Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 786/2022-T
Data da decisão: 2023-08-24  IRS  
Valor do pedido: € 6.752,16
Tema: IRS – Artigo 44.º n.º 1 al. f) do CIRS.
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Sumário: Nos termos do artigo 44.º n.º 1 al. f) do CIRS, o valor de realização da mais-valia corresponde ao “valor da respetiva contraprestação”. Ora, uma vez que a repartição do direito de propriedade sobre os imóveis corresponde a 1/2, temos de concluir que o valor de realização da mais-valia, para efeitos de aplicação do artigo 44.º n.º 1 al. f) do CIRS, corresponde a 1/2 do “valor da respetiva contraprestação”(1/2 x EUR 630 000 = EUR 315 000).

  

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DECISÃO ARBITRAL

  

I. Relatório

  

1.    A..., contribuinte fiscal n.º ... titular do cartão do cidadão n.º..., residente em Rua..., n.º..., ..., ...-... Porto (doravante, Requerente), apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante RJAT), e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, contra Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT), a qual tem por objeto (i) a liquidação de IRS nº 2021..., de 03.12.2021 referente ao período de tributação de 2020, do qual resultou imposto a pagar no montante de EUR 16.412,42 (dezasseis mil, quatrocentos e doze euros e quarenta e dois cêntimos) e, bem assim, (ii) o ato de indeferimento da reclamação graciosa (RG), e (iii) o ato de indeferimento de recurso hierárquico; (conjuntamente doravante, Ato Impugnado).

      

   No Pedido de pronuncia Arbitral (doravante, PPA), o Requerente pede que (i) Seja declarada a ilegalidade do ato tributário de liquidação, em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, respeitante ao exercício de 2020, que fixou um imposto a pagar de €16.412,42 (dezasseis mil, quatrocentos e doze euros e quarenta e dois cêntimos) e por conseguinte, anulado e substituído;” (ii)Seja a Requerida condenada em custas e a restituir ao Requerente a quantia indevidamente liquidada e paga, acrescida do pagamento de juros indemnizatórios já vencidos, relativo ao período que mediou entre a data de pagamento do imposto até a sua devolução, bem como, no pagamento dos juros indemnizatórios vincendos a contar da data da notificação da decisão, até, efetivo e integral pagamento, tudo conforme o disposto n.ºs 2.º a 5.ºdo art.º 61.º do CPPT,  à taxa legal apurada de harmonia com o disposto no n.º 4.º do art.º 43.º da LGT até integral reembolso”.  

   No PPA o alega que:

   1.1) Conjuntamente com a sua companheira (com quem viveu em união de facto entre 2014 e 2017) adquiriu 4 (quatro) imóveis, todos melhor identificados na matéria de facto. Apesar da separação em 2017, ambos os membros do ex-casal mantiveram-se como comproprietários dos referidos imóveis, tendo acordado que os mesmos seriam vendidos a terceiros, e que o produto da venda seria dividido (entre ambos) na proporção (39,5% para o Requerente, e o remanescente para a sua ex-companheira, melhor identificada no PPA).                       Em 4 de novembro de 2020, os 4 imóveis supra descritos foram efetivamente alienados, tendo o Requerente (e a sua ex-companheira) submetido a declaração Modelo 3 de IRS em 2021, declarando como valor de realização o valor obtido como produto da venda;

   1.2) Contudo, veio a AT corrigir o IRS declarado pelo Requerente (o Requerente foi notificado da “(...) nota de liquidação de IRS n.º 2021..., corrigida pela AT e relativa ao período de tributação de 2020, da qual resultou imposto a pagar no montante de 16.412,42€ (dezasseis mil, quatrocentos e doze euros e quarenta e dois cêntimos), com prazo de liquidação até 17 de janeiro de 2022, após o acerto de contas que proporcionou o estorno de 1.255,87€ (mil duzentos e cinquenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos)”) presumindo que cada um dos membros do ex-casal obteve 50% do produto da venda;

   1.3) “Para tal presunção, a AT serviu-se do confronto com o que foi declarado nos documentos de liquidação do IMT, das referidas operações, procedendo à correção da Declaração apresentada. Como resulta, de resto, do disposto no artigo 44.º/2 do CIRS. Todavia, tal facto é alheio ao Requerente, nas vestes de vendedor. É um documento emitido pelos compradores e, aparentemente, a declaração de que a venda seria feita na proporção de 50/50 para cada vendedor resultou de um erro no pedido de emissão das guias de pagamento - eventualmente pelo que lhe foi transmitido, um erro da agência imobiliária que emitiu as guias a pedido dos compradores, tendo as mesmas sido preenchidas (emitidas e liquidadas, pelo que se retira da notificação que antecede) em sentido diverso do que resulta da escritura e da própria realidade dos factos, Situação que era do conhecimento de todos os envolvidos no processo de negociação e de venda, daí a perplexidade do Requerente quando recebeu a correção da sua declaração de IRS relativa a 2020, nos termos do que ora se impugna. Situação desconhecida do Requerente, que prestou toda a informação corretamente e que, na verdade, não seria interveniente na operação tributária para efeitos de liquidação de IMT, pelo que tal não lhe foi dado sequer a conhecer. O mesmo recebeu apenas 39,5% do produto da venda dos referidos imóveis. Como resulta da escritura pública de compra e venda, sendo certo que a mesma suporta os valores reais da transmissão,”;

