Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 803/2022-T
Data da decisão: 2023-11-16  IVA  
Valor do pedido: € 252.151,74
Tema: IVA. Isenção na exportação para fora da UE. Requisitos de prova.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – Relatório

 

  1. A contribuinte A..., Lda., NIPC..., doravante “a Requerente”, apresentou, no dia 29 de Dezembro de 2022, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos dos artigos 2º, 1, a), e 10º, 1 e 2 do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações por último introduzidas pela Lei nº 7/2021, de 26 de Fevereiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante “RJAT”), e dos arts. 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “AT” ou “Requerida”).
  2. A Requerente pediu a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade de liquidações adicionais de IVA (e Juros Compensatórios) n.os 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., 2022..., relativas ao exercício de 2018; n.os 2022 ..., 2022... e 2022... relativas ao exercício de 2019 (períodos de 201901, 201902 e 201903); n.os 2022..., 2022... e 2022... relativas ao exercício de 2020 (períodos de 202001M, 202011M e 202012M); n.os 2022..., 2022..., 2022 ... e 2022..., relativas ao exercício de 2021 (períodos de 202103T, 202106T, 202109T e 202112T); n.os 2022 ... e 2022..., relativas ao exercício de 2022 (períodos de 202203T e 202206T), no montante total de € 252.151,74, pedindo a anulação dessas liquidações adicionais e o reembolso desse montante, acrescido de juros indemnizatórios.
  3. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT.
  4. O Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação.
  5. As partes não se opuseram, para efeitos dos termos conjugados dos arts. 11º, 1, b) e c), e 8º do RJAT, e arts. 6º e 7º do Código Deontológico do CAAD.
  6. O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 6 de Março de 2023; foi-o regularmente, e é materialmente competente.
  7. Por Despacho de 9 de Março de 2023, foi a AT notificada para, nos termos do art. 17º do RJAT, apresentar resposta.
  8. A AT apresentou a sua Resposta em 21 de Abril de 2023, juntamente com o Processo Administrativo.
  9. Convidada a pronunciar-se sobre documentação suplementar junta aos autos pela Requerente, a Requerida fê-lo por requerimento de 28 de Junho de 2023.
  10. A Requerente foi convidada a juntar documentação adicional, e fê-lo por requerimento de 28 de Agosto de 2023, tendo a Requerida exercido o contraditório relativamente a essa documentação, através de requerimento de 22 de Setembro de 2023.
  11. Por Despacho de 9 de Outubro de 2023, dispensou-se a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, sendo as partes notificadas para apresentarem alegações escritas.
  12. A Requerente apresentou alegações em 23 de Outubro de 2023.
  13. A Requerida apresentou alegações em 24 de Outubro de 2023.
  14. As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, e têm legitimidade.
  15. A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.
  16. O processo não enferma de nulidades.

 

II – Matéria de Facto

 

II. A. Factos provados

 

Com relevo para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:

  1. A Requerente é uma sociedade por quotas que se dedica às actividades de fabrico e comércio de produtos de saúde, produtos de diagnóstico, produtos ligados ao bem estar e conforto do ser humano, com a actividade principal enquadrada em CAE 047990.
  2. Em 2018, a Requerente procedeu a diversas transmissões de produtos farmacêuticos e medicamentos:
  • Janeiro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1801.0001

EV1801.0001

€ 277.831,20

B...

FV1801.0002

EV1801.0002

€ 50.384,93

B...

FV1801.0003

EV1801.0003

€ 163.873,14

B...

 
  • Fevereiro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1802.0001

EV1802.0001

€ 660,00

B...

 
  • Março de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1803.0001

EV1803.0001

€ 77.119,52

C...

FV1803.0002

EV1803.0002

€ 80.473,43

C...

FV1803.0003

EV1803.0003

€ 78.835,39

C...

FV1803.0005

EV1803.0004

€ 12.007,77

C...

FV1803.0006

EV1803.0005

€ 23.819,97

C...

FV1803.0007

EV1803.0006

€ 16.867,32

C...

 
  • Abril de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1804.0001

EV1804.0001

€ 118.184,61

B...

FV1804.0002

EV1804.0002

€ 38.267,62

B...

 
  • Maio de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1805.0001

EV1805.0001

€ 94.188,57

B...

 
  • Julho de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1807.0002

EV1807.0002

€ 485.417,43

B...

 
  • Agosto de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1808.0002

EV1808.0002

€ 71.834,98

B...

FV1808.0003

EV1808.0003

€ 33.727,66

B...

FV1808.0004

EV1808.0004

€ 82.010,20

B...

FV1808.0005

EV1808.0005

€ 87.388,48

B...

FV1808.0006

EV1808.0006

€ 81.937,02

B...

FV1808.0007

EV1808.0007

€ 85.915,81

B...

FV1808.0008

EV1808.0008

€ 80.268,39

B...

FV1808.0009

EV1808.0009

€ 85.141,27

B...

 
  • Agosto de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1808.0001

EV1808.0001

€ 257.563,09

B...

 
  • Setembro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1809.0001

EV1809.0001

€ 40.714,97

B...

FV1809.0003

EV1809.0003

€ 87.059,00

B...

FV1809.0004

-

€ 56.187,30

B...

FV1809.0005

EV1809.0004

€ 151.077,70

B...

FV1809.0006

EV1809.0005

€ 248.605,71

B...

FV1809.0007

EV1809.0006

€ 243.340,21

B...

 
  • Outubro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1810.0002

EV1810.0001

€ 250.721,63

B...

FV1810.0003

EV1810.0002

€ 252.565,47

B...

FV1810.0004

EV1810.0003

€ 46.414,46

B...

FV1810.0005

EV1810.0004

€ 47.368,25

B...

FV1810.0006

EV1810.0005

€ 46.545,82

B...

FV1810.0007

EV1810.0006

€ 19.187,38

B...

 
  • Novembro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1811.0001

EV1811.0001

€ 38.395,28

B...

FV1811.0002

EV1811.0002

€ 38.804,99

B...

FV1811.0003

EV1811.0003

€ 39.317,70

B...

