Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 739/2016-T
Data da decisão: 2017-11-21  IRS  
Valor do pedido: € 24.216,79
Tema: IRS - Tributação Conjunta - Perdas
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

 

 

  1. A…, contribuinte fiscal n.º … e B…, contribuinte fiscal n.º…, ambos residentes na Rua …, n.º…, no Porto (doravante também designados por “Requerentes”), vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de janeiro, diploma que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (doravante apenas “RJAT”), apresentar pedido de constituição de tribunal arbitral, no qual é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante apenas "Requerida" ou “AT”).

 

  1. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado no dia 14/12/2016;

 

  1. No respetivo pedido, os Requerentes solicitaram ao Conselho Deontológico do CAAD a designação de Árbitro, nos termos previstos nos artigos 6.º, n.º 1 e 11.º, ambos do RJAT.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 27/12/2016, tendo as Partes sido notificadas, em 08/02/2017, do árbitro designado pelo Conselho Deontológico do CAAD, o aqui signatário.

 

  1. Após aceitação por parte do árbitro designado, o presente Tribunal Arbitral considerou-se constituído no dia 21/03/2017, em conformidade com o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, 6.º, n.º 1, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT (com a redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro).

 

  1. No âmbito do pedido de pronúncia arbitral por si apresentado, os Requerentes peticionaram a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (doravante apenas “IRS”), referente ao ano de 2015.

 

  1. Os Requerentes juntaram 8 documentos com o pedido arbitral.

 

  1. Analisados os argumentos invocados pelos Requerentes no pedido arbitral e nas alegações escritas, podemos sumariá-los da seguinte forma:

 