   1.4) “devendo considerar-se que, ao abrigo do disposto nos artigos 58.º e 63.º da LGT, cabe à AT a descoberta da verdade material no que respeita à situação tributária dos contribuintes, apenas se podendo presumir que os valores recebidos e declarados na escritura são diferentes se forem apurados indícios certos e seguros de que o mesmo não corresponde à realidade. Caso académico em que o ónus da prova relativo ao afastamento do preço declarado recai sobre a AT, enquanto facto constitutivo do seu direito à liquidação por montante diverso/superior ao declarado - artigo 74.º n.º 1 da LGT. Situação que sempre seria verificável pela junção do canhoto do outro cheque emitido pelo comprador, meio de obtenção de prova que se deveria ter sido instruído pela AT, através de ofício dirigido ao Banco BCP, S.A. Por esse motivo, o comprador emitiu e entregou na escritura dois cheques diferentes, com montantes diferentes e entregue aos vendedores, refletindo a diferença dos valores auferidos, como, de resto, consta da própria escritura de venda”;

1.5) “O cheque recebido pelo Requerente, no valor global de 250.803,84€ reflete o montante que efetivamente recebeu pela venda global dos 4 imóveis, em novembro de 2020. Assim, não foi de 317.500,00€ (trezentos e dezassete mil e quinhentos euros) o montante recebido pelo Requerente, que equivaleria a metade do valor da venda, mas somente de 250.803,04€ (duzentos e cinquenta mil, oitocentos e três euros e quatro cêntimos). Foi este o seu valor de realização”;

1.6) “Neste sentido, e retomando o artigo 44.º do CIRS, temos que “1 - Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização: (…) f) Nos demais casos, o valor da respetiva contraprestação [sendo que] 2 - Nos casos das alíneas a), b) e f) do número anterior, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.” Contudo, o número 5 do referido dispositivo determina que “O disposto no n.º 2 não é aplicável se for feita prova de que o valor de realização foi inferior ao ali previsto. [remetendo no número seguinte para a forma de comprovar tal inaplicabilidade] 6 - A prova referida no número anterior deve ser efetuada de acordo com o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, com as necessárias adaptações.” Neste caso, cabe ao sujeito passivo fazer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor apurado pela AT. Sendo precisamente a prorrogativa de que o contribuinte lançou mão em sede de Reclamação Graciosa e Recurso Hierárquico e que foi, injustificada e sucessivamente, desconsiderada. Pelo que, entendendo-se que não existiu uma preocupação com a verdade material quanto ao valor de realização a considerar, tendo sido ignorados os requerimentos do contribuinte, nos termos e para os efeitos previstos nos números 5 e 6 do artigo 44.º do CIRS e 139.º do CIRC, por remissão daquele último, sendo esta prorrogativa uma faculdade que a lei reconhece ao contribuinte, constitucionalmente consagrada, deverá ser atendido o supra exposto e considerado o efetivo valor de realização que cabe ao caso concreto Como decorre de toda a prova tarifada junta”;

1.7) “Pela aplicação da presunção da AT, de que este teria recebido 50% do valor global de venda, atendendo apenas ao que foi declarado em sede de liquidação de IMT, caberia sempre a possibilidade de tal ser ilidido pelo Requerente, na medida em que a determinação do rendimento tributável com recurso a presunções, sem possibilidade da sua ilisão por parte dos contribuintes, tem como consequência (e probabilidade) a tributação de mais-valias que não foram efetivamente auferidas pelos contribuintes. Este contribuinte não auferiu 317.500,00€, mas apenas 250.803,84€ com a venda dos imóveis, como, de resto, foi cabalmente sustentado por prova documental, apresentada em sede de Reclamação Graciosa e Recurso Hierárquico. Recebeu, aproximadamente, 39,5% do valor total da venda. Deste modo, deverá ser nesta proporção que o Requerente deve pagar a mais-valia devida, sob pena de se exigir um valor que não se coaduna com a realidade, como é manifestamente o caso”;

1.8) “Com efeito, recuperando o valor da mais valia apurada, deduzidas as despesas fiscalmente elegíveis, sendo a correspondente tributação de 50% daquele montante, tal corresponderá sensivelmente ao valor de imposto de 9.660,26€ (nove mil seiscentos e sessenta euros e vinte e seis cêntimos), será este o único valor devido pelo Requerente pela mais-valia apurada, que é apenas a indicada. Simplesmente porque a norma em que a correção proposta se baseia estabelece a favor da AT uma presunção legal que deve ser considerada ilidida, não só porque o Requerente oportunamente apresentou os meios de prova necessários a ilidir essa presunção, como ainda disponibilizou a informação necessária para que fosse levantado tanto o seu sigilo bancário, como o da outra vendedora, que auferiu maior percentagem do valor de venda, por entender que tal era necessário à descoberta da verdade material, elementos que deveriam ter produzido as necessárias consequências legais ao abrigo dos artigos 56.º e 58.º da LGT. Que a AT se recusou a considerar”;

