Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 5/2023-T
Data da decisão: 2023-11-13  IRC  
Valor do pedido: € 67.898,37
Tema: IRC - Liquidação Oficiosa - alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC. Princípios do inquisitório e da descoberta da verdade material.
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SUMÁRIO

  1. Dispõe o artigo 58.º da LGT que: “A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”.

 

  1. Nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a Declaração Modelo 22 do IRC no prazo legal, a AT tem o poder-dever de promover a liquidação oficiosa do imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC. Porém, é dever da AT inteirar-se da real situação contributiva do sujeito passivo, sobretudo quando este apresenta, mesmo que através de reclamação graciosa, elementos comprovativos da sua concreta situação tributária.

 

  1. Ao ignorar os elementos de prova oferecidos pelo sujeito passivo com o objetivo de comprovar a sua situação tributária no âmbito de procedimento de reclamação graciosa, a AT viola o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material (contidos no artigo 58.º da LGT), e o ato de indeferimento que recai sobre a reclamação graciosa deverá ser anulado.

 

  1. Anulado o indeferimento da reclamação graciosa por vício procedimental desta (e.g., por violação do dever de descoberta da verdade material), cabe ao Tribunal Arbitral conhecer dos restantes vícios imputados ao ato tributário, uma vez que é competente para conhecer quer dos vícios imputados ao indeferimento da reclamação graciosa, quer dos vícios imputados ao ato tributário.

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros Prof. Doutora Rita Correia da Cunha (Presidente), Dr. Arlindo José Francisco e Prof. Doutora Marisa Almeida Araújo (Vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 13/03/2023, decidem:

 

  1. RELATÓRIO

A... Unipessoal, Lda., NIPC..., com sede na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (adiante apenas “Requerente”), veio, em 03/01/2023, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com o disposto no artigo 99.º e na alínea e) do n.º 1 do artigo 102.º do CPPT, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 março, requerer a constituição de tribunal arbitral e apresentar pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) contra o ato de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022... (objeto imediato do PPA), e a liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., juntamente com a respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., emitidas com referência ao exercício de 2019, no montante total de € 67.898,37 (objeto mediato do PPA), cuja anulação peticiona, com as devidas consequências legais, incluindo a restituição do imposto e juros compensatórios indevidamente pagos, acrescida de juros indemnizatórios.

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante “Requerida” ou “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral e o PPA foram aceites pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 04/01/2023, e seguiram a sua normal tramitação.

A Requerente alegou, sumariamente, o seguinte:

Da falta de fundamentação do ato de liquidação

  1. Dos atos de liquidação notificados à Requerente não resulta suficiente a necessária fundamentação, nem de facto, nem de direito, conforme é exigido pelo disposto no n.º 3 do artigo 268.º da CRP e no artigo 77.º da LGT, não sendo tal fundamentação percetível, quer para um destinatário normal, quer para a Requerente, não sendo possível a esta percorrer o itinerário cognitivo e valorativo constante dos atos em causa e (re)conhecer o juízo de ponderação efetuado pela AT, de forma a poder esclarecidamente aderir, ou de lhe poder reagir através dos meios legais ao seu dispor.
  2. Só fazendo expressa menção dos elementos elencados no n.º 2 do artigo 77.º da LGT se dará devido cumprimento à lei, não podendo, por consequência, a AT omitir os elementos de facto e as disposições legais subjacentes aos atos de liquidação, e assim prejudicar irremediavelmente a defesa do sujeito passivo.
  3. Acresce que a liquidação contestada não faz qualquer remissão, expressa ou implícita, para um documento concreto que contenha a necessária fundamentação de facto e de direito, não se encontrando a mesma fundamentada por adesão ou concordância.
  4. A fundamentação deve ser contemporânea do ato e não sucessiva (total ou parcialmente), não podendo a fundamentação constituir uma justificação ex post do ato.
  5. No caso sub judice, em momento algum se identificam quais os rendimentos tributados e em que modo são estes tributados, apresentando-se somente perante a Requerente um valor de imposto apurado, um valor de juros a pagar e um valor final a pagar.
  6. Assim, conclui-se que a liquidação contestada não se mostra fundamentada nos termos legalmente exigidos, padecendo a mesma do vício de violação de lei por falta de fundamentação, tendo a AT incorrido em erro na interpretação e aplicação do direito decorrente do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, artigo 77.º da LGT, e artigo 152.º do CPA, ilegalidade essa que inquina a liquidação de imposto e torna-a anulável nos termos do artigo 163.º CPA, aplicável ex vi alínea d) do artigo 2.º do CPPT.

Do vício de violação de lei por erro da AT quanto aos factos e quanto ao direito

  1. Devido a doença e morte da sua contabilista, a Requerente não apresentou atempadamente a Modelo 22 do IRC do período de 2019, tendo a AT emitido uma liquidação oficiosa ao abrigo ao artigo 90.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, e tendo a Requerente reagido contra esta liquidação mediante reclamação graciosa.
  2. Notificada do projeto de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., à luz da fundamentação nele contido, e no exercício do direito de audição prévia, a Requerente apresentou, em 22/07/2022, o Balancete relativo ao exercício de 2019 e o ficheiro SAF-T, onde se encontrava reunida toda a informação fiscal e contabilística da Requerente relativa ao mesmo exercício. Informada pela AT que o ficheiro SAF-T não havia sido recebido, a Requerente voltou a enviar o mesmo, por correio eletrónico, no dia 27/07/2022.
  3. No procedimento de reclamação graciosa, os meios probatórios não se limitam à prova documental. Acresce que o princípio do inquisitório, previsto no artigo 58.º da LGT, dispõe que “[a] Administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido.”
  4. Deste modo, em cumprimento da lei, deveria o órgão instrutor ter ordenado a inquirição da testemunha indicada pela Requerente, tendo em vista a descoberta da verdade material, bem como a satisfação do interesse público. Por isso, a recusa pela AT de praticar diligências de prova requeridas pela Requerente, ou a não averiguação dos elementos necessários à descoberta da verdade material, com a consequente violação do princípio do inquisitório, consubstancia um vício procedimental que é fundamento de ilegalidade do ato tributário e suscetível de determinar a sua anulação.
  5. Atenta a natureza provisória da liquidação oficiosa emitida nos termos da alínea b) do artigo 89.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do CIRC (a qual visa evitar a caducidade do direito à liquidação do tributo), e perante a apresentação da declaração de rendimentos em falta no decurso do prazo de caducidade e em tempo útil, a AT fica vinculada a realizar as diligências instrutórias e inspetivas necessárias à prossecução do interesse público e à descoberta da verdade material, e a proceder às correções que se mostrem necessárias. Não tendo assim procedido a AT in casu, não pode o ato tributário de liquidação oficiosa contestado subsistir na ordem jurídica visto que se encontra em violação do princípio da tributação do rendimento real (contido no n.º 2 do artigo 102.º da CRP).
  6. Mais, tendo a Requerente procedido à correção das divergências e imprecisões suscitadas pela AT na decisão de indeferimento da reclamação graciosa (elaborando o balancete analítico, balanço analítico e a demonstração de resultados relativos ao período de 2019), e tendo a Requerente apresentado, em 28/11/2022, a sua declaração de Informação Empresarial Simplificada referente ao exercício de 2019, entende a Requerente que se encontram junto ao processo todos os elementos necessários para aferir da real e efetiva situação jurídico-tributária. Ao ignorar os elementos contabilísticos apresentados pela Requerente, a AT violou os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real consagrado no n.º 2 do artigo 104.º da CRP (que afastam, diretamente, a tributação do rendimento das empresas segundo o princípio da tributação pelo rendimento normal ou presumido).
  7. Em face do exposto, deve o presente PPA ser julgado procedente, por provado, nos termos e com os fundamentos supra enunciados e, em consequência, ser determinada a anulação do ato de liquidação de IRC n.º 2021 ... e da respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., ambas relativas ao exercício de 2019.

