Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 649/2016-T
Data da decisão: 2017-09-14  IRC  
Valor do pedido: € 87.182,00
Tema: IRC - Tributações autónomas - Empresarialidade - Presunção
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Acórdão Arbitral

I – Relatório

1.      A contribuinte Sociedade “Grupo A…, SGPS, S.A.”, com o NIPC … (doravante "Requerente"), apresentou, no dia 28 de Outubro de 2016, um pedido de constituição de Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante "RJAT"), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante "AT" ou "Requerida").

2.      A Requerente vem pedir a pronúncia arbitral sobre a ilegalidade das liquidações de

IRC nº 2016…, com imposto a pagar no valor de €436.302,81, e nº 2016…, com imposto a pagar no valor de €312.081,55, bem como a correspondente demonstração de acerto de contas nº 2016… . A Requerente pede a anulação de tais actos tributários e o reembolso das quantias indevidamente pagas, acrescidas de juros indemnizatórios. Cumulativamente, requer a anulação da decisão de indeferimento parcial que recaiu sobre a Reclamação Graciosa nº …2016… apresentada contra aqueles actos tributários, na parte relativa à tributação autónoma sobre encargos com veículos ligeiros de passageiros, uma correcção no montante de €87.182,00. Arrola uma testemunha.

3.      O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 11 de Novembro de 2016.

4.      Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes dessa designação em 28 de Dezembro de 2016.

5.      O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 16 de Janeiro de 2017; foi-o regularmente e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º, 6º, n.º 1, e 11º, n.º 1, do RJAT (com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro).

6.      Nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 17º do RJAT, foi a AT notificada, em 16 de Janeiro de 2017, para apresentar resposta.

7.      A AT apresentou a sua Resposta em 20 de Fevereiro de 2017, e o Processo Administrativo em 10 de Março de 2017.

8.      Nessa Resposta a AT alega, em síntese, a total improcedência do pedido da Requerente, e opõe-se à produção de prova testemunhal, que considera inútil.

9.      Em requerimento apresentado em 24 de Fevereiro de 2017, a Requerente tomou posição quanto aos artigos 9º a 28º da Resposta da Requerida, no que respeita à vedação de uma decisão arbitral com recurso à equidade.

10.  O Despacho Arbitral de 1 de Março de 2017 dispensou a prova testemunhal e solicitou das partes a produção de alegações escritas.

11.  Em Requerimento de 13 de Março de 2017, a Requerente solicitou a reconsideração do Despacho Arbitral de 1 de Março de 2017, insistindo na diligência de produção de prova testemunhal – ou o aproveitamento, em alternativa, da prova testemunhal já obtida num outro processo.

12.  A Requerente apresentou em 17 de Março de 2017 as suas alegações escritas.

13.  O Despacho Arbitral de 20 de Março de 2017 deferiu a pretensão da Requerente, determinando a realização da diligência de inquirição da testemunha arrolada, admitindo a produção de alegações orais complementares.

14.  Em Requerimento de 28 de Março de 2017 a Requerente solicitou a alteração da data da audiência de julgamento.

15.  Em Requerimento de 29 de Março de 2017 a Requerida veio novamente manifestar a sua oposição à realização da diligência de inquirição da testemunha arrolada pela Requerente, solicitando que, correspondendo à sugestão da própria Requerente, se aproveite a gravação de prova testemunhal já obtida num outro processo.

16.  A Requerida apresentou em 30 de Março de 2017 as suas contra-alegações escritas.

17.  Por Despacho Arbitral de 31 de Março de 2017 foi designado um outro dia para a audiência de julgamento, rejeitando-se a hipótese de aproveitamento da gravação de prova testemunhal já obtida num outro processo, e mantendo a possibilidade de produção de alegações orais complementares.

18.  Em Requerimento de 12 de Abril de 2017 a Requerente solicitou que tais alegações complementares pudessem ser produzidas por escrito.

19.  Por Despacho Arbitral de 12 de Abril de 2017 foi determinado que a forma a ser seguida nas alegações complementares seria objecto de decisão na audiência de julgamento.

20.  Por Despachos Arbitrais de 13 de Abril e de 26 de Abril de 2017 foi designada a data de 2 de Junho de 2017 para a audiência de julgamento.

21.  Em Requerimento de 10 de Maio de 2017 a Requerida veio solicitar a junção, aos autos, de cópia da decisão proferida no processo arbitral nº 497/2016-T, o que foi deferido por Despacho Arbitral de 10 de Maio de 2017.

22.  Em Requerimento de 18 de Maio de 2017 a Requerente, reagindo ao Despacho Arbitral de 10 de Maio de 2017, solicitou o aditamento de um nome ao rol de testemunhas.

23.  Por Despacho Arbitral de 18 de Maio de 2017 foi admitido esse aditamento ao rol de testemunhas apresentadas pela Requerente, invocando-se o artigo 598º, 2 do CPC ex vi artigo 29º, 1, e) do RJAT.

24.  Em Requerimento de 23 de Maio de 2017 a Requerida veio opor-se ao teor do Despacho Arbitral de 18 de Maio de 2017, mormente por considerar inaplicável o artigo 598º, 2 do CPC, por ultrapassagem dos prazos previstos nessa norma.

25.  Por Despacho Arbitral de 26 de Maio de 2017 foi determinado que a questão suscitada no Requerimento da Requerida de 23 de Maio de 2017 seria objecto de decisão na audiência de julgamento.

26.  No dia 2 de Junho de 2017 teve lugar a audiência de julgamento.

27.  Nela, o Tribunal decidiu ouvir a segunda testemunha arrolada pela Requerente, não obstante reconhecer ter sido ultrapassado o prazo previsto no artigo 598º, 2 do CPC, entendendo prevalecer o interesse da descoberta da verdade material e invocando a liberdade de determinação das diligências de prova que lhe é conferida pelo artigo 16º, e) do RJAT. Ouvidas as partes, o Tribunal entendeu que o artigo 598º, 2 do CPC confere a qualquer das partes o direito de aditarem o rol de testemunhas dentro do prazo indicado na norma, mas não impede que, fora desse prazo, esse rol seja aditado por iniciativa do próprio tribunal – não por reconhecimento de uma faculdade das partes que ainda subsista para lá do prazo, mas por iniciativa do próprio Tribunal (apoiado nos artigos 99º, 1 da LGT, 13º, 1 do CPPT e 16º, c) e e) do RJAT).

