Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 442/2017-T
Data da decisão: 2018-01-26  IRC  
Valor do pedido: € 37.572,87
Tema: IRC – art. 18º CIRC. Princípio da especialização dos exercícios.
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Decisão arbitral

 

  1. Relatório

 

A…, SA (adiante designada por “A…” ou Requerente), com o número de identificação fiscal … e sede na Rua …, nº…, em …, veio, em 25-07-2017, ao abrigo do artigo 2º nº 1, alínea a) e dos artigos 10º e seguintes do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante abreviadamente designado “RJAT”) e dos artigos 1º e 2º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, apresentar pedido de pronúncia arbitral sobre (i) a legalidade do indeferimento de reclamação graciosa por si apresentada em 31 de Janeiro de 2017 (doc. 2 junto com o pedido arbitral), na medida em que desatende ao reconhecimento da ilegalidade de parte da autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2015 (doc. 1 junto com o pedido arbitral) e sobre (ii) a legalidade da parte dessa autoliquidação de IRC, no que se refere à não relevação fiscal nesse exercício de gasto no montante de € 178.918,45, relativo a tarifas de Acesso de Terceiros à Rede (ATR).

 

É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT).

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 28-07-2017.

 

O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do nº 2 do artigo 6º e da alínea b) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

Em 12-09-2017 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados dos artigos 11º, nº 1, alíneas a) e b), do RJAT e 6º e 7º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral ficou constituído em 27-09-2017.

 

Devidamente notificada, a AT apresentou, no prazo legal, resposta em que defendeu a improcedência do pedido, levantando uma questão prévia, defendendo-se por impugnação e juntando cópia do processo administrativo.

 

Dispensada que foi a reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT, por se entender, no caso, inútil, o tribunal convidou as partes a produzir alegações por escrito, o que fizeram, reiterando e desenvolvendo as respetivas posições jurídicas.

 

Foi fixado o dia 24-01-2018 para a prolação da decisão final.

 

Pretende a ora Requerente que seja declarada a ilegalidade do indeferimento tácito da reclamação graciosa bem como a ilegalidade parcial da autoliquidação supra identificada e, consequentemente, anulado, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, o referido indeferimento bem como a autoliquidação na parte que reflete a não dedução fiscal no exercício fiscal de 2015 de gasto com tarifas ATR no montante de € 178.918,45, alegando, em síntese:

 

  1. No dia 31-05-2016, a Requerente procedeu à entrega da sua declaração de rendimentos (Modelo 22) do IRC, com referência ao exercício de 2015;
  2. No decurso do referido exercício, a requerente procedeu ao pagamento de um conjunto de faturas e notas de débito à B…, S.A. (doravante designada por "B…"), no montante de € 178.918,45, na sequência de um acordo judicial, firmado a 19-03-2015, que pôs fim a processo judicial que opunha estas a Requerente à B… .
  3. Apesar de reportado na nota 5.3.1 do Anexo às Demonstrações Financeiras de 2015 (doc. 3), a Requerente não deduziu fiscalmente o gasto, por erro.
  4. Gasto esse que entende dever ser fiscalmente deduzido no exercício de 2015, de acordo com os princípios da periodização do lucro tributável, da capacidade contributiva e da justiça;
  5. Devendo por isso ser declarada a ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa e a ilegalidade parcial da autoliquidação referente ao exercício de 2015 e, consequentemente, anulados o referidos indeferimento e autoliquidação, na parte referente à não consideração do gasto no montante de € 178.918,45.

 

Por seu turno, a Requerida veio em resposta alegar, em síntese:

  1. A consideração destes gastos no período de tributação de 2015 não é subsumível na exceção contemplada no nº2 do art. 18º, porque a Requerente não logra aduzir fundamentos que justifiquem os procedimentos contabilísticos adotados, nem lhe permitem a dedução dos montantes em causa no período de tributação de 2015;
  2. Não devendo os princípios da justiça, da tributação pelo lucro real e da capacidade contributiva sobrepor-se a outros objetivos do legislador como o combate à fraude e à evasão fiscais e a sustentabilidade do sistema financeiro e fiscal;
  3. Devendo, assim, improceder o pedido arbitral.

