil.

Por todos estes desafios é necessário e imperativo à C... reestruturar a sua forma de actuação e refocar nas áreas estratégicas e rever o seu modelo estrutural e societário.

 

A reestruturação 

A reestruturação irá ser desenvolvida em várias frentes.

 

Estrutura societária

Passará pelas seguintes etapas, a cumprir até final de 2009:

Transformação das sociedades, C... e D... Norte em sociedades anónimas, como forma de flexibilizar a estrutura de capital, atraindo terceiros, caso se venha a revelar necessário e como forma de maior profissionalização da gestão e imagem para o mercado.

Criação de uma sociedade cabeça do grupo, B..., S.A, que ficará a deter as participações relativas ao capital social das sociedades cujo objecto se reporta às áreas de negócio a intervir. Deste modo, ficam organizadas as unidades da negócio por especialidade (desenvolvimento, formação, etc.), as sociedades de tipo operacional deixam de participar em negócios fora da sua esfera de actuação, sendo essa separação feita ao nível da SGPS.

Atendendo às diferentes culturas existentes entre, C... e D... Norte, julgamos prudente não avançar já para uma fusão. O capital social dessas duas será integralmente adquirido pela SGPS e conviverão durante um período experimental, sob uma gestão comum e concertada. Passado esse período e concluindo-se pelo sucesso da experimentação, as sociedades serão fundidas numa só.

Se o projecto de gestão comum não vingar, este modelo permitirá com maior facilidade em se voltar ao ponto de partida ou avançar para outras estruturações do grupo societário. 

 

Recursos humanos

Dada a necessidade de recursos humanos especializados em Software C... para fazer face ao desafio internacional e a um maior apoio dos parceiros nacionais, optámos por desativar (embora com um período de transição) as áreas de venda directa, ou seja, de venda directa ao público. O descontinuar desta área permite realocar os técnicos e comerciais especializados e convertê-los em mais opções de ajuda à área Internacional e ao apoio de parceiros nacionais em projectos, que no fundo é um dos principais objectivos: mais recursos para um melhor e mais eficaz apoio aos parceiros.

Com a empresa numa única estrutural vamos ainda aproveitar uma série de sinergias imprescindíveis para ultrapassar com sucesso estes desafios. Por deixarem de ser necessários diretores que tinham funções semelhantes nas duas empresas, estes podem agora ser convertidos para junções de direção nacional conseguindo assim uma maior atenção à área que dirigem e uma mensagem e procedimentos Idênticos para todos os parceiros e clientes.

 

Os objectivos

São vários os objectivos finais que se pretendem com todas estas medidas, os quais se podem dividir em duas áreas:

 

Objectivos de médio/longo prazo

A atingir no prazo de 3 a 5 anos e que resultam da nossa percepção do que será uma empresa de sucesso nesta área de negócio.

 

Imagem corporativa

Queremos uma imagem única e coesa, sem mensagens diferentes conforme a região de contrato, e que passe a nossa missão de esforço pelos Parceiros e pelos Clientes finais. Pretendemos assim extinguir e ultrapassar alguns problemas de dupla identidade que se vem sentindo junto dos clientes.

Queremos projectar para todo o mercado uma "cultura" única característica e identificativa do universo  C... .

 

Novos mercados

Pretendemos continuar a nossa expansão internacionalizando a nossa actividade. Já temos o processo iniciado em África, o qual pretendemos consolidar e fazer crescer aproveitando o crescimento potencial dos Países onde estamos, nomeadamente, Angola, Moçambique e Cabo Verde.

Em paralelo pretendemos criar uma rede de Parceiros em Espanha, aproveitando a nossa proximidade geográfica. Após consolidadas estas duas áreas, pretendemos prosseguir a internacionalização pelos restantes países da União Europeia aproveitando a homogeneização de legislação contabilística, a qual facilita a adaptação do Software C... aos diferentes enquadramentos.

Queremos projectar definitivamente a C... para o universo da internacionalização apetrechando a C... dos meios e recursos necessários à localização das suas aplicações e oferta de produtos para qualquer país da Comunidade Europeia.

 

Produtos

A inovação é uma constante nesta área, pelo que não só a C..., mas toda a concorrência, só se mantém no mercado com um grau de-inovação e investimento em I&D elevados. É um objectivo de longo prazo manter este ritmo na C..., que aliás, tem sido um dos factores que justificou o crescimento da C... ao longo de todos estes 20 anos.

 

Rentabilidades esperadas

Apesar de acreditarmos que o mercado nacional ainda pode sustentar algum incremento, não é esperado que seja o suficiente para manter o nível de crescimento a que nos habituamos e que necessitamos para manter os restantes objectivos de inovação e investigação. Assim, contamos com o mercado nacional para manter um crescimento reduzido e conseguir com a internacionalização produzir as mais-valias-imprescindíveis a um crescimento mais sustentado e mais acelerado.

 

Objectivos de curto prazo

Para sustentar os objectivos de longo prazo e de modo a corrigir factores que não estão conforme aquilo que acreditamos ser Indispensável a uma empresa de sucesso, temos também uma série de objectivos de curto prazo.

 

Estrutura organizacional

De modo a satisfazer os objectivos de médio e longo prazo é imprescindível reorganizar os recursos humanos de modo a obter sinergias que permitam um maior enfoque no que é vital para a C...; o desenvolvimento do software, o atendimento aos Parceiros e o apoio à área internacional. Assim, temos que conseguir evitar a duplicação de esforços (por existirem unidades em duas regiões - norte e sul) e concentrar em objectivos comuns a nível nacional.

Para isto é imprescindível unificar departamentos, centralizar determinadas tarefas e cativar todos os recursos humanos para os objectivos globais.

Queremos assegurar o sucesso da internacionalização, criando condições humanas de direcção e execução para assegurar um grande apoio aos parceiros internacionais,

 

Recursos financeiros

As necessidades financeiras para suportar o crescimento da capacidade de investigação e desenvolvimento, para suportar a criação da marca C... no exterior, são elevadas. Por isto, é imprescindível obter sinergias que permitam aumentar a capacidade de investimento nestas.

Queremos ter maior capacidade de investimento para continuar um alto processo de investigação e desenvolvimento, com o objectivo de continuar a inovação constante que tem caracterizado a C... ao longo destes últimos 20 anos.

(...)