1.9) “Ao desconsiderar totalmente os factos invocados e os meios de prova apresentados, a AT violou, além os citados normativos, os princípios da justiça, imparcialidade e verdade material, a alínea d) do artigo 9.º da CRP, assim como os artigos 13.º e nº. 1 do artigo 104.º da mesma Lei Fundamental, ao interpretar a alínea f) dos números 1 e 2 do artigo 44.º do Código do IRS, norma de concretização da norma incidência, no sentido de que a mesma constitui uma ficção jurídica conducente à tributação de um rendimento ficcionado e, por conseguinte, a uma presunção de rendimento jures et de jure, de carácter absoluto. Ao não apreciar as provas apresentadas e ao não lançar mão dos seus poderes de descoberta da verdade material, a AT violou os normativos constitucionais supracitados. Estando perante uma presunção, aplicável sempre que o valor da contraprestação declarada se apresentar como inferior aos valores que houverem sido considerados para efeitos de liquidação de IMT, era exigível à AT que apreciasse os elementos apresentados pelo Requerente no sentido de tributar o rendimento efetivamente auferido por este e pela outra vendedora, e não qualquer outro”;

1.10) “Devendo ainda aquela presunção considerar-se ilidida em virtude das provas produzidas, tanto no âmbito do processo administrativo como na presente impugnação – incluindo, caso se entenda necessário para esse efeito, a faculdade de se notificar a instituição bancária da outra vendedora e do Requerente, na sequência do levantamento do sigilo bancário, este último por si autorizado. Pelo que, por ausência de facto tributário e por violação do direito do Requerente a ser tributado de acordo com a sua situação individual e concreta pelo seu rendimento real e efetivo, deve ser declarada nula a liquidação adicional aqui impugnada, com todas as consequências legais daí decorrentes”;

 

2.    O PPA foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 21 de dezembro de 2022 e foi automaticamente notificado à Requerida;

 

3.    O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 08 de fevereiro de 2023, ao abrigo do disposto no artigo 6.º n.º 2 alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável;

 

4. Ainda em 08 de fevereiro de 2023, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD;

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 27 de fevereiro de 2023;

 

6. Ainda em 27 de fevereiro de 2023, o Tribunal proferiu despacho nos termos do disposto no artigo 17.º n.ºs 1 e 2 do RJAT a ordenar a notificação do dirigente máximo da Administração Tributária para apresentar Resposta (no prazo de 30 dias) e, caso queira, solicitar a produção de prova adicional, acrescentando que deve ser remetido ao Tribunal Arbitral cópia do processo administrativo dentro do mesmo prazo;

 

7. Em 04 de abril de 2023, a Requerida veio apresentar Resposta e juntar aos autos o processo administrativo. Na sua Resposta, a Requerida alega:

7.1) “Sustenta o requerente que a AT atendeu a premissas erradas no apuramento. Alegando que foi realizada a prova de que o valor de realização imputado ao requerente foi efetivamente inferior tal como o admite o art.º 44, nº 5 do CIRS. Sucede que, o art. 44º nº 5 do CIRS não é uma norma de imputação de valor de realização. O art. 44º nº 5 do CIRS, dispõe tão só sobre o valor de realização, e não sobre a prova das percentagens de imputação do mesmo aos alienantes. O certo é que o valor de realização foi aquele e não é contestado, a divisão que os alienantes decidiram fazer entre eles desse valor é totalmente alheia à AT. Assim como não colhe o alegado em 53º e 54º da PI, pois nunca as guias seriam emitidas de outra forma que não na proporção que consta da modelo 11 então apresentada e, em consequência, porque era essa efectivamente a proporção das respectivas quota parte dos comproprietários”;

7.2) “De resto aquela que o aqui requerente declarou na modelo 3 de IRS como tendo adquirido. O requerente insiste no valor de realização. Mas este é só um e não está em causa, porquanto há de sempre ser repartido para efeitos fiscais em função da respetiva quota parte do direito de propriedade. Qualquer acordo de divisão do valor de realização pelas partes que difira das respectivas quotas partes não é oponível à AT. De resto, a escritura não determina qualquer divisão em proporção diferente de 50% para cada um dos vendedores. Da escritura apenas consta que o pagamento é feito em dois cheques de valores distintos. Mas ainda que o fizesse, a divisão do valor de realização entre os alienantes corre por conta e risco destes. A obrigação fiscal de pagamento da mais valia, essa, decorre tão só da respectiva quota no direito de propriedade. Qualquer acordo de divisão do valor de realização há de ser dirimido, quanto às suas consequências, pelas próprias partes, em sede própria. A indignação do requerente em 37º da PI deve ser dirimida noutra sede, que não esta. É junto da co-alienante que o A tem que reclamar o valor de IRS que considera ter pago a mais, em função da alegada proporção na divisão do valor de realização. Note-se de resto que o A, no que respeita aos valores suportados a título de despesas e encargos, para efeitos do disposto no art.º 51º CIRS, declarou, em sede de IRS, não os 39,5% que alega mas sim os 50%. A invocação do nº 2 do art. 44º do CIRS vem completamente a despropósito porque não é essa a questão que se coloca”;