 

O tribunal arbitral é materialmente competente e foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas (artigos 4º e 10º, nº 2, do mesmo diploma e 1º da Portaria nº 112-A / 2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

A AT invoca, no entanto, uma questão prévia: defende a existência de uma relação de prejudicialidade ou dependência entre o presente pedido arbitral e o que deu origem ao proc. nº 436/2017-T (documento junto com resposta à questão prévia).

 

No proc. 436/2017 a ora Requerente pretende a declaração da legalidade e anulação do indeferimento da reclamação graciosa na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade da parte da autoliquidação referente ao exercício de 2014 na parte que desconsidera indevidamente um gasto com tarifas ATR (Acesso de Terceiros à Rede), no montante de € 2.032.766,36; a declaração da ilegalidade parcial e consequente anulação, igualmente parcial, da autoliquidação referente ao exercício de 2014 na parte relativa ao montante de € 2.032.766,36 de base tributável em excesso a que corresponde imposto no montante de € 138.766,31 cujo reembolso pretende bem como o pagamento de juros indemnizatórios.

 

No presente pedido arbitral, a Requerente pretende a declaração da legalidade e anulação do indeferimento da reclamação graciosa na medida em que desatende o reconhecimento da ilegalidade da parte da autoliquidação referente ao exercício de 2015 na parte que desconsidera indevidamente um gasto no montante de € 178.766,36 relativo a uma transação judicial; a declaração da ilegalidade parcial e consequente anulação, igualmente parcial, da autoliquidação referente ao exercício de 2015 na parte relativa ao montante de € 178.766,36 de base tributável em excesso a que corresponde imposto no montante de € 37.572,87.

 

Como a Requerente alega, “gastos diferentes, faturados em anos diferentes, com [pedido] e causa de pedir invocadas, diferentes também”.

 

Não se vislumbra a existência de qualquer relação de prejudicialidade ou dependência entre ambos os pedidos arbitrais pelo que, nos termos do nº 1 do art. 272º do CPC ex vi art. 29º, nº 1, al. e) do RJAT, improcede a pretensão da Requerida de suspensão da presente instância arbitral até ao trânsito em julgado do proc. 436/2017-T.

 

Não há, assim, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

 

II. Decisão

 

1. Matéria de facto

 

  1. Factos dados como provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

  1. A Requerente é uma sociedade anónima que se encontra inscrita no cadastro pra o exercício da atividade de “Comércio de Gás Por Condutas”, CAE 35230.
  2. No dia 31 de Maio de 2016, a Requerente procedeu à apresentação da declaração de IRC Modelo 22 referente ao exercício de 2015 (doc. 1 junto com o pedido arbitral).
  3. A Requerente apresentou, no dia 31 de Janeiro de 2017, reclamação graciosa contra as autoliquidações dos exercícios de 2014 e 2015, pretendendo a consideração fiscal em 2015 de custos no montante global de 2.211.684,81 € (doc. 2 junto com o pedido arbitral).
  4.  Encontrando-se incluído nesse valor o montante de 178.918,45€, relativo a gastos com ATR, que, embora reportado na Nota 5.3.1. do Anexo às Demonstrações Financeiras de 2015 (doc. nº 3 junto com pedido arbitral), a Requerente não deduziu no exercício de 2015.
  5. O apuramento deste montante de 178.918,45€, relativo a períodos de tributação anteriores (2012 e 2013), resultou de transação em processo judicial (doc. 8 junto com pedido arbitral).
  6. A 17 de Abril a B… propôs contra a Requerente uma injunção relativa a um conjunto de faturas e notas de débito datadas de 2012 e 2013 referentes a tarifas ATR no montante de 295.204,58€ (doc. nº 5 junto com o pedido arbitral).
  7. A requerente deduziu oposição à injunção (doc. nº 6 junto com o pedido arbitral), invocando as razões que indicou no seu pedido arbitral e seguidamente se resumem:

“22º

Desde logo, na referida injunção foram incluídas faturas que havia sido liquidadas pela ora requerente e que não se encontravam, de facto e à data, pendentes de pagamento, razão pela qual parte do montante reclamado não se encontrava efetivamente em dívida.

