Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 72/2023-T
Data da decisão: 2023-11-16  IRS  
Valor do pedido: € 3.041,08
Tema: IRS – Troca automática de informações
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Sumário:

Nos termos do disposto no artigo 76.º, n.º 1 da LGT, as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado fazem fé nos termos da lei, no entanto, o n.º 4 do mesmo preceito legal admite a possibilidade de prova em contrário sobre os factos nelas afirmados, como forma de contrariar a sua força probatória.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

 

  1. Em 3 de fevereiro de 2023, A..., contribuinte fiscal n.º..., residente na Rua ..., nº. ..., ... ..., doravante designado por “Requerente”, solicitou a constituição de tribunal arbitral e procedeu a um pedido de pronúncia arbitral, nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), com vista:
  1. à declaração de ilegalidade da decisão no sentido do indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares referente ao ano de 2017, e consequente anulação;
  2. à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares relativo ao ano de 2017, no montante de € 1.521,25 (mil, quinhentos e vinte e um euros e vinte e cinco cêntimos), e consequente anulação, e
  3.  à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares relativo ao ano de 2018, no montante de 1.689,08 (mil, seiscentos e oitenta e nove euros e oito cêntimos), e consequente anulação, bem como,
  4. à anulação das cobranças e procedimentos de contraordenação, que tenham sido instaurados com base nas liquidações oficiosas de IRS que se impugnam.
  1. O Requerente é representado, no âmbito dos presentes autos, pelo seu mandatário, Dr. B..., e a Requerida, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por AT) é representada pelas juristas, Dr.ª C... e Dr.ª D... .
  2. Verificada a regularidade formal do pedido, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, foi designado pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o signatário que aceitou o cargo, o que não foi questionado pelas partes.
  3. O Tribunal Arbitral foi constituído no dia 18 de abril de 2023, na sede do CAAD, sita na Avenida Duque de Loulé, n.º 72-A, em Lisboa, conforme comunicação da constituição do tribunal arbitral que se encontra junta aos presentes autos.
  4. No dia 12 de maio de 2023, a Requerida, através de requerimento, informou o presente Tribunal, que por despacho da Subdiretora-Geral de 2023.05.09, foi revogado parcialmente o ato impugnado relativo ao ano de 2018, juntando para o efeito a Informação n.º I2023... da Direção de Serviços das Relações Internacionais.
  5. Na sequência da revogação parcial do ato tributário referente ao ano de 2018 pela Requerida, foi o Requerente notificado, por despacho de 16 de maio de 2023 deste Tribunal, para informar quanto à sua pretensão na prossecução dos autos, relativamente à parte não anulada do ato tributário em causa.
  6. No mesmo dia, 16 de maio de 2023, notificada para o efeito, a Requerida apresentou a sua Resposta e juntou o processo administrativo.
  7. Não existindo necessidade de produção de prova adicional, para além daquela que documentalmente já se encontra incorporada nos autos, não se vislumbrando necessidade de as partes corrigirem as respetivas peças processuais, reunindo o processo todos os elementos necessários à prolação da decisão, por razões de economia e celeridade processual, da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do princípio da autonomia do Tribunal na condução do processo, da simplificação e informalidade processuais, no dia 22 de junho de 2023, por despacho, entendeu o Tribunal dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação das alegações escritas.
  8. Nesse referido despacho, determinou, ainda, o Tribunal proferir a decisão até ao termo do prazo fixado no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
  9.  No dia 17 de outubro de 2023, o Tribunal, por despacho, prorrogou o prazo da arbitragem pelo período de 2 meses, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT.

 

 

II. O Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, da seguinte forma:

 

O Requerente sustenta o pedido de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação de IRS dos anos de 2017 e 2018, em erro sobre os pressupostos de facto, porquanto assentam em valores de rendimentos indicados pela autoridade fiscal do Reino Unido, em sede de troca de informações fiscais, superiores aos efetivamente recebidos por si, manifestando o entendimento de ter contrariado a posição da Requerida face à prova produzida em sede de processo administrativo.

 

Mais, referindo que não pode ter o ónus de provar factos negativos, tais como não ter recebido quaisquer outros rendimentos além dos declarados e dos recibos de pagamento que junta ao processo.

 

III. Na sua Resposta a Requerida, invocou, em síntese, o seguinte:

 

A Requerida na sua Resposta, defende, que a informação que dispõe, e que se encontra no cálculo do IRS referente aos anos de 2017 e 2018, é proveniente de troca de informação com as Autoridades Fiscais dos Países Baixos, as quais comunicaram que o contribuinte em causa auferiu rendimentos por trabalho prestado naquele país sobre determinados montantes cujo direito de tributação pertence a ambos os países, nos termos da CDT celebrada com os Países Baixos.

