Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 89/2023-T
Data da decisão: 2024-01-22  IMT  
Valor do pedido: € 751.298,00
Tema: IMT – artigo 12.º, n.º 1 do Código do IMT; transmissões onerosas de imóveis por valor inferior ao VPT.
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SUMÁRIO:

            I – Para efeitos de tributação em IMT, o Valor Patrimonial Tributário constitui valor supletivo quando o valor declarado da transacção é superior e valor imperativo quando este é inferior.

II – Um tal mecanismo de determinação do valor a pagar de IMT não é constitucionalmente desconforme, nem sequer por haver situações em que, por força de previsões legais específicas, não opera.

III – Não há paralelismo material na aplicação da regra do artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT para efeitos de determinação do montante a pagar em IRS e em IMT. 

 

DECISÃO ARBITRAL

  1. RELATÓRIO

 

  1. No dia 14 de Fevereiro de 2023, A..., Lda. (NIPC...), B..., Lda. (NIPC...), C..., Lda. (NIPC ...), D..., Lda. (NIPC...) e E..., Lda. (NIPC...) (Requerentes), apresentaram requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), 6.º, n.º 3, al. b) e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).
  2. Pretendiam que fosse declarada a ilegalidade e se procedesse à consequente anulação do indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada e dos actos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT), constantes do documento n.º 1 anexo ao pedido de pronúncia arbitral (PPA), no montante total de € 1.171.982,00 (para o pedido principal de anulação total) e de € 751.298,00 (para o pedido subsidiário de anulação parcial).
  3. Indicaram como árbitro, ao abrigo do disposto nos artigos 5.º, n.º 3, al. b), e 6.º, n.º 2, al. b), do RJAT, o Prof. Doutor Sérgio Vasques.
  4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida) indicou como árbitro o Dr. João Menezes Leitão.
  5. Na sequência do pedido formulado pelos árbitros escolhidos pela Requerente e Requerida, o Conselho Deontológico do CAAD designou o Prof. Doutor Victor Calvete para presidir ao Tribunal Arbitral, vindo este a ficar constituído em 9 de Maio de 2023.
  6. Seguindo-se os normais trâmites, em 13 de Junho a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou excepções de incompetência em razão da matéria, da diferença entre os valores indicados pela Requerente referentes à anulação total e parcial por si pretendida e da falta de suporte legal para o pedido de anulação total dos actos tributários de liquidação de IMT, peticionando ainda a correcção do valor da causa.
  7.  Em 19 de Junho, a AT juntou o processo administrativo (PA).
  8. Em 23 de Junho, as Requerentes apresentaram contraditório em relação às excepções aduzidas pela AT.
  9. Em 12 de Setembro, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e a fixar prazos para a junção da tabela resumo que a Requerente se comprometera a entregar e para a produção de alegações. 
  10. Em 25 de Setembro, a Requerente apresentou requerimento com vários documentos e a alteração dos valores do pedido principal (que passou para € 1.136.072,74) e do pedido subsidiário (que passou para € 715.652,00).
  11. Não houve alegações.
  12. Em 3 de Novembro, por atraso na apresentação do projecto de decisão, foi determinada a prorrogação por dois meses do prazo previsto no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2.
  13. Em 29 de Dezembro, foi proferido despacho a corrigir o montante atribuído ao processo pelas Requerentes a partir do valor do seu pedido subsidiário, fixando esse valor em € 1.136.072,74 (um milhão, cento e trinta e seis mil e setenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), montante correspondente ao pedido principal das Requerentes após a correcção de todos os valores controvertidos, e a fixar prazo para que as Requerentes depositassem o montante em falta.

 

 

  1. PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.
  2. As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.
  3. A AT invocou diversas excepções, tendo as Requerentes exercido o contraditório sobre cada uma delas, nos termos que seguidamente se expõem:
    1. Quanto à incompetência do Tribunal em razão da matéria

A.1. Razões da AT:

A AT reconheceu que

pretendiam as Requerentes, no âmbito do procedimento de reclamação graciosa e, na

sequência da presunção de indeferimento tácito, pretendem no presente processo arbitral, que lhes seja permitido ilidir a presunção de que o valor de compra e venda corresponde ao VPT dos imóveis e não ao preço de compra e venda, demonstrando o valor efetivamente pago pela aquisição dos imóveis e manifestando-se disponível para providenciar as demais provas que razoavelmente se entendam necessárias.”.

 

Entendeu, porém, que era inadmissível a pretensão de utilizar em sede de IMT “o procedimento da prova do preço efetivo na transmissão de imóveis – previsto nos artigos 139.º e art.º 64.º do CIRC – que (…) só tem consequências no âmbito do IRC”.