23º

Relativamente às restantes faturas, a requerente rejeitou-as pois não tinham sido remetidos os dados necessários à validação do suposto gasto, dados estes que a B… tinha obrigação de fornecer, conforme contratualmente previsto.

24º

Com efeito, o contrato de uso da rede de distribuição celebrado entre as partes estabelece que a B… deverá prestar informação à A… relativamente a valores definitivos de consumo, capacidade utilizada, compensação de qualidade de serviço e outros serviços relativos aos seus clientes (Doc. nº 7, designadamente a cláusula 9 sobre “Faturação e Pagamento”).

25º

Como se prescreve na cláusula 9 do referido contrato a B… fatura as tarifas de acesso, compensações de qualidade de serviços e outros serviços prestados, simultaneamente com a comunicação dos dados supra referidos.

26º

No contrato estabelece-se ainda (cláusula 9) que a A… pode contestar os montantes faturados antes de proceder ao seu pagamento.

27º

Ora, foi precisamente isso que sucedeu (docs. nºs 5 e 6) relativamente a parte das faturas e notas de débito cujos montantes eram reclamados pela B…: fora solicitada informação adicional relativa às mesmas, essencial para a confirmação da legitimidade dos montantes faturados, a qual, à data da instauração do processo de injunção, não tinha sido recebida (docs. nºs 5 e 6), pelo que a ora requerente não tinha que reconhecer essas faturas e respetiva dívida enquanto essa falta não estivesse sanada e pudesse então validar os gastos que a B… lhe queria imputar sem demonstração dos mesmos, e de facto não reconheceu, quer para efeitos civis, quer para efeitos fiscais, no que ao montante aqui em causa respeita (docs. nºs 5 e 6)”.

 

  1. A referida injunção terminou por transação celebrada entre a Requerente e a B… em que aquela reconheceu estarem em divida 178.918,45€, transação homologada pelo Tribunal de Instância Central de Lisboa, tendo a A… sido notificada do fim do processo a 19 de Março de 2015 (doc. nº 8 junto com pedido arbitral).
  2. Até à data da apresentação do pedido arbitral a requerente não foi notificada de qualquer decisão proferida no processo de reclamação graciosa que apresentou.
  3.  No dia 25 Julho de 2017, a Requerente deduziu o presente pedido de pronúncia arbitral.

 

1.2. Factos dados como não provados

 

Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.

 

1.3. Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos provados baseiam-se nas posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, na prova documental e no Processo Administrativo juntos aos autos.

 

  1. Do Direito

A questão essencial a decidir e colocada pela Requerente, A…, no seu pedido de pronúncia arbitral é a da (i)legalidade do ato de autoliquidação de IRC referente a 2015 em virtude de ali ter sido desconsiderado como gasto o montante de 178.918,45€, montante que a Requerente teve de pagar a um dos seus fornecedores, na sequência de transação judicial efetuada e homologada em 2015.

O enquadramento legal da questão assenta no art. 18º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), que prevê o seguinte:

Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 — As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

(…)

Encontra-se aqui consagrado o princípio da especialização dos exercícios, que faz coincidir o exercício com o ano fiscal que, por sua vez, coincide, em regra, com o ano civil. Assim, de acordo com este princípio, cada ano constitui um exercício e como tal, tem a sua conta de resultados que exprime o lucro ou as perdas.

 

Ora, “para o efeito, os proveitos e custos devem ser reconhecidos quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento”[1]. O princípio da especialização dos exercícios traduz-se justamente em que devem ser considerados como custos de determinado exercício os encargos que economicamente lhe sejam imputáveis, sendo irrelevante o exercício em que se efetua o seu pagamento.

 

Nessa mesma linha, Rui Duarte Morais, sublinha a importância deste princípio “caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação a dada um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde”[2], (…) sendo que essa especialização “impõe a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses”[3].

