Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 752/2019-T
Data da decisão: 2020-10-03  IRC  
Valor do pedido: € 257.511,24
Tema: IRC – Despesas não documentadas; Tributação autónoma
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros Conselheiro Carlos Alberto Fernandes Cadilha (Árbitro Presidente), Professora Doutora Suzana Fernandes da Costa e Hélder Faustino, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 11-09-2019, A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Estoril, apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., relativa ao exercício de 2015, no valor de € 257.511,24, e da demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., no valor de € 257.707,39, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa que teve as referidas demonstrações de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a liquidação em apreço incorre nos seguintes vícios:

i.             Vício de violação do artigo 46.º-A do Código do IRC, porquanto a AT não extraiu as devidas consequências da aplicação do regime simplificado de tributação;

ii.            Vício de violação do disposto no artigo 88.º do Código do IRC, porquanto não existem despesas efectuadas pela Requerente, que possam ser consideradas como não documentadas;

iii.           Erro sobre os pressupostos de facto e de direito e manifesta falta de fundamentação de liquidação;

iv.           Violação do princípio da prevalência de substância sob a forma, porquanto o saldo de “Caixa” não podia ter sido transformado em despesas não documentadas;

v.            Vício de violação do disposto no artigo 63.º, n.º 4 da LGT e artigo 13.º do RCPITA, que consagram o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspecção tributária.

 

3.            No dia 12-11-2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 02-01-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 03-02-2020.

 

7.            No dia 09-03-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 07-07-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde prestou declarações de parte a Dra B... (médica) e foi ouvida a testemunha C... (contabilista certificado) no acto, apresentada pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao dia 03-10-2020, conforme previsto no artigo 18.º, n.º 2 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente foi constituída em 14-08-1996, com o capital social de € 5.000,00 (cinco mil euros), assim distribuídos:

a.            Uma quota no valor nominal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), pertença do sócio D...;

b.            Uma quota no valor nominal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), pertença da sócia B... [cfr. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral];

2-            Os sócios, ambos médicos, eram casados entre si, vigorando entre si o regime da separação de bens;

3-            A Requerente tinha por objecto a assistência médica nas áreas de clínica geral, cirurgia geral, ortopedia e traumatologia, áreas das especialidades médicas dos respectivos sócios;

4-            A gerência era exercida pela sócia B... [cfr. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral];

5-            A Requerente procedeu à entrega da declaração de início de actividade em 14-08-1996, dela constando a sua inclusão, quanto ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime de isenção, e quanto ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), o regime de geral de tributação;

6-            A contabilidade da Requerente estava confiada à empresa E..., Lda., da qual era responsável o Técnico Oficial de Contas, F...;

7-            Os sócios foram procedendo à entrega das respectivas declarações de rendimentos Modelo 3 de IRS, sem que tivessem imputado a cada um deles, na proporção das respectiva participação social (50%, cada um) o resultado apurado pela Requerente, independentemente de ter havido, ou não, distribuição de rendimentos por parte da mesma;

8-            Em 2004, para além do regime da transparência fiscal, a Requerente optou por ser tributada no âmbito do regime simplificado, situação que perdurou até 2009;

9-            Durante a vigência do regime simplificado, os sócios efectuaram várias despesas relacionadas com a actividade da Requerente, não tendo entregue os documentos relativos às despesas;

10-         Por forma a que a contabilidade reflectisse as entradas e saídas dos meios financeiros, o contabilista da Requerente, atendendo à (eventual) desnecessidade de apresentação de documentos para as despesas efectuadas em nome da Requerente, por via do regime simplificado, entendeu proceder ao registo contabilístico destes movimentos na conta de “Caixa”;

11-         Conta esta que representava a contrapartida contabilística da saída de dinheiro da Requerente para fazer face a despesas da própria sociedade, relativamente às quais não havia documento comprovativo;