E entendeu também que

Não tendo as Requerentes dado início, administrativamente, ao procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, mas apenas efetuado um pedido de reclamação graciosa que não tem essa virtualidade por força da natureza específica e precedente daquele mecanismo face à contestação das liquidações de imposto, como tem sido reconhecido na jurisprudência e secundado pelo Tribunal Constitucional (veja-se, entre outras, a decisão arbitral proferida no processo n.º 823/2021-T), mediante o qual poderiam fazer a prova do preço efetivamente pago na transmissão dos bens imóveis em causa nos presentes autos, não podem agora pretender fazer tal prova nem poderão impugnar a legalidade dos atos de liquidação de IMT em crise com esse fundamento.”.

 

            Mais defendeu que seria

 

constitucionalmente vedada, por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como do direito de acesso à justiça (artigo 20.º da CRP) e da legalidade [cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP], como corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, a interpretação, ainda que extensiva, que amplie a vinculação da AT à tutela arbitral fixada legalmente, por tal pressupor, necessariamente, a consequente dilatação das situações em que esta obrigatoriamente se submete a tal regime, renunciando nessa medida ao recurso jurisdicional pleno”.

 

A.2. Razões das Requerentes:

As Requerentes retorquiram que a posição da AT se traduzia na seguinte aporia:(i) o procedimento vertido no artigo 139.º do Código do IRC não produz efeitos em sede de IMT, mas que (ii) apenas por essa via poderiam as Requerentes ilidir a Presunção.

Pelo contrário, entendiam que “sendo ilidível uma presunção ao abrigo i.a. do mandamento vertido no artigo 73.º da LGT e, bem assim, do princípio da capacidade contributiva com assento constitucional, então essa ilisão poderá ser levada a cabo por qualquer meio, exceto onde o legislador tenha previsto um meio específico.

Ora, inexistindo “um mecanismo específico no Código do / para efeitos de IMT, ao contrário do previsto no Código do IRC (e no do IRS, por remissão), para se ilidir a presunção em causa (…) a Presunção poderá ser ilidida pelos meios de reação genericamente ao dispor do contribuinte, como é o caso da Reclamação Graciosa.”.

Invocaram em abono o decidido na Decisão arbitral proferida no processo n.º 661/2017-T, de 6 de Maio de 2018, argumentando ainda que

sendo este Tribunal competente para aferir da legalidade das Liquidações, e, logo, também da Reclamação Graciosa (enquanto ato de segundo grau), está o mesmo apto a tomar em conta a prova que se entenda necessária produzir para demonstrar essa ilegalidade, mormente, o erro sobre os pressupostos de facto que as Requerentes alegaram, independentemente de tal prova resultar ou não na ilisão da Presunção / prova de preço efetivo.”.

 

Numa diferente linha argumentativa, acrescentaram:

as Requerentes alegam, também e em primeira linha, a ilegalidade das Liquidações decorrente da eventual impossibilidade de se poder efetuar a prova do preço efetivo, pelo que sempre e em qualquer caso estaria este Tribunal habilitado a aferir essa ilegalidade, a qual é, por natureza, totalmente independente da efetiva realização de prova do preço efetivo.”.

 

A.3. Decidindo:

Começando por este último argumento das Requerentes, é fácil estabelecer a competência do presente Tribunal Arbitral: claro que estando apenas em causa um juízo sobre a (in)ilidibilidade de uma presunção, ou sobre a (des)necessidade da utilização dos mecanismos específicos disponíveis para a infirmar, nenhuma dúvida se poderia suscitar sobre tal competência. A questão de uma suposta taxatividade e tipicidade do procedimento de prova – que é, no fundo, ao que se reconduzem algumas das razões da AT (e, por essa via, ao possível extravasar da sua vinculação à jurisdição arbitral) – só faz sentido admitindo que a actividade do Tribunal implicaria uma indevida substituição dos procedimentos administrativos estabelecidos; ie – no caso, e segundo a AT – a substituição do mecanismo do artigo 139.º do Código do IRC (que, reconheça-se, para efeitos de IMT, a Requerida tem, simultaneamente, por obrigatória e irrelevante) por avaliações probatórias do presente Tribunal Arbitral. Essa questão – que não se confunde com a dos meios de prova admitidos para a demonstração do valor real da transacção – não contende, porém, com a competência do Tribunal. Poderia, quando muito, reconduzir-se, isso sim, à da existência (ou não) de uma condição de procedibilidade da impugnação (judicial e, por consequência, arbitral).

Conclui-se, portanto, que o presente Tribunal é materialmente competente para apreciar o pedido que as Requerentes entenderam submeter-lhe sobre a possibilidade de demonstrarem que o valor dos imóveis adquiridos foi inferior ao seu Valor Patrimonial Tributário para efeitos da apreciação da ilegalidade suscitada quanto às liquidações sindicadas.