  1. Os rendimentos dos Requerentes, por se encontrarem há já muito anos em “união de facto”, têm sido objeto de tributação conjunta;
  2. Os Requerentes exerceram a opção pela tributação conjunta dos seus rendimentos, relativamente aos rendimentos dos anos de 1999 a 2015, passando a integrar o agregado familiar um dependente, filho menor do casal, nascido em 18/01/2003;
  3. Nos anos acima referidos, os Requerentes geriram a sua vida patrimonial de acordo com o regime fiscal da tributação conjunta dos cônjuges, previsto no Código do IRS - desde a sua entrada em vigor, em 01/01/1989 -, o qual passou a ser aplicável, por opção, aos “unidos de facto, a partir da Lei n.º 135/99, de 28 de agosto, através da previsão da alínea d) do seu artigo 3.º;
  4. No âmbito da mencionada gestão da vida patrimonial do casal, no que respeita à gestão de investimentos financeiros, foram realizadas diversas transações de valores mobiliários, geradoras de ganhos e perdas, destacando-se os que estão identificados nos Anexo G e J da declaração anual de rendimentos Modelo 3 de 2015: i)  Sujeito Passivo A: realização de mais-valias decorrentes das três alienações onerosa de valores mobiliários realizadas em 2015.6.15, identificadas nas linhas 9001, 9002 e 9003, cujas data de aquisição foram, respetivamente, 2007.6.25, 2009.5.5 e 2011.12.27, no montante, respetivamente, de € 75.637,87, € 8.246,04 e € 28.226,04, portanto num valor total de € 112.109,95, valores resultantes da dedução a cada valor de realização do respetivo valor de aquisição atualizado pelo coeficiente de correção monetária aplicável a acrescido das despesas e encargos; e ii) Sujeito Passivo B: realização de menos-valias decorrentes da alienação onerosa de valores mobiliários realizada em 2015.7.1, identificada na linha 9004, e cuja data de aquisição foi 2013.12.31, no montante de 217.264,06€, valor resultante da dedução ao valor de realização do respetivo valor de aquisição acrescido das despesas e encargos;
  5. O montante total dos valores de “realização” das operações de ambos os sujeitos passivos foi de € 1.567.862,42, o dos valores de aquisição sem correção monetária, foi de € 1.554.767,42 e o dos valores das despesas e encargos foi de € 1.624,05;
  6. Consequentemente, deduzindo, com base nos valores inscritos no mencionado quadro 9, o total dos valores de aquisição sem correção monetária acrescido do valor total das despesas e encargos ao valor total dos valores de realização, resultaria, para o casal, uma mais-valia nominal de € 10.470, 95;
  7. Diversamente, com a aplicação legalmente devida dos coeficientes de correção monetária aos valores de aquisição dos anos de 2007, 2009 e 2011, resulta, para o casal, uma menos-valia real de € 105.154,11, portanto, o casal realizou, em 2015, uma perda de € 105.154,11;
  8. As aquisições e alienações acima identificadas, apesar da inexistência de qualquer regime de comunhão patrimonial, foram decididas e efetivadas com base num contexto de investimentos de natureza familiar, considerando o regime de tributação conjunta característico do Código do IRS desde a sua entrada em vigor em 1989 – portanto, durante 26 anos;
  9. Assim, aquando da concretização dos investimentos e desinvestimentos, portanto das aquisições e alienações acima identificadas, o casal, constituído pelos aqui Requerentes, sempre decidiu e considerou de modo conjunto, de acordo com um princípio de gestão dos seus interesses comuns familiares;
  10. É neste contexto que quaisquer investimentos ou desinvestimentos de qualquer dos Requerentes, sempre foram “do casal”, sempre tiveram subjacente na formação das decisões relevantes “o conjunto” dos investimentos do casal, em termos de obtenção dos melhores rendimentos para a família, aí incluída a melhor proteção com a eventualidade de evoluções desfavoráveis do valor dos investimentos;
  11. Portanto, as decisões de realização das alienações efetivadas em 2015, tiveram em consideração que daí não resultaria qualquer mais-valia tributável, enquanto resultado ou saldo comum, derivado dos mencionados “desinvestimentos”, sujeito a um tratamento uno para efeitos do IRS, portanto, aderindo à realidade familiar, também ela, una, financeira e patrimonialmente, foi abrupta e inesperadamente posta em causa quando o casal procedeu à simulação do imposto a pagar;
  12. Contudo, em 2016, o sistema informático da AT considerava de modo separado o ganho o saldo das mais-valias realizadas pelo Sujeito Passivo A e as menos-valias realizadas pelo Sujeito Passivo B, portanto, não considerando conjuntamente, globalmente, ambos os valores, não operando qualquer amortecimento ou compensação, daí resultando um imposto devido muito superior ao esperado e expectável, considerando para efeitos da liquidação do imposto o valor das mais-valias realizadas pelo Sujeito Passivo A, de € 112.109,95;
  13. Desconsiderando, para efeitos do cálculo do mesmo imposto, a menos-valia realizada pelo Sujeito Passivo B, de € 217.264,06;
  14. Após o preenchimento e entrega da devida declaração anual de rendimentos, esfumaram-se quaisquer esperanças do casal quanto a poder tratar-se de uma gralha ou erro do sistema informático de simulação do cálculo do imposto a pagar em 2015, pois, nesse momento, tiveram a confirmação da abrupta alteração do (seu) regime de tributação conjunta, o qual, de repente, em 2015, deixou de amortecer ou compensar os ganhos e perdas realizados por cada membro do casal, portanto desconsiderando a unidade financeira e patrimonial da família;
  15. Culminando a situação no recebimento da notificação da liquidação de imposto no valor de € 24.216,79, e que os Requerentes pagaram dentro do prazo de pagamento voluntário;
  16. A liquidação do imposto sobre os rendimentos do casal, realizada pela AT, ainda que considerando os valores de realização e de aquisição acima identificados e os valores da despesas e encargos, todos, inscritos no quadro 9 do Anexo G, mais tendo aplicado os coeficientes de correção monetária aos valores de aquisição (de 2007, 2009 e 2011), portanto, tendo alcançado os mesmos resultados aos que aqui, supra, foram identificados, desconsiderou o valor da perda realizada pelo Sujeito Passivo B, liquidando imposto no valor de € 31.390,79, por via de tributação autónoma das mais -valias do Sujeito Passivo A, à taxa de 28%;
  17. Quanto aos argumentos de Direito, a solução consagrada no n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, esvazia de conteúdo a tributação conjunta, violando o estabelecido no n.º 1 do artigo 104.º e na alínea f), do n.º 2, do artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), constituindo uma violação do Princípio da Consideração ou Proteção Fiscal da Família (ou da não discriminação fiscal desfavorável da família);
  18. A alteração da regra da tributação conjunta imperativa dos cônjuges (e por opção, dos unidos de facto) para a regra da tributação separada dos casados e unidos de facto, com opção pela tributação conjunta, ainda que concedendo que possa estar em conformidade com a constituição na medida em que se aceite que a lei fundamental não impõe a tributação conjunta dos rendimentos da família, não pode conduzir a um esvaziamento do regime da tributação conjunta, transformando numa mera solução formal sem efeitos úteis na realização dos interesses da família, como será o efeito de desconsiderar a tributação do rendimento da família como um saldo entre ganhos e perdas;
  19. O reconhecimento e aceitação pelo legislador ordinário das novas realidades familiares não pode implicar a negação ou o ataque à família que está subjacente às raízes das soluções estruturais vigentes no ordenamento jurídico português, seja no Código Civil, seja na própria Constituição;
  20. O legislador, reconhecendo a nova família, não condenou à morte legal-fiscal a velha família. Pelo contrário;