12-         Na sequência do divórcio dos sócios, a Requerente procedeu, em 25-02-2009, à aquisição da quota, no valor nominal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), até então pertença do sócio D... [cfr. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral];

13-         Em 2010, a empresa de contabilidade mudou de sócios, tendo assumido aquela função o Técnico Oficial de Contas, G...;

14-         Em 15-01-2014, a Requerente procedeu à cedência da sua quota própria, no valor nominal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), ao arquitecto H..., tendo permanecido como sócia e gerente B... [cfr. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral];

15-         A Requerente e os respectivos sócios tinham até então continuado a cumprir com todas as suas obrigações fiscais nos mesmos moldes, a Requerente procedeu à entrega das declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC, sem o respectivo enquadramento no regime de transparência fiscal, e a sua única sócia à entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, sem que se procedesse à respectiva imputação como rendimento seu, de 50% dos resultados obtidos pela sociedade;

16-         A Requerente já não dispõe da documentação nos seus arquivos, a saber: declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC, referente aos anos de 2010 a 2013; demonstração de liquidação de IRC, referente aos anos de 2010 a 2013; declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS da sócia B..., referente aos anos de 2010 a 2013; demonstração de liquidação de IRS da sócia B..., referente aos anos de 2010 a 2013;

17-         Por resultado da acção de inspecção a que foi sujeita, a Requerente procedeu à substituição da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC dos anos de 2013 a 2016, donde consta a aplicação do regime de transparência fiscal [cfr. Documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral] e a sócia B... procedeu à entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, referente aos anos de 2013, 2014, 2015 e 2016 [cfr. Documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral];

18-         A Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária que deu origem ao acto de liquidação de IRC relativo ao ano de 2015 em apreço, resultado da acção de inspecção externa a que se refere a OI2017... e da acção de inspecção interna a que se refere a OI2017...;

19-         Os actos externos tiveram início em 01-09-2017 e a nota de diligência com o encerramento da mesma foi assinada pela sócia B... em 16-10-2017;

20-         Ambas as ordens de serviço tiveram como objecto exclusivo o exercício de 2015, tiveram âmbito parcial em IVA, Retenções na Fonte e IRC [cfr. PA junto aos autos];

21-         Pelo Ofício n.º ... de 07-06-2013, a Requerente foi notificada para informar o número de estabelecimentos onde é exercida a actividade, identificando a respetiva morada;

22-         Em 10-12-2015, realizou-se uma diligência para inventariação dos valores em caixa, no local indicado pela Requerente como sendo aquele onde exerce actividade: a Rua ..., n.º..., em Cascais;

23-         No âmbito da referida diligência, os Serviços de Inspecção Tributária constataram a inexistência de quaisquer valores em caixa.

24-         Em 11-12-2015, a Requerente foi notificada, na pessoa da sócia-gerente para, no prazo de 5 (cinco) dias proceder à apresentação dos seguintes elementos:

a.            Balancete analítico à data de 31-12-2014;

b.            Balancete analítico reportado à data mais recente possível;

c.            Folhas de caixa relativas ao período de tempo compreendido entre a data do balancete mais recente que viesse a ser disponibilizado aos Serviços de Inspecção Tributária e data da contagem do saldo de caixa;

d.            Extractos da contabilidade das contas de Caixa (11) e Bancos (12), para os anos de 2014 e 2015 até à data da notificação/contagem de “Caixa”;

e.            Extractos bancários de todas as contas de depósitos à ordem ou outras, que reflectissem os movimentos financeiros da empresa, para os anos de 2014 e 2015, até à data da notificação;

f.             Cópia das actas de todas as deliberações da assembleia geral da sociedade, desde a data de matrícula da mesma na Conservatória do Registo Comercial.

25-         Em conformidade com as informações constantes no balancete elaborado à data de 30-11-2015 a conta caixa revelava a existência em de um saldo devedor no valor € 485.671,02, valor esse inexistente à data em que foi realizada a diligência para contagem física do numerário existente em caixa.