 

Mais refere a Requerida que a idoneidade da informação proveniente das autoridades fiscais estrangeiras e quanto ao valor probatório da informação recebida, fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.

 

IV. Saneamento

 

O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, encontram-se regularmente representadas e o processo não enferma de nulidades.

 

O Requerente pede a cumulação de pedidos, alegando a existência de identidade de circunstâncias de facto e da aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, o qual sendo admissível, nos termos do artigo 104.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário e do artigo 3.º do RJAT, deve ser admitida.

 

V. Matéria de Facto

 

Para a convicção do Tribunal Arbitral, relativamente aos factos provados, relevaram os documentos juntos aos autos e o processo administrativo.

Ademais, é de salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respetivos articulados (pedido de constituição arbitral e Resposta da Requerida), à prova documental junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. Factos dados como provados

 

Com interesse para a decisão, dão-se por provados os seguintes factos:

 

  1. Nos anos de 2017 e 2018, o Requerente era residente fiscal em território nacional – cfr. acordo entre as partes, facto não impugnado - ;
  2. No ano de 2017, o Requerente foi trabalhador da sociedade E..., Lda, NIF..., tendo desenvolvido o seu trabalho como soldador, nos Países Baixos – cfr. Doc. n.º 5 junto com o pedido de constituição -;
  3. No ano de 2018, o Requerente foi trabalhador da sociedade E..., Lda, NIF ... e da sociedade F..., Lda, com o NIF..., tendo desenvolvido o seu trabalho como soldador, nos Países Baixos – cfr. Doc. n.º 9 junto com o pedido de pronuncia arbitral - ;
  4. O Requerente procedeu à entrega voluntária em Portugal das declarações de IRS de 2017 e 2018, dentro do prazo legal, tendo preenchido o anexo A (rendimentos de trabalho obtidos em Portugal), das referidas declarações modelo 3 de IRS. - cfr. processo administrativo - ;

Ano de 2017

  1. A declaração de IRS referente ao ano de 2017 deu origem ao ato de liquidação n.º 2018..., onde se apurou valor a reembolsar no montante de € 1.352,54 (mil, trezentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos) – cfr. processo administrativo -
  2. No dia 21 de setembro de 2021, o Requerente apresentou uma declaração de substituição, à qual foi atribuído o n.º ...-2017-..., respeitante ao ano de 2017, na qual incluiu um anexo J relativo a rendimentos de trabalho obtidos no estrangeiro (Países Baixos), tendo declarado ter auferido, a título de rendimento bruto, o montante de € 15.583,15 (quinze mil, quinhentos e oitenta e três euros e quinze cêntimos), e pago a título de imposto no estrangeiro a quantia de € 2.563,00 (dois mil, quinhentos e sessenta e três euros).  – cfr. Doc. n.º 4 junto com o pedido de pronuncia arbitral e processo administrativo - ;
  3. A declaração de substituição indicada em F. originou a liquidação n.º 2021..., da qual resultou imposto a pagar ao Estado no montante de € 169,11, que por estorno da liquidação n.º 2018..., no valor de € 1.352,54, resultou um valor a pagar de € 1.521,65 (mil, quinhentos e vinte e um euros e sessenta e cinco cêntimos) – cfr. processo administrativo - ;
  4. A Autoridade Tributária e Aduaneira, consultando os ficheiros originais recebidos das Autoridades Fiscais dos Países Baixos no âmbito da troca automática de informação, que tem origem na Diretiva 2011/16/EU de Conselho de 15 de fevereiro de 2011(DAC1), relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade, que foi transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei 61/2013 de 10 de maio, verificou que os montantes declarados na declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente, referentes ao ano de 2017, eram inferiores aos comunicados por aquelas autoridades – cfr.  Doc. n.º 1 junto com a Resposta - ;
  5. Através do Ofício n.º GIC-..., de 19.07.2021, foi comunicado ao Requerente «que não tendo esta entidade qualquer outro documento ou informação que possa disponibilizar esclarece que, informação prestada pela Administração Fiscal Holandesa (AFH) faz fé, de harmonia com o preceituado no n.º 4 do artigo 76 da Lei Geral Tributária que a seguir se transcreve: (…)» - cfr. processo administrativo - ;
  6. No dia 19 de julho de 2021, a AT solicitou ao Requerente para prestar esclarecimentos quanto à situação de divergência de valores inscritos na declaração de rendimentos de substituição por si apresentada e os comunicados pela Autoridade Fiscal estrangeira – cfr. processo administrativo - ;
  7.  No dia 1 de setembro de 2021, o Requerente submeteu nova declaração de rendimentos de substituição acompanhada dos Anexos H e J, à qual foi atribuído o n.º ...-2017-..., alterando apenas o código do país pagador dos rendimentos – cfr. processo administrativo - ;
  8. Nesta sequência, no dia 24 de outubro de 2021, a AT elaborou uma declaração de rendimentos oficiosa, à qual foi atribuído o n.º...– 2017 –..., relativamente ao ano de 2017, nela fazendo constar os valores de rendimentos (obtidos no estrangeiro) indicados na informação obtida pelas autoridades fiscais dos Países Baixos – cfr. processo administrativo - ;
  9. Desta declaração oficiosa, foi originado o ato de liquidação n.º 2021..., onde se apurou o valor de € 993,90 (novecentos e noventa e três euros e noventa cêntimos), que por efeito de regularização de documento anterior – nota de cobrança n.º 2021 ... ( € 1.162,50) e o estorno – liquidação n.º 2021... [169,11 €) , originou a nota de cobrança n.º 2021 ... de valor nulo – cfr. processo administrativo –
  10. No dia 9 de março de 2022, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação oficiosa de IRS do exercício de 2017, com o fundamento “de que auferiu na globalidade a quantia de 15.583,15€ (rendimentos obtidos exclusivamente no estrangeiro), sendo que qualquer outro valor comunicado pela Autoridade Tributária Holandesa, nomeadamente de 21.193,00€, não corresponde a rendimentos objetivamente entregues ao contribuinte, consubstanciando o valor, uma presunção, ou seja, uma base para liquidação de impostos, pelo que tal não corresponde à verdade.”  - cfr. processo administrativo - ;
  11. Em 02 de novembro de 2022, por despacho da Diretora-adjunta da Direção de Finanças de Aveiro a reclamação graciosa foi objeto de indeferimento, motivado na falta de apresentação de documentos que contrariassem a informação recebida das autoridades fiscais dos Países baixos.  – cfr. Doc. n.º 1 junto com o pedido de pronuncia arbitral –
  12. No dia 6 de dezembro de 2022, o Requerente apresentou Recurso Hierárquico contra a decisão de indeferimento proferida no âmbito da Reclamação Graciosa. – cfr. processo administrativo -