K)   Para a realização das operações referidas de reorganização societária foram elaborados um relatório justificativo da transformação da Sociedade C..., Lda. em Sociedade comercial anónima (documento n.º 4), outro para a transformação da D..., Lda (documento n.º 5) e um relatório de avaliação das empresas do Grupo P... em 31 de Dezembro de 2009 (documento n.º 6), documentos que se dão como reproduzidos;

L)   Antes da realização das operações referidas, a C... e a D... Norte tinham participações directas e indirectas em várias sociedades de venda de software, formação profissional, contabilidade, auditoria, serviços de administração, gestão e consultadoria, publicidade, designadamente a Q..., Lda (“Q...”), a R..., Lda. (“R...”), S..., Lda (“S...”), T..., Lda (“T...”), U..., Lda. (“U...”), V..., Lda. (“V...”), W..., Lda. (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e depoimentos de X... e F...);

M)  O funcionamento do grupo P..., antes da reorganização de 2009, traduzia-se na existência de um polo de Lisboa assente na C..., que incluía as sociedades Q... e R... e um polo do Porto assente na D... Norte que incluía as sociedades S..., T... e U..., V... e W... (depoimento da testemunha F...);

N)   Os dois polos tinham funcionamentos distintos a nível de remunerações de colaboradores, organização, gestão de pessoal e desenvolvimento da actividade, havendo duplicação de funções para a mesma área de negócio, designadamente directores comerciais, de formação e financeiros (depoimento da testemunha F...);

O)   Até à reorganização de 2009, as decisões de negócio e de gestão do polo de Lisboa eram tomadas pelos gerentes da C...  e as decisões de negócio e gestão do polo do Norte eram tomadas pelos gerentes da D... Norte, o que originava diferentes decisões sobre situações idênticas e afectava o negócio, gerando desagrado nos clientes por serem aplicadas regras negociais diferentes em cada um dos polos (depoimentos das testemunhas F... e I...);

P)    Com a reorganização de 2009, pretendeu-se centralizar e unificar as decisões, tendo em vista inclusivamente a internacionalização do grupo, passando a testemunha F... a ser CEO do grupo, e pretendeu-se também reduzir custos, por eliminação de duplicação de cargos nos polos de Lisboa e Porto (depoimentos das testemunhas F..., I... e J...);

Q)   Na sequência da reorganização de 2009, a B... passou (???) a que decidiu o funcionamento geral do grupo, designadamente o abandono pela C... das actividades de comercialização directa e reservar-se para a produção de software e apoio aos parceiros que o vendem (depoimento da testemunha F...);

R)   A opção pela compra e venda de acções em vez de entradas em espécie para realizar o capital social da B... foi motivada por aquela facilitar a eventual saída de sócios (depoimento de X...);

S)    Após a criação da SGPS, foram vendidas sociedades directa ou indirectamente detidas pela B..., e foram criadas outras sociedades (depoimentos das testemunhas X... e F... e organigramas que constam do documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido e cuja correspondência à realidade não é questionada);

T)   A B... decidiu acumular lucros até ter o suficiente para suportar um ano de custos, para não estar dependente de empréstimos, não distribuindo dividendos até esse objectivo ser atingido, o que ocorreu em 2019, ano em que distribuiu dividendos aos seus accionistas (depoimento de F...); 

U)   O Requerente não faz parte actualmente da administração nem é accionista da B... (depoimento de F...); 

V)   Em 09-01-2022, o Requerente pagou a quantia de € 69.978,39, relativa à liquidação relativa ao ano de 2017 e, em 10-01-2022, pagou a quantia de € 21.337,49, relativa à liquidação do ano de 2018 (documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido); 

W) Em 06-12-2022, o Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

2.2. Factos não provados 

 

2.2.1. Não se provou que a criação da B... e a aquisição de acções a crédito aos maiores accionistas da C... e da D... (Norte) não tivesse em vista proceder a uma reestruturação empresarial e tivesse em vista essencial ou primordialmente uma situação em que os lucros por estas acumulados pudessem ser distribuídos àqueles accionistas sem o pagamento de impostos.

Na verdade, a prova produzida aponta no sentido da criação da B... ter tido em vista, primacialmente, unificar e centralizar a gestão das sociedades do grupo, que antes daquela tinham diferentes estratégias de actuação na C... e na D... (Norte) quer a nível de liderança quer na gestão comercial e de recursos humanos, bem como obter economias de recursos através da eliminação de duplicação de cargos directivos idênticos existente nestas duas sociedades.

Por outro lado, o facto de o regime legal de tributação de mais-valias na venda de acções vigente em 2009 assegurar que os lucros acumulados pela C... e pela D... (Norte) fossem imediatamente disponibilizados aos accionistas sem encargos fiscais (como podia ser concretizado com aquisição na sequência de financiamento bancário que permitisse pagamento imediato das acções adquiridas pela SGPS), torna inexplicável que, se o objectivo das pessoas que intervierem na reorganização societária fosse transferência desses lucros para os seus patrimónios, fossem optar por uma forma de financiamento que só lhes permitiria, eventualmente, vir a atingir o mesmo objectivo no futuro, a longo prazo.

Não se provou, assim, que corresponda à realidade a conclusão formulada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no RIT de que «a sociedade B... SGPS - serviu única e exclusivamente para receber os dividendos pagos pela(s) sua(s) participada(s) e permitir a sua retirada pelos acionistas que contraiam esta sociedade agora transmutados sob as vestes de amortização de crédito(s)».

Para além disso,  a prova produzida é no sentido de a B...ter distribuído dividendos aos seus accionistas, em 2019, não tendo efectuado antes por pretender acumular suficientes para suportar um ano de custos, como se refere na alínea T) da matéria de facto fixada.

 

2.2.2. Não se provou que a B... não tivesse exercido a sua actividade de gestão de participações sociais.

Na verdade, a prova produzida é no sentido de que, desde a criação da B..., foram adquiridas quotas de sociedades e extintas e criadas sociedades do grupo e a B...passou a decidir o funcionamento geral do grupo. Inclusivamente, foi a B... que decidiu, em 2012, a fusão da C... e a D... (Norte).

Para além disso, mesmo nos anos de 2016, 2017 e 2018 a que se refere a Autoridade Tributária e Aduaneira, a B... recebeu dividendos (em 2016 e 2017) e fez pagamentos de dívidas (em 2017 e 2018) como resulta do próprio RIT, o que consubstancia actividades incluídas nas atribuições de uma SGPS.

 

2.2.3. Não se provou que os montantes recebidos pelo Requerente a título de pagamento do valor da venda à B... das participações sociais que detinha na D... (Norte) correspondam a distribuição de lucros obtidos pela C... ou pela B... . 