 

  1. Quanto à diferença entre os valores indicados pela Requerente referentes à anulação total e parcial pretendida

B.1. Razões da AT:

            Notando que os valores apresentados pelas Requerentes nunca tinham casas decimais, que havia situações em que os valores pagos diferiam dos inventariados, e que as próprias somas continham erros, a AT apresentou em anexo à sua resposta um documento com os valores efectivamente liquidados (no montante total de € 1.126.615,92) e em que “a diferença entre o valor total das liquidações de IMT, em que foi considerado o valor do VPT (€ 1.126.615,92), e ao valor total das liquidações de IMT, caso tivesse sido considerado o valor do contrato (€ 412.826,41), é de apenas € 713.789,51, e não € 751.298,00, tal como é afirmado pelas Requerentes.

            Em consequência, argumentava a AT, “face à causa de pedir e pedido que subjazem no ppa, os atos tributários em causa apenas podem ser apreciados relativamente ao IMT ali liquidado e pago pela Requerente, sendo no demais, isto é, quanto aos montantes referentes às diferenças acima já assinaladas, inimpugnáveis.

            Adiante ia ainda mais longe, invocando que “há ineptidão do ppa, por falta de causa de pedir”.

 

B.2. Razões das Requerentes:

            Reconhecendo que o “software Microsoft Excel faz por defeito uso dos números com casas decimais, ainda que apresente números inteiros”, as Requerentes protestaram “juntar nova tabela resumo”. Quando o fizeram – dentro do prazo que o Tribunal Arbitral fixou –, reconheceram que, com uma excepção, os valores que tinham indicado estavam errados e que os da AT estavam certos.

            A excepção, decorrente de uma guia “erradamente emitida pela Autoridade Tributária como respeitando ao artigo n.º ... – Évora, quando deveria ter sido emitida por referência ao artigo n.º ...– Vila Franca de Xira” e substituída, por motivos técnicos assumidos pela AT, por uma guia a zeros, deu origem à divergência no “montante de EUR 9.456,86 [que] deve para todos os efeitos ser considerado como pago por referência ao artigo n.º ...– Vila Franca de Xira, cabendo no pedido das Requeridas”.

 

B.3. Decidindo:

Tendo em conta que o pedido das Requerentes se traduz, antes de mais, na “anulação do Indeferimento Tácito e, consequente, (i) anulação total das Liquidações por ilegalidade / inconstitucionalidade (…) ou, subsidiariamente, (ii) a anulação parcial das Liquidações, por erro nos pressupostos de facto”, há-de convir-se que os exactos montantes em causa são secundários. Invalidadas que fossem tais liquidações, os montantes a recuperar seriam exactamente os montantes pagos (acrescidos de juros indemnizatórios, se fosse o caso). Seja como for, a Requerente reconheceu os números apresentados pela AT e apresentou documentos que explicam e justificam a divergência de € 9.456,86.

Nesses termos, não havia razão para tratar a inicial disparidade de valores como matéria de excepção, e menos razões há agora, que a corrigiu, para o fazer.

Quanto ao efectivo valor da causa, que a AT solicitou fosse alterado, ver-se-á a final.

 

  1. Quanto à falta de suporte legal para o pedido de anulação total dos actos tributários de liquidação de IMT

C.1. Razões da AT:

Considerando que as Requerentes não contestaram as transmissões que originaram a dívida de imposto, nem o decurso do prazo que implicou a caducidade da isenção, “vindo estas apenas questionar tão só o quantum do IMT devido, por no seu entender dever ser relevado o valor do contrato ao invés do VPT para efeito da determinação da matéria tributável nos termos do artigo 12.º, n.º 1 do CIMT”, concluiu a AT que “o seu pedido de anulação total dos atos tributários de liquidação de IMT não tem suporte legal.”.

A AT invocou ser “pacífico na doutrina e na jurisprudência que o ato tributário é divisível, pelo que não afetando a ilegalidade o ato na sua integralidade, impõe-se apenas a sua anulação parcial.”, abonando-se nos acórdãos do STA de 30 de Janeiro de 2019 (processo n.º 0436/18.0BALSB) e de 08 de Junho de 2022 (processo n.º 01104/12.2BELRS), e concluiu que “quanto ao pedido de anulação total das liquidações de IMT deduzido pelas Requerentes no ppa, verifica-se a incompetência material do Tribunal”.

 

C.2. Razões das Requerentes:

            Objectaram as Requerentes que “a globalidade ou parcialidade da anulação das liquidações em crise, e correspondente reembolso global ou parcial, dependerá do iter cognoscitivo que vier a ser seguido por este Douto Tribunal”:

- “caso (…) se entenda que inexiste a possibilidade de se fazer prova do preço efetivo dos Imóveis, então, em suma, a Presunção resultará inilidível, em violação da LGT e da CRP, inquinando as liquidações na sua globalidade”;

 - “caso (…) se permita às Requerentes fazer prova do preço efetivo dos Imóveis, dando o Tribunal esse preço por bom / por provado, então, de facto, poderão as liquidações ser anuladas parcialmente / substituídas por outras que considerem como matéria tributável o Preço de Compra e Venda”.