Ano de 2018

  1. No dia 20 de fevereiro de 2022, o Requerente apresentou uma declaração de substituição, respeitante ao ano de 2018, na qual incluiu um anexo J relativo a rendimentos de trabalho obtidos no estrangeiro (Países Baixos), tendo declarado ter auferido, a título de rendimento bruto, o montante total de € 12.114,07 (doze mil, cento e catorze euros e sete cêntimos), e pago a título de imposto no estrangeiro a quantia total de € 884,00 (oitocentos e oitenta e quatro euros). – cfr. Doc. n.º 7 junto com o pedido de pronuncia arbitral - ;
  2. As entidades empregadoras do Requerente, no ano de 2018, emitiram os correspondentes recibos de vencimento - cfr. Doc. n.º 9 junto com o pedido de pronuncia arbitral - ;
  3. A Autoridade Tributária e Aduaneira, consultando os ficheiros originais recebidos das Autoridades Fiscais dos Países Baixos no âmbito da troca automática de informação, que tem origem na Diretiva 2011/16/EU de Conselho de 15 de fevereiro de 2011(DAC1), relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade, que foi transposta para a ordem jurídica nacional através do Decreto-Lei 61/2013 de 10 de maio, verificou que os montantes inscritos na declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente, referentes ao ano de 2018, eram inferiores aos comunicados por aquelas autoridades – cfr.  Doc. n.º 2 junto com a Resposta - ;
  4. No dia 4 de agosto de 2022, a AT elaborou uma declaração de rendimentos oficiosa, relativamente ao ano de 2018, nela fazendo constar os valores de rendimentos (obtidos no estrangeiro) indicados na informação obtida pelas autoridades fiscais dos Países Baixos – cfr. processo administrativo - ;
  5. No dia 8 de novembro de 2022, o Requerente foi notificado da demonstração de liquidação de IRS referente ao ano de 2018, no valor a pagar de € 1.689,08 (mil, seiscentos e oitenta e nove euros e oito cêntimos) – cfr. Doc. n.º 2 junto com o pedido de pronuncia arbitral - ;
  6. No dia 3 de fevereiro de 2023, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral, junto do Centro de Arbitragem Administrativa-CAAD, contra os atos de liquidação oficiosa de IRS dos anos de 2017 e 2018.
  7. Por despacho da Subdiretora-Geral da Direção de Serviços das Relações Internacionais de 9 de maio de 2023, foi revogado parcialmente o ato de liquidação de IRS referente ao ano de 2018.