  21. Afigura-se desprovido de sentido o que vai declarado pela Comissão de Reforma do IRS - no Projeto de reforma do IRS – Setembro de 2014 (ponto 5.3.5, pág. 67) quando refere: “A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo; não se comuniquem as perdas horizontalmente. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta”;
  22. Com o devido respeito, em que medida é que para “viabilizar um regime regra de tributação separada” é necessário eliminar o regime de comunicabilidade de perdas entre cônjuges no regime de tributação conjunta?;
  23. Não se pode aceitar que o ordenamento jurídico nacional tenha recebido os novos modelos de família no seio das soluções da velha família, para, depois, aniquilar esta;
  24. No caso concreto dos Requerentes, o facto de a tributação conjunta assentar numa união de facto e, portanto, inexistir um qualquer regime de comunhão patrimonial, em nada altera a sua abrangência na tutela constitucional da tributação da família, na medida em que o regime da tributação conjunta dos cônjuges no Código do IRS nunca teve como pressuposto a existência de qualquer regime de comunhão patrimonial;
  25. Neste contexto é forçoso considerar-se que o legislador sempre concebeu e tratou de modo igual os casais, sejam unidos pelo casamento, independentemente do regime de bens, sejam unidos de facto, pelo que o que aqui se alega e conclui comunga dos mesmos fundamentos e efeitos para qualquer das situações mencionadas – ainda que o presente caso se refira à tributação conjunta dos unidos de facto;
  26. A inconstitucionalidade da solução consagrada pela Lei n.º 82-E/2014, acima alegada, resulta agravada, na medida em que a sua interpretação e aplicação pela AT constitui ostensiva violação da Constituição Fiscal, por violação do Princípio da Segurança Jurídica, “ínsito na ideia do Estado de direito democrático constante do artigo 2.º da Constituição” (cfr. Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 9.ª edição, 2016 - ponto 9.2.2.), nos dois sentidos em que tal princípio constitui uma limitação ao poder tributário: 1) na edição de normas retroactivas (desfavoráveis), e 2) na livre revogabilidade e alterabilidade das leis fiscais (favoráveis) - (ibidem, Casalta Nabais);
  27. Encontrando-se, desde a revisão constitucional de 1997, a proibição da retroatividade dos impostos consagrada expressamente no n.º 3 do artigo 103.º da CRP;
  28. É ferida da alegada inconstitucionalidade a interpretação do disposto no ns.º 1 e 6 do artigo 17.º da Lei n.º82-E/2014, em 31 de Dezembro de 2014, quanto ao início de produção de efeitos do regime consagrada no n.º 1 do artigo 55.º do CIRS, que conduza a que produção decretada para 1 de Janeiro de 2015, portanto, com produção de efeitos a partir do dia seguinte, se aplique a mais-valias realizadas a partir, precisamente, de 1 de Janeiro de 2015, ainda que a sua formação – a sua “verificação” – tenha ocorrido ao longo de vários anos;
  29. É incontornável evidenciar a falta de rigor conceptual por parte do legislador ao utilizar o termo “perdas verificadas” relativamente ao regime das perdas, no qual se incluem as “menos-valias”, cujo conceito fiscal implica o conhecimento e reconhecimento da distinção entre “mais-valias verificadas” e “mais-valias realizadas” (por todos, cfr. J.J. Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, Coimbra Editora – ponto 35);
  30. O que não é, de todo, admissível, é interpretar o disposto no citado artigo 17.º com o sentido aplicar às menos-valias realizadas em 2015, acumuladas (verificadas) ao longo de vários anos), o regime individual de reporte de perdas do casal, por subsunção no conceito de “perdas realizadas” consagrado no citado n.º 6 do artigo 17.º da Lei n.º 82-E/2014, o que fez a AT, em clara violação da Constituição Fiscal;
  31. Considerando a ratio do n.º 6 do artigo 17.º da Lei n.º 82-E/2014 e a sua interpretação conforme à Constituição Fiscal, deve interpretar-se tal norma com o sentido de que o novo regime do artigo 55.º, em particular do n.º 1, no que se refere a menos-valias, apenas se aplica a menos-valias realizadas com a alienação de ativos adquiridos após 1.1.2015 ou, quando muito, ao montante das menos-valias “verificadas” a partir de 1.1.2015;
  32. As citadas normas padecem de inconstitucionalidade se interpretadas de acordo com a interpretação e aplicação que a AT operou na liquidação do IRS de 2015, relativamente às mais e menos-valias realizadas pelos Requerentes no ano de 2015, tendo subjacente valores mobiliários adquiridos nos anos de 2007, 2009, 2011 e 2013, portanto, mais-valias verificadas, essencialmente durante esses anos;
  33. É ostensiva a violação do princípio da proteção da confiança do cidadão a alteração desfavorável de uma norma que materialmente integra os elementos essenciais do IRS, a saber, o n.º 1 do artigo 55.º do CIRS, alterando o regime legal aplicável às perdas obtidas por cada membro do casal, no sentido de eliminar o regime de comunicabilidade ou de compensação vigente desde 1989, passando para um regime de não comunicabilidade ou compensação de mero reporte individual de perdas;
  34. A situação financeira e patrimonial de qualquer contribuinte, e da família em especial, é gravemente afetada por soluções de alteração abrupta do regime fiscal aplicável a situações que assentam em realidade prolongadas no tempo, cujo regime aplicável se manteve em vigor ininterruptamente desde a entrada em vigor do CIRS, portanto, durante 25 anos;
  35. A aplicação pela AT do disposto no n.º 6 do artigo 17.º da Lei 82-E/2014, decorre de uma interpretação errada no que respeita às perdas consubstanciadas em “menos-valias”, contrariando a ratio da norma, a qual se apresenta, claramente, como uma norma de tutela dos direitos dos contribuintes, diferindo a aplicação do regime para as perdas que venha a produzir a partir de 2015;
  36. No que se refere a perdas com natureza de menos-valias, se a norma for interpretada conforme o entendimento subjacente à liquidação que aqui se impugna, considera-se que a realização da menos-valia em 2015 é já uma “perda verificada” em 2015, sujeita ao novo regime das perdas, impedindo a sua comunicabilidade entre os membros do agregado familiar no caso de opção pela tributação conjunta, o que, como alegado, é constitucionalmente inaceitável, seja por violação do Princípio da consideração fiscal ou da proteção da família, seja, por violação do Princípio da Segurança Jurídica, na medida em que o início de vigência de produção de efeitos na nova solução legal, fortemente restritiva de direitos dos contribuintes, se verifica de um dia para o outro;
  37. Os mencionados princípios da Constituição Fiscal estabelecem limites à tributação que, em particular quanto aos limites decorrentes do Princípio da Segurança Jurídica, vêm sendo reconhecidos pelo legislador ordinário; quando não, tendo havido desrespeito, tem o Tribunal Constitucional apreciado e declarado a inconstitucionalidade das normas em causa;
  38. Em alterações de maior densidade ao Código do IRS, por vezes apelidadas de “reforma”, o legislador ordinário consagrou regimes transitórios ou de diferimento de produção de efeitos, em termos de respeitar os mencionados limites constitucionais no que se refere a mais-valias mobiliárias, como é o caso do disposto no n.º 9 do artigo 30.º da Lei do Orçamento de Estado para 2001 (Lei n.º 109-B/2001, de 27-12);
  39. No caso concreto, por se tratar de ganhos e perdas com a natureza de mais e menos-valias mobiliárias, a violação do Princípio da Segurança Jurídica resulta agravada na medida em que a “verificação” das mais e menos-valias, a sua formação, é anterior a 2015, considerando os vários anos de aquisição dos valores mobiliários (entre 2009 e 2013) sendo o ano de 2015, meramente, o ano da “realização” dessas mais e menos-valias;
  40. A consagração de um regime de tributação das mais-valias de acordo com o princípio da realização, na situação em apreço, a sua aplicação resulta em grave prejuízo para os contribuintes, dada a abrupta entrada em vigor da alteração legislativa aqui censurada;