28.  Na audiência de julgamento procedeu-se à inquirição da primeira testemunha arrolada, B... . A inquirição foi interrompida e o seu reinício foi agendado para o dia 27 de Junho de 2017.

29.  No dia 27 de Junho de 2017 prosseguiu a audiência de julgamento, com a inquirição das testemunhas B… e C… .

30.  Durante a audiência foi requerido pela Requerente, com a oposição expressa da Requerida, o desenvolvimento de diligências suplementares com vista ao esclarecimento de dúvidas suscitadas pelo documento nº 12 junto aos autos. Tal Requerimento foi indeferido por Despacho Arbitral ditado para a acta da audiência.

31.  A audiência prosseguiu com a produção, por ambas as partes, de alegações orais complementares.

32.  O Tribunal fixou a data de 15 de Setembro de 2017 para prolação da decisão arbitral.

33.  O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões, prévias ou subsequentes, prejudiciais ou de excepção, que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se reunidas as condições para ser proferida decisão final.

34.  A AT procedeu à designação dos seus representantes nos autos e a Requerente juntou procuração, encontrando-se assim as Partes devidamente representadas.

35.  As Partes têm personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

 

II – Fundamentação: a matéria de facto

II. A. Factos que se consideram provados e com relevância para a decisão

1)       A Requerente, que reveste a forma jurídica de Sociedade Anónima, tem por objecto a gestão de participações sociais.

2)       A Requerente é sociedade dominante de um grupo de sociedades ao qual é aplicável o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).

3)       Na sua actividade normal, a Requerente utiliza viaturas de serviço que fazem parte da sua frota automóvel própria, e os encargos com essas viaturas estão relacionados com a manutenção da sua produtividade e com a obtenção de rendimentos tributáveis.

4)       A propriedade e a utilização dessas viaturas resultam de uma ponderação económica que abarca todas as alternativas (transportes públicos, de aluguer, viaturas de 2 lugares) – dada a função específica dessas viaturas no desenvolvimento da actividade, e dos rendimentos tributáveis, de algumas sociedades que integram o grupo empresarial encabeçado pela Requerente.

5)       No exercício de 2013, a despesa com viaturas ligeiras de passageiros do grupo empresarial encabeçado pela Requerente ascendeu a €2.739.891,00, resultando daí uma tributação autónoma de € 346.999,00, de acordo com o mapa seguinte:

 

6)       Dessas viaturas, algumas são regularmente utilizadas na actividade empresarial das sociedades D…, E…, H…, G…, F… e I…– tendo características próprias (em especial de capacidade e volumetria da bagageira) e estando, salvo em casos justificados de descaracterização, identificadas exteriormente com o logotipo dessas sociedades.

7)       Do montante total de € 2.739.891,00 de encargos com veículos, a Requerente escolheu submeter apenas os € 852.757,84 relativos a viaturas de serviço, deixando de fora as despesas com viaturas que não evidenciavam a necessária “empresarialidade” (por não ficarem guardadas em parque privativo, por não terem logotipo ou serem usadas à margem de um termo de utilização escrito), sendo dessa base que resultou o cálculo do valor de € 87.182,00 de tributação autónoma a desconsiderar eventualmente (aproximadamente 25% do total da tributação autónoma com viaturas da Requerente para o exercício de 2013).

8)       Nesse conjunto não se encontra nenhuma viatura de uso “exclusivamente particular”, como as viaturas “de gama média” e “de gama alta” que são, por acordo, utilizadas por directores e administradores das empresas do grupo.

9)       A afectação das viaturas em apreço por cada uma das sociedades é a que resulta do seguinte mapa:

       

 

10)   As viaturas são objecto de uma gestão centralizada, em termos de logística, de utilização, de consumos, de facturação, de segurança, e aqueles que as utilizam conhecem os respectivos termos de utilização, que são explícitos e documentados.

11)   A utilização das viaturas para fins particulares, autorizada excepcionalmente naqueles termos de utilização, nunca foi solicitada nem concedida em 2013.

12)   Foi concebido um procedimento de controlo de entradas e saídas dos respectivos parques de estacionamento relativamente à maior parte das “viaturas de serviço”.

13)   Quase todas as viaturas são instrumentais na realização de produções rigidamente planificadas em termos de localizações e horários, pelo que a ausência ou atraso de cada uma delas é facilmente constatado.

14)   A Requerente entregou em 27 de Maio de 2014, relativamente ao IRC do exercício de 2013, declaração de rendimentos, pagando o montante autoliquidado em 30 de Maio de 2014.

15)   Em 21 de Julho de 2014 foi emitida a correspondente liquidação nº 2014… .

16)   Na sequência de acções inspectivas (Ordem de Serviço OI2015…, de 9 de Novembro de 2015), e em substituição daquela primeira liquidação, a Requerente recebeu em 30 de Março de 2016 a liquidação de IRC nº 2016…, com imposto a pagar no valor de € 436.302,81, e em 26 de Setembro de 2016 a liquidação nº 2016…, com imposto a pagar no valor de € 312.081,55, bem como a correspondente demonstração de acerto de contas nº 2016… .

17)   A Requerente apresentou, em 19 de Maio de 2016, Reclamação Graciosa nº …2016… contra estas liquidações, tendo essa Reclamação Graciosa sido parcialmente deferida (na parte relativa à tributação autónoma sobre despesas de representação, no montante de €124.221,00) e parcialmente indeferida, na parte relativa à tributação autónoma sobre encargos com veículos ligeiros de passageiros, com uma correcção no montante de €87.182,00.

18)   O projecto de decisão quanto à Reclamação Graciosa foi notificado à Requerente no dia 17 de Junho de 2016, mas a Requerente optou por não exercer o seu direito à audição prévia.

19)   O indeferimento da Reclamação Graciosa foi notificado à Requerente em 3 de Agosto de 2016.

20)   A Requerente pagou em 30 de Maio de 2014 a quantia de € 1.303.293,50, correspondente aos montantes liquidados nos actos em apreço.

Os factos dados por provados resultam da convicção do tribunal, assente no exame crítico dos documentos do processo e na consideração dos depoimentos das testemunhas, que se mostraram conhecedoras dos factos e depuseram com isenção.

II.B. Factos que se consideram não provados

Com base nos elementos documentais disponibilizados nos autos e consensualmente aceites pelas partes, e com base na prova testemunhal apresentada na audiência de julgamento, verifica-se que, com interesse para a decisão da causa, nada mais se provou.