26-         Na data da realização dessa diligência, a sócia B...  declarou o seguinte:

a.            Que, a sociedade não dispunha de pessoas responsáveis pela movimentação de “Caixa”;

b.            Que, não eram elaboradas folhas de caixa;

c.            Que, naquela data tinha depositado na empresa o valor de € 1.680,00 e levantado no multibanco € 200,00.

27-         Não existindo, ou pelo menos não tendo sido apresentados quaisquer documentos capazes de comprovar as faltas de numerário que, como se demonstrou, se verificavam em “Caixa” à data da contagem física, foram solicitados à Requerente, na pessoa da sócia B..., os seguintes esclarecimentos:

a.            Qual o destino dado aos valores evidenciados em caixa no balancete elaborado à data de 30-11-2015 no valor de € 485.671,02 uma vez que, de acordo com a contagem física realizada no dia 11-12-2015 o valor em caixa era nulo;

b.            Se alguma vez tinha sido efectuada distribuição de lucros por parte da sociedade;

c.            Se existia algum contrato de mútuo entre a sociedade e os sócios;

d.            A que respeitava o saldo devedor de € 3.550,00, evidenciado na conta da sócia B..., no balancete elaborado à data de 30-11-2015.

28-         Tendo a sócia B... esclarecido, afirmando o seguinte:

a.            Que, como a sociedade esteve enquadrada no regime simplificado no período compreendido entre os anos de 2002 e 2006, deixou de contabilizar gastos que efectivamente foram suportados;

b.            Que, a sociedade não tinha efectuado distribuição de lucros e que também não existiam contratos de mútuo celebrados com os sócios;

c.            Que, o valor evidenciado na contabilidade na sua conta pessoal, poderia estar relacionado com duas viagens realizadas durante o ano de 2015.

29-         Nessa mesma data, a sócia B... foi notificada para no prazo de 10 (dez) dias proceder à apresentação das facturas de suporte às despesas realizadas, mas não contabilizadas.

30-         O saldo devedor evidenciado pela conta “Caixa”, na IES respeitante ao ano de 2015, entregue pela Requerente no dia 30-06-2016, continuava a revelar elevados montantes.

31-         A fim de proceder à análise dos elementos contabilísticos da Requerente, e tendo por objectivo a confirmação, ou não, das divergências apuradas no âmbito das diligências realizadas no procedimento de contagem física da “Caixa”, no dia 01-09-2017 iniciou-se uma acção de inspecção externa, levada a efeito ao abrigo da OI012017... .

32-         No âmbito da acção inspectiva, os Serviços de Inspecção Tributária constataram que as únicas omissões, erros ou inexactidões observadas na contabilidade da Requerente correspondem à divergência verificada entre o saldo evidenciado pela conta “Caixa” e a inexistência de quaisquer meios monetários / numerário capazes de sustentar o referido saldo.

33-         Do relatório de inspecção consta, além do mais, o seguinte

 

34-         Concluindo os Serviços de Inspecção Tributária:

 

a.            Que, o valor contabilístico evidenciado pela conta “Caixa”, mas relativamente ao qual efectivamente não existia qualquer numerário, constitui um exfluxo de “Caixa”;

b.            Que, na contabilidade não foram encontrados documentos de suporte que justificassem aquela saída de meios financeiros da sociedade;

c.            Que, igualmente não foi explicado o destino dado àquele numerário, ou apresentados outros elementos de prova;

d.            Que, esse valor contabilizado na conta “Caixa”, representaria grande parte da disponibilidade da sociedade que suportava o montante evidenciado pelas contas de capital da sociedade, mais especificamente a conta “56 - Resultados Transitados” que, em 30-11-2015, apresentava o valor de € 548.697,77.