 

  1.  Factos dados como não provados.

 

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispõe o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correta composição da lide processual.

 

VI - DO DIREITO

 

A título introdutório entende o presente Tribunal que deve, desde já, referir que se reserva, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) (Vide Acórdão do Pleno da 2.ª Secção do STA, de 07.06.1995, Recurso n.º 5239), artigos 607.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil (CPC) e artigo 123.º, 1.ª parte, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicáveis ao processo arbitral tributário por força do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT),  ao direito de apreciar apenas os argumentos formulados pelas partes que entende pertinentes para a apreciação da questão aqui em causa, o que fará depois de ter identificado as partes e o objeto do litígio, ter enunciado as questões decidendas, e, depois de fundamentar a decisão discriminando os factos provados e os não provados,  mais, indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes e, por fim, apresentando a sua conclusão final (decisão).

 

Vejamos,

 

 

A – Questão decidenda

 

A questão controvertida nos presentes autos é a de saber se os atos de liquidação impugnados referentes ao IRS dos anos de 2017 e 2018 são ilegais por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por violação das regras do ónus de prova no procedimento tributário.

 

Ora, vejamos,

 

Da posição das partes

 

  1. O Requerente do presente pedido de pronúncia arbitral, em síntese, refere ter auferido rendimentos estrangeiros inferiores aos que serviram de base ao cálculo do apuramento do imposto IRS para os anos de 2017 e 2018 por parte da AT, impugnado nos presentes autos, provenientes de informação prestada pelas Autoridades Fiscais da Holanda.

 

  1. Menciona, o Requerente, ter exercido o seu dever de colaboração junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, facultando toda a documentação comprovativa dos valores indicados nas respetivas declarações de IRS, Mod. 3, como sejam, os recibos de vencimentos emitidos pelas entidades patronais e declarações destas, que suportam o seguinte:

 

 

Ano

Rendimentos estrangeiros declarados no Anexo J

Rendimento auferido em Portugal

Retenção na fonte

Contribuições para Segurança Social

2017

€ 15.583,15

-

€ 2.563,00

€ 1.714,15

2018

€ 12.114,07

€ 4.903,74

€ 884,00(1)

€ 1.332,55

 

  1. Esta retenção é só sobre os Rendimentos dos Países Baixos

 

  1. Conclui, mencionando não ter recebido qualquer outro rendimento, designadamente, o valor de € 21.193,00 (vinte e um mil, cento e noventa e três euros) comunicado pela Autoridade Tributária Holandesa, para o ano de 2017, e o valor de € 19.072,00 (dezanove mil, setenta e dois euros) comunicado pela Autoridade Tributária Holandesa, para o ano de 2018, os quais, segundo entende, não passam de uma presunção, ou seja, uma base para liquidação de impostos, que não corresponde aos rendimentos efetivamente por si auferidos, nos anos em causa.

 

  1. Por fim, manifesta o entendimento de que as presunções admitem prova em contrário, e que terá produzido toda a prova possível, nomeadamente, documental, para refutar a informação prestada pelas autoridades fiscais holandesas.

 

  1. Por seu turno, invoca a Requerida, na sequência da troca automática de informações fiscais, prevista na Diretiva 2011/16/EU, transposta para a legislação nacional pelo Decreto-Lei 61/2013, de 10 de maio, que a AT tomou conhecimento de que o Requerente obteve nos Países Baixos rendimentos da categoria A, no ano de 2017, no montante de € 21.193,00 (vinte e um mil, cento e noventa e três euros) e um total de imposto suportado de € 1.124,00 (mil cento e vinte e quatro euros), rendimento esse pago pela E..., Lda,

 

  1. … e no ano de 2018, o rendimento total de trabalho dependente por ele reportado foi de € 19.072,00 (dezanove mil, setenta e dois euros) e total de imposto suportado foi de € 885,00 (oitocentos e oitenta e cinco euros) rendimento esse pago pelas entidades patronais: E..., Lda e F..., Lda.

 

  1.  Na sequência dessa comunicação, os documentos de correção elaborados pela AT eliminaram os rendimentos do anexo A referente à entidade patronal E..., Lda tendo-se acrescentado um anexo J com rendimentos do trabalho dependente obtidos nos Países Baixos e respetivos impostos suportados em Portugal e naquele País.