 

 

III – Fundamentação: a matéria de Direito

III. A. Posição da Requerente

a)      A Requerente sustenta que suportou indevidamente o montante de €87.182,00 a título de tributação autónoma, relativa a despesas incorridas com viaturas ligeiras de passageiros que não deviam ter sido sujeitas a tal tributação, dada a indispensabilidade dessas despesas para a obtenção do rendimento tributável, e a sua natureza exclusivamente empresarial.

b)      A Requerente começa por rebater a argumentação que a AT apresentara no seu indeferimento parcial da Reclamação Graciosa, em especial a referente à questão da “empresarialidade” dos encargos e à sua alegada não-dedutibilidade.

c)      A Requerente enfatiza, em contraposição, a natureza “anti-abuso” da tributação autónoma, daí retirando o argumento, já consagrado em jurisprudência arbitral, de que a tributação autónoma estabelece uma presunção ilidível de empresarialidade “parcial” (o que equivale ao conceito de não-“empresarialidade plena”), podendo não ser sujeita a tributação autónoma a despesa em relação à qual se faça prova dessa empresarialidade plena, afastando o escopo normativo de combate ao “abuso”.

d)      A Requerente sustenta que a redacção do artigo 88º, 3 e 5 do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos, deixa inequívoco – para a maioria da doutrina e da jurisprudência – que se trata de evitar que sejam apresentadas como despesas dedutíveis, como se fossem indispensáveis para a formação do lucro tributável, como se fossem plenamente “empresariais”, ou “produtivas”, aquilo que não passa de meras remunerações e benefícios de colaboradores do sujeito passivo, e que portanto devem ser confinadas à esfera estritamente “pessoal” dos beneficiários efectivos (nomeadamente uma distribuição “camuflada” de lucros).

e)      Tratar-se-ia, pois, de proceder a uma triagem dentro de uma fronteira nebulosa entre as esferas empresarial e pessoal, de modo a tornar claro o que é que, contribuindo para a formação do lucro tributável dentro de uma estrita lógica empresarial, de relação directa com a actividade normal do sujeito passivo, deve ser sujeito a tributação em sede de IRC, e o que é que não deve ser sujeito a IRC, aquilo que ilegitimamente (por não ter relação directa com a actividade normal do sujeito passivo) diminuiria a receita fiscal.

f)       A tributação autónoma incidiria, assim, em situações de empresarialidade “parcial”, ou seja, em situações em que, não sendo discernível uma utilização exclusivamente empresarial, a tributação visaria em primeiro lugar dissuadir situações de abuso na área de sobreposição entre despesas empresariais e despesas particulares (o que estabeleceria o paralelo com a génese da tributação autónoma, ligada às despesas confidenciais ou não-documentadas).

g)      A ser assim, sustenta a Requerente, a prova da total empresarialidade das despesas, nomeadamente a prova de uma utilização exclusivamente empresarial das viaturas ligeiras de passageiros, bastaria para, de acordo com a ratio legis, afastar a tributação autónoma – ficando ilidida a presunção de “empresarialidade parcial” em que aquela tributação assenta.

h)      Mais, acrescenta a Requerente, a simples admissão da possibilidade de prova da empresarialidade das despesas – uma admissão que a Requerente sustenta já ter ocorrido repetidamente por parte da AT – só pode significar, e implicar, que a regra do artigo 88º, 3 do CIRC assenta numa presunção, que essa presunção é ilidível através da referida prova, e que a ilisão da presunção tem como resultado a não-aplicação da tributação autónoma.

i)       Lembra ainda a Requerente que a regra no Direito português é a da susceptibilidade de ilisão, nos termos do artigo 350º do Código Civil ou do artigo 73º da LGT; e que a presunção que subjaz à tributação autónoma faz todo o sentido na medida em que seria difícil, senão impossível, à AT analisar a empresarialidade, ou falta dela, em todas as situações a que se aplica aquela tributação autónoma – obtendo-se, com essa presunção, uma distribuição do ónus da prova que recai sobre quem se encontra em melhores condições de comprovar a natureza das despesas.

j)       Por contraste, o entendimento subjacente ao indeferimento da Reclamação Graciosa consubstancia, na tese da Requerente, uma compreensão peculiar sobre o que seja esta tributação autónoma: seria um simples imposto sobre a despesa, e um imposto destacado do IRC ou do IRS, tributando a despesa separadamente do rendimento (não obstante inserir-se sistematicamente nos Códigos daqueles impostos, o que denota que o seu regime deve ser interpretado no âmbito mais geral do regime dos impostos sobre o rendimento).

k)      Neste outro entendimento não haveria, pois, sequer uma presunção, ou sequer uma presunção inilidível: verificada uma despesa, ela seria per se tributável, sem mais – o que, no entender da Requerente, violaria os objectivos do regime da tributação, do IRC, e até os objectivos mais gerais, constitucionais, de respeito pela igualdade tributária e pela capacidade contributiva.

l)       A Requerente argumenta no sentido da comprovação da essencialidade das despesas com as viaturas ligeiras de passageiros referenciadas nos autos, apreciadas do ponto de vista empresarial das sociedades D…,  E…, H…, G…, F… e I… e ainda no sentido de haver um controlo efectivo da utilização das viaturas, capaz de afastar hipóteses de utilização daquelas para fins privados – insistindo a Requerente que os gastos incorridos com os veículos em apreço não constituíram vantagem particular para aqueles que os utilizaram.

m)   Por fim, argumentando que o indeferimento parcial da Reclamação Graciosa assenta num erro sobre os pressupostos de facto e de direito imputável aos serviços da AT, a Requerente invoca o seu direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º, 1 da

LGT.

n)      No seu requerimento apresentado em 24 de Fevereiro de 2017, a Requerente opôs-se à alegação da Requerida, apresentada na sua resposta, de que estaria a fazer-se um apelo implícito a uma decisão segundo a equidade – um caminho vedado a um tribunal arbitral.

o)      Nas suas Alegações, a Requerente retoma os argumentos expendidos no seu Pedido

Inicial.