 
  • Dezembro de 2018:

N.º Fatura

N.º Encomenda

 

Valor Fatura

Cliente (sociedade adquirente)

FV1812.0001

EV1811.0001

€ 3.080,34

B...

FV1812.0002

EV1811.0002

€ 42.817,80

B...

 

 

  1. Em 3 de Maio de 2022 a AT instaurou um procedimento de inspecção à Requerente, de natureza externa e de âmbito parcial, em sede de IVA, com referência ao exercício do ano de 2018 (Ordem de Serviço n.º 0I2022...), e dessa inspecção resultaram várias propostas de correcção à matéria tributável.
  2. Tratava-se da transmissão de bens e serviços para Angola, advertindo-se que a isenção alcançada através do disposto no art. 14º, 1, a) do CIVA poderia estar comprometida, caso o sujeito passivo não comprovasse, através de documentos alfandegários apropriados, aquela transmissão (art. 29º, 8 e 9 do CIVA, e também a Circular n.º 90/2007, de 16/11, da Direção Geral das Alfândegas e Impostos Especiais sobre o Consumo).
  3. Especificamente, as exportações efectuadas pelo sujeito passivo estavam documentadas por uns certificados de saída em que figurava como exportador, não a A..., mas a D..., o fornecedor nacional da A... – entendendo-se que isso configuraria a ausência de documentos alfandegários apropriados.
  4. O RIT sublinha que a isenção resultante da aplicação do art. 14º, 1, a) do CIVA é mencionada nas duas operações envolvidas: a) a transacção entre o fornecedor D... e a A...; b) a A... e os clientes angolanos, nomeadamente B..., SARL, e C..., Lda.. Ora, a primeira dessas duas operações é interna e não daria lugar a isenção nos termos do art. 14º, 1, a) do CIVA, a menos que se invocasse o regime específico do art. 6º do Decreto-Lei nº 198/90 e as declarações de exportação tivessem sido processadas em nome da adquirente A... . E a segunda dessas operações, na ausência de processamento em nome da exportadora A..., deixaria de ser um documento alfandegário apropriado, para efeitos de aplicação do art. 29º, 8 e 9 do CIVA.
  5. Do apuramento destas circunstâncias no RIT fez a AT decorrer a liquidação de IVA, nos termos dos arts. 8º, 1, a) e 29º, 8 e 9 do CIVA (à taxa reduzida de 6%, nos termos do art. 18º, 1, a) e 9 do CIVA).
  6. O RIT apresenta uma síntese das correcções efectuadas:

 

  1. E dessas correcções resultaram as seguintes liquidações adicionais:

IVA 2018

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

Valor da Correção

Valor da Liquidação Corretiva

Valor a pagar

201801

2022 ...

-

29.525,36 €

26.889,74 €

0,00 €

201802

2022 ...

-

39,60 €

2.574,35 €

0,00 €

201803

2022 ...

-

17.347,40 €

14.777,51 €

0,00 €

201804

2022 ...

-

9.387,13 €

6.817,29 €

0,00 €

201805

2022 ...

-

5.651,31 €

1.637,79 €

0,00 €

201807

2022 ...

-

29.125,05 €

26.518,52 €

0,00 €

201808

2022 ...

-

51.947,21 €

49.378,06 €

0,00 €

201809

2022 ...

29/11/2022

49.619,09 €

47.048,96 €

18.783,48 €

201810

2022 ...

29/11/2022

39.768,18 €

37.199,26 €

37.199,26 €

201811

2022 ...

30/11/2022

6.991,06 €

4.423,11 €

4.423,11 €

201812

2022 ...

-

-

-

0,00€

201812

2022 ...

-

2.753,89 €

430,42 €

0,00 €

       

TOTAL

60.405,85 €

 

 

Juros Compensatórios (IVA 2018)

Período

N.º Liquidação

Data-Limite Pagamento

Valor a pagar

201809

2022 ...

29/11/2022

2.883,90 €

201810

2022 ...

29/11/2022

5.597,21 €

201811

2022 ...

30/11/2022

650,50 €

 

 

TOTAL

9.131,61 €

 

 

  1. As correcções de 2018 tiveram impacto nos anos seguintes (por sucessivas compensações com créditos de IVA da Requerente):

IVA 2019

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

201901

2022 ...

 

- €

201902

2022 ...

 

- €

201903

2022 ...

02/10/2022

6.995,53 €

   

TOTAL 

6.995,53 €

 

Juros Compensatórios (IVA 2019)

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

201903

2022 ...

02/12/2022

850,19 €

 

 

TOTAL

850,19 €

 

IVA 2020

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202001

2022 ...

05/12/2022

6.342,59 €

202011

2022 ...

07/12/2022

1.179,17 €

202012

2022 ...

07/12/2022

19.300,44 €

   

TOTAL 

26.822,20 €

 

Juros Compensatórios (IVA 2020)

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202001

2022 ...

05/12/2022

767,66 €

202011

2022 ...

07/12/2022

94,37 €

202012

2022 ...

07/12/2022

1.457,55 €

 

 

TOTAL

2.319,58 €

 

IVA 2021

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202103T

2022 ...

07/12/2022

19.378,38 €

202106T

2022 ...

09/12/2022

24.849,33 €

202109T

2022 ...

09/12/2022

33.128,77 €

202112T

2022  ...

09/12/2022

21.988,10 €

   

TOTAL 

99.344,58 €

 

Juros Compensatórios (IVA 2021)

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202103T

2022 ...

07/12/2022

1.251,12 €

202106T

2022 ...

09/12/2022

1.274,27 €

202109T

2022 ...

09/12/2022

1.335,85 €

202112T

2022 ...

09/12/2022

646,62 €

 

 

TOTAL

4.507,86 €

 

IVA 2022

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202203T

2022 ...

09/12/2022

21.206,75 €

202206T

2022 ...

09/12/2022

20.065,59 €

   

TOTAL 

41.272,34 €

 

Juros Compensatórios (IVA 2022)

Período

N.º Liquidação

Data-Limite

Pagamento

 

Valor a pagar

202203T

2022...

09/12/2022

390,43 €

202206T

2022 ...