Na verdade, o crédito que o Requerente obteve com a venda das acções à B... corresponde ao valor das participações sociais da D... (Norte) de que era titular em 2009, determinado através da avaliação independente, que tem por base  a parte do capital e lucros acumulados da D... (Norte) até essa data correspondentes às suas participações e, por isso, aquele crédito, a que se reportam os pagamentos feitos ao Requerente, não tem por fundamento quaisquer lucros obtidos pelas C... e pela B... . 

 

 

 

2.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos do processo administrativo e nos juntos pela Requerente, bem como as testemunhas inquiridas, nos pontos acima referidos.

A testemunha J... foi colaborador da C... desde 1994 a 2015.

A testemunha X... é revisor oficial de contas da C... desde 2008 e da B... desde a sua criação.

A testemunha F... é Administrador da B... e da C... desde o início destas sociedades. 

A testemunha I... trabalhou na C... desde 1995 a 2012.

As testemunhas aparentaram depor com isenção e com conhecimento dos factos que foram dados como provados com base nos seus depoimentos

 

 

3. Matéria de direito 

 

O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa declarar a ilegalidade de actos dos tipos indicados no artigo 2.º do RJAT e eliminar os efeitos jurídicos por eles produzidos, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele].

Por isso, sendo o acto de liquidação praticado pela Administração Tributária o objecto do processo, tem de se apreciar a sua legalidade à face dos seus precisos termos, tal como ocorreu, com a fundamentação que nele foi utilizada, não sendo relevantes outras possíveis fundamentações que poderiam servir de suporte a outros actos, de conteúdo decisório total ou parcialmente coincidente com o acto praticado. São, assim, irrelevantes fundamentações invocadas a posteriori, após o termo do procedimento tributário em que foi praticado o acto cuja declaração de ilegalidade é pedida ([1] ).

 

3.2. Posições das Partes 

 

            No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira, no Relatório da Inspecção Tributária subjacente às liquidações impugnadas, decidiu aplicar a cláusula geral antiabuso ao Requerente, por ter concluído o seguinte:

 

Entende-se que o conjunto de operações levadas a cabo pelos acionistas das sociedades C... e B... SGPS, são negócios que devem ser objeto de qualificação como "meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas. Ao serviço de uma finalidade exclusivamente fiscal, os atos de aquisição de ações das sociedades C... e D... (Norte) pela B... SGPS foram objeto de uma utilização distorcida destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, a distribuição de dividendos oriundos da C..., mediante distribuição "encapotada", "indireta" de dividendos a A... (e aos restantes acionistas) com o fim de evitar que os montantes recebidos fossem subsumíveis na norma de incidência constante do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º CIRS, segundo os quais os lucros/adiantamentos por conta de lucros, das entidades sujeitas a IRC, colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, constituem rendimentos de capitais (categoria E) sujeitos a IRS.

A sociedade criada, B... SGPS, foi utilizada e serviu de sociedade veículo para elidir o disposto no citado normativo, através de uma configuração artificiosa do pagamento de uma dívida em vez da obtenção de dividendos distribuíveis, de modo a obter uma vantagem fiscal. Configurou-se, sem qualquer substância económica, por razões estritamente fiscais, uma situação negocial que produz idênticos resultados materiais e financeiros, mas que possibilita evitar as consequências tributárias aplicáveis à distribuição de dividendos, nos termos do art.º 5º n.º 2 alínea h) do CIRS, incorrendo-se numa prática abusiva de elisão fiscal.

Face a todo o exposto, entende-se estarem verificadas as condições para que se possa lançar mão do mecanismo previsto no n.º 2 do artº 38º da LGT.

 

Como fundamentos da aplicação da cláusula geral antiabuso, a Administração Tributária invocou, em suma, o seguinte:

– os actos e negócios jurídicos relevantes celebrados pelo Requerente são a constituição da B..., com aquisição a crédito das acções do Requerente na D... (Norte), sem «quer ao aumento de capital quer ao financiamento externo da operação», com um prazo de pagamento de 15 anos; 

– depois, houve pagamento de dividendos pela C... à B... e parte dos valores recebidos por esta foram por ela utilizados para amortizar parte da dívida de que ficou credor o Requerente;

– «as participações detidas pela sociedade B... SGPS, para além da C..., S.A., representam apenas 0,73% dos capitais próprios antes de resultados e 0,48% depois de resultados e um resultado líquido, no seu conjunto, negativo (- €10 783.70), não gerando rendimentos capazes de justificar a própria criação da SGPS»;

– «o desenvolvimento e diversificação das áreas de atividade exercidas indiretamente pela B... SGPS simplesmente nunca sucedeu verdadeiramente, o que se compreende à luz dos atos e negócios jurídicos acima descritos, uma vez que é a C... que gera quase na totalidade os resultados da sociedade B... SGPS»;

– «os negócios jurídicos em análise resultam de um esquema, pré-planeado, com a interposição da B...  SGPS entre as sociedades C... e D... (Norte) e os seus quatro acionistas mais relevantes»;

– «com a sucessão de atos e negócios jurídicos, coordenados entre si, que embora ocorressem em momentos temporais diversos, o resultado final alcançado resultou na exclusão de tributação da operação aparente de amortização parcial da dívida, proveniente do preço das ações»;

– «um negócio jurídico normal de idêntico fim económico seria a distribuição direta de dividendos pela C... ao(s) acionista(s), o qual ocorre de facto quando a B... SGPS lhe(s) reembolsa o crédito contabilístico, mas cujos fundos provêm dos dividendos distribuídos pela C..., na medida em que todos os restantes atos e negócios jurídicos praticados tiveram em vista a obtenção das vantagens fiscais descritas, e foram praticados com abuso das formas jurídicas»;

– a finalidade fiscal «consistiria em receber os dividendos da sociedade C... (a D... Norte cessou atividade em 2012/09/30) como se fora o pagamento do valor em dívida constituída na esfera patrimonial da B... SGPS, sem que os mesmos "caíssem" nas normas de incidência do CIRS e concomitantemente fossem objeto de tributação»;

– «a inserção da sociedade B... SGPS entre as sociedades C... e D... (Norte) e os acionistas, comuns, não apresentou nem apresenta substância ou vantagem económica que sustente a constituição da SGPS»;

– a B... «não exerceu, no lapsus temporal analisado de facto a atividade de gestora de participações sociais»;

– «a sociedade B... SGPS não aufere praticamente outros rendimentos, nem tão pouco se lhe conhece qualquer outra fonte de financiamento», «não se lhe identificaram colaboradores/ trabalhadores» e «teve gastos associados à sua constituição e existência, que só são compreensíveis e economicamente racionais, com o pressuposto da vantagem fiscal obtida, porque outra não se vislumbra»;

– «a constituição da SGPS não trouxe qualquer mais-valia de índole económico-financeira para o detentor do capital da sociedade D... (Norte) que apenas passou de acionista direto para indireto»;

– «o resultado desta vantagem fiscal permitiu que os acionistas/administradores das sociedades alterassem a política salarial das sociedades C... e D... (Norte), sabendo que poderiam receber rendimentos da categoria E do CIRS, sem que sobre eles impendesse qualquer carga fiscal, que não fora o esquema criado, seriam tributados».