35-         Devidamente notificada a Requerente das conclusões do RIT, foram efectuadas as correspectivas correcções, tendo, concomitantemente, sido emitidas a demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., de 08-01-2018, a demonstração de acerto de contas n.º 2018..., e a demonstração de liquidação de juros, referentes ao exercício de 2015, com o montante a pagar de € 257.707,39 (duzentos e cinquenta e sete mil, setecentos e sete euros e trinta e nove cêntimos) [cfr. Documentos n.º 4, n.º 5 e n.º 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral].

36-         Em 07-06-2018, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra aquele acto de liquidação (reclamação graciosa n.º ...2018...).

37-         Em 08-07-2018, a Requerente foi notificada, do projecto de indeferimento e para, querendo, exercer, em 15 (quinze) dias, o respectivo direito de audição prévia.

38-         Em 18-07-2018, a Requerente, exerceu o direito de audição prévia, reiterando e reproduzindo o alegado em sede de reclamação graciosa.

39-         Por despacho de 09-08-2019, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento.

40-         Em 11-11-2019, a Requerente apresentou o presente pedido arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Em particular, quanto à prova testemunhal apresentada, o papel das testemunhas é o de referir as suas percepções sobre factos passados que tenham presenciado, sobre os quais detenham propriedade e conhecimento directo para, bem assim, procederem à sua narração, o mais fielmente possível.

 

Com efeito, a testemunha C... afirmou:

i.             não ter conhecimento directo dos factos;

ii.            o conhecimento da testemunha decorria apenas do contacto que lhe foi feito pelos sócio-gerentes da Requerente, no sentido de a mesmo assumir a contabilidade daquela sociedade.

iii.           convidada a assumir a contabilidade, porém, não aceitou, não obstante a ter analisado, invocando por razões de saúde e bem assim, dada a complexidade (nas suas palavras) da situação.

 

Não tendo tido qualquer conhecimento sobre os factos, eventualmente poder-se-ia estar em causa a sua audição a título de perito, contudo, foi a própria testemunha que afirmou não estar ali nessa qualidade.

 

Face ao exposto, não se encontrando na qualidade de perito e não tendo conhecimento directo dos factos, em específico, à data da ocorrência dos mesmos, o depoimento prestado não assume qualquer valor probatório.

 

Com relevo para a decisão, não existem outros factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal Arbitral não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Acórdão do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

As questões fundamentais que se discutem nos presentes autos e alegadas pela Requerente são as seguintes:

 

1.            Do alegado vício de violação do artigo 46.º-A do Código do IRC

 

A Requerente invoca no pedido um alegado vício de violação do art.º 46.º-A do Código do IRC, argumentando que a AT não extraiu as devidas consequências da aplicação do regime simplificado de tributação nos anos anteriores aos factos tributários.

 

Na sua argumentação a Requerente justifica com o regime simplificado em que a sociedade se enquadrou de 2004 a 2009 o não cumprimento dos deveres de conservação de documentos ou dos deveres de lançamento contabilístico, deveres que persistem seja qual for o regime de tributação dos sujeitos passivos.

 

À data dos facto,s o artigo 115.º, n.º 5, do Código do IRC estipulava um prazo de 10 anos para a conservação dos livros de contabilidade, registos auxiliares e respetivos documentos de suporte- prazo esse que não sofre quaisquer restrições em caso de regime simplificado.

 

Por sua vez decorria também das regras do Código do IRC o dever de organizar a contabilidade de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística (artigo 17.º), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, com todos os seus princípios e normativos.

 

Resulta do conjunto dos factos provados que a Requerente não observou os deveres de conservação dos elementos contabilísticos e dos documentos de suporte dos anos de 2015 e dos anos anteriores, não possuindo folhas de caixa (ponto 26 factos provados) e entre 2002 e 2006 não contabilizava gastos efetivamente suportados (ponto 28 factos provados). A Requerente não logrou indicar e provar que gastos terão sido esses, em que data terão ocorrido e qual o seu montante.