 

  1. Ora, atendendo a que o Requerente é residente fiscal em Portugal e que comprovadamente obteve rendimentos no estrangeiro, alude a Requerida que fica o mesmo sujeito a IRS, o qual incide sobre a totalidade dos rendimentos, incluindo os auferidos no estrangeiro, conforme estipula o artigo 13.º e 15.º, n.º 1 do Código do IRS.

 

  1. Com efeito, refere, ainda, a Requerida que, conjugando as normas vigentes com o alegado pelo Requerente, que o elemento de conexão constante nas normas da CDT em causa é o local da prestação do exercício do trabalho,

 

  1. … pelo que, no caso em concreto, no ano de 2017, deve ter-se em consideração que o sujeito passivo terá exercido a sua atividade, em exclusivo, nos Países Baixos, e no ano de 2018, só parcialmente tal sucedeu, tendo os rendimentos sido declarados naquele País e aí tributados, de acordo com a informação que as autoridades fiscais dos Países Baixos comunicaram à AT portuguesa.

 

  1. Atenta esta particularidade do ano de 2018, por despacho da Subdiretora-Geral da Direção de Serviços das Relações Internacionais de 9 de maio de 2023, foi revogado parcialmente o ato de liquidação de IRS referente ao mesmo.

 

  1. Por assim ser, afere a Requerida que os rendimentos do Requerente foram tributados, nos anos em análise, no âmbito do disposto no n.º 1 do artigo 15.º da Convenção para evitar a dupla tributação celebrada entre Portugal e os Países Baixos (adiante designada “CDT”), o que significa que situando-se o domicílio fiscal do Requerente em Portugal, e o exercício da atividade tenha tido lugar na Holanda, a competência tributária é cumulativa.

 

  1. Cabendo, assim, ao Estado da residência a eliminação da dupla tributação gerada, através da concessão de um crédito de imposto, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 24.º da referida CDT.

 

  1. No que respeita à documentação apresentada pelo Requerente, afere a Requerida que apenas confirma que os rendimentos em causa foram tributados na Holanda, uma vez que se tratam de documentos provenientes das entidades patronais, relevando o facto dos mesmos não consubstanciarem documentos comprovativos emitidos pelas autoridades fiscais holandesas.

 

  1. Mais, afere a Requerida que, da análise conjugada da documentação apresentada pelas entidades patronais, com especial interesse, as declarações mensais de remuneração (DRM)/modelo 10, com referência ao Requerente, nos anos de 2017 e 2018, e aos esclarecimentos por esta prestados é possível concluir que parte dos valores declarados no modelo 10/DMR como ajudas de custo isentas de tributação foram de facto tributadas na Holanda enquanto rendimento de trabalho, estando dessa forma sujeitas a tributação.

 

  1. Assim sendo, sufraga a Requerida o entendimento de que os valores constantes dos anexos J de 2017 e 2018 que conduziram às liquidações oficiosas elaboradas pela AT estão de acordo com a informação disponibilizada quer pelas entidades patronais na DMR/modelo 10, bem como com a informação recebida das autoridades fiscais dos Países Baixos, as quais aliás fazem fé, nos termos do disposto no artigo 76.º da Lei Geral Tributária (LGT).

 

  1. Vejamos a quem assiste razão.

 

  1. Nos presentes autos, discute-se a legalidade dos atos de liquidação oficiosa de IRS dos anos de 2017 e 2018, os quais foram praticados pela AT, na sequência da troca automática de informações fiscais, prevista na Diretiva 2011/16/EU, transposta para a legislação nacional pelo Decreto-Lei 61/2013, de 10 de maio e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 64/2016, de 11 de outubro.

 

  1. Prevê o artigo 8.º da Diretiva 2011/16/EU, sob a epígrafe «Âmbito de aplicação e condições da troca automática de informações obrigatória», que:

« 1. A autoridade competente de cada Estado-Membro comunica à autoridade competente de qualquer outro Estado-Membro, mediante troca automática, as informações disponíveis sobre os períodos de tributação a partir de 1 de Janeiro de 2014 relativas a residentes nesse outro Estado-Membro, no que se refere às seguintes categorias específicas de rendimento e de património tal como devam ser entendidas nos termos da legislação nacional do Estado-Membro que comunica as informações:

a) Rendimentos do trabalho;

b) Honorários de administradores;

c) Produtos de seguro de vida não abrangidos por outros instrumentos jurídicos da União em matéria de troca de informações e outras medidas análogas;

d) Pensões;

e) Propriedade e rendimento de bens imóveis.»