 

No presente processo, o Requerente formula as seguintes conclusões, nas suas alegações:

 

a) Da prova produzida resultou inequivocamente a existência de uma situação dual na gestão e actividade do grupo P..., fruto da divisão territorial Norte e sul. À situação que então se vivia caracterizava-se pelo seguinte:

– Dispersão de empresas com diferentes sócios e gerentes;

– Indefinição e não harmonização de estratégias de organização, actuação, negociação e investimento;

– Duplicação de estruturas de topo e chefias intermédias;

– Inexistência de cultura de empresa una, designadamente em política comercial e

de remunerações;

- Duplicação de custos de estrutura e de contexto.

b) Essa situação gerou dificuldades de vária ordem no desenvolvimento da actividade do grupo que se entendeu ser necessário terminar. A forma que se considerou adequada para o efeito foi a de criar uma SGPS para a qual seria transferida a propriedade das empresas e que passaria a ser a cabeça do grupo, decidindo sobre a nomeação dos corpos gerentes das sociedades operacionais.

c) Estas passariam a desenvolver o negócio de acordo com a estratégia definida centralmente na SGPS. Essa estratégia promoveu a harmonização do funcionamento do grupo, a todos os níveis, mas com particular importância nos recursos humanos e na definição da actividade a desenvolver.

d) Esta circunstância demonstra que havia uma clara necessidade de reestruturação ditada por objectivos de natureza comercial e inquestionável racionalidade económica subjacente à prática dos actos ou negócios jurídicos aqui em causa, pelo que esta não foi sequer orientada por fins de natureza fiscal e muito menos essencial ou principalmente dirigidos por razoes fiscais.

e) Quanto à forma adoptada para a reestruturação, não se concebe que a venda de acções seja uma forma anormal, artificial ou fraudulenta de proceder à transferência de títulos ou propriedade, razão pela qual não se demonstra ter havido qualquer tipo de artificialidade na operação.

f) Esta falta de artificialidade significa que as decisões subjacentes à operação desenvolveram-se e justificam-se no âmbito de uma normal e legítima gestão empresarial e não por um conjunto de operações de carácter invulgar que apenas um desvio motivado por razoes fiscais pudesse justificar, justificação esta que caberia à AT efectuar sujeitando-a a um teste de business purpose, ou seja, à demonstração do seu direito de correcção da operação fundamentado na falta da sua racionalidade económica. Demonstração que ficou por fazer.

g) Quanto ao seu valor, demonstrou-se que resultou de avaliação financeira efectuada pelos devidos métodos de avaliação de empresas e que teve como fim a divisão do capital social da SGPS de forma a estabelecerem-se as devidas e correctas relações de poder de acordo com a titularidade das empresas que geravam e se esperava que continuassem a gerar valor.

h) Justificou-se, também, porque não se recorreu à banca e porque foi deferido no tempo o pagamento da dívida concluindo-se que seria o mais adequado para o grupo, pois os encargos com a banca são avultados e podem criar problemas, justificando-se que os sócios fossem pagos apenas na medida e no tempo em que o negócio fosse gerando o retorno para o seu pagamento.

Í) Não tendo havido recurso a meios artificiais nem tendo havido uma finalidade de eliminação ou redução da tributação que seria devida, até porque a única poupança fiscal verificada resultou de uma expressa isenção à data estabelecida no Código do IRS, também não é possível invocar-se a verificação, no Requerente, de uma preponderante motivação de natureza fiscal conforme previsto no requisito de aplicação da norma anti-abuso designado de elemento intelectual.

j) A não verificação dos três referidos requisitos / elementos (meio, resultado e intelectual) impede que se identifique a existência de elisão fiscal ou poupança ilegítima que justifique qualquer reprovação do ordenamento jurídico à operação aqui em causa. Reprovação esta que requer a demonstração clara da intenção do legislador de tributar a operação.

k) Ora, não só se verifica que o ganho resultante da venda das acções não era tributado à data, como não se pode deduzir da lei que o pagamento de uma dívida efectiva deva ser assimilada a uma distribuição de dividendos ou que com ela comungue de quaisquer conteúdos equivalentes que pudesse levar o seu titular a empreender acções que deturpassem a sua necessidade de pagar dividendos.

I) Nestes termos, a sanção operada pela AT traduzida na desqualificação do pagamento da dívida ao Requerente por parte da B... para a qualificar como pagamento de dividendos não tem enquadramento na letra da norma geral anti-abuso, devendo ser corrigida, à semelhança do verificado em outras decisões, em particular da decisão arbitrai emitida no Processo n.° 222/2020-T, cujo entendimento se seguiu no PPA, dada a equivalência das situações.

m) Em consequência, entende-se que as liquidações de IRS identificadas, bem como o indeferimento da reclamação apresentada são ilegais, por violação de lei. Em concreto, pelo recurso indevido ao n.° 2 do art° 38, da LGT.

n) Sendo, ainda, devidos juros indemnizatórios ao Requerente.

 

 

No presente processo a Autoridade Tributária e Aduaneira mantém a posição assumida no Relatório da Inspecção, dizendo, em suma, o seguinte:

– para levar a cabo a realização do objecto cometido, as SGPS carecem de uma estrutura material e humana mínima, mas o que, na realidade, através da análise aos dados contabilísticos, os SIT encontraram foi a inexistência de pessoal, de equipamento, carências que reforçam a ideia de que a sua constituição não foi ditada, essencialmente, por razões de gestão do negócio prosseguido mas foi um mero formalismo destinado a obter vantagens de natureza fiscal;

– o objectivo de substituir a estrutura societária das duas empresas por uma estrutura profissionalizada, com vista à internacionalização, seria atingido através da B... se esta tivesse passado a centralizar a tomada de decisões do Grupo e se se posicionasse como holding representativa do grupo ou de um grupo, o que não aconteceu;

– a B... não teve qualquer actividade, apenas partilhando um administrador, remunerado por outra empresa participada;

– ao longo dos anos os negócios concentraram-se na C...;

– a B... não redistribui aos seus accionistas os dividendos que lhe são distribuídos pelas sociedades participadas, mormente a C...;

– a B..., nunca foi dotada de uma estrutura material e humana mínima necessária para o exercício da actividade de gestão própria das participações financeiras detida;

– está em causa é a realização de uma operação que teve como (único) objectivo permitir transferir para a esfera pessoal do Requerente os rendimentos gerados por uma empresa de que era accionista sem que, por isso, tivesse ficado sujeitos à tributação que seria devida em sede de IRS, e isso não apenas nos anos em causa (nos presentes autos) mas igualmente em anos futuros;

– inexistiram quaisquer despesas reveladoras da actividade de gestão de participações sociais ou de outra actividade acessória, sendo que, a única “actividade” que se vislumbra ter ocorrido por parte da –B... SGPS, foi a do recebimento de dividendos da participação detida na C..., SA, seguida do reencaminhamento desses valores para a esfera dos accionistas.