7.3) “Não obstante, sempre se dirá que, É indiscutível que o A, bem como a co proprietária identificada na PI, apenas podem alienar a sua quota parte desse direito real. Na situação concreta a questão não se situa na aferição dos valores de alienação/realização ou de aquisição das frações alienadas, sendo que tal decorre de forma clara das escrituras públicas celebradas, sequer tendo sido suscitadas quaisquer dúvidas a este respeito seja pelo contribuinte, seja pelos serviços tributários, i.é, o valor de alienação/realização corresponde ao da contraprestação conforme ao disposto no art.º 44, nº 1 – f) CIRS. Efetivamente a matéria controvertida prende-se antes com o facto, alegado pelo requerente, de que embora o seu direito de propriedade corresponda a 50% dos bens imóveis, tendo sido esta a quota parte que o peticionário transacionou (tal como de igual forma procedeu a outra comproprietária – B..., uma vez que o direito real em questão foi transacionado em 100%), o valor auferido em contraprestação da alienação, não foi proporcional à sua quota titulativa da propriedade em virtude de um alegado acordo particular que os comproprietários terão entendido celebrar – acordo de resto não provado. Da escritura de aquisição celebrada em 12JUN2017 pelo requerente e por B..., decorre ser de 1/2 a quota parte de cada um dos comproprietários (assim igualmente evidenciado pelo Mod11), tal como igualmente se afere pelos elementos solicitados e pagos para efeitos de IMI, e igualmente assim tendo sido inscrito pelo contribuinte no anexo G do mod 3 do ano de 2020, facto que não é contrariado em momento algum pelo requerente. A quota parte detida pelo requerente no direito de propriedade dos imóveis mostra-se evidente, documentada e incontestada”;

7.4) “Quando, em 2020, se dá a alienação e tal como decorre do art.º 19º CIRS, que dispõe que “os rendimentos que pertençam em comum a várias pessoas são imputados a estas na proporção das respetivas quotas”, é evidente que o valor de realização a considerar no apuramento do rendimento de mais valia de cada um dos comproprietários, apenas pode corresponder à sua quota parte de 50%. Qualquer alteração na proporção das quotas só seria válida se constasse de documento com forma idêntica ao título de aquisição celebrado em 2017 - apenas poderia ser atendida por documento que expressamente alterasse, nessa parte o próprio título de constituição, e não por qualquer entendimento entre as partes, de resto não provado. No entanto, na situação não foi apresentado qualquer documento de natureza constitutiva do direito real de propriedade detido pelo contribuinte que altere a sua quota parte. Se existe um acordo particular, tal constitui matéria sobre a qual os serviços tributários não detêm competência para intervir, devendo ater-se aos documentos e enquadramento legal que consubstanciam os factos em ponderação ao abrigo do princípio da legalidade, bem como da imparcialidade, que assim se mostra salvaguardada, quanto à outra alienante, a quem, na tese do A a AT teria que reclamar um valor adicional de IRS, no caso totalmente destituída de base legal para o efeito”;

7.5) “Para efeitos do valor de realização, o art.º 44 CIRS determina, em situações como a presente, que o mesmo corresponda ao da contraprestação, prevendo o nº 2 uma salvaguarda no sentido de que se os valores considerados em sede de IMT forem superiores, serão estes a prevalecer, a não ser que os interessados comprovem que efetivamente o valor de alienação, não obstante inferior ao considerado em IMT (normalmente correspondente ao VPT) corresponde à realidade (nº 5 e 6 deste artigo). No entanto, como deixou antedito, e ao contrário do pretendido pelo A, este normativo não em qualquer aplicação na presente situação, onde não se suscita qualquer dúvida quanto aos valores de realização. Acresce que, contrariamente ao argumentado pelo requerente, os dois meios de pagamento do preço da alienação que na escritura se encontra referidos, apenas tem a virtude de informar quanto à forma como foi realizado o pagamento do preço acordado, não se situando de todo no campo do titulo de constituição do direito de propriedade dos titulares alienantes, tal como o facto da mediadora ter conhecimento de qualquer acordo inter partes não assume qualquer papel constitutivo das quotas partes na propriedade. A pretensão do A não tem, de resto, qualquer acolhimento na jurisprudência. Confiram-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 12.09.2017, no processo 1229/14.0T8LRA.C1; do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 26.09.2013, no processo 848/11.0TVPRT.P1”; 

7.6) “Quanto às diligências de prova a que alude o A, as mesmas, se acaso se mostrassem pertinentes, que não é o caso, deveriam ser oferecidas pelo A, porquanto extravasam o que se pode ter por admissível na busca da verdade material e no âmbito do principio do inquisitório a cargo da administração, que não pode estar sujeita ao cumprimento acrítico de qualquer diligencia que as partes requerentes considerem ser as realizáveis para provar a sua própria argumentação. Sendo que, in casu, em face dos elementos constantes dos autos e da legislação aplicável, a Administração estava em condições de apreciar, quer de facto quer direito, a divergência em apreço, não lhe sendo permitido a prática de actos inúteis no procedimento administrativo. No mais, resulta inequívoco que se mostram cumpridos os princípios da justiça, imparcialidade e verdade material, a alínea d) do artigo 9.º da CRP, assim como os artigos 13.º e nº 1 do artigo 104.º da mesma Lei Fundamental, O contribuinte peticiona, ainda, a atribuição de juros indemnizatórios. Sem razão”; “Decorre do exposto que não se mostra verificado o preenchimento do requisito que exige a existência de um erro na liquidação imputável aos serviços, nem se descortinou ter sido cometida, pelos serviços, qualquer ilegalidade. Pelo que decai a pretensão do requerente no tocante à atribuição de juros indemnizatórios”;

 