III. B. Posição da Requerida

a)      Na sua resposta, a AT mantém o entendimento de que as liquidações controvertidas consubstanciam uma correcta aplicação do Direito, não enfermando de qualquer vício.

b)      A Requerida sustenta que a leitura que a Requerente faz do artigo 88º, 3 do CIRC, na versão em vigor à data dos factos, não tem qualquer apoio na letra da lei – violando com isso regras mínimas de interpretação, tal como elas estão estabelecidas no artigo 9º do Código Civil.

c)      Com efeito, a Requerida enfatiza que a leitura do artigo 88º, 3 e 6 do CIRC não autoriza dúvidas, ao enumerar tipos de veículos, claramente identificados, que se sujeitam a tributação autónoma, e aqueles que são excluídos de tal tributação: os veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica, aqueles afectos à exploração de serviço público de transportes, e, destes, aqueles destinados a serem alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo.

d)      Entende a Requerida que, ao fazer constantemente apelo à sua actividade comercial e ao contexto de utilização dos veículos dentro do âmbito dessa actividade, a Requerente sugere a aplicação do artigo 88º, 3 do CIRC em termos totalmente desligados da letra das normas, que não admitem essas considerações na sua previsão, pelo que substancialmente a Requerente estaria a fazer um apelo à equidade, à adaptação de uma regra a um caso concreto – uma via que é expressamente vedada a um Tribunal Arbitral.

e)      Por outro lado, entende a Requerida que a Requerente não fez prova mínima dos factos que, no entender da própria Requerente (mas não da Requerida), ilidiriam a presunção de “empresarialidade parcial” – nomeadamente no que respeita à utilização “exclusivamente empresarial” dos veículos; sendo que, pelo contrário, a Requerida entende que a pouca prova disponível não afasta a possibilidade de uso parcialmente privado das viaturas.

f)       Quanto à articulação das normas, a Requerida não aceita que o critério da essencialidade das despesas, que conduziria à aplicação do artigo 23º do CIRC, seja reforçado com um requisito de empresarialidade “integral” para se afastar a tributação autónoma nos termos do artigo 88º do CIRC.

g)      Nem aceita a extrapolação que se faz da cláusula anti-abuso para o regime das tributações autónomas, para se argumentar com a existência de uma alegada ponderação do conceito de “empresarialidade parcial” que seria, por ele próprio, uma via autónoma de consumação de abusos – quando, sustenta a Requerida, as tributações autónomas são hoje uma realidade polimórfica, orientada para finalidades muito diversificadas, incluindo objectivos extra-fiscais (nomeadamente ambientais), e não uma só finalidade.

h)      A Requerida insiste em afastar da interpretação do artigo 88º, 3 e 6 do CIRC qualquer ideia de presunção ou de ficção legal, e menos ainda qualquer referência, directa ou oblíqua, à “empresarialidade” das despesas com veículos; até porque, sublinha, uma tal presunção determinaria uma redundância probatória a cargo do sujeito passivo: ele teria que provar a indispensabilidade das despesas para efeitos da aplicação do artigo 23º do CIRC, e novamente a “empresarialidade” das mesmas despesas para efeito do regime do artigo 88º do CIRC – ao mesmo tempo que uma destas características (a “empresarialidade”) está evidentemente pressuposta na outra (a indispensabilidade).

i)       A Requerida termina a sua resposta sustentando que a prova testemunhal é inútil, dada a prova documental existente, e atento o princípio do artigo 393º, 2 do Código Civil que exclui a prova testemunhal em circunstâncias em que a prova plena esteja assegurada por documentos, solicitando, em consequência, que tal meio de prova seja dispensado.

j)       Em Contra-Alegações, a Requerida sintetiza os argumentos já expendidos na sua Resposta.

III.C. Questões a decidir

I                     Não tendo sido suscitada matéria de excepção, o Tribunal pode apreciar a questão substancial que é objecto do presente litígio: a da tributação autónoma dos encargos suportados pela Requerente com viaturas ligeiras de passageiros.

II                  Trata-se essencialmente de optar por uma de duas linhas de interpretação do regime legal aplicável:

a)      Aquela que entende que a letra da lei, e a própria ratio legis, vedam qualquer exclusão de tributação autónoma relativamente a encargos com viaturas daquele tipo que não esteja prevista literalmente no artigo 88º do CIRC, e nomeadamente qualquer exclusão assente na afectação exclusivamente empresarial daquelas viaturas;

b)      Aquela que entende que a afectação exclusivamente empresarial das viaturas, uma vez comprovada, afasta a tributação autónoma, porque esta se destina apenas a incidir:

a.       Seja em situações de uso “misto” das viaturas;

b.      Seja em situações em que, na ausência de comprovação daquela afectação empresarial exclusiva, possa presumir-se (e deva presumir-se, para prevenir e dissuadir abusos) que, atenta a natureza das referidas viaturas, elas são susceptíveis de um uso “misto”, ou seja, tanto empresarial quanto particular.

III-  Comecemos por atentar nos números relevantes do artigo 88º do CIRC, na redacção em vigor em 2013:

“3 – São tributados autonomamente à taxa de 10 % os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas cujo custo de aquisição seja igual ou inferior ao montante fixado nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica.

5     – Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6     – Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo, bem como as depreciações relacionadas com viaturas relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.”.

       

Esta redacção foi modificada em 2015, valendo a pena transcrevê-la para notarmos as diferenças introduzidas:

“3 - São tributados autonomamente os encargos efetuados ou suportados por sujeitos passivos que não beneficiem de isenções subjetivas e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, viaturas ligeiras de mercadorias referidas na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Código do Imposto sobre Veículos, motos ou motociclos, excluindo os veículos movidos exclusivamente a energia elétrica, às seguintes taxas:

a)  10 % no caso de viaturas com um custo de aquisição inferior a €25 000;

b) 27,5 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a €25 000, e inferior a €35 000;

c)  35 % no caso de viaturas com um custo de aquisição igual ou superior a €35 000.

5  - Consideram-se encargos relacionados com viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, nomeadamente, depreciações, rendas ou alugueres, seguros, manutenção e conservação, combustíveis e impostos incidentes sobre a sua posse ou utilização.

6  - Excluem-se do disposto no n.º 3 os encargos relacionados com:

a)    Viaturas ligeiras de passageiros, motos e motociclos, afetos à exploração de serviço público de transportes, destinados a serem alugados no exercício da atividade normal do sujeito passivo; e

b)   Viaturas automóveis relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no n.º 9) da alínea b) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.”

Convirá explicitar aquilo a que se refere esta solução do final do nº 6, agora alargada para abranger todos os encargos (e não somente as depreciações, como sucedia em 2013). Estabelece o artigo 2º, 3, b), 9) do CIRS, na redacção em vigor desde 2002:

“3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente [categoria A]: b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente: 9) Os resultantes da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro de órgão social de viatura automóvel que gere encargos para a entidade patronal, quando exista acordo escrito entre o trabalhador ou membro do órgão social e a entidade patronal sobre a imputação àquele da referida viatura automóvel”.