 

Por outro lado, face às várias solicitações da AT para apresentar evidências de despesas em 2015 ou anos anteriores, não entregou qualquer comprovativo (ponto 27 e 29 factos provados).

 

O regime simplificado não dispensa da sociedade do cumprimento dos deveres supra descritos, pelo que não ocorreu violação do artigo 46.º-A do Código do IRC que, aliás, em 2015, já nem sequer se encontrava em vigor.

Por outro lado, ainda que sociedade lançasse saídas de dinheiro da sociedade de cada vez que incorria numa despesa a conta caixa tenderia a diminuir, o que manifestamente não aconteceu.

Pelo contrário.

 

A Requerente invoca que deixou de lançar as despesas na contabilidade por força do regime simplificado e que movimentava a conta caixa – mas teria sempre que evidenciar saídas de caixa no montante das despesas e manter folhas de caixa.

 

Diz-se no pedido de pronúncia arbitral que:

 

“Apesar de ser dispensável a apresentação dos documentos de despesas, para determinação do lucro tributável, o que é facto é que, os recursos financeiros para fazer face a essas situações, tinham que, obrigatoriamente, sair da sociedade. Como essa saida deixa de se fazer por via da contrapartida resultante da apresentação de um qualquer documento de despesa, os responsáveis pela contabilidade das empresas, sem qualquer outra alternativa prevista na lei ou constante de instrução administrativa, passaram a fazer essa movimentação pela "Conta Caixa".

 

Ora, a sociedade mesmo no regime simplificado tinha o dever de manter a sua contabilidade regularmente organizada, não estando dispensada de registar as saídas de dinheiro, nem de documentar as suas despesas, de forma que a contabilidade espelhasse uma imagem fiel e verdadeira do património da empresa.

 

Pelo que não pode justificar-se com as regras do regime simplificado (a que empresa esteve sujeita até 2009) a eventual inflação do valor registado em caixa em 2015.

 

Pelo que improcede o pedido com esse fundamento.

 

2.            Do alegado vício de violação do disposto no artigo 88.º do Código do IRC

 

Um segundo argumento usado pela Requerente prende-se com uma eventual violação do artigo 88.º do Código do IRC, por “não existirem despesas efectuadas pela Requerente, que possam ser consideradas como não documentadas”.

 

Segundo a Requerente “a AT não comprovou, como lhe competia, face ao disposto nos artigos 74.º e 75.º d LGT, que o saldo da conta caixa em 10.12.2015 corresponderia a despesas efetivas (não documentadas”.  

 

Dispõe o n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC:

1 - As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.

 

Como se lê no processo n.º 486/2019-T, cuja fundamentação seguiremos de perto:

 

“O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos»), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.

O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, no acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, que «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa”.

 

E continua-se no mesmo acórdão:

 

“(...) mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:

O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável. Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.

As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.

Na jurisprudência arbitral já havia sido defendido este entendimento, designadamente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011- T:

«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».

Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC se reconduzem a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário. (...)”.

 

Relativamente às regras de distribuição do ónus da prova, determina o artigo 74.º, n.º 1, da LGT que:

1 - O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.

 

Por sua vez, determina o artigo 75.º, n.º 1, da LGT que

1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.

 

No caso em apreço, face aos factos tidos como assentes (em especial os n.ºs 22, 23, 25, 26 e 27), é possível concluir ter existido uma divergência relativamente ao saldo caixa que se reporta a um certo período temporal, já que em 30-11-2015, o balancete apresentava o saldo de € 485.671,02, e 10-12-2015, não existiam valores em caixa.

 

Os registos contabilísticos em caixa foram feitos pelo contribuinte e gozam da presunção do artigo 75.º, n.º 1 da LGT – presumem-se verdadeiros.