09/12/2022

111,57 €

 

 

TOTAL

502,00 €

 

 

  1. Perfazendo estas liquidações adicionais um total de € 252.151,74 de IVA.
  2. Em 29 de Dezembro de 2022 a Requerente apresentou no CAAD o Pedido de Pronúncia Arbitral que deu origem ao presente processo.
  3. No processo, a Requerente apresentou a seguinte documentação de suporte:

A) relativamente às facturas analisadas e objecto de correcção no ponto V.1.1.1. do RIT

  1. Facturas de aquisição dos bens pela Requerente ao seu fornecedor nacional, à sociedade D...;
  2. Facturas emitidas pela Requerente às duas sociedades angolanas, adquirentes dos bens, e respectivas Notas de Crédito;
  3. Comprovativos dos pagamentos das facturas, efectuados pelas sociedades adquirentes dos bens;
  4. “Certificação de Saída para o Expedidor/Exportador”, documento alfandegário comprovativo do transporte dos bens para Angola, seja por transporte marítimo (contentor em navio de carga – Alfândega de Alverca), seja por transporte aéreo (Alfândega do Aeroporto de Lisboa);
  5. Comprovativos de desalfandegamento dos bens, atestando a chegada das mercadorias a Angola.

B) relativamente às facturas analisadas e objecto de correcção no ponto V.1.1.2 do RIT:

  1. Facturas de aquisição das mercadorias junto do fornecedor;
  2. Facturas emitidas pela Requerente às empresas angolanas adquirentes dos bens, e respectivas Notas de crédito;
  3. Comprovativos de pagamento das facturas pelas empresas em Angola;
  4. Comprovativos de desalfandegamento dos bens em Angola;
  5. Comprovativos de remessa das mercadorias para Angola através dos serviços alfandegários chineses.

C) relativamente a todas as facturas objeto de análise:

  1. Declaração emitida pela empresa angolana B..., a atestar o recebimento da mercadoria em Angola;
  2. Declaração emitida por Despachante Oficial em Angola (E..., com a Cédula n.º ...) respeitante aos comprovativos de desalfandegamento.
  1. Essa documentação comprova cabalmente que:
    1. A Requerente adquiriu os bens junto do fornecedor nacional, pagou o respectivo preço e foram emitidas as correspondentes facturas;
    2. A Requerente revendeu os bens às duas sociedades clientes em Angola, e foram emitidas as facturas de venda dos bens;
    3. O preço dos bens foi integralmente pago pelas sociedades angolanas à Requerente, conforme os comprovativos de pagamento;
    4. Os bens foram recebidos em Angola, como resulta dos documentos de Certificação de Saída, relativamente aos bens transportados de Portugal para Angola; dos documentos dos serviços alfandegários chineses, no que respeita aos bens transportados diretamente da China para Angola; dos documentos de desalfandegamento dos bens em Angola; e da Declaração da empresa angolana adquirente dos bens, de que recebeu esses bens.

 

II. B. Matéria de facto não-provada

 

Com relevância para a questão a decidir, nada ficou por provar.

 

II. C. Fundamentação da matéria de facto

 

  1. Os factos elencados supra foram dados como provados com base nas posições assumidas pelas partes nos presentes autos, e nos documentos juntos ao PPA e ao processo administrativo.
  2. Cabe ao Tribunal Arbitral seleccionar os factos relevantes para a decisão, em função da sua relevância jurídica, considerando as várias soluções plausíveis das questões de Direito, bem como discriminar a matéria provada e não provada (cfr. art. 123º, 2, do CPPT e arts. 596º, 1 e 607º, 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29º, 1, a) e e) do RJAT), abrangendo os seus poderes de cognição factos instrumentais e factos que sejam complemento ou concretização dos que as Partes alegaram (cfr. arts. 13.º do CPPT, 99º da LGT, 90º do CPTA e arts. 5º, 2 e 411.º do CPC).
  3. Segundo o princípio da livre apreciação dos factos, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação aos factos alegados pelas partes, na sua íntima e prudente convicção formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, e de acordo com as regras da experiência (cfr. art. 16º, e) do RJAT, e art. 607º, 4, do CPC, aplicável ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  4. Somente relativamente a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, a factos que só possam ser provados por documentos, a factos que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão, ou quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (por exemplo, quanto aos documentos autênticos, por força do artigo 371.º do Código Civil), é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio da livre apreciação (cfr. art. 607º, 5 do CPC, ex vi art. 29º, 1, e) do RJAT).
  5. Além disso, não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada, nem os factos incompatíveis ou contrários aos dados como provados.

 

III. Sobre o Mérito da Causa

 

III. A. Posição da Requerente no Pedido de Pronúncia

 