Da ilegalidade da liquidação de juros compensatórios

  • Os juros compensatórios não são uma mera decorrência da dívida de imposto – embora, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 35.º, n.º 8, da LGT, se integrem na própria dívida de imposto, com a qual são conjuntamente liquidados – e carecem de fundamentação expressa, acessível e contextual, à semelhança de qualquer matéria objeto de correção, na sequência de procedimento da AT.
  • Na sequência do desaparecimento de um dos seus fundamentos ou pressupostos legais essenciais – o retardamento da liquidação de imposto se dever a facto imputável ao contribuinte (cf. artigo 35.º, n.º 1, da LGT) – deve a liquidação de juros compensatórios em apreço, no valor de € 1.724,86, ser anulada.
  • Acresce que a AT limitou-se a exigir, de forma automática, juros compensatórios, ultrapassando as formalidades legais estabelecidas para a respetiva liquidação e inquinando, assim, a respetiva liquidação de vício de forma, por falta de fundamentação.
  • De facto, não tendo a AT indicado quais os elementos em que se baseia para promover a liquidação de juros compensatórios sub judice, não tendo feito qualquer menção à culpa da Requerente no suposto atraso na liquidação do imposto, e muito menos procedendo à demonstração dessa culpa (como lhe competia atento o disposto nos artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 342.º, n.º 1, do Código Civil), conclui-se pela ausência de fundamentação, que constitui vício de forma e determina a anulabilidade do ato de liquidação em causa, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º, ambos da LGT, bem como no artigo 268.º, n.º 3 da CRP.

Reembolso e direito a juros indemnizatórios

  1. Tendo sido paga a totalidade do montante do ato de liquidação ora em apreço, deverá ser reconhecido à Requerente o direito ao reembolso do montante indevidamente pago e, bem assim, a juros indemnizatórios, no seguimento da anulação dos atos de liquidação ora em crise, nos termos dos artigos 43.º e 100.º da LGT.

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação em 22/02/2023, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 8.º do RJAT, e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

O Tribunal Arbitral foi constituído em 13/03/2023.

A Requerida apresentou Resposta em 20/04/2013, tendo-se defendido por impugnação e pugnado pela improcedência do pedido. Na mesma data, a Requerida juntou o processo administrativo.

Sumariamente, a Requerida invocou o seguinte:

  1. A Requerente foi notificada da liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., referente ao período de 2019, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, em virtude de não ter procedido à entrega da sua Declaração Modelo 22 atempadamente. Esta liquidação foi precedida de uma outra a notificar a Requerente de que, ao abrigo da aludida alínea b), seria emitida a liquidação oficiosa caso a Requerente, entretanto, não procedesse à entrega da sua declaração de rendimentos e autoliquidação de IRC de 2019.
  2. Em 17/01/2022, a Requerente entregou a Declaração Modelo 22 de IRC atinente ao exercício de 2019, da qual resultou o montante de imposto a pagar de € 16.962,09, a qual se mantém na situação de não liquidável em virtude de a Requerente, no âmbito da reclamação graciosa apresentada para o efeito, não ter logrado demonstrar a sua efetiva situação tributária em sede de IRC referente ao exercício de 2019.

Da alegada falta de fundamentação do ato de liquidação oficiosa

  1. A Requerida comunicou à Requerente, através do Aviso n.º 0210..., emitido a 06/11/2020, e disponibilizado na sua caixa de correio eletrónico em 18/11/2020, que se encontrava em falta a entrega da Declaração Modelo 22 do IRC do exercício de 2019, e que o não cumprimento dessa obrigação implicaria a emissão de uma liquidação oficiosa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, a qual teria por base o maior dos seguintes valores:

- A matéria coletável determinada, com base nos elementos de que a administração tributária e aduaneira disponha, de acordo com as regras do regime simplificado, com aplicação do coeficiente de 0,75;

- A totalidade da matéria coletável do período de tributação mais próximo que se encontre determinada;

- O valor anual da retribuição mínima mensal.

  1. Os valores constantes da aplicação informática e-fatura e que permitiram a liquidação oficiosa são do conhecimento da Requerente, porquanto se trata de faturas por si emitidas que são obrigatoriamente comunicadas à AT, nos termos dos artigos 1.º, n.º 2, e 3.º do Decreto-Lei n.º 198/2012, de 24 de agosto, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro, aplicável ex vi artigo 125.º do Código do IRC.
  2. Assim, basta que a Requerente confirme os valores constantes das faturas, que comunicou à AT através da aplicação e-fatura, e que analise a notificação respeitante à demonstração da liquidação, para identificar e conhecer todo o percurso percorrido pela AT para chegar ao valor da liquidação, ficando a conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor da decisão e os factos que o levou a decidir num determinado sentido e não em qualquer outro.
  3. Considerando que (i) a Requerente declarou para efeitos de e-fatura ter obtido no exercício em apreço rendimentos líquidos de € 425.551,16  (Rendimentos brutos de € 447.871,38, deduzidos das Notas de Crédito no valor de € 22.320,00), os quais, multiplicados pelo coeficiente de 0,75 resultam no montante de 319.163,37 €, e que (ii) o valor anual da retribuição mínima mensal, para 2019, era de € 2.400,00 (€ 600,00  x 14 meses), concluiu a AT pelo apuramento do montante de € 319.163,37 como sendo o maior dos montantes para servir de base à liquidação oficiosa em discussão.
  4. Daqui resulta que a Requerente foi notificada previamente da intenção da AT em liquidar oficiosamente o imposto referente ao ano de 2019, indicando-lhe o normativo legal aplicável e os critérios para a sua quantificação, dando-lhe a oportunidade de evitar essa liquidação oficiosa mediante a entrega da sua Declaração Modelo 22 do IRC.
  5. Nos termos do n.º 2 do artigo 60.º da LGT, o direito de audição prévio à liquidação é dispensado quando a liquidação é efetuada oficiosamente, com base em valores objetivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito, como foi a situação dos presentes autos. Não existe, por conseguinte, qualquer preterição do direito de audição prévia consignado no artigo 60.º da LGT.
  6. Verifica-se ainda que do teor das liquidações consta a seguinte fundamentação: “Fica notificado(a) para, até à data limite indicada, efetuar o pagamento da importância apurada proveniente da liquidação oficiosa de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos, efetuada nos termos da alínea b) do n.º1 do artigo 90.º do Código do IRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, conforme nota demonstrativa junta”. Conclui-se que a Requerente, enquanto destinatário normal, ficou devidamente habilitada a conhecer as razões de facto e de direito que fundamentaram a liquidação oficiosa em crise, bem como os critérios que presidiram a sua quantificação.
  7. Não existe, por conseguinte, qualquer falta de fundamentação, uma vez que a simples enunciação da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, em face dos elementos que são do conhecimento da AT e também da própria Requerente, permite proceder à liquidação do imposto em falta e ao cálculo dos respetivos juros compensatórios.
  8. Mais, a demonstrar o cabal cumprimento do dever de fundamentação do ato tributário está o facto de a Requerente, no contencioso administrativo, assim como no presente contencioso arbitral, revelar conhecer bem o que estava em causa, possibilitando-lhe apresentar a sua defesa.
  9. A verificar-se uma situação de falta ou insuficiência da fundamentação notificada à Requerente, o que se admite somente por cautela e dever de patrocínio, cabia à Requerente solicitar a emissão da certidão prevista no artigo 37.º do CPPT. E não tendo a Requerente usado daquela faculdade conferida pela lei, forçoso se torna concluir que os ato de liquidação contém todos os elementos necessários à sua cabal compreensão e que o vício de fundamentação de que alegadamente padecia ficou sanado.