 

C.3. Decidindo:

Parece claro que a cindibilidade ou incindibilidade do acto tributário supõe, antes de mais, a competência do Tribunal para determinar se existe, ou não, um vício que o afecte – e para decidir se o afecta total ou parcialmente. Assim sendo, a questão nunca pode ser de falta de competência do Tribunal por inexistência de “suporte legal que permita a anulação integral” das liquidações. Essa eventual falta de suporte legal interferirá com o provimento do pedido, não com a competência do Tribunal para o decidir.

 

  1. Improcedem, portanto, todas as objecções que a AT levantou à competência do Tribunal.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

  1. Todas as Requerentes estão colectadas para o exercício da actividade de compra e venda de bens imobiliários – CAE - 68100; a sociedade B... Lda., desde 23 de Outubro de 2017, e as sociedades A..., Lda., C..., Lda., D..., Lda. e E..., Lda., desde 20 de Novembro de 2017;
  2. As Requerentes reúnem, desde 2018, os requisitos necessários para gozarem da isenção de compra para revenda prevista no artigo 7.º do Código do IMT;
  3. No exercício dessa actividade, as Requerentes apresentaram declarações Modelo 1 do IMT, tendo inserido o código 15 no campo dos benefícios fiscais, de modo a viabilizar a celebração dos contratos de compra e venda dos prédios identificados nos quadros abaixo reproduzidos (tal como corrigidos pela AT) sem pagamento de IMT[1]:

 

 

 

 

 

  1. Em todos os casos, isso originou documentos únicos de cobrança (DUC) a € 0,00, utilizados nas respectivas escrituras de aquisição dos imóveis;
  2. Tendo passado três anos sobre a data da aquisição sem terem sido revendidos os prédios constantes desses quadros, as Requerentes requereram a emissão das respectivas liquidações de IMT;
  3. Em 31 de Agosto de 2022, as Requerentes apresentaram a reclamação graciosa contra as liquidações de IMT identificadas nesses quadros;
  4. Dando como tacitamente indeferida essa reclamação, apresentaram PPA em 14 de Fevereiro de 2023.

 

            III.2. FACTOS NÃO PROVADOS                                         

            Tendo em conta as posições das partes e a matéria considerada relevante para a decisão da presente causa, não há factos não provados.

 

            III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO EM MATÉRIA DE FACTO

Os factos dados como provados resultam dos documentos disponíveis nos autos e, acrescente-se, do acordo das Partes.

 

  1. DIREITO

IV.1. Questões a decidir

Por clareza de exposição, pode dizer-se que há a priori – isto é: antes de atender à configuração jurídica que Requerentes e Requerida querem fazer valer, e que podem levar à sua imbricação – quatro questões para resolver face ao pedido principal das Requerentes, duas das quais, numa primeira abordagem, alternativas.

A primeira questão é a da natureza jurídica do Valor Patrimonial Tributário para efeitos do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT) (que determina que tal valor constitui a base desse imposto quando superior ao valor constante do acto ou do contrato de transmissão).

A segunda questão é a de saber se esse valor “tabelado” pode ser substituído por outro (quando este se afigure inferior) para efeitos de determinação do montante de IMT a apurar.

Supondo que a resposta à pergunta anterior é positiva, a última questão será a de saber como pode ser então feita a demonstração de que não havia fundamento para dar preferência ao Valor Patrimonial Tributário sobre o valor constante do acto ou do contrato de transmissão (ou, poderia admitir-se, sobre um valor que não coincidisse com nenhum dos dois). Supondo que a resposta a essa segunda pergunta é negativa, a questão seria a de saber se tal regime é constitucionalmente admissível. Se a resposta a esta questão fosse negativa, mas só nesse caso, teria de se ponderar a questão da prova, que passaria assim a ser a quarta questão a tratar e que implicaria a mutação do pedido (em vez de se pretender a anulação total das liquidações, o que constitui o pedido principal formulado, pretender-se-ia a sua anulação parcial, o que constitui o pedido subsidiário deduzido).

Concluído esse percurso lógico, hão-de extrair-se as consequências em termos de validação ou não dos actos de liquidação efectuados e das consequências patrimoniais daí decorrentes.

           

IV.2. Posição da Requerente

Quanto à primeira questão, a Requerente defendeu, com larga soma de argumentos e um Parecer, que o Valor Patrimonial Tributário constitui uma “Presunção”. E não só constitui uma presunção, como constitui uma presunção com um fito anti-abuso e uma história a condizer.