Trata-se, nesta norma do CIRS, da matéria da tributação daquilo que se designa por “benefícios marginais” (“fringe benefits”, ou “employee benefits”).

IV- Tem havido extensa ponderação sobre a natureza e alcance das tributações autónomas, polarizada nas duas linhas de interpretação já referidas. Da análise dos preceitos transcritos podemos retirar algumas conclusões:

1.      O uso privado de viaturas na titularidade de uma empresa não é objecto típico da tributação autónoma do artigo 88º, pois esse uso é considerado um rendimento do trabalho dependente, tributado em IRS, se ele resulta de um acordo que – subentende-se – atribui uma viatura de forma permanente, ou mesmo exclusiva, a um colaborador da empresa.

2.      No regime em vigor em 2013, essa situação era algo complexa e indefinida, visto que a sujeição principal a IRS da “remuneração acessória”, em que o uso dessas viaturas consistia, deixava ainda aparentemente sujeitas ao artigo 88º do CIRC todas as despesas com elas que não fossem as correspondentes à respectiva depreciação (artigo 88º, 6, “a contrario”, na redacção de 2013).

3.      Mas essas dúvidas seriam dissipadas com a total separação lograda com a redacção introduzida em 2015, que exclui expressamente da tributação autónoma as próprias “viaturas automóveis” – subentendendo-se, portanto, todas as despesas conexas com tais viaturas –: artigo 88º, 6, b) do CIRC.

4.      Significa isso, portanto que, quanto aos típicos “benefícios marginais” consistentes no uso permanente, por particulares, de veículos de empresas, a congruência do regime está agora assegurada, dissipando-se inúteis ambiguidades pretéritas:

a.       O uso privado, quando permanente – e documentado – deve ser tributado nos termos do artigo 2º, 3, b), 9) do CIRS, excluindo-se nesses casos a tributação autónoma;

b.      Subsistirão sujeitas à tributação autónoma as situações de uso privado não permanente, ou não documentado – ou seja, aquelas situações em que o uso privado, sendo possível (o que significa não ser excluído pela natureza das viaturas ou das circunstâncias da sua utilização empresarial), no entanto não foi objecto de uma afectação nãoempresarial permanente, ou documentada.

5.      O artigo 88º do CIRC servirá, assim, para cortar o “nó górdio” daquelas situações indefinidas, ou não documentadas, em que o uso privado possa ocorrer de forma tão relevante que venha a constituir situações parcialmente equivalentes a “benefícios marginais” de colaboradores da empresa, sem que possa fazer-se prova bastante, seja dessa situação, seja da situação oposta – da situação em que tal uso privado esteja excluído pelas circunstâncias de utilização dos veículos, ou pelas características desses veículos.

6.      E, na redacção de 2013, o artigo 88º também excluía da tributação autónoma certos veículos que, pelas suas características (especificamente por terem um custo de aquisição superior a um montante fixado por Portaria, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º), deixavam de corresponder ao padrão que abstractamente a lei tomava por adequado para admitir que essas viaturas tivessem um uso exclusivamente empresarial:

a.       Mais concretamente, ao impor um limite de valor máximo, a lei, já na redacção em vigor em 2013, tornava claro que só admitiria esse uso, em termos genéricos, em veículos ditos “de gama baixa”;

b.      Excluíam-se expressamente dessa triagem por “gamas” duas categorias, por razões diversas: 1) a dos veículos movidos exclusivamente a energia eléctrica – por razões extra-fiscais de política ambiental – ; 2) a das viaturas ligeiras de passageiros afectas à exploração de serviço público de transportes e destinadas a serem alugadas no exercício da atividade normal do sujeito passivo – porque precisamente aí se ilustra a “ratio” da norma, a de excluir de tributação autónoma aquelas despesas relativas a veículos que, pelas suas características ou pelas circunstâncias da sua utilização, não façam nascer o “nó górdio” de indefinição que deva ser resolvido pela espada “ad hoc” desta forma autónoma de tributação –.

7.      Como dissemos, ficava implícito, na redacção em vigor em 2013, que os veículos “de gama média” e “de gama alta” (entenda-se, aqueles com custo de aquisição superior a um montante fixado por Portaria, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º) deixavam de corresponder ao padrão que abstractamente a lei tomara por adequado para admitir que essas viaturas tivessem um uso exclusivamente empresarial, e por isso também quanto a esses a tributação autónoma não se aplicava: subentendia-se, nesse momento, que a lógica do regime aplicável remeteria as despesas com essas viaturas para os domínios da tributação dos “benefícios marginais”, ou seja para o IRS dos particulares a quem essas viaturas fossem distribuídas.

8.      Numa evolução bizarra, e não isenta de consequências graves para a legalidade e constitucionalidade das tributações autónomas, a partir de 2015 o regime do artigo 88º do CIRC passou a abarcar os veículos “de gama média” (com um custo de aquisição igual ou superior a € 25 000, e inferior a € 35 000) e os “de gama alta” (com um custo de aquisição igual ou superior a € 35 000), para além dos “de gama baixa” (com um custo de aquisição inferior a € 25 000), o que, entre outras, tem duas consequências preocupantes:

a.       Destrói a “ratio legis” do regime que, lembremo-lo, era o de resolver com um critério seguro as situações de persistente indefinição de uso (particular ou empresarial) de veículos, contornando as dificuldades de prova e dissuadindo as conexas possibilidades de abuso;

b.      Transforma a tributação autónoma num verdadeiro e próprio imposto sobre a despesa, na medida em que atende somente ao valor de aquisição das viaturas para, em função desse valor, estabelecer escalões de imposto. Mas, nessa transformação, perde o seu apoio sistemático, legal e constitucional. Com efeito, perguntar-se-á:

i.        Que faz um puro imposto sobre a despesa enxertado no regime de um imposto sobre o rendimento?

ii.      Como pode um imposto sobre a despesa sobreviver às especificidades que resultam da sua articulação com os impostos sobre o rendimento – nomeadamente, como pode ele resistir ao facto de estarem isentas de tributação autónoma muitas das despesas daqueles que optem pela tributação simplificada (artigos 73º, 2 do CIRS e 88º, 15 do CIRC)?

iii.    Como pode ele autonomizar-se como imposto sobre a despesa stricto sensu, se é a própria Lei que o veda (artigos 12º, 23º-A, 1, a) e 88º, 21 do CIRC)?

iv.    Como evitar a conclusão de que um tal imposto sobre a despesa padece de inconstitucionalidade formal, por violar o artigo 165º, 1, i) da Constituição, dado não ter havido uma lei de autorização para a criação de um novo imposto sobre a despesa, mas somente, nos termos do artigo 25º, 3 da Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro, uma autorização ao Governo para “tributar autonomamente em IRS e IRC” – o que é, por tudo o que vimos, algo de bem distinto?