Da ilegalidade da liquidação por violação dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real

  1. Quando está em causa uma liquidação oficiosa emitida pela AT por não entrega atempada de uma declaração de rendimentos (no caso, a Declaração Modelo 22 do IRC), recai sobre o sujeito passivo o ónus de provar que os rendimentos presumidos não correspondem à realidade. No caso dos autos, a Requerente não faz essa prova, desde logo, porque não foi possível à Direção de Finanças de Lisboa ler o ficheiro “ SAF - T ”, em formato XML, que remeteu em sede de reclamação graciosa, conforme se refere na Informação posterior ao exercício do direito de audição elaborada por esses Serviços da AT. A reclamação graciosa apresentada pela Requerente foi indeferida precisamente por a Requerente não ter apresentado qualquer elemento que permitisse proceder à validação do resultado fiscal apurado no período de 2019.
  2. Na sequência do Ofício n.º ..., de 23/06/2022, da Divisão de Justiça Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, foi a Requerente notificada do projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa, no qual se referia que: “(…) na DM22 de 2019, apresentada pela reclamante, foi apurado o lucro tributável/matéria coletável no valor de 66.535,51 €, resultando IRC a pagar no total de 16.962,09 €. No entanto, não foram rececionados nos Serviços quaisquer comprovativos dos valores declarados.”
  3. Já na presente instância arbitral, e embora inteirada da dificuldade da AT em ler tal documento, a Requerente não apresenta esses elementos relativos à sua faturação. Os outros elementos que apresenta (Balancete analítico, Balanço e Demonstração de Resultados) mostram-se nitidamente insuficientes para comprovar o resultado tributável apurado no montante de € 66.535,51, porquanto os mesmos não se encontram acompanhados dos respetivos documentos de suporte.
  4. Mais, o facto da Declaração Modelo 22 do IRC ter sido apresentada fora dos prazos legais estipulados para o efeito tem como consequência a preclusão de presunção de veracidade que a mesma possuí ao abrigo do disposto no artigo 75.º da LGT, passando a recair sobre a Requerente o ónus de prova dos factos nelas inscritos. De referir que, nos termos do n.º 1 do artigo 74.º da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
  5. No caso dos autos, constata-se que a Requerente não forneceu o necessário suporte documental para, nos termos dos artigos 74.º e 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT, satisfazer o ónus da prova dos factos, em termos que permitam à AT dar cumprimento ao dever que lhe é exigido de proceder à análise, verificação e controlo dos valores declarados, como se encontra expresso no n.º 1 do artigo 16.º em conjugação com o artigo 123.º, ambos do Código do IRC.
  6. Face ao exposto, por não terem sido apresentados os necessários elementos de suporte aos registos contabilísticos efetuados pelo sujeito passivo, conclui-se não ser possível validar o resultado tributável mencionado na Declaração Modelo 22 do IRC apresentada pela Requerente com referência ao exercício de 2019.

Da prova testemunhal

  1. A questão em discussão nos autos prende-se com a quantificação do resultado tributável do exercício de 2019, não estando em discussão quaisquer outras circunstâncias relativas ao contexto em que se dá a emissão das liquidações oficiosa de imposto e de juros compensatórios, não se afigurando, por conseguinte, a utilidade da pretendida inquirição, a qual não se destina a comprovar a matéria de facto a demonstrar através de prova documental.
  2. Ainda que a prova testemunhal pretendida se destinasse a aquilatar da quantificação do ato tributário, a mesma sempre teria de pressupor uma prova minimamente objetiva e de natureza documental, sendo a inquirição um mero complemento dessa prova principal, sob pena de a AT incorrer em violação da estrita legalidade a que está vinculada no exercício dos seus poderes de natureza meramente administrativa, com risco de usurpação do poder judicial.
  3. Sucede, justamente, e com o devido respeito por opinião contrária, que a Requerente não apresentou à AT os documentos de suporte dos seus registos contabilísticos (nomeadamente de cópias das faturas de custos suportados e dos proveitos obtidos), sendo esta prova documental a prova que se entende essencial no âmbito procedimento em questão.
  4. Da prova testemunhal produzida, a qual contextualiza o porquê de a Requerente não ter cumprido a obrigação declarativa que sobre si impendia, não resulta demonstrado que o valor tributável para o exercício de 2019 é no montante de € 16.962,09.
  5. Os vícios que possam afetar a decisão proferida em sede de reclamação graciosa não são minimamente suscetíveis de afetar a validade do ato tributário que a antecede justamente por se tratar de um vício que está a jusante do ato reclamado.

Da liquidação de juros compensatórios

  1. Do n.º 1 do artigo 102.º do Código do IRC e do n.º 1 do artigo 35.º da LGT resulta que os juros compensatórios integram a própria divida de imposto, com o qual são conjuntamente liquidados, e contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correção ou deteção da falta que motivou o retardamento da liquidação.
  2. Mais se acrescenta que o cálculo destes juros compensatórios e respetivos fundamentos foi dado a conhecer ao sujeito passivo na Demonstração de Liquidação n.º 2021... e respetiva nota de compensação n.º 2021... .

Em 30/04/2023, o Tribunal Arbitral notificou a Requerente para indicar os factos sobre os quais incidira a inquirição das testemunhas arroladas. A Requerente apresentou essa indicação no seu requerimento de 10/05/2023.

Por Despacho Arbitral de 12/05/2023, foram as Partes notificadas da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, que foi inicialmente agendada para dia 07/06/2023, e posteriormente adiada, a pedido da Requerente, e por Despacho Arbitral de 29/05/2023, para dia 27/06/2023. Neste dia, pelas 10h30, teve lugar o depoimento de parte do legal representante da Requerente, B... (“Legal Representante da Requerente”), e a inquirição das testemunhas C..., economista e contabilista certificado (“Testemunha A”), e D..., economista e contabilista certificado (“Testemunha B”).