 

Acrescenta a este propósito, Freitas Pereira[4], referindo-se também à importância e razão de ser do princípio da especialização dos exercícios, que “a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais do que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo, a, designadamente:
a) Diferir no tempo os lucros;

b) Fracionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objetivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efetivar deduções mais avultadas (v.g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).” 

Como já se viu, o montante em questão nos presentes autos teria por base uma transação judicial em injunção que correu termos no Tribunal de Instância Central (Secção Cível) da Comarca de Lisboa e em que eram partes a Requerente e a B…, sua fornecedora.

 

A Requerente afirma no seu pedido arbitral que o objeto da referida injunção era “um conjunto de faturas e notas de débito datadas de 2012 e de 2013, referentes a tarifas de ATR” (art. 20º do pedido arbitral).

 

Alega a Requerente que “até ao acordo alcançado em 2015 não tinha (…) que reconhecer gasto ou divida alguma, porquanto estava convicta da falta de base contratual da B… para lhe faturar montantes não devidamente justificados, isto é, não acompanhados da informação suficiente para sustentar a sua legitimidade, a realidade de tais gastos”.

 

Ora, não nos parece que esta posição seja consentânea com o princípio da especialização dos exercícios nem com a redação do art. 18º, nº 2 do CIRC onde se afirma que “as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas”.

 

Se é certo que a A… entendia que algumas das faturas objeto do litigio que a opunha à B… já se encontravam pagas, reconhece que, em relação às demais, algumas “não se encontravam, de facto e à data, pendentes de pagamento” e, relativamente às restantes (…), rejeitou-as pois não tinham sido remetidos os dados necessários à validação do suposto gasto”.

 

Em nenhum momento a Requerente alegou que a B… não forneceu o serviço contratado. Logo, apesar de questionar o montante do serviço, a verdade é que este foi efetivamente prestado e que este serviço teria obrigatoriamente de ter como contrapartida um custo/gasto que a Requerente poderia deduzir fiscalmente, senão no que se refere ao exercício de 2012 pelo menos no exercício de 2013, período em que segundo a própria, foram emitidas as faturas e notas de débito controversas.

 

 Aliás, tendo a injunção dado entrada a 17 de Abril de 2013, pelo menos a partir dessa data, a Requerente não podia deixar de ter conhecimento da previsibilidade/existência dos gastos em questão.

 

Não parece assim legítimo alegar que os gastos, na data de encerramento das contas do exercício a que deviam ser imputados [exercício de 2013], eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, nem se vislumbra razão válida para que os mesmos sejam imputados ao exercício de 2015.

Considera-se então que o princípio da especialização dos exercícios, assente no interesse público da prevenção e combate da evasão fiscal, deve prevalecer sobre o princípio constitucional da tributação das empresas pelo rendimento real consagrado no art. 104º, nº 2 da Constituição da Republica Portuguesa (CRP).

Em suma, no entender deste Tribunal e nos termos do art. 18º, nº 1 do CIRC, o gasto em causa nos presentes autos deveria ter sido deduzido no exercício de 2013, uma vez que, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios e o disposto no art. 18, nº 2 do CIRC, o gasto em causa não era desconhecido pela Requerente e não era imprevisível.

De facto, pelo menos a partir do momento que lhe foi instaurado o processo de injunção (abril de 2013), o gasto em causa deixou de ser imprevisível e manifestamente desconhecido como pugna a Requerente!

Ainda assim, a Requerente sempre podia ter lançado mão de outro mecanismo contabilístico-fiscal: discordando, com razão ou não, com os valores que lhe eram exigidos na injunção, devia ter efetuado, por cautela, uma provisão, nos termos do art. 39º, nº 1 a) do CIRC.

O referido dispositivo permite a realização de provisões, fiscalmente dedutíveis, para fazer face a obrigações e encargos derivados de processos judiciais em curso por factos que determinariam a inclusão daqueles entre os gastos do período de tributação.

A Requerente invoca em sua defesa a prevalência dos princípios da justiça e da tributação pelo rendimento real e da capacidade contributiva, previstos nos arts. 266º, nº 2 e 104º, nº 2 da CRP, respetivamente, sobre o princípio da especialização dos exercícios.