 

  1. No seu pedido, os Requerentes declaram pretender a anulação da Liquidação de IRS do ano de 2015 e que a mesma seja substituída por outra que considere, conjuntamente, o saldo de mais e menos-valias mobiliárias realizadas por ambos, em termos de que resulte o reembolso do montante de € 31.390,74, acrescido dos juros indemnizatórios legalmente devidos.

 

  1. Notificada para o efeito, a AT, ora Requerida, apresentou a sua resposta, na qual se defendeu por exceção e por impugnação, invocando, em suma, o seguinte:

 

  1. Uma liquidação, ou um qualquer ato, ou contrato, será ilegal em resultado da violação de normas legais;
  2. A pretensão dos requerentes, formulada como está, dependeria, e sempre, de previamente ser declarada a ilegalidade da norma aplicada, nos termos do art. 72º do CPTA, declaração para a qual, este tribunal arbitral não tem competência, exceção que, desde já, vai arguida para todos os legais efeitos;
  3. Os Requerentes não demonstram, nem a ilegalidade da norma, nem a ilegalidade do ato de liquidação, sendo que esta última, ocorreria, apenas e tão só, se ao mesmo pudessem ser assacados vícios próprios do respetivo procedimento de liquidação, ou se o mesmo violasse norma de direito substantivo;
  4. O que não acontece, quanto a nenhum dos casos;
  5. A atuação da AT na formação do ato de liquidação é totalmente regular e conforme à lei, outro tanto se dizendo quanto à subsunção dos factos (o facto tributável) à lei;
  6. Como bem sabem os R. e este Tribunal corroborará, não pode a administração afastar a aplicação de normas, em razão de juízos de alegadas ilegalidades;
  7. A desaplicação de uma norma pela administração haverá sempre de ser precedida de declaração de ilegalidade (por vícios nos seus procedimentos de aprovação), nos termos do nº 1 do art. 72º do CPTA, ou de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral proferida pelo Tribunal Constitucional, nos termos do art. 281º da CR;
  8. Posto que, resulta, e é quanto baste para ser julgado, totalmente improcedente o pedido dos Requerentes;
  9. Sem conceder, e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que não decorre dos argumentos aduzidos - que se percebem na exata medida em que espelham o desagrado dos R. por este aspeto concreto do Orçamento de Estado para 2015, que lhes é aplicado como o é a todos os demais contribuintes na mesma situação - em que medida a liquidação de IRS em apreço viola o princípio ínsito no nº 1 do art. 104º da CRP, porquanto o que ali se preconiza é “a diminuição das desigualdades” determinando que o imposto “será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.”;
  10. A aplicação do art. 55º do CIRS ao caso dos autos, em nada contende com os supra referidos princípios constitucionais, o mesmo se dizendo quanto ao Principio da Segurança Jurídica, na vertente indiciada pelos Requerentes;
  11. Não se compreende como é que uma disposição que assim determina: “O artigo 55.º do Código do IRS, na redação dada pela presente lei, apenas é aplicável a perdas verificadas depois de 1 de janeiro de 2015.”, e que visa, portanto, efeitos para o futuro, pode contender com o nº 3 do art. 103º da CRP;
  12. Pese embora o raciocínio exposto pelos requerentes, e pese embora tenham deixado de beneficiar do regime de reporte de perdas anterior, tal circunstância não se traduz na aplicação de algum imposto com aplicação retroativa, ou cuja criação e cobrança haja sido feita à margem da lei;
  13. O caso dos autos, como outros, e como seja, por exemplo, o da revogação de isenções ou benefícios fiscais constitui, como bem reconhecem a final os R, não mais do que uma decisão legislativa, que por contendendo com os interesses fiscais dos contribuintes, constituem sempre ruturas com o status anterior, mas que não pode, nem é, uma violação da tutela da confiança;
  14. A situação com que os R. se confrontam resulta não mais do que de uma evolução legislativa fiscal;
  15. A entender-se como o fazem os R., estaria o Estado impedido de legislar, de conformar o sistema fiscal, e de o fazer, sim, em benefício dos princípios constitucionais da igualdade e da prossecução do interesse público, que sempre devem prevalecer sobre os interesses dos Requerentes;
  16. O ato de liquidação não enferma de qualquer ilegalidade, porquanto se mostra conforme ao direito positivo, a cuja aplicação estrita a administração se mostra vinculada, devendo, em conformidade, ser mantido na ordem jurídica;
  17. Nestes termos, deve ser julgada procedente a incompetência material do tribunal para proferir declaração de ilegalidade da norma constante do nº 1 do art. 55º do CIRS na redação da Lei-E/2014 de 31/12 e improcedente na totalidade o pedido formulado;
  18. A Requerida declarou ainda prescindir da reunião a que alude o artigo 18º do RJAT e, bem assim, de alegações, referindo que as mesmas deveriam ser produzidas de forma escrita e sucessiva, caso o Tribunal não prescindisse da sua produção.

 

  1. Tendo sido notificados, através de despacho arbitral proferido em 06/06/2017, para se pronunciarem sobre as exceções invocadas pela AT na sua resposta, os Requerentes nada disseram;

 

  1. Através de despacho arbitral de 20/09/2017, o Tribunal determinou a prorrogação do prazo para prolação da decisão arbitra, por um período de 2 (dois) meses, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.

 

  1. Em 10/10/2017 e em complemente do despacho anterior, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, por não ter sido requerida a produção de prova adicional, reservando-se para a decisão final o conhecimento das exceções invocadas pela Requerida. Neste despacho, as Partes foram ainda notificadas para, querendo, apresentar alegações escritas.