Ouvidos os depoimentos, o mandatário da Requerente ditou para a ata o seguinte requerimento:

“A Requerente requere que o Tribunal Arbitral notifique a Ordem dos Contabilistas Certificados no sentido de proceder a uma peritagem em relação à contabilidade do seu exercício de 2019, Declaração Modelo 22 e ao resultado fiscal dela decorrente, em confronto com a liquidação oficiosa objeto do pedido de pronuncia arbitral, ao abrigo dos artigos 467.º do CPC e 13.º do CPPT, ex vi artigo 29.º do RJAT, incluindo o princípio da tributação do lucro real que decorre do artigo 104.º da CRP. Mais requerer que o Tribunal se digne a notificar a AT atento o mesmo princípio e disposição constitucional e, bem assim, atento o princípio do inquisitório, ex vi artigo 29. º do RJAT, para que possa indicar quais os elementos que estejam em falta para a boa decisão da causa, para além dos que já estão juntos ao processo, nomeadamente os que se indicam como documentos 10 e 11 dos artigos 86 e 87 do pedido de pronúncia arbitral.”

Após breve conferência do Coletivo e ouvida a representante da Requerida, o Tribunal Arbitral ditou para a ata o seguinte despacho:

“Ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo e do princípio da livre determinação das diligências de produção de prova necessárias, estatuídos nas alíneas c) e e) do artigo 16.º do RJAT, o Tribunal indefere o requerimento mediante o qual a Requerente requereu uma peritagem da Ordem dos Contabilistas Certificados, por entender que a mesma é desnecessária à luz do objeto do processo e dos documentos juntos aos autos.

O Tribunal Arbitral indefere também o segundo requerimento apresentado oralmente pela Requerente, por considerar que os elementos de prova solicitados pela Requerente são também desnecessários à luz dos documentos 10 e 11 juntos ao PPA.”

Considerando o princípio da descoberta da verdade material, o Tribunal Arbitral solicitou a colaboração da Requerente no sentido de juntar aos autos a Modelo 22 de IRC dos exercícios de 2017, 2018, 2020 e 2021, até ao dia 04-07-2023. Por último, o Tribunal notificou a Requerente e a Requerida para, de modo simultâneo, apresentarem alegações escritas até 14/07/2023.

A Requerente juntou as Declarações Modelo 22 do IRC relativas aos períodos de 2018, 2021 e 2022 em 04/07/2023.

A Requerente e Requerida apresentaram as respetivas alegações em 13/07/2023 e 14/07/2023, respetivamente.

Em 13/09/2023, o Tribunal Arbitral prorrogou o prazo do artigo 21.º, n.º 1, do RJAT, por dois meses, com fundamento na complexidade de algumas das questões de direito relevantes para a boa decisão da causa.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º do RJAT).

O PPA apresentado em 03/01/2023 é tempestivo, porquanto apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, a contar de 07/10/2022 (dia seguinte à data em que a Requerente se considerou notificada do ato de indeferimento da reclamação graciosa contestada), nos termos do artigo 102.º, n.º 1, alínea b), do CPPT e do artigo 279.º do Código Civil.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

Não há nulidades ou outra matéria de exceção a conhecer, passando-se à análise do mérito da causa.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

Factos provados

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos, que se julgam provados:

  1. A Requente é uma sociedade comercial por quotas, com início de atividade em novembro de 2009, que tem como atividade principal a construção civil, reabilitação, conservação e manutenção de edifícios, a compra e venda de imóveis, e a revenda dos imóveis adquiridos para esse fim, com o CAE 41200 (cf. alegado no artigo 61.º do PPA, facto não contestado pela Requerida).
  2. A Requerente é sujeito passivo do regime geral de IRC (cf. alegado no artigo 62.º do PPA, facto não contestado pela Requerida).
  3. Na Declaração Modelo 22 do IRC relativa ao período de 2018, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 63.364,18, e imposto a pagar de € 14.786,01 (cf. Modelo 22 do IRC n.º..., de 07/06/2019, junta pela Requerente aos autos em 04/07/2023).
  4. Relativamente ao período de 2019, a Requerente declarou, para efeitos de e-fatura, um rendimento líquido de € 425.552,16, correspondendo este montante ao rendimento bruto de € 447.871,38, deduzidas notas de crédito no valor de € 22.163,37 (cf. alegado pela Requerida no ponto 17 da Resposta, facto não controvertido pela Requerente).
  5. Do Balanço da Requerente a 31/12/2019 extrai-se o seguinte:

 

(cf. Documento 13 junto ao PPA).

  1. Da Demonstração de Resultados da Requerente, relativa ao período de 2019, extrai-se o seguinte:

 

(cf. Documento 14 junto ao PPA).

  1. Em 2019 e 2020, a Requerente recorria aos serviços da contabilista Sra. Dra. E... para, entre o mais, proceder à entrega das Declarações Modelo 22 do IRC (cf. depoimento do Legal Representante da Requerente).
  2. A Sra. Dra. E... adoeceu de forma grave em 18/05/2020 (durante a pandemia do COVID-19), tendo vindo a falecer a 25/05/2020 (cf. certidão de óbito junta ao PPA como Documento 3, e depoimento do Legal Representante da Requerente).
  3. Neste período temporal decorria o prazo legal para entrega da Modelo 22 do IRC de 2019, não tendo a Declaração Modelo 22 do IRC da Requerente sido apresentada no prazo legal (cf. admitido pela Requerente no artigo 68.º do PPA).
  4. Com o falecimento da Sra. Dra. E..., a contabilidade da Requerente passou a ser assegurada pelo Sr. Dr. F... (marido da falecida contabilista) e pela Sra. Dra. G..., que tinham na sua posse os elementos contabilísticos necessários para o efeito (cf. referido nos artigos 69.º e 74.º do PPA, e depoimento do Legal Representante da Requerente).
  5. Em julho de 2020, a Requerente teve conhecimento de que a mãe do Sr. Dr. F... veio também a falecer, acabando este por se ver compelido a deslocar-se a Cabo Verde para tratar do funeral da mãe e demais aspetos relacionados com o óbito (cf. referido nos artigos 70.º e 71.º do PPA, depoimento do Legal Representante da Requerente e Testemunha B).
  6. A declaração Modelo 22 do IRC do exercício de 2020 não foi entregue, de forma voluntária e tempestiva, pela Requerente (cf. admitido no artigo 75.º do PPA, e Testemunha A).
  7. Em 22/12/2021, a Requerente foi notificada da liquidação oficiosa de IRC n.º 2021 ... e da liquidação dos juros compensatórios n.º 2021..., relativas ao período de 2019, no valor global de € 67.898,37:

 

 

 

(cf. Documento 2 junto ao PPA).

  1. O valor contido nesta liquidação oficiosa como “matéria coletável não isenta” (€ 319.163,37) foi calculado pela AT com base no rendimento líquido apurado através da informação fornecida pela Requerente para efeitos de e-fatura (€ 425.552,16), o qual foi multiplicado pelo coeficiente de 0,75 (cf. alegado pela Requerida no ponto 17 da Resposta, facto não controvertido pela Requerente).
  2. O valor contido nesta liquidação oficiosa como “matéria coletável não isenta” (€ 319.163,37) e o valor liquidado (€ 67.898,37) não estão em conformidade com os valores que resultariam dos documentos contabilísticos da Requerente (cf. Balanço e Demonstração de Resultados do período de 2019 juntos pela Requerente como Documentos 13 e 14, Declarações Modelo 22 do IRC dos anos de 2018, 2021 e 2022 juntas aos autos pela Requerente em 04/07/2023, e Testemunha A).
  3. Em 17/01/2022, a Requerente submeteu, através do seu novo contabilista, o Sr. Dr. C..., a declaração Modelo 22 do IRC relativa ao exercício de 2019, da qual constava um lucro tributável de € 66.535,51 e imposto a pagar de € 16.962,09, tendo o Sr. Dr. C... tido acesso aos documentos contabilísticos necessários apenas no final do ano de 2021 (cf. Documento 4 junto ao PPA, depoimento do Legal Representante da Requerente, e Testemunha A).
  4. Em 04/02/2022, a Requerente foi notificada pela AT do seguinte Ofício:

 

(cf. Documento 5 junto ao PPA).