  1. A Requerente começa por descrever o contexto do negócio de 2018: adquiriu, a um fornecedor português, produtos farmacêuticos e medicamentos que revendeu a clientes angolanos, a B... S.A.R.L., e a C..., Lda., sendo declarada a isenção de IVA tanto nas facturas respeitantes à aquisição dos bens ao fornecedor nacional, como nas facturas respeitantes à revenda dos bens às sociedades angolanas, por estar em causa a transmissão de bens para fora da EU (art. 14º, 1, a) do CIVA).
  2. A Requerente sustenta que se deve a um mero lapso de preenchimento a circunstância de o documento de Certificação de Saída para o Expedidor/Exportador ter sido emitido em nome do fornecedor nacional, D..., em vez de ter sido emitido em nome da A... .
  3. Mas que isso não impede que haja abundante documentação de suporte da qual resulta claro o que se passou nas exportações ocorridas em 2018: a) Facturas de aquisição dos bens pela A... ao fornecedor nacional, a D...; b) Facturas emitidas pela A... às duas sociedades angolanas adquirentes dos bens, e respectivas Notas de Crédito; c) Comprovativos dos pagamentos das facturas, efectuados pelas sociedades adquirentes dos bens; d) Certificação de Saída para o Expedidor/Exportador, documento alfandegário comprovativo do transporte dos bens para Angola, por via marítima e por via aérea; e) Comprovativos de desalfandegamento dos bens, que confirmam a chegada das mercadorias a Angola.
  4. Relativamente a algumas transmissões, a Requerente não dispõe de documento de Certificação de Saída dos bens do território da UE, emitido na alfândega em Portugal, porque nesses casos as mercadorias foram transportadas directamente do país do produtor, a China, para as importadoras angolanas. Quanto a essas transmissões sem certificado, a AT entendeu que não podia aplicar-se a isenção de IVA por ausência de apresentação do Documento Administrativo Único (DAU).
  5. A Requerente recorda que o art. 14º, 1, a) do CIVA é uma transposição do art. 146º, 1, b) da “Directiva IVA” (Directiva nº 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006), que isenta de IVA a entrega de bens expedidos para fora da União, e que é essa solução que justifica as preocupações plasmadas no art. 29º, 8 e 9 do CIVA.
  6. Mas insiste que ficou adequadamente documentado, logo aquando da inspecção tributária, que as transmissões para Angola foram efectivadas, tal como o atestam os documentos de Certificação de Saída para o Expedidor/Exportador, sendo possível estabelecer uma correspondência entre as facturas e a discriminação dos bens transportados na documentação pertinente (unidade por unidade, ou até em termos de pesos somados).
  7. Entende a Requerente que, dada a abundância de apoio documental, não só fica comprovada a materialidade das exportações realizadas, como fica evidente que o preenchimento da alguns documentos envolveu alguns lapsos, como ainda se torna clara a razão pela qual a AT nem sequer tenta desmentir essa materialidade, o que poderia alegar sugerindo a existência de simulações – mas pura e simplesmente se abstém de alegar que os bens não foram de facto exportados pela Requerente para fora da EU; reconhecendo implicitamente, ao invés, que a exportação ocorreu mesmo, quando sustenta que o preenchimento adequado da documentação bastaria para sanar as irregularidades detectadas.
  8. A Requerente ampara esse seu entendimento em diversa jurisprudência arbitral e da jurisdição administrativa.
  9. E lembra o lugar paralelo do Ofício-Circulado n.º 30009, de 10/02/1999, da AT, relativo ao Regime do IVA das Transações Intracomunitárias (“RITI”), que, a respeito da comprovação dos pressupostos da isenção prevista na alínea a) do artigo 14.º do RITI, estabelece no seu n.º 4 que “perante a falta de norma que, na legislação do IVA, indique expressamente os meios considerados idóneos para comprovar a verificação dos pressupostos da isenção prevista na alínea a) do artigo do RITI, será de admitir que a prova da saída dos bens do território nacional possa ser efectuada recorrendo aos meios gerais de prova”.
  10. Para daí inferir, que, tal como sucede nas transações intracomunitárias, nas transmissões de bens para fora da EU o que é relevante é a comprovação da saída dos bens do território nacional e a transmissão, pelos sujeitos passivos, do direito de dispor de tais bens enquanto proprietário – o que é relevante é a materialidade das operações realizadas.
  11. A restrição da comprovação a uma só via e a uma específica formalidade seria, no entender da Requerente, desconforme ao art. 29.º, 8 do CIVA, e também desconforme à legislação comunitária.
  12. A Requerente aproveita ainda para invocar, os princípios da prevalência da substância sobre a forma (arts. 11º, 3, 38º e 39º da LGT), da prevalência da materialidade sobre a forma, e da neutralidade fiscal, como formas de contrariar a invocação do incumprimento de obrigações formais com a finalidade de afastar a aplicação de uma norma de isenção – um afastamento que assenta na premissa errada de que a inobservância de exigências formais dos documentos torna impossível a comprovação da materialidade e da substância das operações realizadas.
  13. A Requerente assinala ainda a incongruência que consistiria em conferir relevância material aos lucros obtidos com as vendas realizadas para efeitos de tributação em sede de IRC, e recusar-se relevância material às vendas que geraram esses lucros, para recusar, a pretexto de uma formalidade, a isenção de IVA.
  14. A Requerente termina reiterando o pedido de anulação das liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, bem como de pagamento de juros indemnizatórios, nos termos dos arts. 43.º da LGT e 61.º do CPPT.
  15. Em requerimento de 28 de Agosto de 2023, exercendo o contraditório relativamente à apresentação de documentação suplementar, a Requerente lembra que, ao contrário do que a Requerida alega, os “certificados de saída” existem e comprovam a saída da mercadoria de Portugal; a patente incorrecção no seu preenchimento não faz com que eles inexistam, nem deixa materialmente incumprida a obrigação legal de proceder documentalmente a essa comprovação.
  16. E no mesmo sentido se pronuncia no requerimento de 22 de Setembro de 2023, sustentando a Requerida que os documentos suplementares apresentados pela Requerente provam que a exportação não foi efectuada pela Requerente nem em nome da Requerente, mas antes em nome de outra pessoa jurídica – sendo que a prova de que outro procedeu à exportação acarreta logicamente a prova da impossibilidade de a Requerente o ter feito.

 

III. B. Posição da Requerente em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerente retoma as posições expressas do seu Pedido de Pronúncia, recapitulando os seus argumentos nucleares.
  2. Em particular, a Requerente enumera toda a documentação que juntou aos autos para fazer prova do que efectivamente ocorreu, em termos de exportação dos bens para Angola, a partir de Portugal e da China.
  3. E retira daí a conclusão de que fica impossibilitado alegar-se que o que fica documentado são operações “simuladas”, não tendo existido qualquer propósito fraudulento ou simulatório.
  4. Aditando que recaía sobre a AT o ónus de alegar e provar, nos termos dos artigos 74.º, 1 da LGT e 100.º, 1 do CPPT, que a Requerente não realizou as transmissões dos bens para Angola, e que a AT não provou essa alegação.