 

  1. Após a prolação daquele despacho, ambas as Partes viriam a apresentar alegações, produzidas de forma sucessiva.

 

II. Saneamento

 

O tribunal é competente e está regularmente constituído.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, estando devidamente representadas.

O meio processual é o próprio.

Foram invocadas pela Requerida exceções que, por poderem obstar à apreciação do mérito da causa, serão conhecidas e apreciadas em sede da presente decisão arbitral, nos termos adiante expostos.

 

 

 

III. Matéria de facto considerada assente

 

Em face dos elementos probatórios trazidos aos autos e da factualidade aceite por ambas as Partes e não contestada, considera o Tribunal como provados, com relevância para a decisão final, os seguintes factos:

 

  1. Os Requerentes exerceram a opção pela tributação conjunta dos seus rendimentos, em sede de IRS, relativamente aos anos de 1999 a 2015, conforme se alcança das cópias dos comprovativos de entrega que foram juntos com o pedido arbitral como Doc. n.º 1;
  2. No ano de 2003, passou a integrar o agregado familiar dos Requerentes um dependente, como se alcança da cópia da 1ª página da respetiva Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS junta com o pedido arbitral como Doc. n.º 1);
  3. Nos referidos anos de 2009 a 2015, os Requerentes declararam que o seu estado civil era o correspondente a “unidos de facto” (Cf. Doc. n.º 1 junto com o pedido arbitral);
  4. No que tange ao ano de 2015, foi declarada, no Quadro 9 do Anexo G da respetiva Declaração de Rendimentos Modelo 3, relativamente ao Sujeito Passivo A (o ora Requerente), a alienação onerosa, em 15/06/2015, de valores mobiliários que haviam sido adquiridos em 25/06/2007, 05/05/2009 e 27/12/2011, respetivamente, nos montantes de € 1.155.600,00, de € 9.969,74 e de € 8.916,40, tendo sido indicado um montante de despesas e encargos inerente de € 1.402,13, € 19,79 e € 38,95, respetivamente  (Cf. Doc. n.º 2 junto com o pedido arbitral);
  5. O valor de realização declarado com referência aos valores mobiliários identificados no ponto anterior, foi, respetivamente, de € 1.348.200,00, de € 19.033,14 e de 37.448,88 (Cf. Doc. n.º 2 junto com o pedido arbitral);
  6. Foi ainda declarado, no Quadro 9 do Anexo G da Declaração de Rendimentos Modelo 3 de 2015 dos Requerentes, relativamente ao Sujeito Passivo B (a ora Requerente), a alienação onerosa, em 01/07/2015, de valores mobiliários que haviam sido adquiridos em 31/12/2013, no montante de € 380.281,28, tendo sido indicado um montante de despesas e encargos inerente de € 163,18 (Cf. Doc. n.º 2 junto com o pedido arbitral);
  7. Em face disso, o valor de realização total declarado foi de € 1.567.862,42, enquanto que o valor de aquisição total declarado foi de € 1.554.767,42 e, por fim, o valor total de despesas e encargos declarados de € 1.624,05 (Cf. Doc. n.º 2 junto com o pedido arbitral);
  8. Foi emitido, em nome dos Requerentes e por referência ao ano de 2015, o ato de liquidação de IRS n.º 2016…, de 04/08/2016, correspondente ao Documento n.º 2016…, com referência ao ano de 2015, nos termos do qual foi apurado um montante de imposto a pagar de € 24.216,79, com data de pagamento voluntário de 15/09/2016 (Cf. Doc. n.º 7 junto com o pedido arbitral);
  9. O ato de liquidação referido no ponto anterior foi pago em 13/09/2016 (Cf. Doc. n.º 8 junto com o pedido arbitral);

 

Não se identificaram outros factos com relevância para a decisão final.

  1. Motivação da Decisão

Antes do mais, importa frisar que os Tribunais, aqui se incluindo os Tribunais Arbitrais, não têm que apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, tal como se constata a título exemplificativo do Acórdão do Pleno da 2ª Secção do STA, de 07/06/1995, proferido no recurso nº 5239.

Como lapidarmente se refere naquele aresto «Não sendo de confundir o conceito de "questões" com o de "argumentos" ou "razões", o tribunal, devendo embora "resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação", não está vinculado a apreciar todos os argumentos utilizados pelas partes, tal como, e obviamente, não está impedido de, na decisão, usar considerandos por elas não produzidos».

Efetivamente, as questões invocadas pelas partes não se confundem com os argumentos, as razões ou as motivações produzidas. Questões, nomeadamente para efeito do disposto no n.º 2 do art. 608.º do Código de Processo Civil, são apenas as de fundo e que integram a matéria decisória, isto é, as que se relacionem com o pedido, a causa de pedir e as exceções (vide neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/11/2005, proferido no recurso n.º 05S2137 ou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25/09/2012, proferido no recurso n.º 05073/11).

E não só o Tribunal não se encontra adstrito a pronunciar-se sobre todos os argumentos apresentados pelas Partes, sejam de facto ou de direito, como também não está, nem poderia estar em face do princípio do inquisitório, subjugado a esses mesmos argumentos ou questões. O Tribunal goza igualmente de liberdade quanto ao percurso e ao iter cognoscitivo a utilizar para a prolação da decisão de mérito.

Assim, tendo em consideração o que acima expôs, o que as Partes trouxeram aos autos e o núcleo da argumentação utilizada, quer em sede do pedido arbitral e da correspetiva resposta apresentada pela Requerida, quer no que tange às alegações finais escritas, considera o Tribunal que a questão de direito a decidir prende-se unicamente com a eventual ilegalidade do ato de liquidação de IRS de 2015, à luz, nomeadamente, do disposto no artigo 55.º do Código do IRS e das demais normas legais e constitucionais aplicáveis.