  1. A Requerente deduziu reclamação graciosa contra a liquidação oficiosa de IRC n.º 2021..., juntamente com a respetiva liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., emitidas com referência ao exercício de 2019, no montante total de € 67.898,37 (cf. Documento 6 junto ao PPA).
  2. Na Declaração Modelo 22 do IRC relativa ao período de 2021, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 49.587,71, e imposto a pagar de € 11.127,89, tendo sido coadjuvada pelo seu novo contabilista, o Sr. Dr. C... (cf. Modelo 22 do IRC n.º..., de 06-06-2022, junta pela Requerente aos autos em 04/07/2023, e Testemunha A).
  3. Na Declaração Modelo 22 do IRC relativa ao período de 2022, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 20.831,16, e imposto a pagar de € 870,88, tendo também sido coadjuvada pelo seu novo contabilista, o Sr. Dr. C... (cf. Modelo 22 do IRC n.º..., de 05-06-2023, junta pela Requerente aos autos em 04/07/2023, e Testemunha A).
  4. Em 27/06/2022, através do Ofício n.º ..., de 23/06/2022, foi a Requerente notificada do projeto de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022... para, querendo, exercer o direito de audição prévia (cf. Documento 7 junto ao PPA).
  5. Em 22/07/2022, no exercício do direito de audição prévia, a Requerente solicitou a realização de diligências complementares de prova, incluindo a inquirição de testemunhas, e juntou os seguintes documentos: Balancete do ano de 2019 e ficheiro informático SAF-T, em formato XML, este último por correio eletrónico (cf. Documentos 8, 9 e 10 juntos ao PPA, e cf. referido na decisão de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022..., junta ao PPA como Documento 1).
  6. Neste requerimento, a Requerente disponibilizou-se para produzir prova adicional: “Caso a Administração tributária não considere suficientes os elementos contabilísticos agora disponibilizados, para efeitos de controlo do resultado fiscal apurado na declaração modelo 22 de IRC submetida pela aqui Requerente no passado dia 17 de Janeiro de 2022, a Requerente manifesta, desde já, total abertura para disponibilizar os elementos adicionais que a Administração tributária julgue necessários para o efeito” (cf. Documento 9 junto ao PPA).
  7. Em 25/07/2022, a AT informou (por correio eletrónico) que não conseguia visualizar o conteúdo do ficheiro informático SAF-T enviado pela Requerente (cf. email junto ao PPA como Documento 11, e cf. referido na decisão de indeferimento da reclamação graciosa com o n.º ...2022..., junta ao PPA como Documento 1).
  8. No dia 27/07/2022, a Requerente enviou (por correio eletrónico) novamente o ficheiro SAF-T (cf. email junto ao PPA como Documento 11).
  9. Pelo Ofício n.º ..., de 03/10/2022, foi a Requerente notificada do ato de indeferimento da reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., com fundamento no facto de a Requerente não ter apresentado “qualquer elemento, que permitisse proceder à validação do resultado fiscal apurado”, “tal como lhe competia nos termos do n.º 1 do art.º 74 da LGT, conforme se pode ler no texto do mesmo:

 

 

 

 

(cf. Documento 1 junto ao PPA).

  1. No dia 28/11/2022, a Requerente, reconhecendo as divergências referidas pela AT nos termos da decisão referida no ponto anterior, procedeu à respetiva correção do balancete analítico, balanço analítico e demonstração de resultados, e apresentou a Informação Empresarial Simplificada (IES) referente ao exercício de 2019 (cf. Documentos 12, 13, 14 e 15 juntos ao PPA).
  2. O PPA que deu origem aos presentes autos foi apresentado em 03/01/2023.

 

Factos não provados

Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

Fundamentação da fixação da matéria de facto

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e nos documentos juntos pelas Partes, incluindo o processo administrativo, e na prova produzida na reunião do artigo 18.º do RJAT realizada em 27/06/2023, designadamente, nas declarações de parte produzidas pelo B... (Legal Representante da Requerente), e na inquirição de duas testemunhas arroladas pela Requerente (Testemunhas A e B).

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo sujeito passivo, conforme n.º 1 do artigo 596.º e n.ºs 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do CPC, aplicáveis ex vi alíneas a) e e) do artigo 29.º do RJAT, e consignar se a considera provada ou não provada, conforme o n.º 2 do artigo 123.º do CPPT.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal Arbitral baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme o n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g., força probatória plena dos documentos autênticos, conforme o artigo 371.º do Código Civil) é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o princípio da livre apreciação. 

O Legal Representante da Requerente revelou a especial dificuldade de ver tratadas as questões fiscais após a morte da contabilista, a Sra. Dra. E..., bem como o acesso aos documentos contabilísticos necessários à tramitação das obrigações fiscais com o Sr. Dr. F... . As Testemunhas A e B revelaram profundo conhecimento da situação que levou ao atraso na entrega da Declaração Modelo 22 do IRC da Requerente relativa ao período de 2019, e da situação tributária da Requerente no mesmo período. Os intervenientes demonstraram conhecimento direto dos factos, tendo os respetivos depoimentos sido realizados de forma cabal, sem reservas nem qualquer contradição.

O depoimento da Testemunha A, contabilista responsável pela submissão da Declaração Modelo 22 do IRC da Requerente com referência ao ano de 2019, auxiliou e complementou a prova documental relativa à situação contabilística e contributiva da Requerente (designadamente, o Balanço e a Demonstração de Resultados do período de 2019 juntos pela Requerente como Documentos 13 e 14), tornando claro e evidente que o valor contido na liquidação emitida pela AT ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC como “matéria coletável não isenta” (€ 319.163,37), e o valor liquidado (€ 67.898,37), não refletem a verdadeira situação contributiva da Requerente.

Também as Declarações Modelo 22 do IRC dos anos de 2018, 2021 e 2022 (juntas aos autos pela Requerente em 04/07/2023) reforçaram a conclusão a que o Tribunal Arbitral chegou relativamente à situação contributiva da Requerente: relativamente ao período de 2018, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 63.364,18, e imposto a pagar de € 14.786,01; relativamente ao período de 2021, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 49.587,71, e imposto a pagar de € 11.127,89; relativamente ao período de 2022, a Requerente declarou um lucro/matéria tributável de € 20.831,16, e imposto a pagar de € 870,88. O lucro/matéria tributável assumido pela AT e subjacente à liquidação de IRC oficiosa (€ 319.163,37) e o valor de imposto liquidado (€ 66.535,51) não têm qualquer similitude com os correspondentes valores dos períodos de tributação de 2018, 2021 e 2022. O mesmo não se pode dizer dos montantes incluídos na Declaração Modelo 22 do IRC apresentada pela Requerente com referência ao ano de 2019, da qual consta um lucro tributável de € 66.535,51 e um imposto a pagar de € 16.962,09.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

  1. MATÉRIA DA DIREITO

§1. Questões decidendas

Face à posição assumida pelas Partes, vertidas nas respetivas peças processuais, cabe ao Tribunal Arbitral apreciar e decidir as seguintes questões:

  1. Da falta de fundamentação do ato de liquidação de IRC contestado;
  2. Da violação do princípio do inquisitório e do dever de descoberta da verdade material no decurso do procedimento administrativo;
  3. Do erro na quantificação do rendimento subjacente à liquidação de imposto;
  4. Dos juros indemnizatórios.