9.      Mas voltemos ao texto do artigo 88º do CIRC, na redacção que vigorava em 2013 – antes, portanto, dessa grave “deriva legislativa” de desvirtuamento e ilegalização / inconstitucionalização das tributações autónomas.

V- Afastada a ideia de que houvesse, em 2013, insinuado no artigo 88º do CIRC qualquer tipo de tributação da despesa stricto sensu reportado a viaturas ligeiras de passageiros pela Requerente, parece-nos impor-se a via, hoje dominante na doutrina e na jurisprudência, mormente na jurisprudência arbitral[1], de que a linha de interpretação do quadro normativo aplicável é a que conclui que se trata de tributar situações de potencial uso “misto” de viaturas da empresa, em especial situações em que a ausência de comprovação adequada possa abarcar o efectivo uso “misto” de tais viaturas, ou até o seu uso exclusivamente particular, como puro “benefício marginal” indocumentado.

O que equivale a dizer que a prova de que existiu um uso exclusivamente empresarial, ou seja, um uso nem “misto” nem “exclusivamente privado”, mormente a prova de que as viaturas não eram, pela sua natureza nem pelas circunstâncias da sua utilização efectiva, susceptíveis de tal utilização “mista” ou “exclusivamente privada”, bastará para afastar a tributação autónoma das despesas relativas a esse tipo de uso.

Essa prova deve ser subordinada ao objectivo tributário dos impostos sobre o rendimento, em cujos Códigos o regime das tributações autónomas se integra totalmente (não havendo hoje dúvidas de que tal tributação não é um imposto distinto do IRC, mas um mero adicional deste); ou seja, o “uso exclusivamente empresarial”, cuja existência deverá apurar-se, terá que consistir na inequívoca afectação dos veículos, pelas suas características ou pela sua utilização efectiva, às actividades que constituem o objecto do sujeito passivo, às actividades que geram o seu rendimento tributável.

“Exclusivo” não significa, neste contexto, uma utilização que impeça todo e qualquer emprego particular do veículo, em termos absolutos e mecânicos, o que conduziria a uma devassa microscópica, segundo a segundo, metro a metro, das rotinas de utilização – uma monitorização que, se não fosse impossível, seria decerto lesiva tanto de direitos fundamentais como daquela margem de liberdade económica que o Direito Fiscal se vê genericamente obrigado a respeitar quando incide sobre realidades empresariais. “Exclusivo” será antes, e razoavelmente, o uso que impeça que toda e qualquer utilização particular, se e quando ocorrer, interfira na afectação dos veículos ao proeminente interesse económico da empresa; não podendo a Lei estabelecer critérios de “afectação exclusiva” que excedam aqueles que o próprio sujeito passivo, enquanto empresa, estabeleça e possa reclamar no seu próprio interesse – porque, se razoavelmente admitirmos que o objectivo empresarial típico é o da maximização do lucro, nenhum “ganho fiscal” justificará o desleixo na aplicação dos critérios de utilização exclusivamente empresarial dos veículos, quando esses critérios existam: não é pura e simplesmente lógico, ou razoável, incorrer-se em perdas de eficiência extensas apenas para recuperar, em sede tributária, uma pequena percentagem dessas perdas.

Com efeito, por mais relevância que o uso “exclusivamente empresarial” possa ter para efeitos da incidência da tributação autónoma, nada se compara ao interesse da própria empresa nesse uso – e, não esqueçamos, é no âmbito mais geral da obtenção do rendimento empresarial que toda esta matéria se enquadra.

Essa é uma razão acrescida para se abandonar a sindicância milimétrica da gestão da frota de veículos, que, ao contrário das aparências, estaria longe de ser a forma mais rigorosa e exigente de prova da empresarialidade da utilização dos veículos – sendo, pelo contrário, mais rigorosa se corresponder à formas normais de monitorização da rotina empresarial por parte do principal interessado no conhecimento da actividade dos seus agentes, que é a própria empresa.

Tudo está em apurar-se, pois, se existiam critérios de aferição, pela própria empresa, de tal uso “exclusivamente empresarial” dos veículos – e, no caso de existirem esses critérios, se está comprovada a observância deles em termos que possam incutir, no julgador, a convicção de que esses critérios eram genuínos, e que existia um interesse proeminente, e inequívoco, da empresa, na adstrição à conduta dos seus agentes a esse uso “exclusivamente empresarial”.

Uma observância que, no caso, se traduzirá na evidência de que algumas características das viaturas dificultavam um uso não “exclusivamente empresarial” (a sua identificação exterior com logotipos empresariais, por exemplo), ou de que estava montado um sistema de monitorização multidimensional do uso regular e adequado dos veículos (por exemplo, gestão central da frota, registos de movimentos, facturação de despesas, deslocações coordenadas de grupos de veículos a reclamar sincronização horária, escalas de utilização indiciadoras de deslocações curtas e frequentes na rotina diária, ou seja de um emprego “intensivo” desses factores de produção).

Se porventura esses critérios não existirem – ou, existindo, não houver comprovação razoável da sua observância em termos do funcionamento tendencialmente optimizador e maximizador da empresa –, então não restará senão admitir-se, não obstante a propriedade empresarial desses activos, a possibilidade de um uso “misto”, tanto particular como empresarial, em concorrência um com o outro na utilização de cada veículo, dadas as aptidões para tal uso que decorrem da sua natureza de viatura ligeira de passageiros “de gama baixa”.

E é nesse caso, e só nesse caso, que se justificará o corte do “nó górdio” da indefinição (com o seu potencial abusivo) através do emprego da espada “ad hoc” da tributação autónoma.

Assim sendo, em bom rigor – e ao contrário do que tem sustentado muita da doutrina e da jurisprudência acerca das tributações autónomas do artigo 88º do CIRC – não teve o legislador que lançar mão de qualquer presunção, que não era necessária; mas apenas que estabelecer, na previsão da norma, a restrição da incidência da tributação autónoma às situações que não sejam de uso “exclusivamente particular”, nem de uso “exclusivamente empresarial”, das viaturas ligeiras de passageiros adquiridas pela empresa – com o escopo precípuo de evitar que indefinições, ou difíceis comprovações, pudessem ocultar, de forma abusiva, usos particulares, mormente verdadeiros “benefícios marginais” indocumentados, dos quais resultasse um empolamento de custos em detrimento de um adequado e justo apuramento do rendimento tributável.