 

III. C. Posição da Requerida na Resposta

 

  1. Na sua resposta, a Requerida lembra que, existindo obrigação legal de intervenção dos serviços aduaneiros, as exportações estão sujeitas a um regime de prova legal através do documento alfandegário apropriado – estando ambas as obrigações ligadas uma à outra, sendo meios complementares de prevenção de qualquer possível fraude, evasão ou abuso.
  2. Sucede que a Requerente não documentou por esse meio declarativo, ou seja, pela prova legal adequada, as exportações isentas: seja porque, por um lado, para comprovar a isenção do IVA nas transmissões realizadas exibiu documentos administrativos únicos nos quais constava como exportador o seu fornecedor e não a própria, e, por outro, não foram apresentados os documentos alfandegários comprovativos da exportação efectuada através da China.
  3. Enfatiza a Requerida que o facto de as exportações sujeitas a controlo aduaneiro carecem de certificação pelos serviços aduaneiros é prova suficiente de que essa condição não constitui uma mera formalidade, mas antes uma exigência de fundo, cuja inobservância impõe a exigibilidade do imposto nos termos do art. 29.º, 9 do CIVA.
  4. Trata-se, no entendimento da Requerida, de um meio de prova legal, com força estabelecida pelo art. 29.º, 8 do CIVA, e que não pode ser substituído por meio de prova com força inferior.
  5. Conclui a Requerida que, não tendo a Requerente na sua posse esses documentos, ou tendo-os em nome de outra entidade na acção inspetiva de que foi objeto, não se vislumbra fundamento para alterar as correcções que foram efectuadas e anular as liquidações ora em crise – não cabendo, pela mesma razão, o reconhecimento de juros indemnizatórios a favor da Requerente.
  6. Quanto à circunstância de a Requerente ter aludido, no Pedido de Pronúncia, à junção de novos documentos, a Requerida lembra que os elementos de prova deveriam ter sido todos apresentados com o Pedido, nos termos do art. 10º, 2, d) do RJAT, até para habilitar a AT a reagir nos termos e prazos do art. 13º do RJAT, pelo que solicitou prazo suplementar para examinar esses documentos, na medida em que venham a ser juntos aos autos.
  7. Em requerimento de 28 de Junho de 2023, exercendo o contraditório sobre documentação suplementar apresentada pela Requerente, a Requerida desconsiderava-a, seja por não corresponder à documentação legalmente exigida, seja pelo motivo, decorrente do primeiro, de não ser possível aferir da sua autenticidade e validar o seu conteúdo – insistindo que a integração do que seja um documento alfandegário apropriado tem de ser efectuada por via dos dispositivos que definem o procedimento aduaneiro de exportação de bens para fora da União Europeia, e que remetem para o documento administrativo único que se exige para efeitos de isenção de IVA.

 

III. D. Posição da Requerida em Alegações

 

  1. Em alegações, a Requerida alega que a Requerente não fez prova dos requisitos de que depende a aplicação da isenção de IVA, quando recaía sobre ela o ónus da prova, nos termos do art. 74º da LGT.
  2. E insiste que a Requerente não só não provou ser a exportadora, como, ao invés, fez prova de não ter sido a exportadora, na medida em que provou inequivocamente que outros procederam a essa exportação.
  3. Ora, como a isenção só se aplica a quem efectivamente tenha exportado os bens, a Requerente não tem direito a ela.

 

IV. Fundamentação da decisão

 

IV.A. O mérito da causa.

 

Estamos agora em condições de nos pronunciarmos sobre o mérito da causa.

O que está em questão nos presentes autos é saber se, para efeitos do disposto no art. 14.º, 1, a) do CIVA, a prova da exportação deverá ser efectuada, em exclusivo, através de “documento alfandegário apropriado”, ou se, pelo contrário, poderão ser utilizados outros meios de prova.

Nos termos do art. 14.º, 1, a) do CIVA estão isentas do imposto:

a) As transmissões de bens expedidos ou transportados para fora da Comunidade pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste”.

Esta norma encontra fundamento no artigo 146.º, 1, a) da Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, nos termos do qual:

1. Os Estados–Membros isentam as seguintes operações: a) As entregas de bens expedidos ou transportados, pelo vendedor ou por sua conta, para fora da Comunidade”.

Finalmente, para completarmos o quadro normativo, estabelece-se no art. 29.º, 8 e 9 do CIVA:

8 - As transmissões de bens e as prestações de serviços isentas ao abrigo das alíneas a) a j), p) e q) do n.º 1 do artigo 14.º (…) devem ser comprovadas através dos documentos alfandegários apropriados ou, não havendo obrigação legal de intervenção dos serviços aduaneiros, de declarações emitidas pelo adquirente dos bens ou utilizador dos serviços, indicando o destino que lhes irá ser dado.

9 - A falta dos documentos comprovativos referidos no número anterior determina a obrigação para o transmitente dos bens ou prestador dos serviços de liquidar o imposto correspondente.

Qual a ratio legis das isenções de IVA na exportação?

A jurisprudência comunitária já se pronunciou repetidamente sobre o tema, concluindo que a isenção de IVA prevista no artigo 146.º, 1, a) e b) da Directiva IVA:

  1. Depende da verificação de três requisitos: (i) Transferência para o adquirente do direito de dispor do bem como proprietário; (ii) Demonstração, pelo fornecedor, que o bem foi expedido ou transportado para fora da União; (iii) Saída física dos bens do território da União na sequência dessa expedição ou transporte[1].
  2. Visa garantir a tributação das prestações no lugar de destino, ou seja, aquele no qual os produtos exportados serão consumidos[2];
  3. Visa a isenção das entregas de bens quando o fornecedor demonstrar que os bens foram expedidos ou transportados para fora da União, e quando, na sequência dessa expedição ou transporte, o bem saiu fisicamente do território da União[3];
  4. Apenas pode ser limitada pelos Estados-Membros, no âmbito dos poderes que lhes são conferidos pelo artigo 131.º da Directiva IVA, no estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade, não sendo aqui admitidas medidas que façam depender, no essencial, o direito à dedução do IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta os seus requisitos materiais ou a substância das operações realizadas – sendo que o facto de não estarem cumpridos requisitos formais adicionais impostos por legislações nacionais não pode pôr em causa o direito à isenção de IVA[4];
  5. Apenas pode ser limitada pelos Estados-Membros, no âmbito dos poderes que lhes são conferidos pelo artigo 273.º da Directiva IVA, com base em incumprimento de requisitos formais, quando estejam em causa situações de fraude fiscal que ponham em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA[5].