 

§2. Da falta de fundamentação do ato de liquidação de IRC contestado

A liquidação contestada foi emitida oficiosamente pela AT, por a Requerente não ter apresentado a Declaração Modelo 22 do IRC dentro do prazo legal, e com base nos elementos de que a AT dispunha (cf. artigo 59.º, n.º 1, do CPPT), incluindo os elementos declarados pela Requerente para efeitos de IVA (constantes do sistema do e-Fatura). A Requerente alega que a liquidação de IRC contestada é ilegal, devendo ser anulada, por não se encontrar fundamentada nos termos legalmente exigidos.

É inquestionável que a AT tem o dever de fundamentar os atos que afetem os direitos ou os legítimos interesses dos contribuintes, em conformidade com o princípio plasmado no n.º 3 do artigo 268.º da CRP e acolhido no artigo 77.º da LGT. De acordo com a CRP, “os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”. Segundo a LGT, “a decisão do procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária” (cf. artigo 77.º, n.º 1); “a fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo” (cf. artigo 77.º, n.º 2).

Interessa também referir jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo relativamente à fundamentação dos atos tributários:

“a doutrina e a jurisprudência têm vindo exaustivamente a repetir que a fundamentação há-de ser expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; clara, permitindo que através dos seus termos se apreendam os factos e o direito com base nos quais se decide; suficiente, possibilitando ao contribuinte um conhecimento concreto da motivação do ato; e congruente, de modo que a decisão constitua a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação” (cf. Acórdão de 10/09/2014, processo n.º 01226/13).

“o tribunal tem de quedar-se pela formulação do juízo sobre a legalidade do acto sindicado em face da fundamentação contextual integrante do próprio acto, estando impedido de valorar razões de facto e de direito que não constam dessa fundamentação, quer estas sejam por ele eleitas, quer sejam invocados a posteriori” (cfr. Acórdão 28/10/2020, processo n.º 02887/13.8BEPRT).

“é importante reter que os atos tributários carecem de fundamentação, a qual consiste numa declaração formal, externa ou explícita, ou seja, numa manifestação exterior consubstanciada num discurso expresso num texto, não bastando que resulte implicitamente da atuação administrativa e tal discurso tem de ser contextual, expresso e externado pelo autor do ato por forma a dar a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as circunstâncias concretas, a motivação funcional do ato, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro, permitindo àquele optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do ato ou a sua impugnação.

Diga-se ainda que não é de admitir a fundamentação à posteriori, apenas sendo de atender à fundamentação contextual, ou seja, aquela que se integra no próprio ato, pois que, praticado um ato com determinada fundamentação, a apreciação contenciosa da sua legalidade tem de se fazer em face dessa mesma fundamentação” (cfr. Acórdão 15/05/2013, processo n.º 01429/12).

“A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores tem consagrado o entendimento de que um acto se encontra suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática. É também pacificamente aceite que não preenche a exigência legal de fundamentação o recurso a meras fórmulas tabelares que não esclareçam devidamente a motivação de facto e de direito que presidiu ao acto da administração. Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática. Acresce dizer, na senda do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11.12.2007, recurso 615/04, in www.dgsi.pt «que a lei exige uma exposição apenas sucinta dos fundamentos da decisão a fundamentar; que, por isso, não deve ser um “máximo” o conteúdo exigível da declaração fundamentadora; e que o grau de fundamentação há-de ser o adequado ao tipo concreto do acto e das circunstâncias em que o mesmo foi praticado, de molde a satisfazer a divergência existente entre a posição da Administração Fiscal e do contribuinte.” (cf. Acórdão de 06/12/2010, processo n.º 667/10).

um acto está fundamentado sempre que o administrado, como destinatário normal, ficar devidamente esclarecido acerca das razões que o determinaram estando, consequentemente, habilitado a impugná-lo convenientemente, não tendo, todavia, a fundamentação de ser exaustiva mas acessível” (cfr. Acórdão do STA, de 02/02/2006, proferido no processo n.º 1114/05).

“(…) as exigências de fundamentação não são rígidas, variando de acordo com o tipo de acto e as circunstâncias concretas em que este foi proferido: o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo do seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.

Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração na determinação do acto. E, por isso, a insuficiência, a obscuridade e a contradição da motivação equivalem a falta de fundamentação (art. 125º nº 2 do CPA), por impedirem uma cabal apreensão do iter volitivo e cognoscitivo que determinou a Administração a praticar o acto com o sentido decisório que lhe conferiu.” (cfr. Acórdão de 12/03/2014, processo n.º 01674/13).

Acresce que o Tribunal Arbitral deve atender à especificidade das circunstâncias concretas do caso, e à condição do destinatário da fundamentação, quanto ao conhecimento de facto que já possui sobre a situação em que se encontra (cf. Decisão Arbitral de 07-10-2016, processo n.º 109/2016-T). É que a fundamentação é um conceito relativo, devendo ser aferida caso a caso, tendo em conta as circunstâncias que levaram à prática do ato e o conhecimento que delas tem o seu destinatário que lhe permitem apreender as razões que o determinaram.

Considerando este enquadramento legal e jurisprudencial, cumpre apreciar a fundamentação da liquidação de IRC aqui em crise:

Fica notificado(a) para, até à data limite indicada, efetuar o pagamento da importância apurada proveniente da liquidação oficiosa de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos, efetuada nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC, por falta de entrega da declaração de rendimentos, conforme nota demonstrativa junta”,

Não restam dúvidas que a Requerente foi informada do preceito legal subjacente à emissão da liquidação de imposto ora em crise. Relativamente ao rendimento que a AT assumiu para efeitos desta liquidação, sublinhe-se que a AT utilizou a informação disponibilizada pela Requerente no sistema e-fatura, informação esta que o Tribunal Arbitral não poderá deixar de considerar ser do conhecimento da Requerente. Aliás, deveria a Requerente ter assumido que a AT se baseou na informação por si disponibilizada no sistema e-Fatura.

Conclui-se, assim, que a Requerente teve conhecimento dos factos e das disposições legais que resultaram na emissão oficiosa da liquidação de IRC contestada. Nestes termos, improcede o vício de falta de fundamentação invocado pela Requerente.

 

§3. Da violação do princípio do inquisitório e do dever de descoberta da verdade material no decurso do procedimento administrativo

A Requerente alega que a AT violou o princípio do inquisitório e o dever de descoberta da verdade material no decorrer do procedimento de reclamação graciosa, porquanto ignorou tanto o ficheiro SAF-T enviado pela Requerente (contendo toda a documentação contabilística necessária à determinação da situação contributiva da Requerente) e recusou a produção de prova testemunhal oferecida pela Requerente.