      Começando por estabelecer que, como resulta da jurisprudência e escrevia um dos AA. citados no PPA[2], “A finalidade última do IMT é sujeitar a imposto a capacidade tributária manifestada pelos adquirentes de imóveis através dos fundos financeiros que mobilizam para essa aquisição.”, as Requerentes passavam directamente para a definição de “presunção” e para ilustrações da sua conveniência para, no dizer de outro dos AA. citados no PPA[3], “garantir mais eficientemente a regular e pronta percepção dos impostos, e, ao mesmo tempo, minorar a evasão e a fraude fiscais, assim conferindo “certeza e simplicidade às relações fiscais”.

            Ainda que, por essa ordem de ideias, a capacidade tributária das Requerentes parecesse resultar exuberantemente da lista de aquisições reproduzida na alínea c) dos Factos Provados, e parecesse igualmente claro que a discussão de cada um dos valores dessa lista retiraria “certeza e simplicidade às relações fiscais”, a argumentação das Requerentes ia em sentido inverso: a seu ver, “a utilização de uma presunção em direito fiscal, em particular em normas de incidência, surge como uma exceção que confirma a regra – pelo menos desde a Reforma Tributária (Democrática) de 1989”. E, como acrescentavam, “havendo uma presunção ilidível, cabe ao contribuinte demonstrar que esta não corresponde à realidade.

            Distinguiam seguidamente “presunções explícitas e implícitas”, citando o Acórdão n.º 753/2014 do Tribunal Constitucional e Jorge Lopes de Sousa, e contrastavam-nas com as “ficções” como introdução ao tratamento de ambas as figuras no Acórdão n.º 211/2017 do Tribunal Constitucional e em alguma doutrina (aliás divergente).

      Recapitulavam, seguidamente, a génese do n.º 1 do artigo 12.º do CIMT, remontando a 1899, e concluíam que tal norma constituía

Presunção, e clara presunção da existência de fraude / abuso*, que se tem por inaceitável. Se alguma vez o foi (aceitável), certamente não o é hoje, com todos os meios de prova disponíveis à Fazenda Pública, por defeito, e face à disponibilidade várias vezes demonstrada pelas Requerentes de partilhar toda e qualquer informação razoavelmente considerada necessária, inclusive via levantamento de sigilo bancário”.

      O passo seguinte era o inventário da jurisprudência sobre a inadmissibilidade de uma presunção inilidível do Valor Patrimonial Tributário em sede de IRS,

Culminando na declaração da inconstitucionalidade desta norma, por violação i.a. do princípio da capacidade contributiva, na interpretação dada pela AT que resultava em que a mesma contivesse uma presunção inilidível – cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional de 2 de maio de 2017 (Processo n.º 285/15) e de 19 de outubro de 2021 (Processo 488/2021).

      Depois de uma referência à Decisão do CAAD de 21 de Julho de 2022 (Processo n.º 766/2021), concluíam as Requerentes que “nada justifica que se pudesse concluir existir uma presunção naqueles casos e não existir no presente.”.

      Numa assinalável preocupação com possíveis contra-argumentos, analisavam seguidamente as disposições do artigo 44.º do Código de IRS e do artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT[4] e as alegadas “Inexistentes diferenças materiais face aos tributos” (visto que

(…) manifestação de capacidade contributiva em ambas as circunstâncias, seja no auferir de rendimento por alienação de um ativo patrimonial, seja no despender de meios financeiros para aquisição do mesmo, buscando a legislação em qualquer caso referência no valor monetário do negócio jurídico”).

      Acrescentavam ainda as Requerentes, sustentando-se na argumentação do Parecer de João Taborda da Gama, que a equiparação da tributação estática e dinâmica do património, aceite pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 211/2017[5], não tinha razão de ser:

“Foi, na reforma do património, necessário proceder à avaliação rápida e com o maior critério de justiça relativa possível, de um enorme stock de imóveis, para depois os tributar periodicamente na esfera dos seus proprietários (a simplificação de uma administração de massas, a necessidade de previsibilidade da fatura fiscal e da receita tributária, a possibilidade fáctica de aplicação, a necessidade de uma perceção de justiça e simplicidade pelos contribuintes que vinham de séculos de desatualização cadastral, tudo isto conjugado são fatores que não permitem, e muito menos permitiam há cerca de vinte anos, uma tributação estática e periódica do património que fosse, em cada ano, corrigindo do VPT, para cima ou para baixo, para o aproximar de uma forma célere, dinâmica e elástica, ao que seria um potencial justo valor imobiliário (…).