8. Em 10 de abril de 2023, foi proferido despacho arbitral com o seguinte teor:

Tendo em conta a Resposta da Requerida, e por aplicação do princípio da celeridade processual, notifica-se o Requerente para informar os autos se mantém interesse na inquirição das testemunhas arroladas no PPA”; 

 

9. Em 11 de abril de 2023, o Requerente apresentou requerimento concluindo:

Tendo os factos que consubstanciam a quantia que efetivamente recebeu na venda dos imóveis sido admitida pela AT, com correspondência na prova documental junta, dispensa o Requerente a inquirição das testemunhas arroladas”; 

 

10. Em 13 de abril de 2023, foi proferido despacho arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, com o seguinte teor:

O processo não se mostra ser especialmente complexo no plano da tramitação processual, não  foram suscitadas exceções (pela Requerida) de que caiba ao Tribunal conhecer preliminarmente, nem há irregularidades a suprir.

A matéria de facto relevante para a decisão da causa poderá ser fixada com base na prova constante dos autos, tornando-se desnecessária a realização de outras diligências instrutórias. Acresce que a Requerente prescindiu da prova testemunhal indicada na PI.

Assim, e por aplicação dos princípios da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo, e da celeridade, simplificação e informalidade processuais (artigos 19.º, n.º 2, e 29.º, n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária — RJAT), não havendo outros elementos sobre que as partes devam pronunciar-se, dispensa-se (i) a reunião do tribunal arbitral a que se refere o artigo 18.º do RJAT, e (ii) a apresentação de alegações.

Ao abrigo do princípio da colaboração solicita-se às partes a remessa das peças processuais em formato word. Indica-se o dia 2023-08-28 (2ª feira), apesar das férias judiciais, como data previsível para prolação da decisão arbitral, devendo até 10 dias antes dessa data a Requerente pagar a taxa de arbitral subsequente”;

 

11. Em 18 de abril de 2023, o Requerente juntou aos autos a taxa arbitral subsequente;

    

II. Saneamento

    

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe no artigo 2.º, n.º 1, al. a) e 4.º, ambos do RJAT.

O Requerente e a Requerida gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

    

    

III. Matéria de Facto

III.1    Factos Provados

O Tribunal Arbitral, com base nos documentos juntos pelas partes e não impugnados, considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

    

  1. O Requerente viveu em união de facto entre março de 2014 e 12 de junho de 2017 com a sua companheira à data, B... (NIF ...);
  2. Durante o invocado período submeteram conjuntamente e na invocada qualidade as respetivas Declarações de IRS;
  3. Juntamente, adquiriram 4 (quatro) imóveis, todos com o número de artigo matricial ... da União de Freguesias de ..., ..., ..., ..., ...,  ..., concelho do Porto;
  4. O imóvel urbano a que corresponde a fração AJ, pelo valor de €169.000,00 (cento e sessenta e nove mil euros);
  5. Posteriormente, a fração CX, pelo valor de €1.500,00 (mil e quinhentos euros);
  6. Ainda no mesmo ano, a fração CH, pelo valor de €9.500,00 (nove mil e quinhentos euros);
  7. Por último, a fração BJ, da mesma freguesia, pelo valor de €2.600,00 (dois mil e seiscentos euros);
  8. Separaram-se em junho de 2017, como referido;
  9. Mantiveram-se como comproprietários em partes iguais (1/2 - 1/2), tendo acordado que os imóveis seriam vendidos a terceiros e que o valor da venda seria dividido em proporções diferentes àquela que é a proporção do direito de propriedade de cada um (39,5% para o Requerente e o remanescente para a sua ex-companheira);
  10. Um acordo que o Requerente cumpriu;
  11. A 4 de novembro de 2020, o ex-casal alienou os 4 imóveis supra descritos, pelos seguintes valores:

     11.1) o imóvel urbano a que corresponde a fração AJ, foi vendido pelo valor total de 620.000,00€ (seiscentos e vinte mil euros), sendo que o Requerente concretamente recebeu 244.879,34€ (duzentos e quarenta e quatro mil oitocentos e setenta e nove euros e trinta e quatro cêntimos);

     11.2) O imóvel urbano a que corresponde a fração CX, foi vendido pelo preço global de 2.000,00€ tendo concretamente recebido a quantia de 789,93€ (setecentos e oitenta e nove euros e trinta e três cêntimos);

     11.3) O imóvel urbano a que corresponde a fração CG, foi vendido pelo valor global de 7.000,00€ (sete mil euros), cuja parte que lhe correspondeu se cifrou em 2.764,77€ (dois mil setecentos e sessenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos);

     11.4) O imóvel urbano a que corresponde a fração BJ, foi vendido pelo valor global de 6.000,00€ (seis mil euros), cujo montante que lhe correspondeu se cifrou em 2.369,80€ (dois mil seiscentos e trinta e nove euros e oitenta cêntimos);

  1. Conforme resulta da escritura:

 

  1. O Requerente recebeu no total, pela venda dos referidos imóveis, o montante de €250.803,34 (duzentos e cinquenta mil, oitocentos e três euros e trinta e quatro cêntimos), tudo conforme melhor se resume na tabela infra:

 

  1. A outra comproprietária, B... recebeu, no total, a quantia de 384.196,16€ (trezentos e oitenta e quatro mil, cento e noventa e seis euros e dezasseis cêntimos);
  2. Resulta da escritura:

 

  1. A informação sobre os pagamentos e a diferença de valores que caberia a cada um dos vendedores foi previamente comunicada à imobiliária responsável pelo processo, “C...”, estabelecimento detido pela empresa D..., Lda., com a Licença AMI: ..., NIPC ...  e sede na Rua ..., n.º ..., loja ..., ...- ...Porto;
  2. Por e-mails anteriores à celebração da escritura, a divisão dos montantes foi confirmada e indicada para a emissão dos cheques pelos compradores;
  3. O Requerente comunicou estes valores, efetivamente recebidos, através da Declaração de Modelo 3 do IRS, no seu anexo G;
  4. No Quadro 4 do Anexo “G” da declaração Modelo 3 o Requerente declarou o seguinte:

 

 

 

  1. Tendo a outra comproprietária,  B..., recebido efetivamente, à data, do valor da venda global dos imóveis, o montante de €384.196,16, correspondente a 60,5%, pago através do cheque n.º..., tudo como resulta da escritura de venda;
  2. E que corresponde ao único valor recebido pelas transmissões pelo Requerente;
  3. O Requerente foi posteriormente notificado da nota de liquidação de IRS n.º 2021..., corrigida pela AT e relativa ao período de tributação de 2020, da qual resultou imposto a pagar no montante de 16.412,42€ (dezasseis mil, quatrocentos e doze euros e quarenta e dois cêntimos), com prazo de liquidação até 17 de janeiro de 2022;
  4. A nota de liquidação do imposto apresenta um valor de 16.412,42€ (dezasseis mil quatrocentos e doze euros e quarenta e dois cêntimos), após o acerto de contas que proporcionou o estorno de 1.255,87€ (mil duzentos e cinquenta e cinco euros e oitenta e sete cêntimos);
  5. O Requerente apresentou Reclamação Graciosa junto do Serviço de Finanças do Porto ..., a qual seguiu termos com o número de processo ...2022..., e data da abertura do procedimento: 2022-01-25;
  6. Por despacho de 23 de fevereiro de 2022, a Chefe do Serviço de Finanças do Porto ... proferiu projeto de decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa com os seguintes fundamentos:

 

 

 

 

  1. Em 16 de março de 2022, o Reclamante exerceu o respetivo direito de audição prévia;
  2. Em 18 de maio de 2022, foi proferido despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, com os fundamentos constantes do projeto de decisão, já transcritos. Conclui a AT na decisão final de indeferimento:

 

  1. Do referido despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, o Requerente interpôs Recurso Hierárquico, o qual seguiu termos com o n.º de procedimento ...2022..., com data de abertura do procedimento: 2022-06-20;
  2. Por despacho da Chefe de Divisão da Direção de Finanças do Porto de 01-09-2022, foi proferido projeto de decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico com os seguintes fundamentos:

    

 

  1. O Requerente exerceu direito de audição prévia; contudo, em 12-10-2022 viria a ser proferido despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico, tendo a AT acrescentado à decisão final os seguintes argumentos relativos à apreciação do direito de audição prévia:

 

 

  1. Em 20 de dezembro de 2022 o Requerente veio apresentar o presente PPA;

 

III.2    Factos não Provados

    

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide.

    

III.3    Fundamentação da matéria de facto

    

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (conforme artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil [CPC], aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

    

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (conforme anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

    

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos com o pedido de pronúncia arbitral e com o processo administrativo, não havendo controvérsia sobre eles.

    

  1. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

   

A questão em causa nos autos é determinar qual é o valor de realização da mais-valia imobiliária obtida pelo Requerente nos presentes autos, tendo em consideração que (i) o Requerente era comproprietário da parte correspondente a 1/2 dos imóveis em causa nos autos; mas (ii) recebeu apenas 39,5% do valor de venda do prédio, por acordo celebrado com a comproprietária, sua ex-companheira.

 

Resulta dos autos que o Requerente lançou mão do procedimento previsto no artigo 139.º do CIRC (para a qual remete o artigo 44.º n.º 6 do CIRS), que permite aos contribuintes afastar a regra do artigo 64.º n.º 2 do CIRC que nos diz que “Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável”. O artigo 64.º n.º 2 do CIRC encontra correspondência no artigo 44.º n.º 2 do CIRS, que nos diz que tratando-se de direitos reais sobre imóveis prevalecem, quando superiores, os valores pelos quais os bens hajam sido considerados para efeitos de liquidação de IMT, ou seja, o valor declarado na escritura ou o VPT, se superior (nos termos do artigo 12.º n.º 1 do CIMT).

 

Conforme resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 11/02/2021, proferido no processo 03022/10.0BEPRT:

1 – Sempre que nas transmissões onerosas previstas no art. 64º, nº 1 do CIRC, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo adquirente e alienante, para determinação do lucro tributável (art. 64º, nº 2 do CORC). Tal não será assim considerado se for apresentado pelo sujeito passivo um pedido de demonstração de preço efectivo praticado nas transmissões.

2-A prova do preço deve ser efectuada em procedimento próprio desencadeado pelo próprio sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao Director de Finanças competente, o qual se rege pelo disposto nos artigos 91º e 92º da LGT.