O Acórdão do CAAD, proferido a 31-03-2017, no processo nº 422/2016-T esclarece a este propósito que “(…) o princípio da justiça é imposto à globalidade da atividade da Administração Tributária (…). Da observância concomitante dos princípios da legalidade e da justiça conclui-se que o dever de a Administração Tributária aplicar o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente regulam determinadas situações, abrangendo também o dever de a administração ter em conta as consequências da sua atividade e abster-se da aplicação estrita de normas quando dela decorra um resultado manifestamente injusto. A aplicação do princípio da justiça sobrepondo-se ao princípio da especialização dos exercícios tem sido efetuada em situações deste tipo, conduzindo a que não seja efetuada qualquer correção quando não é possível imputar os gastos ao exercício a que deveriam ser imputados, à face daquele princípio, e os sujeitos passivos não atuaram intencionalmente com o objetivo de obterem alguma vantagem. O Supremo Tribunal Administrativo tem adotado este entendimento, tendo decidido, relativamente ao princípio da especialização dos exercícios, que «esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios»[5][6].”

Não nos parece, no entanto, que o caso sub judice se enquadre no tipo de situações que esta aplicação dos princípios da justiça e da tributação real pretendem salvaguardar.

Na verdade, o diferimento dos custos/gastos para o exercício de 2015 não se deveu ao facto de serem imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos, como resulta da factualidade provada, nem de erro da Requerente. Tão pouco, a AT teve qualquer tipo de intervenção em todo o processo (limitou-se a indeferir, tacitamente, a reclamação graciosa referente à autoliquidação de 2015, contrariamente à factualidade subjacente à diversa jurisprudência e a doutrina invocadas pela Requerente. O diferimento dos custos/gastos deveu-se tão só a uma opção feita pela Requerente para a qual não se encontra fundamento legal.

De facto, em bom rigor, em face do princípio da especialização, no entender deste Tribunal, o gasto já devia ter sido imputado e deduzido ou, pelo menos, provisionado no ano de 2013; não o tendo feito nesse ano, a Requerente podia ainda ter apresentado, no prazo legal, reclamação graciosa da respetiva autoliquidação. Mas não! Vem reportá-lo ao exercício de 2015 e, não o tendo deduzido, alegadamente por erro, vem mais tarde apresentar reclamação graciosa invocando a ilegalidade desta autoliquidação.

Aliás, como a Requerida defende, tendo o acordo “sido alcançado e homologado no exercício de 2015, [“notificado a Requerente em 19.03.2015, do encerramento do processo de injunção”], podiam ter sido desencadeados os meios legalmente previstos – e.g., reclamação graciosa da autoliquidação do IRC de 2012 e/ou 2013 – a requerer a imputação dos encargos decorrentes do Acordo”.

Entendemos que, ao contrário do alegado pela Requerente, a resolução da questão decidenda não pode ser encarada acentuando apenas o relevo que nos merecem os princípios da justiça e da capacidade contributiva, antes exige uma ponderação global dos interesses em presença mediada pelo princípio da proporcionalidade.

 

Com efeito, não podemos deixar de ter em conta as exigências legais de natureza formal e de especialização dos exercícios e que estas têm subjacentes objetivos como o controlo da atividade do contribuinte, a promoção da realidade e a proteção do interesse público no combate à fuga e à evasão fiscal.

 

Por essa razão se compreende o estabelecimento pela lei da sanção da não dedutibilidade dos custos para a violação das obrigações acessórias e formais por parte do contribuinte: o princípio da tributação segundo o lucro real deve ceder perante os fins de prevenção geral da lei fiscal.

 

Em suma, se por um lado, os princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo lucro real não são absolutos antes tendo como limites outros valores constitucionalmente protegidos, por outro, o princípio da justiça não pode dar cobertura a situações como a dos autos, numa ponderação global dos interesses em presença, mediada pelo princípio da proporcionalidade: deve, no entendimento deste Tribunal, dar-se prevalência ao interesse público de prevenção e combate à fraude fiscal, sendo que neste juízo de ponderação deve ser tido igualmente em conta o princípio da justiça na perspetiva dos contribuintes que cumprem as suas obrigações fiscais, que de outra forma seriam discriminados face aos que sistematicamente não as cumprem.