Tal como resulta da matéria dada como provada, a Requerente enviou o ficheiro SAF-T por correio eletrónico em 22/07/2022. Quando informada que a AT não conseguia aceder ao dito ficheiro SAF-T (por correio eletrónico de 25/07/2022), a Requerente enviou novamente o ficheiro SAF-T por correio eletrónico (em 27/07/2022). A Requerida alega que os seus serviços não receberam este último e-mail da Requerente e que não tiveram acesso ao ficheiro SAF-T em causa. Contudo, tendo a Requerente junto aos autos cópia do email de 27/07/2022 e, assim, provado que reenviou o ficheiro SAF-T pela segunda vez, cumpria à Requerida explicar (e provar) as circunstâncias que justificam a não consideração do mesmo na decisão final de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pela Requerente.

Considerada toda a factualidade referida, e tendo em conta que o ficheiro SAF-T em apreço se apresentaria relevante para que a AT lograsse, como se impõe, diligenciar para apurar o rendimento real da Requerente, não resta ao Tribunal Arbitral senão concluir que, ao não efetuar diligências para aceder ao conteúdo do ficheiro SAF-T em apreço (i.e., ao ignorar os elementos de prova oferecidos pelo sujeito passivo com o objetivo de comprovar a sua situação tributária no âmbito de procedimento de reclamação graciosa), a AT violou o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material expressamente consagrados no artigo 58.º da LGT (“A administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”).

O Douto Supremo Tribunal Administrativo tem sido consistente relativamente ao dever da AT considerar a informação fornecida pelo sujeito passivo no âmbito de procedimento administrativo encetado quando o sujeito passivo não apresenta a Declaração Modelo 22 do IRC no prazo legalmente estabelecido, conforme se pode ler no sumário do Acórdão de 13/07/2022, processo n.º 0499/11.0BELRS:

“Nos casos em que o sujeito passivo não apresenta a declaração de rendimentos, a AT tem o poder-dever de promover a liquidação oficiosa provisória do imposto à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS, para evitar que dessa falta (independentemente das sanções aplicáveis pela violação dos deveres acessórios declarativos a que possa dar lugar) resulte uma vantagem futura para o sujeito passivo inadimplente. Porém, é dever da AT inteirar-se, por via do exercício dos seus poderes inspetivos, da real situação económica do sujeito passivo, sobretudo quando este apresenta, mesmo que através de reclamação graciosa, elementos comprovativos da sua concreta situação tributária.”

O mesmo entendimento foi expresso no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 29/09/2022, processo n.º 252/08.8 BELRS:

“Tendo sido fornecidos elementos pelo contribuinte que põem em causa a matéria coletável da liquidação oficiosa de IRC, a Administração Fiscal, desde que em tempo, deve realizar as diligências necessárias ao apuramento da mesma, de forma a garantir a tributação do rendimento real.”.

Por último, cabe referir que, se a AT teve dúvidas quanto à quantificação da matéria tributável da Requerente do período de 2019, e tendo a Requerente oferecido prova testemunhal juntamente com prova documental relevante (e.g., o ficheiro SAF-T supra referido), deveria a AT ter comtemplado que as testemunhas oferecidas pela Requerente poderiam auxiliar a AT no apuramento da situação contributiva da Requerente. Neste sentido, pode ler-se o seguinte no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 07/05/2013, processo n.º 06418/13:

“O princípio do inquisitório, está consagrado no âmbito do procedimento gracioso tributário, no artº.58, da L.G.Tributária, de acordo com o qual devendo a A. Tributária proceder às diligências que considere convenientes para a descoberta da verdade material. O princípio do inquisitório justifica-se pela obrigação de prossecução do interesse público imposta à actividade da Administração Tributária (artº.266, nº.1, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.) e é corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actividade (artº.266, nº.2, da C.R.P., e artº.55, da L.G.T.). Este dever de imparcialidade, reclama que a Fazenda Pública procure trazer ao procedimento todas as provas relativas à situação fáctica em que vai assentar a decisão, mesmo que elas tenham em vista demonstrar factos cuja prova seja contrária aos interesses patrimoniais da Administração. Concluindo, este princípio, obriga a administração tributária a realizar todas as diligências que se afigurem necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material. Quer isto dizer, que todas as diligências devem ser efectuadas ainda que as mesmas não tenham sido requeridas, não dependendo por isso de um qualquer impulso procedimental do sujeito passivo.”

Face ao exposto, conclui-se que a AT violou o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material (consagrados no artigo 58.º da LGT).

Todavia, ao contrário do pretendido pela Requerente, tal vício não resulta na anulação da liquidação de IRC ora em crise, mas apenas na anulação da decisão de indeferimento proferida no procedimento de reclamação graciosa com o n.º ...2022... .

De facto, a atuação da AT no decorrer de procedimento da reclamação graciosa apenas é relevante para aferir da legalidade da decisão de indeferimento que conclui o mesmo. Os vícios procedimentais verificados apenas nesta fase (como sejam a violação do dever de audição prévia, de fundamentação, ou de descoberta da verdade material) não resultam na anulação da liquidação de imposto, mas apenas na anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contestada e na emissão de nova decisão por parte da AT que supra os ditos vícios procedimentais. Neste sentido, pode ler-se no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 25/06/2009, processo n.º 0345/09:

“A ocorrência de um vício de forma no procedimento de reclamação graciosa, como é o caso da falta de audição prévia, não projecta efeitos anulatórios sobre o acto tributário de liquidação que o antecede, antes conduzindo à anulação da respectiva decisão de indeferimento da reclamação graciosa”.

Por Acórdão de 12/10/2011, proferido no processo n.º 0463/11, o Supremo Tribunal Administrativo clarificou o seguinte:

“(...) deduzida impugnação judicial do indeferimento de uma reclamação graciosa, das duas uma:

a) ou o tribunal confirma o indeferimento, mantendo-se o acto tributário impugnado;

b) ou o tribunal anula esse indeferimento, nomeadamente por vício procedimental; neste caso, o tribunal tem de apreciar os vícios imputados ao acto de liquidação, uma vez que a impugnação tem por objecto, tanto a decisão da reclamação, como os vícios do próprio acto de liquidação.”

No mesmo sentido: Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 30/10/2019, processo n.º 02453/05.1BEPRT 0402/18; de 15/10/2018, processo n.º 0542/08; de 12/10/2016, processo n.º 0427/16; de 07/03/2012, processo n.º 01123/11; de 16/11/2011, processo n.º 0723/11; de 12/10/2011, processo n.º 0463/11; de 16/06/2004, processo n.º 01877/03. O Tribunal Central Administrativo Norte adere também a este entendimento, conforme explanado no Acórdão de 19/06/2019, proferido no processo n.º 00643/10.4BEPNF. Com relevância para a decisão da causa, interessa também sublinhar o disposto no sumário do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04/06/2020, processo n.º 74/07.3BESNT:

I. No âmbito do procedimento tributário, a Administração Tributária está sujeita ao princípio do inquisitório (cfr. artigo 58.º da LGT), o qual é um corolário do dever de imparcialidade que deve nortear a sua actuação.

II. Não tendo a Administração Tributária investigado e analisado os elementos trazidos ao procedimento pelo contribuinte, sem que fundadamente os considere dispensáveis, a sua actuação colide com o princípio do inquisitório, consubstanciando um vício procedimental, que é fundamento de ilegalidade da decisão que recaiu sobre a reclamação graciosa e susceptível de determinar a sua anulação.