3 – Face à apresentação do pedido de demonstração do preço efectivo a Administração Fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respectivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização, ou seja, a AT tem o poder de aceder às informações bancárias dos sujeitos passivos e/ou dos seus administradores, gerentes ou representantes legais com vista a dissipar as dúvidas sobre o preço em discussão. Assim, a autorização de acesso às contas bancárias do sujeito passivo e dos seus administradores, gerentes ou representantes legais é condição necessária da instauração do procedimento de prova dos preços efectivos”.

 

No caso concreto, da análise do processo administrativo, da Resposta da AT e da documentação junta aos autos, não resulta qualquer dúvida de que (i) o Reclamante e a sua ex-companheira venderam os imóveis em causa nos autos pelo valor global de EUR 635 000 (seiscentos e trinta e cinco mil euros), valor este que é substancialmente superior ao VPT dos mesmos (que à data da escritura somava um valor global de EUR 234 881,08), e de que (ii) em consequência do designado acordo (cujo conteúdo, para além da repartição do valor de venda, nunca foi alegado pelo Requerente) o Requerente recebeu um cheque bancário de EUR 250 803,84 e a sua ex-companheira recebe um cheque bancário de EUR 317 500,00.

 

Assim, conforme refere a AT, as diligências requeridas pelo Requerente (levantamento do sigilo bancário e pedido de canhotos dos cheques bancários entregues para pagamento do preço de venda dos imóveis) seriam efetivamente diligências manifestamente inúteis, uma vez que não existe nos autos qualquer dúvida manifestada pela AT relativamente (i) ao valor pelo qual os imóveis foram transacionados e (ii) ao valor dos cheques entregues aos comproprietários.

 

Na verdade, a questão que se coloca é muito diferente: sendo o Requerente proprietário da parte correspondente a 1/2 dos imóveis, conforme aliás o Requerente declarou na Modelo 3 que submeteu, o apuramento do valor de realização da mais-valia poderá afastar-se daquela que é a repartição do direito de propriedade? A resposta, naturalmente, terá de ser: não.

 

A norma de incidência em causa nos autos é o artigo 10.º n.º 1 do CIRS que nos diz: “Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de: a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis”. No caso concreto, não há dúvidas de que o Requerente realizou uma alienação onerosa do direito real (direito de propriedade) que detinha sobre os imóveis (que era o correspondente a 1/2 de cada um dos quatro imóveis).

 

Ora, nos termos do artigo 11.º n.º 1 da LGT:

1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei”.

 

O direito de propriedade está previsto e regulado no disposto no artigo 1302.º e seguintes do Código Civil (CC), prevendo o disposto no artigo 1316.º do CC que “O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”, prevendo o artigo 7.º do Código de Registo Predial que: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define” — assim procedeu a AT, emitindo as guias para pagamento de IMT de acordo com a proporcionalidade que estava registada na matriz predial urbana, sem que o Requerente tenha alegado quer no procedimento tributário quer no PPA que a repartição do direito de propriedade passou a ser diferente daquela que estava registada na referida matriz e assim serviu de base à liquidação do IMT e do Imposto do Selo.

 

Na verdade, o Requerente simplesmente alega a existência de um acordo. Não alega ou demonstra que tal acordo teve por efeito a alteração da repartição da proporção do direito de propriedade dos imóveis — nos termos do disposto no artigo 1413.º do CC, ainda que feita amigavelmente, a divisão de coisa comum deve ser sujeita à forma exigida para a alienação onerosa da coisa (escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos do artigo 875.º do CC), devendo ainda essa divisão ser sujeita a registo na Conservatória de Registo Predial (artigo 2.º n.º 1 al. (a) do Código de Registo Predial) e comunicada à AT.

 

Não tendo o Requerente alegado ou demonstrado no procedimento tributário ou no PPA ter havido uma alteração da proporção do direito de propriedade de cada um dos comproprietários, a AT não poderia ter agido de outra forma, que não fosse, a de considerar para efeitos de IMT, Imposto do Selo e IRS a proporção do direito de propriedade que constava da matriz e que foi assumida pelo próprio Requerente como sendo a efetivamente a verdadeira (1/2 e 1/2). E atente-se que cabia ao Requerente o ónus (i) de comunicar à AT qualquer alteração do direito de propriedade, e (ii) da prova da alteração da proporção do direito de propriedade (1/2 e 1/2), nos termos do artigo 74.º n.º 1 da LGT, e do artigo 342.º do CC.

 

Acresce ao exposto, voltando à regra do artigo 44.º n.º 1 al. f) do CIRS, que o valor de realização corresponde ao “valor da respetiva contraprestação”. Ora, tendo os imóveis sido vendidos por um valor global (EUR 630 000) e sendo a repartição do direito de propriedade sobre os mesmos imóveis de 1/2, temos de concluir que o valor de realização que o Requerente obteve com a venda foi efetivamente 1/2 da contraprestação (1/2 x EUR 630 000 = EUR 315 000).

 

Essa contraprestação permitiu ao Requerente manifestar capacidade contributiva para fazer o alegado acordo com a sua ex-companheira, acordo esse que constituirá um negócio autónomo — eventualmente sujeito a tributação adicional (e.g. se se tratar de uma doação, poderá haver incidência de Imposto do Selo) — mas que em nada implica com o facto de o Requerente ter tido a referida contraprestação.