 

 

3.3. Regime de aplicação da cláusula geral antiabuso 

 

O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

É sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira que recai o ónus da prova da verificação dos pressupostos da cláusula geral antiabuso, pois é ela que a invoca verificar-se uma situação em que ela pode ser aplicada (artigo 74.º, n.º 1, da LGT). 

 

3.3.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

 

Tem sido generalizadamente reconhecida pela doutrina a liberdade de gestão fiscal, que é corolário dos princípios constitucionais enunciados nos artigos 61.º, n.º 1 (iniciativa privada), 80.º alínea c) (liberdade de iniciativa), e 86.º, n.º 2 (limitação à intervenção do Estado na gestão das empresas).

Assim, CASALTA NABAIS ensina ([2] ):

– «partindo do princípio do Estado fiscal, por um lado, e das liberdades económicas fundamentais, sobretudo das liberdades de iniciativa económica e de empresa, por outro, podemos dizer que a tributação das empresas se rege pelo princípio constitucional da liberdade de gestão fiscal»;

– «o Estado fiscal, que, perspectivado a partir da comunidade organizada em que se concretiza, nos revela um Estado suportado em termos financeiros basicamente por tributos unilaterais ou impostos, visto a partir dos destinatários que o suportam, concretiza-se no princípio da livre disponibilidade económica dos indivíduos e suas organizações empresariais. Em sentido lato, este princípio exige que se permita com a maior amplitude possível a livre decisão dos indivíduos em todos os domínios da vida, admitindo-se a limitação dessa liberdade de decisão apenas quando do seu exercício sem entraves resultem danos para a colectividade ou quando o Estado tenha de tomar precauções para preservar essa mesma liberdade individual»;

– «isto requer, antes de mais, uma economia de mercado e a consequente ideia de subsidiariedade da acção económica e social do Estado e demais entes públicos.

 – «o que tem como consequência, em sede do sistema económico-social (global), que o suporte financeiro daquele(s) não decorra da sua actuação económica positivamente assumida como agente(s) económico(s), mas do seu poder tributário ou impositivo, e, em sede do (sub)sistema fiscal, o reconhecimento da livre conformação fiscal por parte dos indivíduos e empresas, que assim podem planificar a sua actividade económica sem preocupações com as necessidades financeiras da comunidade estadual, actuando de molde a obter os melhores resultados económicos em consequência do seu planeamento fiscal (tax planning)».

 

A liberdade de gestão fiscal tem limites, como assinala o mesmo Autor:

 

  «Os limites à liberdade de gestão fiscal

   Pois bem, como acabamos de ver, a liberdade de gestão fiscal, que suporta o planeamento fiscal, constitui um princípio constitucional do maior significado e alcance em sede da tributação das empresas. Todavia, como liberdade que é, à semelhança do que ocorre com os demais direitos e liberdades, mesmo fundamentais, não pode deixar de ter limites. Por isso, essa liberdade comporta limites, não podendo ser consideradas manifestações dela as que constituam abusos da configuração jurídica dos factos tributários, provocando evasão fiscal ou fuga aos impostos através de puras manobras ou disfarces jurídicos da realidade económica". Limites que vêm sendo tratados sob o tema das cláusulas de combate as práticas de evasão e fraude fiscais, as quais frequentemente são designadas por cláusulas anti-abuso, muito embora a maioria das chamadas cláusulas especiais anti-abuso raramente se reportem a situações de verdadeiro abuso. Uma ideia que é, de resto, reconhecida na nossa ordem jurídica fiscal, tendo a mesma inequívoca expressão na circunstância de a aplicação de tais cláusulas não desencadear o procedimento específico previsto para a aplicação da cláusula anti-abuso constante do art. 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário».

 

Na mesma linha, ensinam DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS: 

 

  «A gestão das famílias e empresas é também uma gestão fiscal: previsão de impostos e escolha da via fiscalmente menos onerosa compatível com os interesses visados».([3])

  «A intenção de pagar o menos imposto que se possa, nos quadros da lei, não só não é condenável, ética ou legalmente, como de algum modo é uma reacção normal dentro do princípio da gestão dos interesses pessoais e das organizações» ([4])

  «As escolhas fiscais (legitimas) estão assentes no princípio da liberdade de gestão fiscal». ([5])

            

  «Tratar-se-á de escolhas permitidas pela legislação fiscal que oferece ao contribuinte um leque de opções, deixando-lhe a faculdade de escolher. Daqui resulta uma subtributação em benefício do contribuinte que foi oferecida ou, pelo menos, permitida pelo legislador. É um procedimento "intra legem", ou seja, deixado à escolha do contribuinte pela própria lei fiscal. O contribuinte escolheu voluntariamente, dos instrumentos legais postos à sua disposição, aquele que mais lhe convinha. E que normalmente também é o que mais convém à Administração. É também um resultado "secundum legem": não há aqui qualquer oposição à lei, qualquer ilícito, mas sim uma mera aplicação da lei à situação concreta, e que pareceu mais favorável ao contribuinte».([6] )

 

  «Aquele que gere o seu património em termos de se colocar nas situações tributadas mais pesadamente, não pode senão merecer um juízo de censura daqueles que têm interesses legítimos ou direitos em relação a esse património. Podendo mesmo incorrer na acusação de prodigalidade ou má gestão. Os consultores jurídicos e financeiros do "pai de família" e do empresário serão passíveis de censura se não aconselharem o seu cliente a levar a cabo o comportamento que seja susceptível de menor imposto». ([7] )

              

              Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ([8] ): o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo»

              Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legemextra legem e intra legem.

              Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ([9] ) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

              A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal» ([10] ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema» ([11] ). Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais»«evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal» ([12] ).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem ([13] ).

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela contidos, correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ([14]) ou apenas «três elementos essenciais, todos eles entrelaçados». ([15])

Estes elementos consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal; como decorre do texto do artigo 38.º. n.º 2, da LGT, os meios relevantes para aplicação da cláusula geral antiabuso têm de ser «artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas» ;

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente ([16]);

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam» ([17]);

– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela »([18]);

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

 

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça GUSTAVO COURINHA, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente» ([19] ). 

SÉRGIO VASQUES indica os seguintes três elementos essenciais: ([20] )

«Em primeiro lugar, exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. 

Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. 

Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens económicos em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e às práticas negociais mais comuns».

 

 

3.3.2. Elementos meio e normativo

 

Como se referiu, o elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal. Como exige o n.º 2 do artigo 38.º, na redacção anterior à Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que aqui é aplicável, os meios relevantes para aplicação da cláusula geral antiabuso tem de ser qualificáveis como «artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas». 

No caso em apreço, a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu que foi praticado um «conjunto de atos e negócios jurídicos» que «foram essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, a redução ou eliminação de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios».

Esses actos foram, no entendimento da Administração Tributária:

– criação de uma SGPS pelos accionistas das sociedades operacionais;

– venda à SGPS das acções das sociedades operacionais, sem tributação de mais-valias;

– a venda das acções a crédito por parte dos maiores accionistas da C... e da D... (Norte), ficando credores da SGPS esses accionistas que não foram imediatamente pagos pela venda das acções;

– pagamento de dividendos pela sociedade operacional C...  não sujeitos a tributação, no âmbito do regime de eliminação da dupla tributação económica; 

– pagamentos feitos pela SGPS ao Requerente, que era accionista credor, a título de reembolso da dívida, sem aplicação do regime de tributação de dividendos, previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS.

 

            A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que a criação da B... e a venda das acções a crédito foi «destinada simplesmente a conseguir, sem tributação, a distribuição de dividendos oriundos da C..., mediante distribuição "encapotada", "indireta" de dividendos a A... (e aos restantes acionistas)».

            Desde logo, não é crível que a venda das acções pelo aqui Requerente A... tivesse em vista a obtenção de dividendos oriundos da C... sem tributação, pois este Requerente não era, à data da venda, accionista da C... e nunca o chegou a sê-lo, pois quando a D... (Norte), de que era accionista, foi fundida coma C..., o Requerente A... já não era accionista de qualquer delas, pois todas as acções estavam na titularidade da B... .

Para além disso, o Requerente defende que estes actos não foram determinados e planeados com o objectivo de obter vantagens fiscais e a prova produzida corrobora a sua posição. 

Na verdade, provou-se que a B... SGPS foi criada em concretização do Plano Estratégico que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, com que se visou reorganizar os recursos das empresas C...  e D... (Norte), centralizando e unificando as decisões, tendo em vista inclusivamente a internacionalização do grupo, que veio a ser concretizada.

É convicção do Tribunal Arbitral, baseada na prova produzida, que corresponde à realidade que a existência de dois polos de direcção, na C... e na D... (Norte), com políticas comerciais e remuneratórias distintas e duplicação de cargos de chefia, tinha potencialidade para afectar negativamente o funcionamento global das empresas do grupo e a criação de uma SGPS, centralizando a direcção de todas as empresas do grupo era um meio adequado para atingir aqueles objectivos.

Neste contexto, a criação de uma SGPS como entidade de topo de um grupo económico centralizando a gestão de todas as participações sociais do grupo em que se integram sociedades operacionais com actividades distintas nada tem de artificioso, pois é precisamente para esse fim que o Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, criou um regime especial para essas sociedades, mais favorável que a detenção das participações sociais numa sociedade operacional do grupo.

Na verdade, como se diz no preâmbulo deste diploma, visou-se com o regime legal das SGPS, «criar condições favoráveis, designadamente de natureza fiscal, que facilitem e incentivem a criação de grupos económicos, enquanto instrumentos adequados a contribuir para o fortalecimento do tecido empresarial português» e «proporcionar aos empresários um quadro jurídico que lhes permita reunir numa sociedade as suas participações sociais, em ordem à sua gestão centralizada e especializada».

Assim, a criação de uma SGPS centralizando a gestão das participações sociais do grupo, era, na situação em apreço, não apenas uma opção permitida por lei, mas era mesmo a opção preferida pela lei e por esta incentivada, preferida em relação à assunção da direcção do grupo por qualquer das sociedades que o integravam, como se depreende do facto de às SGPS ser aplicado um regime fiscal mais favorável do que o aplicável as sociedades operacionais, designadamente com atribuição de benefícios fiscais ( [21] ), para além da eliminação da dupla tributação económica.

Por isso, não tem qualquer fundamento legal a qualificação da criação da SGPS como artificiosa ou fraudulenta ou constituir abuso das formas jurídicas¸ para efeitos do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, pois não se trata de operação insólita ou invulgar, não prevista legislativamente para atingir o objectivo económico ou inadequada para esse efeito, antes foi precisamente para utilização neste tipo de situações que o regime legal das SGPS foi criado e era legalmente incentivado.

Como bem se diz no acórdão arbitral de 30-01-2015, proferido no processo n.º 381/2014-T, «não se pode detetar qualquer “carácter anómalo” em cada um destes negócios jurídicos: sendo o fim prosseguido a criação de uma sociedade tendo por objeto a detenção de ações, a forma societária escolhida, SGPS, era a própria; pretendendo a sociedade adquirir as ações necessárias à realização do seu escopo social, a forma escolhida (compra e venda) é a correta, porquanto esta é a forma legal típica que a lei prevê para a aquisição a título oneroso, inter-vivos, de bens e direitos. A sequência dos negócios é, também “normal”: não se compreenderia a criação da sociedade sem a posterior aquisição das ações em causa».

Por outro lado, a escolha do financiamento através de crédito dos accionistas é um meio simples, sem os encargos de um financiamento bancário e sem inconvenientes para o crescimento e fortalecimento do grupo, por a dívida aos accionistas poder ser paga a médio ou longo prazo na medida das disponibilidades da SGPS, sem colocar em causa os investimentos necessários para assegurar os seus objectivos.

A criação de dívida de médio e longo prazo, sem juros, apenas pagável à medida das disponibilidades da SGPS e sem comprometer os seus objectivos de crescimento e fortalecimento do grupo, é manifestamente uma solução simples, barata e vantajosa para os fins visados pelo grupo, pois assegura perfeitamente a possibilidade de efectuar os investimentos que julgue necessários para o seu crescimento e fortalecimento sem se preocupar com o pagamento da dívida.