Ora, nada de semelhante se passa na tributação dinâmica do património em que há uma transmissão de um bem em mercado que atribui um valor de troca ao bem transmitido, através de um negócio jurídico formal. Neste caso estamos numa situação estruturalmente idêntica à que subjaz às normas declaradas inconstitucionais pelo Tribunal. A citação do Tribunal acima transcrita nada mais fez do que, em obiter dictum, referir de uma passagem as duas formas normais de tributação do património, nas quais o legislador recorre (como estamos a ver) ao conceito de VPT – mas não para legitimar o VPT como valor tributável mínimo inilidível na tributação dinâmica das transações imobiliárias. Aliás, toda a relevância desta jurisprudência – olhando à sua ratio decidendi – é precisamente a de deixar, de forma absolutamente clara, que num momento transacional onde há um valor de mercado, um preço trocado, onde não há qualquer possibilidade de dúvida legítima sobre a verdade material do negócio efetivamente praticado – os termos deste não podem ser ignorados de forma absoluta pelo direito tributário em vista do princípio da capacidade contributiva, mesmo que seja necessário impor ao sujeito passivo um esforço probatório acrescido.”

E, antes de nova invocação da Decisão do CAAD no Processo n.º 766/2021, rematavam com “o mui elucidativo teste comparativo (…) efetuado no Parecer (…) adotando a matriz de comparação e formulação constante do Acórdão do Tribunal Constitucional (…) 488/2021”:

“Com efeito, à semelhança do que acontece para efeitos de análise da norma do CIRS, também a referida norma, em sede de IMT:

• fixa o valor patrimonial tributário como: (i) pressuposto da sujeição a imposto, e (ii) critério para determinação da matéria coletável que tem por base um negócio jurídico formal;

• assenta numa disparidade entre os valores da transação e do valor do imóvel para efeitos tributários, disparidade essa relevante para efeitos de apuramento do montante de imposto devido;

• a origem do mecanismo, a que podemos chamar “de alerta”, que estatuem prima facie para o caso de divergência é o mesmo – a proverbial e histórica fraude fiscal e desatualização de matrizes. Ou seja, procura responder às exigências de procedimentos tributários de massas, mitigando os impactos negativos de potenciais comportamentos fraudulentos dos contribuintes;

• faz prevalecer critérios unitários previamente fixados pelo legislador (para determinar o valor patrimonial tributário), cujo resultado pode não coincidir com o valor de mercado do bem avaliado;

• sugere que, qualquer transação onerosa de bens imóveis, terá por valor tributável mínimo o valor patrimonial tributário do imóvel, sendo que tal pressuposto não se verifica sempre ou não se verifica necessariamente.

Como vemos, todos os pontos enunciados – os quais foram utilizados pelo Tribunal Constitucional para justificar que a existência de uma tributação presuntiva em sede de IRS que, ao não admitir prova em contrário, viola os princípios da igualdade e da capacidade contributiva – encontram igual justificação quando analisados à luz do critério previsto no artigo 12.º do CIMT.”

 

A encerrar a argumentação sobre a questão da “Presunção”, as Requerentes ainda cuidaram:

- primeiro, de distinguir

uma presunção mediata / apriorística / a montante face ao texto legislativo – eventualmente efetuada em sede de processo legislativo, onde a suspeita de promiscuidade entre gasto pessoais e profissionais levou o legislador a prever a tributação (autónoma) de determinadas despesas (e.g. com veículos, cf. artigo 88.º, n.º 3 do Código de IRC) – de uma presunção imediata, contida na própria norma de incidência tributária, interpretada isoladamente ou em conjunto com outras disposições, decorrente da, e manifestada na, respetiva aplicação.”,

 

para efeitos de separar presunções inultrapassáveis e já consideradas constitucionalmente conformes, da “Presunção” considerada como “um instrumento de técnica legística e não somente a causa e/ou desiderato legislativo ocorrido a priori.”;

            - segundo, de afastar a existência de um valor mínimo intrínseco dos imóveis, que tinha sido admitido pelo Acórdão do STA de 16 de Setembro de 2015 (Proc. 0156/15). E isso com base, essencialmente, nas seguintes razões:

É também inverosímil defender que se procurou estabelecer uma qualquer tributação mínima por referência a um qualquer valor intrínseco mínimo dos imóveis que corresponderia ao seu vero valor de mercado e equivaleria ao VPT.”;

O legislador não entendeu nem entende que haja outro referencial qualquer distinto do valor de mercado para o cálculo do imposto quando se refere ao VPT. Só crê que nesses casos o valor de mercado foi falseado.”;

A transmissão de um imóvel para efeitos de IMT não tem intrínseco um qualquer valor mínimo que não o valor de mercado do imóvel. Ou bem que o valor de mercado declarado é falso, servindo o VPT de segunda melhor opção, ou o é verdadeiro, cessando o VPT de o ser.”;