 

Por outro lado, a AT levou a cabo uma acção inspectiva com a específica finalidade de averiguar a ocorrência da divergência na conta caixa (n.ºs 31, 32, 33, 34 e 35 dos factos provados).

 

Entretanto, a Requerente havia já sido notificada para apresentar elementos contabilísticos e prestar esclarecimentos (como resulta dos n.ºs 24, 26, 27, 28 e 29 dos factos provados), tendo tido oportunidade de juntar de documentos de suporte de despesas que tenham justificado a divergência.

 

Por outro lado, o Relatório de Inspecção Tributária tem valor probatório próprio que apenas poderia ter sido posto em causa caso a Requerente tivesse logrado pôr em dúvida os resultados probatórios aí coligidos, o que manifestamente não ocorreu. Com efeito a Requerente não prova quais as despesas efetivas que a sociedade teve no ano de 2015 e quais terão sido despesas que possam ter ocorrido nos anos anteriores e que tivessem deixado de passar pela contabilidade.

 

Afigura-se, assim, que a AT cumpriu o ónus de prova quanto aos elementos constitutivos da tributação autónoma, pelo que improcede o pedido com base neste fundamento.

 

Da mesma forma, e tendo em conta os factos provados, e a fundamentação constante do RIT, entendemos que não ocorreu erro sobre os pressupostos de facto e de direito em que assentou a liquidação.

 

3.            Quanto à manifesta falta de fundamentação da liquidação

 

A Requerente alega ter ocorrido falta de fundamentação.

 

E invoca esse respeito os artigos 21.º do CPT, 124.º e 125.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

 

Em direito tributário a exigência de fundamentação decorre especialmente do artigo 77.º, n.º 1 e n.º 2 da LGT, segundo os quais

“1. A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária 

2. A fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

Por outro lado, a exigência de fundamentação de actos administrativos lesivos consta do n.º 3 do artigo 268.º da CRP, segundo o qual “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos».”

 

Segundo Serena Neto e Carla Trindade em Contencioso Tributário, Volume I, Almedina, 2017, página 194 “Caso de verifique a falta de fundamentação legalmente exigida ou, caso a fundamentação do acto exista mas se revele insuficiente – por não cumprir os parâmetros acima referidos – o acto em causa é ilegal por vício de forma, suscetível de gerar a sua anulação, nos termos do artigo 99.º, alínea c) e d) do CPPT.”.

 

Ora como é jurisprudência reiterada do STA e foi reafirmado muito recentemente no processo n.º 0921/15.6BEPRT, de 16-09-2020:

 

“I - Nas liquidações adicionais praticadas após procedimento de inspecção tributária, o acto de liquidação tem de ser analisado e interpretado em conformidade com o conteúdo do relatório de inspecção.

II - Caso o acto de liquidação não contemple a referência expressa ao relatório de inspecção tributária, mas se verifique que o relatório de inspecção identifica cabalmente os factos tributários, os montantes sobre os quais incide o imposto, a taxa a aplicar e sustente a sua decisão na legislação aplicável, preanunciando ainda a emissão do acto de liquidação e a sua posterior notificação, e aquele acto venha a apresentar um conteúdo em tudo correspondente ao que resulta do relatório, tal é suficiente para que se considere preenchido, in casu, o dever de fundamentação do acto de liquidação”.

 

Por outro lado e como se pode ler também no acórdão do CAAD; Processo n.º 826/2019-T, “O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação. (   )”.

 

No caso em apreço, a fundamentação consta do relatório de inspecção, que foi junta com o processo administrativo, vertida depois para os pontos 33 e 34 da matéria de facto provada.

 

E consta do ponto 18 da matéria provada que a Requerente foi notificada do Relatório da Inspecção Tributária que deu origem ao acto de liquidação de IRC relativo ao ano de 2015 em apreço, resultado da acção de inspecção externa a que se refere a OI2017... e da acção de inspecção interna a que se refere a OI2017... .