 

Veja-se de forma muito clara o que entendeu o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 08/02/2018, no processo n.º 00671/15.3BEPRT:

I) O ganho correspondente à diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi transmitido ao credor mediante dação em pagamento e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, constitui mais-valia sujeita a tributação nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS, pois essa dação, constituindo uma «alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis», é subsumível à previsão desta norma de incidência.

II) Para o efeito, é irrelevante que a dação tenha sido efectuada para pagamento de dívidas de terceiro, pois o que importa é o valor por que o bem foi alienado, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu”.

 

Veja-se a fundamentação do Acórdão citado:

Neste domínio, cabe ter presente o exposto no Ac. do S.T.A. de 21-09-2016, Proc. nº 0582/15, www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida, onde se pondera que:

“…

Como ficou dito em anterior acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo … há efectivamente um ganho, que constitui mais valia, e que se materializa na diferença entre o valor por que os prédios foram adquiridos pelo Recorrente e o valor por que saíram do património dele por via da dação em cumprimento. Tenha-se presente que «a mais-valia é um ganho que se materializa na diferença entre o valor por que um activo entrou no património individual e o valor por que dele saiu por força de um acto de disposição ou outro facto que, segundo a lei, constitua a realização de mais-valia» (Cfr. JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, IRS Incidência real e determinação dos rendimentos líquidos, Coimbra Editora, 2007, pág. 431, que, igualmente, depois de referir que esta «formulação geral necessita, contudo, de alguma particularização e desta se ocupa o citado n.º 4 do artigo 10.º», bem como «tem de ser complementada por uma definição rigorosa do que seja valor de realização e valor de aquisição», salienta que «a diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, sem mais qualificações é o que define o ganho sujeito a imposto para as mais-valias prediais, resultantes de alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis» (sublinhado nosso). ).

Recordemos que o IRS assenta sobre uma concepção de rendimento designada por rendimento-acréscimo, entendendo-se como rendimento qualquer incremento patrimonial, independentemente da respectiva proveniência, num dado período de tributação. No caso das mais-valias, pese embora a dificuldade da sua definição, motivo por que a lei optou por uma «enumeração casuística das sujeitas a tributação», «diremos que estão em causa ganhos resultantes da alienação de um bem económico, na medida em que esta alienação não constitui objecto específico de uma actividade empresarial» (Cfr. RUI DUARTE MORAIS, Sobre o IRS, Almedina, 2.ª edição, pág. 134.).

«As mais-valias correspondem a ganhos, rendimentos ou incrementos patrimoniais de carácter ocasional ou fortuito, e que não decorrem de uma actividade do sujeito passivo especificamente destinada à sua obtenção, mas relativamente aos quais o princípio da capacidade contributiva determina a sujeição a imposto. Assim, constituem mais-valias os ganhos decorrentes da transmissão onerosa de um bem ou direito, sem que tal transmissão constitua o objecto específico de uma actividade empresarial» (Cfr. PAULA ROSADO PEREIRA, Estudos sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias, Almedina, 2005, pág. 88.).

Consideram-se, pois, mais-valias quaisquer rendimentos acrescidos ao património do contribuinte, v.g. por via da transmissão onerosa de bens imóveis, ainda que alheias à actividade ou vontade da entidade em cujo património tal valorização se irá afinal repercutir.

É inequívoco, para efeitos de tributação em IRS, que se considera mais-valia sujeita a imposto a diferença positiva entre o valor de transmissão e o valor de aquisição resultante da alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS].

A finalidade dessa alienação onerosa, designadamente, no caso da mesma consistir em dação em pagamento, ser a extinção de responsabilidades próprias ou alheias, é de todo irrelevante para a sujeição a IRS, categoria mais-valias. A vantagem patrimonial em causa refere-se, exclusivamente, à diferença entre os valores de realização e de aquisição, sendo totalmente irrelevantes, para efeitos da incidência do IRS, outras circunstâncias da alienação onerosa dos imóveis, designadamente o destino ou finalidade dada ao valor de realização.

E bem se compreende que assim seja: na verdade, caso o Recorrente tivesse vendido os prédios e utilizado o produto da venda para pagar dívidas de terceiros por certo ninguém questionaria a sujeição a IRS da mais-valia obtida com a alienação; porque haveria de ser de outro modo quando a alienação se faz mediante dação em pagamento?

Concluímos, pois, que o Recorrente obteve uma efectiva vantagem patrimonial, um ganho para efeito da previsão normativa constante do n.º 1 do art. 10.º do CIRS.

Esta é, aliás, a posição que este Supremo Tribunal tem vindo a adoptar mesmo nos casos em que a alienação onerosa dos bens imóveis ocorre mediante venda coerciva em sede de execução”.

 

Termos em que, a decisão só poderá ser de improcedência total do PPA, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Requerente, designadamente o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.

.....

  1. DECISÃO

.....

Este Tribunal decide jugar totalmente improcedente o PPA, mantendo-se o ato impugnado no ordenamento jurídico.

     

  1.     VALOR DO PROCESSO

  

Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 6 752,16.

 

  1. CUSTAS

  

O montante das custas (a cargo do Requerente) é fixado em EUR 612,00 (nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, e na Tabela I anexa do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária).

  

Notifique-se.

Lisboa, 24 de agosto de 2023.

 

 

Elisabete Flora Louro Martins Cardoso

(Árbitro Singular)