VI. Do Direito

  1. Da exceção invocada pela Requerida

 

Como acima se adiantou, invocou a Requerida, previamente à análise do mérito do pedido arbitral apresentado pelos ora Requerentes, a incompetência material do Tribunal Arbitral, pois, no seu entendimento, “A pretensão dos requerentes, formulada como está, dependeria, e sempre, de previamente ser declarada a ilegalidade da norma aplicada, nos termos do art. 72º do CPTA, declaração para a qual, este tribunal arbitral não tem competência, exceção que, desde já, vai arguida para todos os legais efeitos”.

 

Importa então decidir esta questão prévia, sendo que, e adiantando desde já o sentido da decisão nesta parte, consideramos que a Requerida não tem razão.

 

Com efeito, as competências do Tribunal Arbitral cingem-se, em função do disposto nas alíneas a) e b) do artigo 2.º do RJAT, à apreciação de pretensões relacionadas com: a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.

 

Sucede que os Requerentes, apesar de apontarem determinadas inconstitucionalidades, fazem-no por referência ao ato de liquidação de IRS em crise, o que permite enquadrar o pedido na alínea a) do n.º 2 do RJAT.

 

Tais atos de liquidação são, na verdade, o objeto do pedido arbitral agora formulado.

 

Mesmo quando os Requerentes questionam as aparentes opções do legislador, sobretudo no que se refere às alterações ao n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS introduzidas pela  Lei n.º 82-E/2014,de 31 de dezembro, aquilo que na realidade pretendem é que o Tribunal declare a ilegalidade do entendimento subscrito pela AT e que esteve subjacente à emissão do ato de liquidação de imposto e, nessa medida, a ilegalidade do próprio ato de liquidação.

 

Nada disto invalida que a apresentação do presente pedido vise também obstar à aplicação de normas consideradas inconstitucionais, por via da emissão dos atos de liquidação em crise.

 

Mas a pretensão dos Requerentes visa a apreciação de atos de liquidação que, no seu entender, tiveram por base normas que reputa como ilegais e inconstitucionais, não a declaração de inconstitucionalidade abstrata de uma norma.

 

Nem de outra forma poderia ser, porquanto o Tribunal Arbitral não tem competência para declarar a inconstitucionalidade de normas jurídicas, mas apenas de apreciar a legalidade de atos de liquidação, sob as restritas formas que os mesmos assumem no artigo 2º do RJAT, declarando, se necessário, a sua ilegalidade.

 

É essa a pretensão dos Requerentes. Pelo que improcede a exceção em causa.

 

 

 

  1. Apreciação da legalidade do ato de liquidação de IRS em crise

 

Tal como resulta da factualidade dada como assente, os rendimentos obtidos pelos Requerentes, pelo menos no que se refere aos anos de 1999 a 2015, foram objeto de tributação conjunta, atenta a condição de “unidos de facto” que os mesmos declararam.

Terá sido também com base nesse pressuposto que a AT procedeu ao apuramento e à liquidação do imposto devido naqueles anos, isto é, de que os Requerentes se encontravam numa situação de “união de facto” e de economia conjugal e que faziam parte do mesmo agregado familiar, para efeitos fiscais.

 

Como também se verificou, no ano de 2003, foi inclusivamente incluído naquele agregado, para efeitos fiscais, um dependente de ambos.

 

Os Requerentes inscreveram, na Declaração Modelo 3 de IRS do ano de 2015, a alienação onerosa de diversos valores mobiliários adquiridos em anos anteriores, tendo em vista a tributação conjunta dos respetivos ganhos e/ou perdas apurados.

 

Todos estes factos não foram contestados pelas Partes e dão-se, por esse motivo, como provados nos presentes autos.

 

No ano de 2015, a AT procedeu à emissão de uma liquidação de IRS que, pelo menos no que concerne ao apuramento e à sujeição a imposto dos valores referentes à alienação onerosa de valores mobiliários, não reflete a tributação conjunta dos Requerentes.

 

E, segundo se depreende pelos elementos probatórios juntos aos autos, bem como, pelas considerações feitas pela Requerida, na sua resposta e nas respetivas alegações finais escritas, subjacente à emissão deste ato de liquidação esteve o entendimento de que a norma prevista no artigo 55.º, n.º 1, do Código do IRS, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, pressupunha a incomunicabilidade dos ganhos e perdas dos elementos do agregado familiar.

 

Vejamos então, fazendo uma primeira resenha do quadro legal aplicável à situação sub judice.

 

Assim e em primeiro lugar, importa fazer referência à Lei n.º 135/99, de 28 de agosto, a qual veio adotar algumas medidas de proteção da “união de facto”, estabelecendo, na alínea d) do seu artigo 3.º, a possibilidade de aplicação aos unidos de facto do regime legal do IRS nas mesmas condições previstas para os sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens.

 

Este diploma viria a ser revogado pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, a qual, no entanto, contemplou aquela equiparação de regimes nos mesmos termos da Lei n.º 135/99.

 

Ou seja, por efeitos da aplicação desta cláusula de salvaguarda, os sujeitos passivos que vivessem em situação análoga à dos cônjuges, há mais de 2 anos, poderiam beneficiar da aplicação do mesmo regime fiscal consagrado para os sujeitos passivos casados e, querendo, sujeitar-se à aplicação das mesmas regras de apuramento e liquidação do IRS.

 

Para além disso, releva também para a presente análise o disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 10.º, do Código do IRS, norma que prevê a sujeição a tributação das mais-valias consubstanciadas nos ganhos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem da alienação onerosa de “partes sociais e de outros valores mobiliários”. É esta a norma de incidência dos ganhos com a venda de valores mobiliários, tais como os que os Requerentes transacionaram no ano de 2015.