 Neste contexto, há que notar que a criação de um passivo elevado na SGPS, que disponha de património diminuto, nem pode ser considerada uma solução irracional, estranha ou inconveniente para esta. Na verdade, a aceitação daquela dívida elevada foi acompanhada da criação de um activo do mesmo valor, constituído pelas participações sociais e o património que lhes estava subjacente, que se foi valorizando consideravelmente. É, essencialmente, uma situação semelhante à que ocorre quotidianamente quando alguém pede um empréstimo bancário para adquirir um imóvel: fica com uma dívida, mas fica também no seu património com um activo de valor correspondente, normalmente susceptível de valorização. Neste caso, a aquisição de um activo a crédito com o diferimento do pagamento do preço pela SGPS, sem pagamento de juros, é manifestamente uma situação economicamente vantajosa para a SGPS. 

De qualquer forma, mesmo que houvesse outras formas de reestruturação empresarial com maior ou menor ou idêntica onerosidade fiscal (como a possível e mais complexa permuta de participações), insere-se no âmbito essencial da liberdade de gestão fiscal dos contribuintes optar pela forma que preferirem, pois não estão obrigados a escolher a forma mais favorável para a cobrança de impostos, quando a lei não lhe impõe que a adopte. 

Neste caso, o considerável crescimento do grupo posterior à constituição da SGPS, é uma confirmação de que a opção pela reestruturação do grupo através da criação da SGPS com o passivo referido, que tem simplicidade evidente, não foi uma inadequada decisão de gestão, que pusesse em causa os fins que visava. Por isso, não há qualquer fundamento para concluir que se está perante o uso de meios artificiosos ou fraudulentos ou que envolvam abuso de formas jurídicas.

De resto, também neste caso, a opção pela venda das acções era objectivamente incentivada pelo regime legal vigente em 2008 de não tributação das mais-valias realizadas com a venda de acções detidas há mais de 12 meses, prevista na alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, na redacção vigente em 2008, e pela isenção de Imposto do Selo prevista para a constituição e o aumento do capital social das sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), na alínea r) do n.º 1 do artigo 7.º do CIS, na redacção inicial.

No que concerne à intenção de obter vantagens fiscais no futuro com a realização das operações, há que ter em conta que os lucros acumulados pelas sociedades podem ser transferidos para os patrimónios dos accionistas por via da distribuição de dividendos, mas também através da realização de mais-valias obtidas com a venda das acções, e não há qualquer obrigação legal de adoptar um ou outro dos meios referidos para concretizar a transferência. 

À face do regime legal vigente em 2009, as mais-valias consideraram-se realizadas com a venda das acções, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 10.º, independentemente do pagamento do preço, pelo que, ao efectuar a venda, o Requerente realizou as mais-valias para efeitos fiscais e adquiriu o direito a transferir para o seu património pessoal os lucros da D... (Norte) subjacentes a essas mais-valias, sem tributação. Isto é, com a venda das acções a crédito e a realização das mais-valias, o Requerente adquiriu o direito a receber a quantia correspondente aos lucros acumulados pela D... (Norte) até ao momento da alienação, subjacentes às mais-valias realizadas, e, como a lei vigente no momento da realização destas não estabelecia qualquer tributação em sede de IRS, não eram sequer perceptíveis quais as vantagens fiscais indevidas que poderiam pretender obter no futuro com a operação, pois o direito ao reembolso da quantia em dívida, que é um direito garantido pela lei civil, nem sequer estava sujeito a tributação em sede de IRS.

Na verdade, o que está na génese da obtenção de vantagens fiscais, que poderiam abstractamente considerar-se injustificadas por se tratar da obtenção de rendimentos sem tributação em IRS, que a Administração Tributária pretende afastar, está precisamente no regime legal da não tributação das mais-valias que vigorava em 2009, que permitia tais vantagens, e não no comportamento do Requerente que praticou actos não proibidos e até incentivados legislativamente. Mas, concedido por lei e adquirido legalmente pelo contribuinte o direito a receber, sem tributação em IRS, a quantia correspondente às mais-valias realizadas (isto é, a quantia correspondente aos lucros acumulados incorporados no valor das acções que vendeu à SGPS), o diferimento do pagamento da dívida para momento em que já não vigorava essa não tributação não pode, por ser proibido pelo n.º 3 do artigo 103.º da CRP, ser pretexto para a tributação retroactiva daquelas mais-valias (isto é, tributação a posteriori, nos momentos do pagamento das dívidas, daqueles mesmos lucros acumulados que tinham sido transferidos para patrimónios dos Requerentes sobre a forma de créditos, sem sujeição a tributação). 

Por outras palavras, não é compatível com o princípio constitucional da proibição da retroactividade utilizar a cláusula geral antiabuso para tributar a posteriori, a qualquer título, mais-valias que não estavam sujeitas a tributação no momento indicado pela lei como sendo o indicado para definir a sua tributação, isto é, para eliminar vantagens fiscais legalmente obtidas no momento em que o foram, mesmo que numa reformulação legislativa posterior o regime de tributação  tenha eliminado a possibilidade de obtenção de tais vantagens.

 Assim, é perfeitamente crível que as operações referidas não tivessem sido realizadas com o intuito de evitar pagamento de IRS quando fossem feitos os reembolsos das dívidas, pois se tratava de actos relativamente aos quais o Requerente tinha aproveitado o regime de não tributação de mais-valias e já tinha obtido todas as vantagens fiscais que poderia obter (não tributação). 

Por isso, não se pode concluir que a criação da SGPS e o modelo de financiamento adoptado tenham sido escolhidos tendo em vista a obtenção de mais vantagens fiscais a nível da distribuição dos lucros acumulados, pois já tinham sido obtidas, nem que tenham sido utilizados meios artificiosos ou fraudulentos ou com abuso de formas jurídicas, pois trata-se de opções não só permitidas por lei, mas até objectivamente incentivadas pelo regime legal vigente em 2009, quanto a não tributação de mais-valias em sede de IRS e isenções em sede de imposto do selo.

A conclusão de que as vantagens fiscais consubstanciadas no acesso aos lucros acumulados pela D... (Norte) foram legalmente obtidas à face do regime que vigorava quando foram concretizadas leva a concluir que também não se verifica nesta situação o referido elemento normativo, que, como se disse, «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela».

