Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 287/2016-T
Data da decisão: 2016-11-16  Selo  
Valor do pedido: € 151.018,71
Tema: IS – Valor de ações não cotadas.
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            Os árbitros Cons. Jorge Manuel Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dr. A. Sérgio de Matos e Prof. Doutor Miguel Patrício (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 04-08-2016, acordam no seguinte:

           

            1. Relatório

 

            A…, contribuinte n.º…, com residência fiscal na Travessa …, …-… …, (doravante simplesmente “Requerente”), veio, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2º e dos artigos 10º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante apenas designado por RJAT) apresentar pedido de constituição do tribunal arbitral tendo em vista a apreciação da legalidade dos actos de liquidação de Imposto do Selo (“IS”) n.ºs 2016…, 2016…, 2016…, e 2016 … e de acerto de contas correspondentes.

            É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 06-06-2016.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 20-07-2016 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 04-08-2016.

A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.

Por despacho de 02-10-2016 foi decidido dispensar reunião e que o processo prosseguisse com alegações escritas.

As Partes apresentaram alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções nem há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Com base nos elementos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com a Resposta, consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)    Por contrato celebrado a 12-01-2015, B…(contribuinte n.º…), C…(contribuinte n.º…), D…(contribuinte n.º …) e E… (contribuinte n.º …) convencionaram transmitir gratuitamente a raiz da propriedade de 130 (cento e trinta) acções com o valor nominal de € 5,00 (cinco euros), de que eram co-titulares, da sociedade F… SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A. (doravante somente “F…”), à aqui Requerente (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

b)    Pelo mesmo contrato, a então usufrutuária G… (contribuinte n.º…), detentora do usufruto das referidas acções objecto deste contrato, transmitiu gratuitamente o usufruto daquelas à aqui Requerente;

c)    Assim, a Requerente A… foi beneficiária da doação da raiz da propriedade e do usufruto de 130 acções da Sociedade F…- Sociedade Gestora de Participações, S.A.;

d)    A F… é uma sociedade anónima com sede na Rua…, n.º…, freguesia …, em …, com o número de identificação de pessoa colectiva / número de matrícula …, com o capital social de € 1.093.500,00;

e)    Em 20-05-2015 foram então apresentadas declarações de IS relativas à participação das transmissões gratuitas, e a que foram atribuídos os n.ºs …, …, … e … (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

f)     A Direcção de Finanças do Porto procedeu à avaliação das quotas da sociedade F…– Sociedade Gestora de Participações, S.A., para efeitos de liquidação de Imposto do Selo, por as acções não estarem cotadas;

g)   A Requerente foi notificada para exercer o direito de Audição nos termos do artigo 60.º da LGT por ofício da Divisão de Liquidação dos Impostos sobre o Património e outros Impostos da Direcção de Finanças do Porto de 05-11-2015, tendo desse modo, sido notificada dos valores apurados e a respectiva fórmula de cálculo prevista no artigo 15.º, n.º 3, alínea a) do Código do Imposto do Selo (IS);

h)    A Requerente não exerceu o direito de audição;

i)       Nessa sequência, foram emitidas as seguintes liquidações de Imposto do Selo:

– em resultado da participação de Imposto do Selo n.º … foi emitida a liquidação n.º…, de 17-12-2015, no valor de € 37.812,98;

– em resultado da participação de Imposto do Selo n.º … foi emitida a liquidação n.º …/…, de 29-02-2016, no valor de € 37.812,98;

– em resultado da participação de Imposto do Selo n.º…foi emitida a liquidação n.º…, de 29-02-2016, no valor de € 37.812,99;

 

– em resultado da participação de Imposto do Selo n.º … foi emitida a liquidação n.º…, de 29-02-2016, no valor de € 37.812,99 (documentos com o pedido de pronúncia arbitral cujos teores se dão como reproduzidos);

j)      Em 23-05-2016, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

2.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e no processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Questão da ilegalidade das liquidações

 

Está em causa no presente processo apreciar a legalidade das liquidações de Imposto do Selo relativo a transmissão gratuita de acções não cotadas.