Não há um valor “de transação” diferente do valor “real” dos imóveis, exceto onde houver simulação, sendo esse o único desiderato da norma quando faz uso do VPT – corrigir esse abuso. Simplesmente, não o pode fazer de modo absoluto.”;

A outra opção seria de facto argumentar que o legislador quis que o VPT fosse visto como um valor intrínseco mínimo da capacidade contributiva demonstrada na transmissão do imóvel, mas contra esse entendimento é mister atender ao fortíssimo e claríssimo enquadramento histórico e sistemático.”;

A dar por boa a tese oposta, dir-se-ia então que quando o Estado está envolvido se abdicou dessa tributação mínima. Que o imóvel em causa dependendo de quem o transaciona já não tem afinal esse valor mínimo, o que obviamente não corresponde à realidade. O valor do imóvel / da transação é objetivo e não subjetivo. Não varia consoante as partes. Se um contribuinte particular compra um imóvel a um outro particular por um determinado preço, demonstra certa riqueza. Se compra o mesmo imóvel ao Estado pelo mesmo preço, demonstra obviamente a mesma riqueza.”;

Com efeito – ao contrário do que alega a jurisprudência em crise – só a tese das Requerentes, permite, essa sim, confirmar que a matéria tributável é apurada sempre com base em “condicionalismos objetivos, sem motivações de ordem subjetiva que possam criar distorção nesses valores”.”;

Resultado diverso tratar-se-ia não só de um absurdo lógico mas, também, e em todo o caso, de uma violação do princípio da igualdade.”;

Não podem restar dúvidas que, o regime do IMT, aplicável à transmissão de imóveis, quando recorre ao VPT, não tem a intenção material de estabelecer um qualquer valor mínimo intrínseco como valor da transação que não o valor de mercado. O que se passa é que, manifestamente, há desconfiança de que o valor em causa não seja o valor de mercado e, nessa medida, estabelece-se uma presunção desse mesmo valor de mercado que, funcionalmente, e só funcionalmente resulta num valor mínimo presumido.”;

Por outro lado, parece o argumentário em crise procurar destacar que o IMT não se aplica sobre a riqueza manifestada na transação, como sucede com o IRC e IRS, mas sobre o valor do património transmitido, como se tivessem, por isso, como referência coisas diversas e, por isso, deixassem de fazer uso da Presunção.”;

Mas não têm e não deixam. Sendo certo que ´rendimento´ obriga à consideração de despesas e ´manifestação de riqueza na transmissão de património´ não necessariamente, que um se apura na perspetiva do vendedor e outro do comprador, em ambos os casos se parte do valor da transação como manifestação de capacidade contributiva que, como bem indica o aresto em crise, tem “o valor de mercado como referencial fundamental”, i.e. em ambos os casos o legislador elegeu o valor de mercado do imóvel como a referência / o critério primacial de apuramento da matéria tributável – i.e. o quantum de capacidade contributiva − e em ambos os casos provocou a aplicação da Presunção onde o valor declarado é inferior ao VPT.”;

Por outras palavras, e como já se referiu, as componentes valor de realização no IRS e valor dos meios financeiros despendidos na transmissão de imóveis no IMT, apuram-se ambas por referência ao valor de mercado, fazendo ambas uso da Presunção.”;

Sendo certo que o mandamento do artigo 73.º da LGT é válido para qualquer tipo de tributação e claríssima a intenção do legislador de permitir “sempre” a ilisão de uma presunção. É esse o motivo pelo qual existem procedimentos que permitem demonstrar a realidade quando a mesma tem ínsita uma menor capacidade contributiva. O intuito de justiça tributária, de apuramento do devido imposto, de prevalência da verdade/realidade. Também no caso do IMT há apuramento de capacidade contributiva, com a diferença que olha para os meios financeiros despendidos pelo comprador ao invés do rendimento líquido do vendedor, mas em ambos os casos querendo tributar riqueza por referência ao valor de mercado.”.

 

*

Quanto à segunda questão (“A necessidade de aceitação da possibilidade de ilidir a Presunção sob pena de ilegalidade e inconstitucionalidade das Liquidações”), e antes de invocarem a jurisprudência constitucional, as Requerentes reiteraram que o “imperativo de ilibilidade de presunções em normas de incidência” era “antes de mais um imperativo de justiça”, e reafirmaram que

uma ficção / presunção de incidência tributária que, sem mais, não admitisse prova em contrário – com ou sem acrescida exigência probatória – quando a mesma é acessível deve, por defeito, ter-se como inaceitável num Estado de Direito e o artigo 73.º da LGT é assim um corolário do princípio da igualdade na sua vertente tributária / princípio da capacidade contributiva, tal como consignado no n.º 2 do artigo 5.º da LGT, e nos artigos 13.º, 103.º e 104.º da CRP.