 

Os ganhos consideram-se obtidos no momento da prática dos atos, isto é e in casu, no momento da alienação (cfr. n.º 3 do artigo 10.º do Código do IRS). E, segundo resulta do n.º 4 do artigo 10.º do Código do IRS, o ganho sujeito a IRS é constituído “pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição”.

 

Acresce também referir a norma constante do n.º 1 do artigo 43.º, do mesmo Código do IRS, segundo a qual “O valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, determinadas nos termos dos artigos seguintes”.

 

Para efeitos do apuramento do valor de aquisição a título oneroso dos valores mobiliários, determina, no que ora releva, a alínea a) do artigo 48.º do Código do IRS que correspondem ao “custo documentalmente provado ou, na sua falta, o da menor cotação verificada nos dois anos anteriores à data da alienação, se outro menos elevado não for declarado”.

 

Por fim, uma referência ao n.º 1 do artigo 55.º do Código do IRS, norma que, sob a epígrafe “Dedução de Perdas”, e na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 82-E/2014,de 31 de dezembro, estabelece o seguinte: “Relativamente a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria só é dedutível aos seus resultados líquidos positivos da mesma categoria, nos seguintes termos (…).

 

Esta norma dispunha, na sua redação anterior a 2015, que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, é dedutível ao conjunto dos rendimentos líquidos sujeitos a tributação o resultado líquido negativo apurado em qualquer categoria de rendimentos”.

 

No Projeto da Reforma do IRS, elaborado em setembro de 2014 e que esteve na base das alterações legislativas, produzidas pela aludida Lei n.º 82-E/2014 no artigo 55.º do Código do IRS, pode ler-se, no ponto 5.3.4., o seguinte, quanto ao regime de comunicabilidade de perdas entre cônjuges”

 

O Código do IRS acolhe um modelo de limitação de dedução de perdas entre as várias categorias de rendimentos, ou seja comunicabilidade horizontal mitigada. A Comissão propõe também que de modo a viabilizar um regime regra de tributação separada, se estabeleça a dedução de perdas vertical, isto é, relativamente a cada sujeito passivo; não se comuniquem perdas horizontalmente. Assim, o resultado negativo da categoria de um dos cônjuges, não é absorvido nos rendimentos da mesma categoria do outro, no caso de tributação conjunta”.

 

Ora, identificado que foi o núcleo do quadro legal em que o pedido arbitral deverá ser analisado, cumpre agora decidir.

 

É verdade que o legislador pretendeu, aquando da Reforma do IRS efetuada em 2014, alterar de certa forma o paradigma fiscal, sobretudo no que respeita ao regime regra da tributação das famílias, fazendo com que a tributação separada seja a regra.

 

A partir desse momento, à semelhança do que as pessoas em união de facto já podiam fazer, os casados passaram a poder optar pela tributação conjunta (que deixou de constituir o regime-regra), na tentativa de combater a discriminação negativa de que as pessoas casadas eram alvo, ao não terem essa mesma opção.

 

Nunca esteve subjacente a esta Reforma a penalização dos contribuintes casados, seja por efeitos da alteração de normas de incidência ou das normas de apuramento do imposto. Pelo contrário, o legislador procurou garantir que os casados poderiam, caso assim pretendessem, optar pela tributação de rendimentos não agregada.

 

Uma das alterações promovidas pelo legislador, nesse âmbito, reportou-se ao regime de perdas estabelecido no artigo 55.º do Código do IRS, o qual passou também a refletir a tendência para que o regime de tributação separada constituísse a regra nesta cédula.

 

Deste modo, determinou-se que, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2015 e por referência a cada titular de rendimentos, o resultado líquido negativo apurado nas diferentes categorias de rendimentos apenas poderia ser deduzido aos resultados líquidos positivos da mesma categoria, do seguinte modo:

 

  1. Em sede de categoria B de IRS, o resultado líquido negativo aí apurado apenas poderia ser reportado de acordo com as regras de dedução dos prejuízos fiscais previstos no Código do IRC, isto é, nos 12 anos seguintes;
  2. As perdas apuradas quanto aos rendimentos prediais apenas poderão ser deduzidas aos ganhos da mesma categoria, fixando-se agora um prazo de reporte de seis anos, ao invés do anterior prazo de cinco anos;
  3. Na categoria G, o saldo negativo, resultante de operações com instrumentos financeiros, poderia ser reportado nos cinco anos seguintes, quando anteriormente este prazo era de dois anos.

 

Sucede que esta norma – na qual aparentemente a AT se fundamentou para proceder à emissão do ato de liquidação de IRS em crise – não é uma norma de incidência, nem tão pouco interfere com o apuramento dos saldos e dos ganhos sujeitos a imposto, sendo ao invés uma mera norma de reporte de perdas, à semelhança da que se encontra precisamente prevista no artigo 52.º do Código do IRC.

 

Isto é, trata-se de uma norma procedimental, que visa definir os termos do reporte de perdas nos anos posteriores ao do apuramento dessas mesmas perdas.

 

Pelo que nunca poderia ser com base nesta norma que a AT poderia justificar a eventual incomunicabilidade entre os saldos das mais e das menos-valias apuradas pelos Requerentes no ano de 2015, quando os mesmos optaram pela tributação conjunta.

 

De facto, o apuramento do saldo que irá estar sujeito a imposto é feito, como acima se constatou, em função da regra consagrada no artigo 43.º do Código do IRS, segundo a qual o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias corresponde ao saldo apurado entre as mais e as menos-valias realizadas no mesmo ano, cujo valor de aquisição, no caso de valores mobiliários, é determinado nos termos do artigo 48.º do Código do IRS. Não nos termos do artigo 55.º, como parece pretender a AT.