 

Há, assim, uma perceptível remissão das liquidações adicionais efetuadas para a fundamentação que consta do Relatório da Inspecção Tributária, anteriormente enviado à Requerente, relativo ao exercício de 2015, a que se reporta a liquidação – como é aliás dito pela Requerente.

 

Constata-se, ainda, que na notificação do Relatório da Inspecção Tributária (que consta do PA) se refere expressamente que “a breve prazo, os serviços da AT procederão à notificação da liquidação respetiva, a qual conterá os meios de defesa, bem como o prazo de pagamento, se a ele houver lugar”.

 

Neste contexto, tendo a Requerente sido previamente notificada do Relatório da Inspecção Tributária e do despacho que o sancionou em que foi proposta correção às tributações autónomas de 2015, a liquidação em que se indicam importâncias corrigidas correspondentes às correcções previamente comunicadas não pode deixar de ser interpretada por um destinatário com capacidades de percepção normais como sendo a concretização da liquidação anunciada.

 

Assim, interpretando o teor do ato de liquidação no contexto em que foi praticado, conclui-se que teve por base o Relatório da Inspecção Tributária.

 

Por outro lado, a exigência de fundamentação expressa dos actos lesivos que é feita no artigo 268.º, n.º 3, da CRP, é compatível com a fundamentação por remissão e, no caso em apreço, contém-se no acto de liquidação uma remissão expressa para a fundamentação anteriormente remetida.

 

Para além disso, infere-se do pedido de pronúncia arbitral que a Requerente percebeu perfeitamente que as importâncias corrigidas que constam da liquidação correspondem às indicadas no Relatório da Inspecção Tributária e que a fundamentação a que se alude na notificação da liquidação é a do Relatório da Inspecção Tributária, que tinha sido previamente comunicada.

 

Assim, entende-se não se ter verificado a alegada falta de fundamentação.

 

4.            Vício de violação do disposto no artigo 63.º, n.º 4 da LGT e artigo 13.º do RCPITA

 

A Requerente alega que foram feitas duas inspeções ao mesmo imposto e ao mesmo período.

 

No entanto, a primeira inspecção foi para consulta, recolha e cruzamento de elementos (cfr. documento n.º 28 junto ao pedido de pronúncia arbitral) relativos a 2015, não se identificando aí os respectivos impostos.

 

Esta foi notificada em 11/12/2015 à sócia gerente.

 

Deste procedimento não resultou nenhuma liquidação adicional de IRC de 2015.

 

E só a segunda foi para um procedimento de inspecção externa propriamente dito de âmbito parcial, relativa a IVA retenções na fonte e IRC (ponto 18 factos provados).

 

Do relatório de inspecção consta que “as ordens de serviço OI2017... e OI2017... ambas com extensão ao exercício de 2015, nos termos do 3 do art.º 14 do RCPITA, tiveram âmbito parcial, em Iva, retenções na fonte e IRC, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 14.º RCPITA”.

 

A primeira é uma ordem de inspecção externa (cfr. documento n.º 30 junto com a PI), a segunda de inspecção interna (e consta do processo administrativo) e constam do processo administrativo.

 

A OI2017... foi acompanhada da respetiva carta aviso, tendo a notificação seguido em 13/07/2017.

 

A questão que se coloca é se o procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos respeitante ao ano 2015 inibe a realização de inspeções externas por parte da AT ao mesmo período.

 

A Requerente invoca a esse propósito o n.º 4 do artigo 63.º da LGT e artigo 13.º do RCPTTA.

 

À data dos factos determinava o artigo 63.º, n.º 4, da LGT que:

 

4 - O procedimento da inspecção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.

 

O que se proíbe no texto da lei são duas inspeções externas ao mesmo sujeito passivo com o mesmo âmbito – o que manifestamente não terá ocorrido, já que a primeira visou apenas a consulta, recolha e cruzamento de elementos.