Estabeleceu o TJUE, no Acórdão Cartrans Spedition:

na falta de uma disposição da Diretiva IVA quanto às provas que os sujeitos passivos devem apresentar para beneficiarem da isenção de IVA, cabe aos Estados-Membros fixar, em conformidade com o artigo 131.o desta diretiva, os requisitos de isenção das operações de exportação com vista a garantir a aplicação correta e simples das ditas isenções e prevenir eventuais fraudes, evasões e abusos.” Porém, prossegue, “no exercício dos seus poderes, os Estados-Membros devem respeitar os princípios gerais de direito que fazem parte da ordem jurídica da União, entre os quais se incluem os princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade”.

Quanto ao princípio da proporcionalidade, prosseguia o TJUE no Acórdão Cartrans Spedition:

uma medida nacional vai para além do que é necessário para assegurar a cobrança exata do imposto se fizer depender, no essencial, o direito à isenção de IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta os seus requisitos materiais e, nomeadamente, sem se interrogar sobre se estes foram respeitados. Com efeito, as operações devem ser tributadas tomando em consideração as suas características objetivas”. Assim, “quando aqueles requisitos materiais forem cumpridos, o princípio da neutralidade fiscal exige que a isenção de IVA seja concedida mesmo que certos requisitos formais tenham sido preteridos pelos sujeitos passivos”.

Referindo o TJUE, nesse Acórdão Cartrans Spedition (§.41.º e 42.º), que, face ao princípio da neutralidade que enforma a Directiva IVA, só existem dois casos em que o incumprimento de um requisito formal pode implicar a perda do direito à isenção de imposto: (i) quando o sujeito passivo tenha participado intencionalmente numa fraude fiscal que tivesse colocado em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA; e (ii) quando a violação do requisito formal tenha por efeito impedir a produção da prova incontestável do cumprimento dos requisitos de fundo de que depende a isenção.

Com base nesse entendimento, considerou o TJUE que a referida isenção não pode estar sujeita

à condição imperativa de que o transportador ou o intermediário em causa apresente, para demonstrar a realidade da exportação, uma declaração de exportação, excluindo, desse modo, qualquer outro meio de prova que permitisse formar a convicção exigida por parte da autoridade fiscal competente”. Com efeito, prosseguia, “impor tal modalidade probatória exclusiva de qualquer outra equivaleria a fazer depender o direito à isenção do cumprimento de obrigações formais (…) sem examinar a questão de saber se os requisitos de fundo impostos pelo direito da União foram ou não efetivamente satisfeitos. A simples circunstância de um transportador ou um intermediário envolvido numa operação de transporte não poder apresentar uma declaração de exportação não implica que essa exportação não tenha efetivamente tido lugar.”

Conclui o TJUE nesse Acórdão Cartrans Spedition (§§ 52.º a 54º), que se trata de

analisar o conjunto de elementos de que dispõem para determinar se deles se pode inferir, com um grau de probabilidade suficientemente elevado, que os bens transportados com destino a um país terceiro aí foram entregues”, não devendo inferir-se que tal não sucedeu “pelo simples facto de que o transportador ou intermediário não apresentou uma declaração de exportação dos referidos bens”.

Mais recentemente, o TJUE, no Acórdão Milan Vinš, sustenta (§§ 27.º a 29.º) que a qualificação de uma operação como entrega para exportação nos termos do artigo 146.º, 1, a) da Directiva IVA

não pode depender da colocação dos bens em causa sob o regime aduaneiro de exportação, cujo incumprimento tenha por consequência privar definitivamente o sujeito passivo da isenção na exportação (…) em segundo lugar, cabe aos Estados-Membros fixar, em conformidade com o artigo 131.o da Diretiva IVA, as condições da isenção das operações de exportação com o fim de assegurar a aplicação correta e simples das isenções previstas por esta diretiva e evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso. No exercício dos seus poderes, os Estados-Membros devem respeitar os princípios gerais de direito que fazem parte da ordem jurídica da União, entre os quais se inclui o princípio da proporcionalidade”; reiterando o argumento de que “uma medida nacional vai para além do que é necessário para assegurar a cobrança exata do imposto se fizer depender, no essencial, o direito à isenção de IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta os seus requisitos materiais e, nomeadamente, sem se interrogar sobre se estes foram respeitados”, conclui esse Acórdão Milan Vinš com a decisão de que “uma condição (…) que impede a concessão de uma isenção de IVA a uma entrega de bens que não tenham sido colocados sob o regime aduaneiro de exportação, ainda que seja ponto assente que esses bens foram efetivamente exportados em conformidade com os critérios recordados no n.o 24 do presente acórdão, e que, por conseguinte, esta entrega corresponde, pelas suas características objetivas, às condições de isenção previstas no artigo 146.o, n.o 1, alínea a), da Diretiva IVA, não respeita o princípio da proporcionalidade”.

Acresce a isto que as isenções previstas no capítulo 6 da Directiva IVA (“Isenções na exportação”) são imperativas, pelo que, na ausência de derrogação expressa dessa imperatividade, os Estados-Membros não dispõem de margem de discricionariedade para introduzir condições materiais adicionais – e, mais especificamente, exigências de formalidades não podem servir para colocarem em causa a neutralidade do IVA. Daí que o Acórdão Euro Tyre do TJUE tenha claramente disposto (§§ 38.º, 39.º e 42.º) que o princípio da neutralidade fiscal exige que a isenção do IVA seja reconhecida se as condições materiais previstas no art. 146.º, 1, a) da Directiva IVA estiverem preenchidas, ainda que o contribuinte não tenha cumprido certas formalidades.

Convirá ainda sublinhar que, no entendimento do TJUE, decorre das exigências, tanto da aplicação uniforme do Direito da União como do princípio da igualdade, que os termos de uma disposição do Direito da União que não comporte uma remissão expressa para o direito dos Estados‑Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem em princípio ser objecto de uma interpretação autónoma e uniforme em toda a União[6].

O IVA português é sempre balizado pelo sistema harmonizado do IVA comunitário, pelo que a validação da isenção de IVA aplicada a uma determinada operação como exportação, em situações em que não se levantam suspeitas de fraude ou evasão fiscal, depende da prova da saída efectiva dos bens em causa do território da União.