III. A impugnação judicial de indeferimento de reclamação graciosa tem por objeto imediato a decisão da reclamação e por objeto mediato os vícios imputados ao acto de liquidação.

IV. Os vícios do procedimento de reclamação graciosa apenas implicam a anulação da decisão de indeferimento; nunca a anulação do acto tributário de liquidação anteriormente praticado e que não configura o objeto imediato da impugnação judicial.

V. Anulado o indeferimento da reclamação por vício procedimental desta, cabe ao tribunal conhecer dos restantes vícios imputados ao acto tributário, uma vez que este é competente para conhecer em tal impugnação, quer do indeferimento da reclamação, quer dos vícios imputados ao acto tributário.”

Em conformidade com esta jurisprudência, à qual aderimos, e considerando que o conteúdo do ficheiro SAF-T influenciaria a decisão sobre a reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., e que a AT violou o princípio do inquisitório e o seu dever de descoberta da verdade material (expressamente consagrados no artigo 58.º da LGT) ao não diligenciar para aceder ao mesmo, o Tribunal Arbitral declara ilegal e anula o ato de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022... (objeto imediato do PPA).

Interessa, de seguida, apreciar os vícios imputados à liquidação oficiosa de IRC n.º 2021 ... e à liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ... (objeto mediato do PPA).

 

§4. Do erro na quantificação do rendimento subjacente à liquidação de imposto

As declarações do sujeito passivo apresentadas fora do prazo legal não gozam da presunção de verdade e boa-fé contida n.º 1 do artigo 75.º da LGT (cf. artigo 75.º, n.º 2, alínea a), da LGT), sendo livremente valoradas, conforme confirmado pelos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03/02/2021, processo n.º 0416/09.7BECBR, e de 04/05/2016, processo n.º 0415/15, e no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 13/10/2022, processo n.º 1968/12.0 BELRS.

Isto significa que a Declaração Modelo 22 do IRC apresentada pela Requerente fora de prazo (em 17/01/2022), com referência ao período de 2019, não goza da presunção de verdade e boa-fé contida no n.º 1 do artigo 75.º da LGT. Mas não significa que o apuramento do lucro/matéria coletável subjacente à mesma Declaração Modelo 22 do IRC apresentada fora de prazo esteja incorreta, ou não reflita a real situação contributiva da Requerente.

Em conformidade com o disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, cabia à Requerente demonstrar que o valor da liquidação de IRC contestada se encontra efetivamente incorreto. Isto porque, tal como alegado pela Requerida, quando está em causa uma liquidação oficiosa emitida pela AT por não entrega da Declaração Modelo 22 do IRC (ao abrigo do n.º 1 do artigo 90.º do Código do IRC), recai sobre o sujeito passivo o ónus de provar que os rendimentos assumidos pela AT não correspondem à realidade.

Tal como o Supremo Tribunal Administrativo esclareceu num Acórdão recente, para a liquidação oficiosa emitida pela AT ser anulada, é imprescindível que o sujeito passivo, à luz do ónus da prova que sobre ele impende, ofereça prova, em sede de reclamação graciosa, recurso hierárquico ou impugnação judicial (leia-se, também, processo arbitral), de que a referida liquidação sofre do vício de excesso na quantificação do rendimento, não sendo suficiente ao sujeito passivo apresentar uma declaração de rendimentos posterior (que não goza da presunção de veracidade do n.º 1 do artigo 75.º da LGT), ou invocar uma violação do princípio do inquisitório, ou do princípio da tributação das empresas fundamentalmente pelo rendimento real (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03/02/2021, processo n.º 0416/09.7BECBR).

Sucede que, no caso sub judice, na convicção do Tribunal Arbitral, a liquidação de IRC n.º 2021... emitida pela AT sofre efetivamente do vício de excesso na quantificação do rendimento, tendo o Tribunal valorado para o efeito (i) a prova documental junta aos autos pela Requerente (designadamente, o Balanço e Demonstração de Resultados do período de 2019, e as Declarações Modelo 22 do IRC relativas a 2018, 2021 e 2022), bem como (ii) o depoimento do contabilista que preparou a Declaração Modelo 22 do IRC apresentada pela Requerente com referência ao período de 2019 (Testemunha A), que confirmou a veracidade dos valores constantes da mesma. Note-se que, in casu, a prova testemunhal constitui um elemento auxiliar ou de comprovação complementar à prova documental, que permanece a prova preponderante relativamente à situação contabilística da Requerente.

Pelo exposto, e tendo o Tribunal Arbitral concluído que a Requerente ofereceu elementos probatórios idóneos e credíveis para cumprir o ónus da prova que sobre ela impendia, resta ao Tribunal Arbitral declarar ilegal e anular (a) a liquidação de IRC n.º 2021..., por evidente excesso na quantificação do rendimento que influenciou a liquidação oficiosa em crise, a qual não se pode manter, e (b) a liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., emitida com base na liquidação de imposto agora anulada.

§5. Dos juros indemnizatórios

Nas suas alegações, a Requerente alega que procedeu ao pagamento de € 67.898,37, correspondente ao valor da liquidação de IRC n.º 2021... e da liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., e peticiona o pagamento de juros indemnizatórios sobre esse montante.

Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial (ou impugnação arbitral), que houve “erro imputável aos serviços” de que resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido. In casu, o erro de que padece as liquidações contestadas é imputável aos serviços da AT, e desse erro resultou a liquidação de um montante de imposto e juros compensatórios indevido (€ 67.898,37).

Caso a Requerente tenha efetivamente procedido ao pagamento do montante contido na liquidação de IRC n.º 2021 ... e na liquidação de juros compensatórios n.º 2021 ..., fica a AT obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante de € 67.898,37, contados desde a data do pagamento indevido por parte da Requerente até à data da emissão da nota de crédito relativa aos juros indemnizatórios por parte da AT, de harmonia com o disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT, e do artigo 61.º do CPPT.

 

  1. DECISÃO

Nestes termos, este Tribunal Arbitral decide julgar integralmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

  1. Declarar ilegal e anular (i) a decisão de indeferimento que recaiu sobre a reclamação graciosa autuada com o n.º ...2022..., (ii) a liquidação de IRC n.º 2021..., e (iii) a liquidação de juros compensatórios n.º 2021... .
  2. Caso a Requerente tenha efetivamente procedido ao pagamento do montante contido na liquidação de IRC n.º 2021... e na liquidação de juros compensatórios n.º 2021..., no valor global de € 67.898,37, fica a AT obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios sobre esse montante, contados desde a data do pagamento indevido por parte da Requerente até à data da emissão da nota de crédito relativa aos juros indemnizatórios por parte da AT.
  3. Condenar a AT no pagamento integral das custas arbitrais do presente processo, em razão do decaimento.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

Tendo em consideração o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do CPC, artigo 97.º-A, n.º 1, do CPPT, e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 67.898,37.

 

  1. CUSTAS ARBITRAIS

Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, e de acordo com o artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o valor das custas do processo arbitral em € 2.448,00, a cargo da Requerida, em razão do decaimento.

Notifique-se

 

Lisboa e CAAD, 13 de Novembro de 2023

 

Os Árbitros,

Presidente,

 

(Prof.ª Doutora Rita Correia da Cunha)

 

Vogal,

 

(Dr. Arlindo José Francisco)

 

Vogal,

(Prof.ª Doutora Marisa Almeida Araújo)