 

Vedar à AT a possibilidade de efetuar inspeções externas porque algures no passado efetuou um procedimento de consulta, recolha e cruzamento de elementos, do qual não resultou qualquer liquidação adicional, parece-nos uma interpretação manifestamente contrária ao espírito e à letra da lei.

 

Assim, concluímos que não terá havido violação do artigo 63.º, n.º 4, da LGT.

 

5.            Quanto ao prazo de inspecção

 

A Requerente insinua que o procedimento de cruzamento, recolha e cruzamento de elementos não terá sido concluído no prazo legal.

 

Mas diz depois que terá sido concluído em 15/01/2016, “tudo dentro do prazo de 6 meses” e

a Inspecção Tributária foi naquela altura encerrada.

 

Ainda que a inspecção tivesse ultrapassado os prazos legais a questão não releva para a presente situação na medida em que nenhuma liquidação decorreu daquela inspecção, já que a inspecção que está na origem do pedido de pronúncia arbitral é posterior a essa.

 

Não ocorrendo aqui o vício de caducidade da liquidação – o único que poderia ser afectado por um eventual excesso na conclusão do prazo de inspecção. Com efeito o prazo de conclusão do procedimento de inspecção é de 6 meses, segundo o artigo 36.º, n.º 2 do RCPIT.

 

A consequência do incumprimento do prazo de seis meses não é a nulidade do procedimento de inspecção mas tão-só a não-suspensão da caducidade da liquidação, prevista no artigo 46.º, n.º 1 da LGT, que resultaria do cumprimento desse prazo - como já decidiu o STA, entre outros, no processo n.º 0709/14, de 25-02-2015, que

 

 afirmou também que tal interpretação “nos termos da qual e em síntese, a inobservância dos prazos legalmente definidos para a inspecção apenas relevam diretamente em sede de caducidade da liquidação, não ofende os princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade e imparcialidade”.

 

Não ficou provado que a inspecção para consulta, recolha e cruzamento de dados tivesse ultrapassado o prazo de seis meses

 

E ainda que tivesse ficado provado tal facto em nada afetaria a legalidade das liquidações em questão, que resultam de um procedimento inspetivo externo.

 

Pelo que improcede o vício invocado.

 

6.            Da alegada violação do princípio da prevalência de substância sob a forma

 

A Requerente alega ainda ter ocorrido violação do princípio da prevalência de substância sob a forma.

 

O princípio em questão encontra várias aplicações em sede de direito contabilístico, sendo mais restritas as situações em que provoca a anulação das liquidações em sede fiscal.

 

A qualificação da diferença de saldos entre duas datas como despesas não documentadas parte:

- do valor probatório que decorre da contabilidade da Requerente e dos valores que esta fez constar da conta caixa, em duas datas diferentes;

- da inexistência de meios financeiros na empresa que comprovem a existência do referido valor inscrito em caixa da data da verificação pela AT;

- do não fornecimento pela Requerente de quaisquer elementos que provem que em data anterior a Janeiro de 2015 teriam saído meios financeiros da empresa para pagamento de despesas, em que montantes, para que entidades.

 

Tendo em conta a matéria provada e os fundamentos constantes do RIT, entendemos que não terá havido violação do referido princípio da prevalência da substância sobre a forma, porque não foi feito pelo contribuinte qualquer esforço probatório quer por via documental quer por via testemunhal, que justifique uma não-qualificação dos factos como despesas não documentadas.  

 

7.            Dos juros indemnizatórios

 

A Requerente pede que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT.

 

Improcedendo o pedido de anulação da autoliquidação de IRC, improcede também o pedido de restituição do imposto pago e dos juros indemnizatórios.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral;

b)           Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira de todos os pedidos.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 257.511,24, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 4.896,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de Outubro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)

 

O Árbitro Vogal

(Suzana Fernandes da Costa)

 

O Árbitro Vogal

(Hélder Faustino)