Logo, a exigência do cumprimento de requisitos formais em sede aduaneira não pode ser imposta para negar a isenção de IVA na exportação, quando outros elementos, que decorram dos próprios documentos alfandegários ou de documentos de suporte da expedição internacional dos bens, demonstrem os requisitos materiais da isenção à exportação e a efectiva saída (não fraudulenta) dos bens do território da União Europeia.

Alinhando com a posição do TJUE, à insistência em “documentos apropriados” deve sobrelevar a verificação dos requisitos materiais de que depende a isenção consagrada no art. 14.º, 1, a) do CIVA, nomeadamente (i) se a Requerente celebra com os seus clientes contratos de compra e venda translativos da propriedade dos produtos que comercializa, (ii) se não subsistem dúvidas que os bens foram expedidos para fora da União Europeia e (iii) se, no âmbito dessa expedição, ocorreu a saída física dos bens do território da União (sendo aí consumidos, o que requer que se evite a dupla tributação, nos termos do art. 6.º do CIVA). Verificados esses requisitos materiais, a exigência do documento alfandegário comprovativo da exportação constituirá a forma mais óbvia e simples de comprovação, decerto – mas não poderá deixar de ser considerada uma formalidade “ad probationem” à luz da jurisprudência do TJUE.

A documentação a apresentar está definida nos arts. 793º e seguintes das Disposições de Aplicação do Código Aduaneiro Comunitário (DACAC).

Sucede que nas operações de exportação em que a saída dos bens se processe por outro Estado membro, e na impossibilidade de os operadores apresentarem o exemplar 3 do Documento Administrativo Único (DAU), visado pela estância de saída, o exportador ou o declarante podem fornecer, à estância aduaneira de exportação, as provas alternativas previstas no art. 796º, 4 das DACAC:

  1. Uma cópia da nota de entrega assinada ou autenticada pelo destinatário localizado fora do território aduaneiro da Comunidade;
  2. A prova de pagamento ou, fatura ou, nota de entrega devidamente assinada ou autenticada pelo operador económico que retirou as mercadorias do território aduaneiro da Comunidade;
  3. Uma declaração assinada ou autenticada pela empresa que retirou as mercadorias do território aduaneiro da Comunidade;
  4. Um documento certificado pelas autoridades aduaneiras de um Estado- Membro ou de um país fora do território aduaneiro da Comunidade;
  5. Registos dos operadores económicos referentes a mercadorias fornecidas a plataformas de perfuração e de produção de petróleo e de gás ou a turbinas eólicas.

Assim, desde que a exportação das mercadorias se tenha efectivamente produzido, e o exportador possua o mencionado exemplar do DAU, ou, na impossibilidade de o obter, tenha fornecido as provas a que se refere o art. 796º, 4 das DACAC, a comprovação da isenção prevista no art. 14º, 1, a) do CIVA fica efectivada – e este é o entendimento da própria AT, plasmado na Informação Vinculativa n.º 3092, de 24-05-2012.

Importa salientar que uma medida nacional vai para além do que é necessário para assegurar a cobrança exacta do imposto se fizer depender, no essencial, o direito à isenção de IVA do cumprimento de obrigações formais, sem ter em conta os seus requisitos materiais e, nomeadamente, sem se interrogar sobre se estes foram respeitados – porque as operações devem ser tributadas tomando em consideração as suas características objectivas[7].

Os documentos apresentados pela Requerente são válidos e admissíveis como prova (nos termos do art. 796.º, 4 das DACAC), e através deles é possível verificar a materialidade da exportação e da saída física dos bens para fora do espaço da União Europeia, permitindo satisfazer o critério do TJUE, que, no Acórdão Milan Vinš, estabeleceu que “a exportação de um bem é efetuada e (…) a isenção da entrega para exportação é aplicável quando o direito de dispor do bem como proprietário tiver sido transferido para o adquirente, quando o fornecedor demonstrar que o bem foi expedido ou transportado para fora da União e quando, na sequência dessa expedição ou transporte, o bem saiu fisicamente do território da União”.

Convirá enfatizar que a ênfase na materialidade não é timbre somente da jurisprudência comunitária, sendo um princípio geral que tem plena consagração nacional, como se comprova em diversas decisões judiciais.

Numa decisão do TCAS,

o que releva, para o direito fiscal, é o apuramento da efectiva realidade, relevante para efeitos de tributação, que não a mera forma do negócio jurídico concretamente utilizado. Tal princípio deve ser examinado em conjugação com o fenómeno da fraude à lei, assim podendo limitar o contribuinte no que respeita ao grau da sua oneração fiscal e consubstanciando a aplicação de tal princípio a consagração da cláusula geral anti-abuso prevista no artº. 38, nº. 2, da L.G.T.[8].

Noutra decisão do TCAS,

Ora, o interprete da lei fiscal não pode deixar de atender à substância económica dos factos tributários, isto porque, como frequentemente se acentua, o que efectivamente importa ao direito fiscal são as realidades económicas, as situações reais que expressam a percepção de rendimento ou a capacidade contributiva e não as meras roupagens com que, por vezes, se apresentam exteriormente[9].

E sobre o princípio da substância sobre a forma, estabelece o mesmo Acórdão que ele

tem as suas origens na contabilidade e estando consagrado no Plano Oficial de Contabilidade como critério de decisão contabilística possível para evitar que o formalismo jurídico se torne obstáculo a que o balanço reflicta com exactidão a situação patrimonial da empresa. Trata-se de conferir equivalência económica a certos efeitos jurídicos, mas que no Direito Fiscal é utilizado com vista a reduzir a relevância da vontade do sujeito passivo na distribuição dos encargos tributários[10].

Assim, se, face à ausência dos documentos alfandegários “apropriados”, a AT recusar a isenção sem cuidar de analisar se as condições materiais previstas no art. 14.º, 1, a) do CIVA estavam, ou não, efectivamente preenchidas, sem estar alegado qualquer indício de prática fraudulenta, a sua posição de recusa fica insustentável, sobretudo se não subsistirem dúvidas de que os bens foram expedidos e saíram fisicamente do território da União Europeia com destino a países terceiros, transmitindo-se o direito de propriedade para o adquirente dos bens expedidos – daí resultando a ilegalidade das liquidações em apreço, por errónea interpretação do artigo 14.º, 1, a) do CIVA.