 

No caso em concreto, decidir no sentido do pretendido pela Requerente, corresponderia também a ignorar a obrigação que sobre ela impende quanto às exigências de contabilidade organizada.

 

O reconhecer, neste concreto caso e pelos motivos expostos, a prevalência do princípio da especialização dos exercícios não pode ser interpretado como “violação do princípio da proporcionalidade (proibição de excesso) que resulta da consagração do princípio do Estado de direito democrático inscrito no artigo 2.º da Constituição, com concretização particular nos artigos 18.º, n.º 2, e 266.º n.º 2, da Constituição, 52º e por violação dos princípios da iniciativa privada, da propriedade privada, incluindo dos meios de produção, e da liberdade de gestão e organização empresarial, que se retiram ou deduzem dos artigos 62.º (direito de propriedade privada), 80.º, alínea c) (liberdade de iniciativa e de organização empresarial), 81,º alínea f) (liberdade de gestão empresarial, que tem por contraponto um Estado que promove a neutralidade por oposição a criar distorções) 82.º, nºs 1 e 3 (garantia de existência do sector privado) e 86.º, n.º 2 (proibição de intervenção por parte do Estado na gestão das empresas privadas), todos da Constituição”, como pretende a Requerente.

 

Não podendo, assim, proceder o pedido arbitral

 

3. Decisão

 

De harmonia com o exposto, decide este Tribunal Arbitral:

  1. Julgar improcedente a questão prévia suscitada pela Requerida, não se considerando existir qualquer relação de prejudicialidade ou dependência entre o presente pedido arbitral e o que deu origem ao proc. nº 436/2017-T;
  2. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;
  3. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

4. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em € 37.572,87, nos termos do artigo 305º, nº 2 do CPC e 97º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 29º do RJAT e do nº 2 do artigo 3º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

5. Custas

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4º, nº 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 26 de Janeiro de 2018

 

O Árbitro,

 

 

 

(Cristina Aragão Seia)

 



[1] Cfr. Acórdão do STA proferido a 25-06-2008, no proc. 0291/08; DGCI, CIRC Anotado, 1990, págs. 146-147;  Noel Monteiro, “Regime de Competências do exercício”, in Ciência e Técnica Fiscal 108 - 231/33, e A Contabilidade em Face da Lei Fiscal, vol. 1, pp. 145 e ss.

[2] Apontamentos ao IRC, Almedina Coimbra, 2009, pág. 103.

[3] Cfr. Freitas Pereira, “A periodização do lucro tributável”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 349, pp. 77 e ss.

[4] Cfr. Ob cit., pp. 77 ss.

[5] Acórdão do STA de 2-4-2008, proferido no processo nº 0807/07.

[6] Aliás, há muito que a Administração Tributária reconheceu a necessidade de flexibilidade na aplicação do princípio da especialização dos exercícios, no Ofício-circular n.º C-1/84, de 8-6-84, publicado, com o respetivo parecer, em Ciência e Técnica Fiscal, n.ºs 307-309, páginas 781-791, em que se adotou o seguinte entendimento, a propósito da questão paralela que se colocava no domínio da Contribuição Industrial: “sempre que em determinado exercício existam custos e proveitos de exercícios anteriores, o tratamento fiscal correspondente deverá obedecer às seguintes regras:

a) Não aceitação dos custos e dos proveitos resultantes de omissões voluntárias ou intencionais no exercício em que são contabilizados, considerando-se, em princípio, como tais as que forem praticados com intenções fiscais, designadamente, quando:

- está para expirar ou para se iniciar um prazo de isenção;

- o contribuinte tem interesse em reduzir os prejuízos em determinado exercício para retirar maior benefício do reporte dos prejuízos previsto no artigo 43.º do Código;

- o contribuinte pretende reduzir o montante dos lucros tributáveis para aliviar a sua carga fiscal.

b) Nos restantes casos, não deverão corrigir-se os custos e proveitos de exercícios anteriores.”