 

  1. Ora, considerando que o Requerente, no ano de 2017 e 2018, era residente fiscal em Portugal, os Países Baixos, no cumprimento desta norma comunitária, e provavelmente transposta para o seu ordenamento jurídico, informaram a Autoridade Tributária e Aduaneira dos rendimentos que o mesmo auferiu no seu País.

 

  1. Sucede que, essa informação e a declaração de rendimentos apresentada pelo Requerente em Portugal, não são coincidentes.

 

  1. Por um lado, através da referida troca de informações, obteve a AT a informação que o Requerente, no ano de 2017, terá auferido, da sociedade E..., Lda, a quantia de € 21.193,00 (vinte e um mil, cento e noventa e três euros) a título de rendimento, e pago a título de imposto retido a quantia de € 1.124,00 (mil, cento e vinte e quatro euros), em virtude da atividade dependente desenvolvida no estrangeiro (Países Baixos),

 

  1. E no ano de 2018, terá auferido, em virtude da atividade dependente desenvolvida no estrangeiro (Países Baixos), da sociedade E..., Lda a quantia de € 9.445,00 (nove mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros) a título de rendimento, e pago a título de imposto retido a quantia de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros), e da sociedade F..., Lda, a quantia de € 9.627,00 (nove mil, seiscentos e vinte e sete euros) a título de rendimento, e pago a título de imposto retido a quantia de € 344,00 (trezentos e quarenta e quatro euros).

 

  1. E, por outro, refere, alega e afirma o Requerente não ter auferido tais montantes, juntando para o efeito os recibos de vencimento emitidos pelas entidades patronais nos anos em análise e declarações das suas entidades patronais.

Vejamos, então,

 

  1. O o artigo 75.º da Lei Geral Tributária (LGT) sob a epígrafe “Declaração e outros elementos dos contribuintes» prevê que:

«1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal, sem prejuízo dos demais requisitos de que depende a dedutibilidade dos gastos.

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

  1. As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo;
    b) O contribuinte não cumprir os deveres que lhe couberem de esclarecimento da sua situação tributária, salvo quando, nos termos da presente lei, for legítima a recusa da prestação de informações;
    c) A matéria tributável do sujeito passivo se afastar significativamente para menos, sem razão justificada, dos indicadores objectivos da actividade de base técnico-científica previstos na presente lei.
    d) Os rendimentos declarados em sede de IRS se afastarem significativamente para menos, sem razão justificativa, dos padrões de rendimento que razoavelmente possam permitir as manifestações de fortuna evidenciadas pelo sujeito passivo nos termos do artigo 89.º-A.

3 - A força probatória dos dados informáticos dos contribuintes depende, salvo o disposto em lei especial, do fornecimento da documentação relativa à sua análise, programação e execução e da possibilidade de a administração tributária os confirmar

 

  1. E, por seu turno, dispõe o artigo 76.º do mesmo diploma legal sob a epígrafe «Valor probatório», que:

«1 - As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei.

2 - As cópias obtidas a partir dos dados registados informaticamente ou de outros suportes arquivísticos da administração tributária têm a força probatória do original, desde que devidamente autenticadas.
3 - A autenticação pode efectuar-se pelos meios genericamente definidos pelo dirigente máximo do serviço.
4 - São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado
(negrito nosso).

 

  1. Esclarecem, Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[1], quanto a esta matéria que: “deve entender-se o n.º 4 com o sentido de que a atribuição de força probatória às informações de administrações tributárias estrangeiras não prejudica a possibilidade de prova em contrário nem a de gerar dúvidas sobre os factos nelas afirmados, como forma de contrariar a sua força probatória”.

 

  1. O Requerente junta, aos presentes autos, recibos de vencimento emitidos pelas suas entidades patronais, nos anos de 2017 e 2018, declarações por estas emitidas que, da sua leitura conjugada, atestam ter auferido os seguintes rendimentos nos Países Baixos (Holanda):

 

  1.  no ano de 2017, a título de rendimentos (estrangeiros) o montante de € 15.583,15 (quinze mil, quinhentos e oitenta e três euros e quinze cêntimos), que foi sujeito a retenção na fonte pelo valor de € 2.563,00 (dois mil, quinhentos e sessenta e três euros) e deduziu como contribuição para a Segurança Social a quantia de € 1.714,15 (mil, setecentos e catorze euros e quinze cêntimos);
  2. No ano de 2018, a título de rendimentos (estrangeiros) a quantia de € 12.114,70 (doze mil, cento e catorze euros e setenta cêntimos), que foi sujeito a retenção na fonte pelo valor de € 884,00 (oitocentos e oitenta e quatro euros) e deduziu como contribuição para a Segurança Social a quantia de € 1.332,55 (mil, trezentos e trinta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos).