A Requerida poderia ter alegado duas razões para a perda do direito à isenção de IVA: a) a de a Requerente ter participado intencionalmente numa fraude fiscal que tivesse posto em perigo o funcionamento do sistema comum do IVA; b) a de a violação do requisito formal ter impedido a produção da prova incontestável do cumprimento dos requisitos de fundo[11]. Ora, a AT não alegou fraude, nem alegou a impossibilidade de prova dos requisitos materiais de aplicação da lei.

Como se lê numa decisão do STA:

Demonstrando-se nos autos que os bens em causa foram expedidos por conta do vendedor (a recorrente) e saíram fisicamente do território nacional para outro Estado membro, tendo sido entregues a um legal representante do adquirente, ao qual foi transmitido o direito de dispor dos mesmos como proprietário, estando também comprovado que o adquirente é um sujeito passivo que age enquanto tal nas operações em causa, haverá de se concluir que estão verificados os requisitos materiais, de fundo, do direito à isenção de IVA de uma entrega intracomunitária na acepção do artigo 138.º, n.º 1, da Diretiva IVA[12].

E numa decisão do TCAN:

Vem a jurisprudência entendendo de modo uniforme que, quando estão em questão correções de liquidações quer de IVA, as quais foram consideradas falsas pela administração tributária, as regras de repartição do ónus da prova a ter em conta são as seguintes: Em primeira linha compete à administração tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua atuação, ou seja, terá que demonstrar a existência de indícios sérios de que a operação referida na fatura foi simulada[13].

No caso dos presentes autos, a Requerente logrou provar, para além de qualquer dúvida, que os bens foram por si expedidos e saíram fisicamente do território da União Europeia com destino a países terceiros.

A errónea interpretação do artigo 14.º, 1, a) do CIVA justifica a anulação das liquidações impugnadas, nos termos do art. 163.º, 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do art. 29º, 1, d) do RJAT, pelo que terá de proceder, na sua totalidade, o pedido apresentado pela Requerente.

As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto as liquidações de IVA (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos vícios que afectam estas, justificando a sua concomitante anulação.

De harmonia com o disposto no art. 24º, b) do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a AT, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto no art. 29º, 1, a) do RJAT.

Ainda nos termos do artigo 24º, 5 do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43º, 1 da LGT e 61º, 5 do CPPT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

IV.B. – Aplicação uniforme do Direito.

 

Na fundamentação da decisão, e em obediência ao princípio geral consagrado no art. 8º, 3 do Código Civil, seguimos de perto as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.os 315/2018-T, 210/2019-T, 292/2019-T, 667/2019-T, 265/2020-T, 201/2021-T e 262/2022-T  do CAAD[14].

 

IV.C. – Questões prejudicadas.

 

Foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, pela ordem disposta pelo art. 124º do CPPT, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – art. 608º do CPC, ex vi art. 29º, 1, c) e e) do RJAT.

 

V. Decisão

 

Nos termos expostos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. Julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular as liquidações de imposto e de juros compensatórios impugnadas;
  3. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios;
  4. Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VII. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 252.151,74 (duzentos e cinquenta e dois mil, cento e cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos), nos termos do disposto no art.º 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi art.º 29.º, 1, a), do RJAT e art.º 3.º, 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VIII. Custas

 

Custas no montante de € 4.896,00 (quatro mil, oitocentos e noventa e seis euros) a cargo da Requerida (cfr. Tabela I, do RCPAT e artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, do RJAT).

 

Lisboa, 16 de Novembro de 2023

 

Os Árbitros

 

Fernando Araújo

 

Pedro Guerra Alves

 

Ana Paula Rocha



[1] Acórdão de 18 de Outubro de 2012, BDV Hungary Trading kft; Acórdão de 28 de Fevereiro de 2018, Pieńkowski.

[2] Acórdão de 8 de Novembro de 2018, Cartrans Spedition. Na doutrina, entre nós, por exemplo, a obra de referência de José Guilherme Xavier de Basto, A tributação do consumo e a sua coordenação internacional: lições sobre harmonização fiscal na Comunidade Económica Europeia, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1991, 361, págs. 95 e segs.; e Maria Teresa Lemos, O tratamento das exportações no imposto sobre o valor acrescentado, CTF n.º 313/315, 12985, págs. 7 e segs.

[3] Acórdão Pieńkowski.

[4] Acórdão Cartrans Spedition, Acórdão de 9 de Fevereiro de 2017, Euro Tyre, Acórdão de 20 de Outubro de 2016, Plöckl, Acórdão de 27 de Setembro de 2007, Collée, Acórdão de 12 de Julho de 2012, EMS‑Bulgaria Transport, Acórdão de 21 de Outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, Acórdão de 27 de Setembro de 2012, VSTR, e Acórdão de 14 de Março de 2013, Ablessio.

[5] Acórdão de 28 de Março de 2019, Milan Vinš.

[6] Acórdãos de 18 de Outubro de 2011, Brüstle, e de 23 de Abril de 2020, Associazione Avvocatura per i diritti LGBTI)

[7] Acórdão Cartrans Spedition.

[8] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 23/02/2017, Proc. n.º 637/09.2BELRS.

[9] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19 de fevereiro de 2015, Proc. n.º 07918/14.

[10] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19 de fevereiro de 2015, Proc. n.º 07918/14.

[11] As duas ressalvas são explicitadas no Acórdão Cartrans Spedition.

[12] Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 de maio de 2018, proc. n.º 0696/17.

[13] Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, 2.ª Secção -Contencioso Tributário, de 13 de maio de 2021, Proc. n.º 02691/18.7BEPRT.

[14] Processos n.os 315/2018-T (José Pedro Carvalho, Paulo Lourenço e Emanuel Vidal Lima), 210/2019-T (Catarina Belim), 292/2019-T (José Poças Falcão, Isaque Marcos Ramos e Raquel Franco), 667/2019-T (Rita Guerra Alves), 265/2020-T (Nina Aguiar), 201/2021-T (Paulo Lourenço) e 262/2022-T (Victor Calvete, Júlio Tormenta e Pedro Miguel Bastos Rosado).