Num Estado de Direito (artigo 2.º da CRP), em que os Tribunais estão sujeitos à lei (artigo 203.º da CRP) e a Administração Tributária está subordinada ao princípio da legalidade na globalidade da sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT), o comportamento que constitucionalmente lhes é imposto é acatar a opção legislativa de concessão de vantagens fiscais a quem estava em condições de delas beneficiar e não sobrepor ao critério legislativo a tributação que julgariam dever ser aplicada se fosse a eles que a Constituição atribuísse o poder legislativo. O regime da cláusula geral antiabuso foi criado para eliminar vantagens fiscais ilegítimas e não as que foram alcançadas com utilização dos meios previstos na lei para os contribuintes as poderem obter.

Pelo exposto, a análise que a Autoridade Tributária e Aduaneira fez do elemento meio assenta em pressupostos que não estão em sintonia com a realidade, o que implica que o acto praticado enferme de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto. 

De resto, sendo sobre a Administração Tributária que recai o ónus da prova dos factos que invoca como pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso (artigo 74.º, n.º 1, da LGT), a mera dúvida sobre a existência de um planeamento com o objectivo de obter vantagens fiscais a nível da hipotética ulterior distribuição de dividendos, justificaria a anulação das liquidações, por força do preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.

Sendo cumulativos os requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, a constatação da não utilização de «meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas» e não existirem «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos» à obtenção de vantagens fiscais basta para concluir pela ilegalidade da sua aplicação.

Procede, assim, o pedido de pronúncia arbitral, com fundamento em vício de violação de lei por não verificação dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso.

As liquidações de juros compensatórios têm como pressupostos as respectivas liquidações de IRS, pelo que enfermam dos mesmos vícios.

A decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que manteve as liquidações impugnadas, também enferma dos vícios das liquidações que confirmou, pelo que também se justifica a sua anulação.

 

 

3.3.3. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações que são objecto do presente processo, por vício que impede a renovação dos actos, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

 Na verdade, o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT, ao estabelecer uma ordem de conhecimento de vícios, pressupõe que, julgado procedente um vício que assegura a eficaz tutela dos direitos dos impugnantes, não é necessário conhecer dos restantes, pois, se fosse sempre necessário apreciar todos os vícios imputados ao acto impugnado, seria indiferente a ordem do seu conhecimento.

Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

 

4. Reembolso e juros indemnizatórios 

 

              Em 09-01-2022, o Requerente pagou a quantia de € 69.978,39, relativa à liquidação relativa ao ano de 2017 e, em 10-01-2022, pagou a quantia de € 21.337,49, relativa à liquidação do ano de 2018, e pede o seu reembolso com juros indemnizatórios. 

 

              De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

              Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária». 

              O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

              Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

              Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

              Cumpre, assim, apreciar os pedidos de reembolso das quantias pagas e de juros indemnizatórios.

              Na sequência da anulação das liquidações, o Requerente tem direito a ser reembolsado das quantias indevidamente pagas, no montante global de € 91.315,88.

              No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte: 

 

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

              No caso em apreço, conclui-se que há erro nas liquidações imputáveis aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, pois foi esta que as elaborou por sua iniciativa.

              Os juros indemnizatórios devem ser contados, quanto a cada quantia paga, desde a data em que ocorreu o pagamento, até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

5. Decisão 

 

Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em: 

a)        Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral; 

b)        Anular as liquidações de IRS n.ºs 2021 ... e 2021 ..., bem como as liquidações de juros compensatórios n.ºs 2021 ... e 2021...;

c)        Anular a decisão da reclamação graciosa;

d)        Julgar procedentes os pedidos de reembolso das quantias pagas e de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar ao Requerente a quantia de € 91.315,88, acrescida de juros indemnizatórios determinados nos termos referidos no ponto 4 do presente acórdão.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 91.315,88

 

7. Custas 

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 2.754,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 13-06-2023

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

(relator)

 

 

(Eva Dias Costa)

 


(António Pragal Colaço)

Com declaração de voto

Votei favoravelmente o presente Acórdão por concordar com a sua fundamentação, apenas com a ressalva que, quanto à celebração de um contrato de compra e venda de participações sociais em que o comprador “goza” da benesse do pagamento a 15 anos sem quaisquer juros, se afigura desfasável da realidade económica dos negócios, desde logo porque fere a normalidade das operações económicas similares, não podendo ser argumento a manutenção das taxas de juro durante largo tempo junto do limiar 0%. No entanto, tal situação configuraria a aplicação de tributação sobre os juros a título presuntivo, em sede de Categoria E, que em nada concatenaria com a aplicação da cláusula anti-abuso, da forma que foi aplicada pela Requerida. Aliás, nem a Requerida foi por essa via.

 

(António Pragal Colaço)

 

 

 

 

 



[1]          Essencialmente neste sentido, podem ver-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, a propósito de situação paralela que se coloca nos processos de recurso contencioso: 

– de 10-11-98, do Pleno, proferido no recurso n.º 32702, publicado em AP-DR de 12-4-2001, página 1207.

– de 19/06/2002, processo n.º 47787, publicado em AP-DR de 10-2-2004, página 4289.

– de 09/10/2002, processo n.º 600/02.

– de 12/03/2003, processo n.º 1661/02;

– de 28-10-2020, processo n.º 2887/13.8BEPRT.

 

 

[2] Introdução ao Direito Fiscal das Empresas, 2013, páginas 44-45.

[3] DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, Direito Tributário, 2.ª edição, página 156.

[4] DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, obra citada página 160.

[5] DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÔNICA LEITE DE CAMPOS, obra citada página 159.

[6] DIOGO LEITE DE CAMPOS, Evasão Fiscal, Fraude Fiscal e Prevenção Fiscal, in Problemas Fundamentais do Direito Tributário, 1999, página 196.

[7] Última obra citada, página 199.

[8]  SALDANHA SANCHES, Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.

[9]  Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[10] JÓNATAS MACHADO E NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.

[11] SALDANHA SANCHES, Os Limites..., p. 181.

[12]  SALDANHA SANCHES, Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[13] SALDANHA SANCHES, Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, PAULO MARQUES, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[14]  Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (GUSTAVO LOPES COURINHA, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[15] SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2011, página 317.

[16] Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».

[17] GUSTAVO LOPES COURINHA, Cláusula..., p. 180.

[18] GUSTAVO LOPES COURINHA, Cláusula..., p. 211.

[19] GUSTAVO LOPES COURINHA, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».

[20] SÉRGIO VASQUES, Manual de Direito Fiscal, 2011, página 317.

[21] Como os previstos em 2008 no artigo 31.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (posterior artigo 32.º) e nas alíneas g) e r) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo, na redacção inicial.