A presunção não era necessária, pois. Concordamos, neste ponto, com o voto de vencido formulado no acórdão proferido no Processo nº 628/2014, quando aí se afirma: “Trata-se antes de uma norma que, tendo subjacente um juízo presuntivo da dificuldade de controlo rigoroso de certos casos, opta por tipificar situações de aplicação de tributação autónoma, traduzidas, na prática, na redução do montante dos custos dedutíveis na determinação da matéria colectável.

A tributação autónoma incidirá assim supletivamente, na ausência de prova, seja de uso “exclusivamente particular”, seja de uso “exclusivamente empresarial” – embora não se possa excluir que o próprio sujeito passivo tome a iniciativa de fazer prova de um uso “misto” ou “não-exclusivo”, convocando directamente a aplicação da tributação autónoma. Mas a possibilidade de uma prova que afaste o regime supletivo é essencial para que uma tributação que, insiste-se, não é – nem podia sê-lo sem lesão ao sistema, sem ilegalidade ou sem inconstitucionalidade – uma tributação sobre a despesa, possa coadunar-se com os princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva.

Por outro lado, porque é dessa indefinição do uso efectivo que se trata na fundamentação do recurso à tributação autónoma, não pode, nem deve confundir-se a correspondente prova da “empresarialidade exclusiva” com uma outra prova, a da “essencialidade” de gastos e perdas que é reclamada pelo artigo 23º do CIRC, e que diz respeito, numa outra dimensão mais ampla, à determinação do lucro tributável do sujeito passivo[2].

VI-             De tudo o que precede, e do confronto com a matéria de facto que demos por provada, decorre a conclusão de que a Requerente fez prova bastante de que os encargos com as viaturas ligeiras de passageiros que estão em causa nos presentes autos não deviam ter sido sujeitos a tributação autónoma, porque essas viaturas foram, dentro dos mais estritos critérios razoavelmente exigíveis, objecto de uma utilização exclusivamente empresarial.

Insistamos que o conceito de “exclusivamente empresarial” não exige, e decerto não legitima, uma devassa microscópica da utilização das viaturas – e insistamos também que não é razoável assentarmos numa definição de “empresarialidade” que retire, aos utilizadores dos factores de produção de uma empresa, a mais ligeira margem de autonomia no desempenho das suas tarefas.

O que ficou abundantemente provado, e aqui releva, é que, quanto ao grupo de viaturas que a Requerente escolheu como idóneas para ilustrarem esse uso “exclusivamente empresarial”, elas estavam sujeitas a condições várias que inviabilizavam um uso particular que conflituasse com o uso empresarial: fosse pela sua identificação, fosse pelas suas características, fosse pela sua utilização conjunta em actividades coordenadas, fosse até pela sua relativa escassez face às solicitações operacionais, fosse ainda por uma combinação, em proporções diferentes, de várias destas condições. As lacunas detectadas numa das formas de monitorização (o registo de quilometragem nas entradas e saídas da garagem) representam uma insuficiência probatória mais do que colmatada pela sobreposição de elementos estruturais e circunstanciais reportados aos mesmos veículos e não desmentidos por aquelas lacunas.

Ficou provado, no caso, que se tratava de genuínas “viaturas de serviço”, indispensáveis para o funcionamento eficiente das empresas – e que, portanto, por implicação directa, qualquer uso que não fosse “exclusivamente empresarial” interferiria sensivelmente nessa eficiência, na optimização do funcionamento das empresas, na maximização do seu rendimento e do seu lucro.

Daí decorre, na mais elementar lógica, que o uso particular de viaturas destinadas a um uso exclusivamente empresarial, na medida em que rivalizasse com este, interferisse neste, o limitasse, se traduziria em prejuízos para as próprias empresas que sempre excederiam, em muito, qualquer valor que, com um tal emprego, se procurasse recuperar em termos de “planeamento fiscal”.

Insiste-se que a vantagem fiscal da não-incidência de tributação autónoma, por mais atraente que parecesse, seria sempre, por definição, muitíssimo menor do que a automutilação directa sobre os proventos da empresa que corresponderia a esse desleixo na monitorização, pela própria empresa, da utilização das suas viaturas.

O que nos reconduz, de novo, ao conceito de “utilização exclusiva” e ao correspondente “standard” de prova: não a utilização rígida e mecânica que recusa à confiança qualquer papel no desenvolvimento das relações contratuais; não a prova microscópica que nem a própria interessada é capaz de promover eficientemente.

Nada, no que ficou provado, demonstra que, na óptica da própria Requerente, o sistema efectivamente montado de acompanhamento e monitorização da utilização “exclusivamente empresarial” das viaturas em apreço tenha trazido prejuízo ao seu funcionamento – sem excluirmos que isso possa ter acontecido com outras viaturas que não estas, de entre aquelas que a Requerente optou por deixar fora da sua Reclamação Graciosa, e agora dos presentes autos.

Não se afigura curial que, ao invés, se possa exigir a uma empresa um tipo de monitorização que excede os critérios empresariais normais, e menos ainda que se requeira dela um “standard” de prova que, de tão onerosa, converteria tal prova em impossível ou em “diabólica”.

Conclui-se que a Requerente fez a prova possível, e logo a prova exigível dado o próprio escopo normativo “anti-abuso”, quanto ao uso “exclusivamente empresarial” das viaturas em apreço; e que, feita essa prova, daí decorre, de acordo com a linha interpretativa dominante (e, cremos, a única compatível com a legalidade e com a não inconstitucionalidade das tributações autónomas), a não-sujeição dos correspondentes encargos ao regime das tributações autónomas previstas, à data dos factos, no artigo 88º do CIRC.

VII-         Para lá da declaração da ilegalidade da liquidação, o Requerente peticiona ainda que lhe seja reconhecido o direito a juros indemnizatórios, matéria que se insere no âmbito das competências deste Tribunal, conforme expressamente prevê o nº 5 do artigo 24º do RJAT.

Trata-se de um efeito que decorre da procedência do pedido, na medida em que a anulação dos actos de liquidação torna indevido o anterior pagamento, pela Requerente, da totalidade da quantia liquidada nesses actos.