 

A norma constante daquele artigo 55.º do Código do IRS consubstancia, tal como acima se constatou, um mecanismo de reporte de perdas (ou de prejuízos, se quisermos) não podendo servir de base ao apuramento do saldo final apurado num determinado ano: se um saldo positivo ou negativo. Este último é apurado em função das regras e do regime pelo qual os contribuintes optaram, se de tributação conjunta ou separada.

 

Tendo os contribuintes optado por um regime de tributação agregada – seja por via do casamento ou da união de facto -, nenhuma outra hipótese se coloca, que não seja a da tributação conjunta dos rendimentos apurados pelo casal e isso pressupõe a comunicação dos saldos, negativos e positivos, apurados num determinado ano por qualquer um ou por ambos os membros do agregado familiar.

 

Veja-se, a título exemplificativo, e a propósito da natureza da norma constante do artigo 55.º do Código do IRS, o que considerou o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 24/02/2010, proferido no processo n.º 1085/99, ao referir o seguinte:

 

Ou seja, embora os rendimentos desta categoria B, se forem positivos, sejam, em princípio, comunicáveis aos rendimentos das outras categorias, já não são comunicáveis se forem negativos, devendo, antes, a perda sofrida ser reportada, para efeitos da respectiva dedução, aos eventuais rendimentos positivos apurados nesta categoria nos anos posteriores.

 

 

 

 

(…)

 

É que, conforme resulta do art. 55º que acima se deixou transcrito, nomeadamente do seu nº 1 e das als. a) e c) do seu nº 3, tal resultado líquido negativo apurado no âmbito da categoria B, além de apenas poder ser objecto de reporte nos anos seguintes (e não no ano em que o prejuízo é declarado), também apenas pode operar em relação a resultados líquidos positivos daquela mesma categoria B, com excepção dos resultados líquidos positivos gerados pelo exercício de actividade agrícola, silvícola ou pecuária”.

 

Com efeito, foi quanto a essas situações que o legislador pretendeu estabelecer um regime de não comunicabilidade horizontal de perdas entre os membros do agregado familiar, por forma a dar cobertura ao agora regime-regra da tributação separada, até porque, se assim não fosse, tornava-se quase impossível o controlo por parte da AT do impacto das eventuais alterações de regime promovidas pelos contribuintes de um(uns) determinado(s) ano(s) para o(s) seguinte(s).

 

Em momento algum, o legislador teve a intenção de privar os contribuintes casados, ou em união de facto, de poderem apurar o ganho sujeito a imposto através da soma da totalidade dos ganhos e da subtração das perdas totais obtidas em conjunto. Esta operação, meramente aritmética, sempre se fez, e continua a fazer, tendo em consideração que os membros do agregado familiar declararam a intenção de ser tributados em conjunto, sendo os ganhos e as perdas considerados como obtidos por ambos.

 

A alteração legislativa ocorrida a partir de 1 de janeiro de 2015 em nada alterou a forma de apuramento do ganho sujeito a imposto, que, no caso de valores mobiliários, se continua a fazer nos termos dos artigos 43.º e 48.º do Código do IRS, normas que não preveem qualquer distinção entre contribuintes casados (ou unidos de facto) e contribuintes solteiros ou divorciados. Isto é, tais normas não consagram qualquer tipo de proibição de comunicação horizontal de perdas, como parece fazer o artigo 55.º, para o caso de reporte de resultados negativos.

 

Se assim não se entender, então teremos que concluir que o legislador da Reforma do IRS teve a intenção de prejudicar os contribuintes casados, ou unidos de facto, impossibilitando que os mesmos pudessem usufruir da efetiva tributação conjunta dos seus rendimentos e das decisões de gestão da economia familiar tomadas pelos membros do agregado num determinado ano.  O que não é o caso.

 

A vingar a tese da AT, teremos efetivamente concretizada uma violação do princípio da segurança e da proteção da confiança, corolário do disposto no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Isto porque os Requerentes tinham a legítima expectativa de que as decisões por si tomadas, no que se refere à gestão de bens e da economia familiar do agregado, pudessem ser relevadas de forma agregada, respeitando a sua opção pela tributação conjunta,  o que não pode deixar de ser acolhido em resultado da aplicação do princípio da segurança e da proteção da confiança na vertente de “princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e que implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado[1]”.

 

Em face do exposto, o ato de liquidação de IRS em crise é ilegal, por violação do disposto nos artigos 10.º, 43.º, 48.º e 55.º, todos do Código do IRS, e do próprio princípio da segurança e da proteção da confiança, por estar subjacente a esse ato o entendimento de que aquele artigo 55.º impossibilita o apuramento, em conjunto, do saldo final - positivo ou negativo – referente à alienação de valores mobiliários pelos membros de um agregado familiar.

 

VII. Decisão

Em face do exposto, decide-se julgar procedente, por provado, o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência:

 

  1. Declarar a ilegalidade do ato de liquidação de IRS em crise, pelos motivos e com os fundamentos acima invocados, com as demais consequências legais;
  2. Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.

 

VIII. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 24.216,79, nos termos do disposto no artigo 97.º-A, nº 1, alínea a), do Código de Procedimento e do Processo Tributário, aplicável por força do disposto nas alíneas a) e b), do nº 1, do artigo 29.º, do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

XIX. Custas

Fixa-se o valor das custas do processo em € 1.530,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a suportar pela Requerida, em função do decaimento integral na presente ação.

Notifique-se.

 

Lisboa, 21 de novembro de 2017

 

O Árbitro

 

(Diogo Bonifácio)

 

 



[1] In Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 13/11/2007, proferido no processo n.º 0164A/04.