Na determinação do valor das acções a Autoridade Tributária e Aduaneira utilizou a fórmula prevista no artigo 15.º, n.º 1, alínea c), do Código do Imposto do Selo (CIS), que estabelece o seguinte, na redacção vigente em 2015:

 

3 - O valor das acções, títulos e certificados da dívida pública e outros papéis de crédito é o da cotação na data da transmissão e, não a havendo nesta data, o da última mais próxima dentro dos seis meses anteriores, observando-se o seguinte, na falta de cotação oficial:

 

a) O valor das acções é o correspondente ao seu valor nominal, quando o total do valor assim determinado, relativamente a cada sociedade participada, correspondente às acções transmitidas, não ultrapassar (euro) 500 e o que resultar da aplicação da seguinte fórmula nos restantes casos:

 

Va =1/ 2n[S + ((R1 + R2)/2)f]

 

em que:

 

Va representa o valor de cada acção à data da transmissão;

 n é o número de acções representativas do capital da sociedade participada;

 S é o valor substancial da sociedade participada, o qual é calculado a partir do valor contabilístico correspondente ao último exercício anterior à transmissão com as correcções que se revelem justificadas, considerando-se, sempre que for caso disso, a provisão para impostos sobre lucros;

R1 e R2 são os resultados líquidos obtidos pela sociedade participada nos dois últimos exercícios anteriores à transmissão, considerando-se R1 + R2 = 0 nos casos em que o somatório desses resultados for negativo;

f é o factor da capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no Jornal Oficial da União Europeia e em vigor na data em que ocorra a transmissão;

 

No caso em apreço, a fórmula referida conduziu à determinação do valor de € 11.634,77 por acção, nos seguintes termos:

n = 218.700

S = € 18.421.509,48

R1 = € 2.578.354,90

R2 = € 2.492.270,13

 

logo,

e,

Va = € 11.634,77

No caso em apreço, à face do resultado alcançado, o valor global das acções da F… seria de € 2.544.524.199,00.

A Requerente aceita que é este o resultado que deriva da aplicação da fórmula referida e que ela foi correctamente aplicada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, mas entende que ela foi adoptada legislativamente quando o factor da capitalização dos resultados líquidos era calculado com base numa taxa de juro muito superior à vigente em 2015 e conduz a um valor muito exagerado quando aplicadas as taxas de juro actualmente vigentes, anormalmente baixas, designadamente, no caso em apreço, a de 0,05%.

Para demonstrar o exagero a que conduz a aplicação daquela fórmula, a Requerente refere, além do mais, que essa fórmula, à face da redacção do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre Sucessões e Doações, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 119/94, de 7 de Maio, que remetia para a taxa básica de desconto do Banco de Portugal em vigor na data da transmissão, conduzia a um factor de capitalização de 12,121212, calculado com base na taxa de 8,25%, enquanto o factor de capitalização utilizado no caso em apreço foi de 2000, com base na taxa de juro de 0,05%, o que se reconduz a um valor para as acções 165 vezes superior àquele.

Os resultados distorcidos a que conduz a aplicação da fórmula referida são evidentes, quando a taxa de juro aplicada é próxima de zero, como se patenteia pela constatação de que qualquer pequena alteração da taxa de juro de algumas centésimas implicaria alterações enormes no valor das acções: por exemplo, se a taxa de juro a considerar descesse de 0,05% para 0,01% o facto de capitalização passaria de 2000 para 10.000 (100/0,01), o que equivaleria a uma quintuplicação imediata do valor fiscal das acções sem correspondência económica plausível.

A evidência dessa distorção foi legislativamente reconhecida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, ao fazer acrescer um spread de 4% à taxa de juro utilizada no cálculo do factor de capitalização, o que se explica no Preâmbulo, que «corrige uma distorção criada pela redação anterior, na medida em que a taxa de referência do Banco Central Europeu se encontra atualmente em níveis próximos do zero, alterando, assim, a ratio subjacente à fórmula criada para o efeito».

Sendo assim, é de presumir que o valor real das acções transmitidas é muito inferior ao valor que foi considerado para emitir as liquidações impugnadas, pelo que é de considerar ilidida a presunção de que o valor real das acções é o que resulta da aplicação daquela fórmula.

            Para além disso, em face da evidência do exagero de avaliação das acções a que conduz a aplicação da fórmula referida, confirmado pelo reconhecimento legislativo, não pode deixar de se concluir que o artigo 15.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto do Selo, na redacção inicial, vigente em 2015, é materialmente inconstitucional, quando aplicado com base na taxa de juro de 0,05%.