 

IV. Decisão

Em face de tudo quanto antecede, decide-se por maioria:

a)                 Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando ilegais os actos de liquidação de IRC nº 2016… e nº 2016…, bem como a correspondente demonstração de acerto de contas nº 2016…, referentes ao exercício de 2013, anulando esses actos de liquidação.

b)                 Julgar procedente o pedido de anulação da decisão de indeferimento parcial que recaiu sobre a Reclamação Graciosa nº …2016…, apresentada contra aqueles actos tributários, na parte relativa à tributação autónoma sobre encargos com veículos ligeiros de passageiros, condenando a Requerida ao reembolso da quantia correspondente de € 87.182,00.

c)                 Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, condenando a Requerida ao pagamento da quantia correspondente.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 87.182,00, nos termos do disposto no artigo 97.º-A do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária (RCPAT).

       

 

VI. Custas

Custas a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, dado que o presente pedido foi julgado procedente, no montante de € 2.754,00, nos termos da Tabela I do RCPAT, e em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT.

 

 

Lisboa, 14 de Setembro de 2017

 

Os Árbitros

 

 

José Baeta de Queiroz

 

Fernando Araújo

 

 

Sofia Cardoso

 

(vencido conforme declaração de voto)

       

 

 

Declaração de Voto Vencido

Voto em sentido contrário aos restantes Ilustres Colegas Árbitros, por discordar do sentido da linha de interpretação do regime legal aplicável na questão apreciada, com os fundamentos seguintes:

As tributações autónomas foram introduzidas na legislação fiscal portuguesa, nos códigos dos impostos sobre o rendimento, pela Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro.

 De acordo com o legislador, a criação da figura da “tributação autónoma” e a sua manutenção no sistema fiscal Português, visava evitar abusos em determinados tipos de despesas por parte das empresas e contribuintes, tendo como função/objetivo principal a obtenção de uma maior justiça fiscal.

As tributações autónomas (TA) têm sido, nos últimos anos, um dos temas mais discutidos pelo facto de frequentemente haver alterações nesta matéria, mas também pelo facto de tributar a despesa e não o rendimento das entidades.

As taxas de tributação autónoma encontram-se previstas no artigo 88º do CIRC. Esta tributação incide sobre determinados encargos suportados por sujeitos passivos de IRC, que pela sua natureza podem apresentar uma conexão mais ambígua na realização dos rendimentos sujeitos a tributação ou na manutenção da fonte produtora. Cada vez mais se procura, pela tributação autónoma dissuadir alguns excessos na recorrência deste tipo de encargos. Ao contrário do que sucede com a filosofia inerente às restantes disposições deste Código, não se tributa rendimento mas sim despesas ou gastos. No supra-citado artigo 88º do CIRC encontra-se prevista a tributação autónoma nomeadamente dos encargos com viaturas ligeiras de passageiros ou mistas.

De acordo com o número 3 do citado artigo, esta tributação aplica-se aos sujeitos passivos não isentos subjetivamente e que exerçam, a título principal, atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola; e abrange os encargos efetuados ou suportados, ou seja, os gastos registados na contabilidade e não apenas os fiscalmente dedutíveis.

No que se refere às tributações autónomas incidentes sobre os encargos relativos a viaturas ligeiras de passageiros, a única exceção prevista na lei diz respeito aos relacionados com viaturas afetas à exploração do serviço público de transportes, destinadas a serem alugadas no exercício de atividade normal do sujeito passivo, bem como as reintegrações relacionadas com viaturas relativamente às quais tenha sido celebrado o acordo previsto no número 9 da alínea b) do número 3 do artigo 2º do Código do IRS.

Esta exceção encontra-se consignada no número 6 do artigo 88.º do Código do IRC. Desta forma, o legislador, identifica inequivocamente as exceções que configuram usos estritamente profissionais, por serem viaturas indiscutivelmente utilizadas no desenvolvimento de uma atividade.

Assim e desta forma não me parece razoável, nem se me afigura legitimável, do ponto de vista estritamente fiscal, que, o número 3 do artigo 88º, não seja aplicado a outras situações que não estejam objetivamente excecionadas, cujas circunstâncias de uso, não afastam a tributação, mesmo que alegadamente, as viaturas se encontrem afetas a uma utilização exclusivamente empresarial.

Contudo e por outro lado, mesmo que, se entenda a possibilidade de rebater a presunção contida no do número 3 do artigo 88º, do CIRC, através da prova da empresarialidade das despesas, que a Requerente alega, entendo e ao contrário dos respetivos Ilustres Colegas Árbitros, que as provas apresentadas, não se revelam adequadas para demonstrar que as viaturas concorrem exclusivamente para a manutenção da atividade empresarial, nomeadamente por se apresentarem mapas de controlo de entradas e saídas de viaturas não devidamente preenchidos, além de que, no próprio termo de utilização das viaturas consta que: “o veículo cedido destina-se exclusivamente a ser utilizado ao serviço da empresa, podendo mediante autorização ser utilizado para fins particulares”.

 

A prova de empresarialidade constitui um expediente, não objetivamente verificável, por si só de comprovar, bem como, de controlar com rigor e, por isso mesmo, o espírito do legislador terá sido o de uniformização e de equilíbrio na redação dos números 3 e 6 do artigo 88º do CIRC, sendo que, no caso presente os documentos apresentados não evidenciam fiabilidade adequada.

A título conclusivo, o tema das tributações autónomas independentemente de poder ser considerado injusto, ou polémico, ou mesmo um abuso legislativo, é, no entanto, uma tributação universal, extensiva a todos os contribuintes, com exceções objetivamente previstas na legislação aplicável, o que impõe o cumprimento quer as viaturas sejam elemento principal para exercer a atividade, ou verificando-se ou não o caracter de empresarialidade dos gastos.  O certo é que tal será a situação normal de qualquer sujeito passivo de IRC que disponha de viaturas do tipo das referidas, a que acresce o facto de estarem identificados quais os setores que podem estar "isentos" desta obrigação fiscal.

 

Por tudo o que antecede, votei contra a decisão dos restantes árbitros no presente procedimento.

 

 

    (Sofia Cardoso)

 

 



[1] Veja-se as decisões dos Processos n.os 187/2013-T, 209/2013-T, 246/2013-T, 260/2013-T, 292-2013-T, 37/2014-T, 94/2014-T, 242/2014-T ou 497/2016-T.

[2] A distinção conceptual, e de planos, é exemplarmente estabelecida na decisão do processo nº 497/2016-T.