 

  1. I.e., entende o presente Tribunal Arbitral que o Requerente fez prova suficiente de ter auferido rendimentos nos Países Baixos em valor inferior aos que constam da troca automática de informações prestada pelas autoridades fiscais holandesas,

 

  1. … pelo que, conforme refere a decisão arbitral proferida no âmbito do processo 570/2021-T, de 28 de janeiro de 2022, com as devidas adaptações ao presente caso:

«(…) não pode bastar à AT informar o contribuinte de que existe uma comunicação de valores, com uma qualificação de rendimento, obtido noutro país para que automaticamente possa ser erigido um ato de liquidação adicional com base única e exclusivamente nessa informação que só é do conhecimento da AT.

Na verdade, o direito à liquidação adicional de imposto tem também de assentar em evidências da sua sujeição a imposto e do valor devido, em conformidade com a lei interna.

(…)

Até porque, conforme o disposto no artigo 74.º, n.º 1 da LGT “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” (no mesmo sentido, o artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil).

Sobre o ónus da prova tem sido entendido que “(…) em regra, a administração tributária terá o ónus da prova dos pressupostos dos factos constitutivos dos direitos que pretender exercer no procedimento, enquanto os sujeitos passivos terão o ónus de provar os factos que possam servir de suporte à concretização desses direitos.” (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária. Anotada e comentada, encontro da escrita: Lisboa, 4.ª ed., 2012, p. 656).»

 

  1. Talqualmente como no caso julgado no citado aresto arbitral, nos presentes autos, não juntou a AT qualquer documento, “suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte” (Cfr. Acórdão proferido no processo n.º 01424/05.2BEVIS 0292/18, de 27 de fevereiro de 2019).

 

  1. Nesta sequência, é prudente fazer notar que é de conhecimento comum que aquando do destacamento de um trabalhador estrangeiro para prestar serviços na Holanda, as entidades patronais destes têm de proceder junto das autoridades holandesas de um registo mínimo para poder prestar serviços, e como tal têm de garantir perante esse Estado que os trabalhadores ao seu serviço recebem, pelo menos, o equivalente ao Salário Mínimo aí praticado.

 

  1. Com efeito, com a devida cautela que se deve ter na interpretação da legislação de estados terceiros,  esta é a imposição que é feita pela Lei de 27 de novembro de 1968 - a Lei de Salário Mínimo e Subsídio de Férias Mínimo - (Wet minimumloon en minimumvakantiebijslag)[2] da Holanda,

 

  1. … a qual, não só, leva a que os empregadores e empregados holandeses, mas também que os estrangeiros, cumpram os direitos e obrigações nela previstos com referência ao pagamento de salários mínimos e subsídios de férias, na Holanda, sob pena de multas pesadas aplicadas pela Autoridade/Inspeção do Trabalho Holandesa.

 

  1. Na verdade, a Holanda tem um regime de imposição de pagamento de remunerações igualitárias entre trabalhadores holandeses e estrangeiros, quando exerçam o seu trabalho na Holanda, 

 

  1. … imposição essa que passa por todos serem remunerados, fasquiando como mínimo, o salário mínimo legalmente definido há Holanda,

 

  1. … a qual, se incumprida, acarreta multas onerosas para os seus infratores.

 

  1. Deste modo, e para evitar as multas pesadas, por incumprimento das regras laborais holandesas, é prática habitual das entidades patronais estrangeiras que prestem serviços na Holanda,

registarem junto das Autoridades Fiscais Holandesas, uma remuneração, que corresponda ao salário mínimo, independentemente de os mesmos corresponderem ou não aos valores efetivamente pagos a esses trabalhadores.

 

  1. Embora, os trabalhadores não aufiram estes valores, é pago na Holanda uma retenção na fonte dos mesmos que provoca situações idênticas à dos presentes autos, comunicando as Autoridades Fiscais Holandesas à Autoridade Tributária e Aduaneira valores de rendimentos que os sujeitos passivos na maior parte dos casos possam na realidade não ter auferido.

 

  1. Voltando ao contexto da legislação nacional diremos que assim, procedendo à aplicação do Direito,  designadamente do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da LGT,  - considerando as normas acima citadas, a doutrina e a jurisprudência sobre a matéria – aos factos concretos dados como provados nos presentes autos, não pode deixar de se concluir que os atos tributários sindicados são ilegais, por vício de violação de lei, consubstanciado em erro sobre os pressupostos de facto e em violação das regras do ónus da prova no procedimento tributário, considerando-se, deste modo procedente o pedido de pronuncia arbitral.

 

Do pedido de anulação da cobrança e procedimentos de contraordenação que tenham sido instaurados com base nas liquidações oficiosas de IRS.