Na verdade, dessa aplicação resulta um valor fiscal das transmissões de acções não cotadas muito superior ao seu presumível valor real e esse valor exagerado e consequente excessiva tributação não ocorrem com as outras transmissões de participações sociais economicamente equiparáveis, designadamente acções cotadas e quotas, sem que haja qualquer justificação razoável para tributar acrescidamente as primeiras.

Sendo assim, o artigo 15.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto do Selo, na redacção inicial, vigente em 2015, é materialmente inconstitucional, quando aplicado com base na taxa de juro de 0,05% para cálculo do factor de capitalização, por violação do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP), que impõe que sejam tratados igualmente os que se encontram em situações iguais e tratados desigualmente os que se encontram em situações desiguais, de maneira a não serem criadas discriminações arbitrárias e irrazoáveis, porque desprovidas de justificação objectiva e racional.

Pelo exposto, as liquidações impugnadas enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de facto por terem considerado como valor das acções um valor muito superior ao real e por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, por violação do princípio da igualdade, ao fazer aplicação daquela fórmula com aplicação de uma taxa de juros de 0,05%.

Estes vícios justificam a anulação das liquidações impugnadas [artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo de 2015, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 2.º, alínea c), da LGT]. ( [1] )

3.2. Questão das consequências da ilegalidade das liquidações

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que os actos tributários de liquidação sub judice não podem ser meramente anulados, pois que apenas está em causa a determinação do valor tributável, nunca sendo colocada em causa a existência de facto tributário sujeito a tributação.

O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este, um meio processual de mera legalidade, em que se visa eliminar os efeitos produzidos por actos ilegais, anulando-os ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), daquele], pelo que o Tribunal Arbitral tem de limitar-se a apreciar a legalidade dos actos impugnados tal como foram praticados, não podendo, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua actuação poderia basear-se noutros fundamentos.

A nível das consequências da anulação tem-se entendido, na sequência de jurisprudência pacífica e reiterada do Supremo Tribunal Administrativo, que no contencioso tributário de anulação é possível apreciar pedidos de reembolso de quantias pagas e de juros indemnizatórios ( [2] ), bem como pedidos de indemnização por garantia indevida (artigo 171.º, n.º 1, do CPPT), mas está fora do âmbito dos poderes de cognição a apreciação da possibilidade de renovação dos actos anulados, que depende de iniciativa da Administração Tributária, no âmbito dos seus poderes/deveres de execução de julgado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

Pelo exposto, não se toma conhecimento da pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de que o Tribunal Arbitral fixe os efeitos decorrentes da anulação das liquidações.

 

4. Decisão

 

          Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

– julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

– declarar a ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo n.º…, …/…, … e …;

– anular as referidas liquidações;

– não tomar conhecimento da pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira de que o Tribunal Arbitral fixe os efeitos decorrentes da anulação das liquidações.

 

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 151.018,71.

 

6. Custas

 

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

 

           Lisboa, 16-11-2016

 

 

Os Árbitros

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(A. Sérgio de Matos)

 

 

 

(Miguel Patrício)



[1]              É de notar ainda que nenhum relevo assume para efeito de impugnação das liquidações o facto de a Requerente ter sido notificada da avaliação das acções para efeitos de execução de direito de audição e não o ter exercido.

Na verdade, uma notificação para exercício do direito de audição sobre um projecto de avaliação não é um acto administrativo que defina uma situação jurídica, sendo apenas um acto interlocutório de um procedimento de liquidação, que pode ser impugnado na impugnação do acto de liquidação que o incorpora. Diferente seria a situação se se estivesse perante um acto de avaliação de valores patrimoniais proferido em procedimento autónomo, que seria susceptível de impugnação autónoma, nos termos do artigo 134.º, n.º 1, do CPPT e do artigo 2.º, n.º 1, alínea b), do RJAT.

O exercício do direito de audição é uma mera faculdade que o Sujeito Passivo pode ou não utilizar, não lhe podendo advir consequências negativas pelo facto de optar pelo não exercício.

[2]              Sobre estas possibilidades, pode ver-se, entre muitos, o acórdão arbitral de 29-06-2012, proferido no processo n.º 14/2012-T.