 

  1. O Requerente peticiona, ainda, que se proceda à anulação das cobranças e procedimentos de contraordenação, que tenham sido instaurados com base nas liquidações oficiosas de IRS que ora se impugnam.

 

  1. No que respeita a este pedido especificamente, é de referir que o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) procedeu à introdução no ordenamento jurídico português da arbitragem em matéria tributária, como forma de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal, através do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, no uso da autorização legislativa concedida pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010 de 28 de abril [Lei de Orçamento de Estado para 2010].

 

  1. Com efeito, a arbitragem em matéria tributária fixa «com rigor quais as matérias sobre as quais se pode pronunciar o tribunal arbitral. Assim, encontram-se abrangidas pela competência dos tribunais arbitrais apreciação da declaração de ilegalidade de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e os de pagamento por conta, a declaração de ilegalidade de actos de determinação da matéria tributável, de actos de determinação da matéria coletável e de actos de fixação de valores patrimoniais e, bem assim, a apreciação de qualquer questão, de facto ou de direito, relativa ao projecto de liquidação, sempre que a lei não assegure a faculdade de deduzir a pretensão anteriormente referida.» - vide preâmbulo  do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

  1. A competência dos tribunais arbitrais encontra previsão no artigo 2.º do referido diploma legal, do qual resulta que:

«1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;

c) (Revogada.)

2 - Os tribunais arbitrais decidem de acordo com o direito constituído, sendo vedado o recurso à equidade.»

(Redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro)

 

  1. O âmbito da jurisdição arbitral tributária, como refere a decisão arbitral proferida no processo n.º 669/2015-T, «ficou, assim, delimitado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material, abrangendo a apreciação de pretensões que se dirijam à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos (alínea a)).»
  2. Significa isto que, o tribunal arbitral – sem fazer alusão à questão da vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais constituídos nos termos do RJAT e à Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março[3], por não ter manifesto interesse para a matéria em causa nos presentes autos – apenas tem competência, ao abrigo do RJAT, para apreciar a declaração de ilegalidade de:
  1. Liquidação de tributos;
  2. Autoliquidação;
  3. Retenção na fonte;
  4. Pagamento por conta;
  5. De atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo;
  6. De atos de determinação da matéria coletável e
  7. de atos de fixação de valores patrimoniais;

 

  1. Ora, a competência dos tribunais arbitrais prevista no RJAT é taxativa, razão pela qual não é o mesmo competente para anular cobranças e procedimentos de contraordenação instaurados com base nas diversas liquidações de impostos, mas tão só a ilegalidade de atos imediatamente acima indicados.

 

  1. Face ao exposto, é este Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar e decidir o pedido de anulação das cobranças e procedimentos de contraordenação instaurados por via da liquidação dos atos tributários sindicados nos presentes autos, pelo que, quanto ao mesmo não se pronunciará, não sendo esta a sede própria para o efeito.

 

DECISÃO

 

De harmonia com o exposto, decide-se:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente, e em consequência,
  1. Anular a decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o ato de liquidação de IRS referente ao ano de 2017;
  2. anular os atos de liquidação de IRS dos anos de 2017 e 2018 sindicados nos presentes autos.
  1. Julgar improcedente o pedido de anulação da cobrança e procedimentos de contraordenação que tenham sido instaurados com base nas liquidações oficiosas de IRS.

 

 

Valor do Processo

Fixa-se o valor do processo em € 3.041,08 (três mil e quarenta e um euros e oito cêntimos) nos termos artigo 97.º-A, n.º 1, a), do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Custas

Custas a cargo da Requerida de acordo com o artigo 22.º, n.º 2 do RJAT, do artigo 4.º do RCPAT, e da Tabela I anexa a este último, que se fixam no montante de € 612,00.

 

Notifique-se.

Lisboa, 16 novembro de 2023

***

O Árbitro

 

 

(Jorge Carita)

 

 

 



[1] In Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª edição, 2012, pág. 672

[3] Através da Portaria n.º 112-A/2011, de 20 de Abril (adiante Portaria), o Governo, pelos Ministros de Estado e das Finanças e Justiça, vinculou os serviços da Direcção-Geral de Impostos e da Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, sendo que a estes serviços corresponde, presentemente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, que aprova a estrutura orgânica desta Autoridade, resultante da fusão de diversos organismos.

Nesta Portaria, estabelecem-se condições adicionais e limites de vinculação tendo em conta a especificidade das matérias e o valor em causa. – transcrito, com a devida vénia, da decisão arbitral proferida no processo n.º 669/2015-T