      Passaram depois a transcrever passagens abonatórias da decisão do Tribunal Constitucional de 2 de Maio de 2017 (Acórdão n.º 211/2017), da doutrina, do Parecer e do Acórdão do STA de 8 de Novembro de 2017 (Processo n.º 01108/14), invocando ainda “por todos, o Acórdão do STA de 11 de outubro de 2017 (Processo n.º 0880/16), e as decisões do CAAD de 21 de outubro de 2019 (Processo n.º 331/2019), de 18 de outubro de 2019 (Processo n.º 156/2019-T) e de 28 de janeiro de 2020 (Processo n.º 431/2019-T).”.

      Na opinião das Requerentes,

a “inadmissibilidade de ilisão choca com o princípio da igualdade, pois, no limite, leva a que se queiram tributar rendimentos [leia-se riqueza] inexistentes. As ficções de valores de matéria tributável foram introduzidas na lei no pressuposto de que correspondem à realidade os valores determinados por via de presunção.” (Cf. pag. 29 do Parecer) de tal forma que se conclui que “(…), não obstante o princípio da eficiência do sistema tributário poder, em certas situações, legitimar o recurso a técnicas legislativas de simplificação e desburocratização, das quais constituem exemplo as presunções e ficções legais, essa utilização deve sempre ser temperada pelos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva e da tributação com base no lucro real, enquanto pilares essenciais do nosso sistema de tributação.” (cf. pág. 57 do Parecer).

      E acrescentaram, citando, in fine, o Acórdão do TCA-Sul de 28 de Fevereiro de 2019 (Processo n.º 356/10.7BELRS):

Também a posição do Tribunal Constitucional não se cinge ao IRS, tendo este Tribunal i.a. declarado inconstitucional uma presunção inilidível em sede de imposto sucessório (ao qual o Imposto do Selo veio, como se sabe, parcialmente suceder) (Acórdão de 21 de junho de 2003, Processo n.º 308/02), sendo possível afirmar que “A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem firmando um entendimento de princípio de inconstitucionalidade em matéria de normas que consagram presunções inilidíveis em matéria de direito fiscal, apontando como limite a consagração de presunções ilidíveis com o consequente direito do sujeito passivo de provar a falta de fundamento da presunção (…), e que O Tribunal de Justiça da União vem firmando o entendimento de que o combate à fraude ou à evasão fiscal não pode ser combatido através de normas que à partida excluam uma ponderação ou excluam totalmente a exigência de um mínimo de fundamentação por parte da Administração ao caso concreto, que o individualizam e nos quais se deve buscar a distinção, que a norma não pode prescindir, entre interesses legítimos e comportamentos abusivos por parte do sujeito passivo.”.

Do que concluíam que

Assim sendo, ao tributar uma realidade ficcionada, com base numa presunção / ficção inilidível vertida no artigo 12.º do Código do IMT, não sendo às Requerentes permitido ilidir essa presunção através da Reclamação Graciosa, enfermam as Liquidações e o Indeferimento Tácito de violação do princípio da igualdade / princípio capacidade contributiva, ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da CRP, sendo o contribuinte tributado com base numa manifestação de riqueza inexistente e da mesma forma que outro alguém que de facto aufira essa riqueza.”,

e que

Assim sendo, das duas uma, ou se consideram as Liquidações ilegais / inconstitucionais, onde o artigo 12.º, nº 1 do Código do IMT for interpretado no sentido de a Presunção ser inilidível (ou não conter uma presunção, o que para este efeito equivale a recusar a sua ilidibilidade), ou se reconhece o direito das Requerentes de comprovar o efetivo preço dos Imóveis / capacidade contributiva manifestada, e consequente ilisão da Presunção, como o procuraram fazer via Reclamação Graciosa, em termos que se recupera no presente processo arbitral.

*

A última questão tratada pelas Requerentes foi a da “Comprovação da veracidade do Preço de Compra e Venda / Ilisão da Presunção e correspondente ilegalidade das Liquidações”, seja porque deram por positiva a resposta à segunda questão, seja porque se terão bastado com as vagas imputações de desconformidade constitucional que polvilhavam o PPA[6].

      Segundo as Requerentes, os documentos de pagamento e cópias das escrituras seriam prova bastante dos montantes pagos:

os documentos comprovativos do pagamento do Preço de Compra e Venda dos Imóveis, pelos compradores aos respetivos vendedores, conforme descrito nos Documentos n.os 16 a 20, já juntos, respeitando o Documento n.º 16 a pagamentos efetuados por cada uma das Requerentes em outubro de 2018, o n.º 17 a pagamentos efetuados em dezembro de 2018, o n.º 18 a pagamentos efetuados em janeiro de 2019, o n.º 19 a pagamentos efetuados em fevereiro de 2019 e o n.º 20 a pagamentos efetuados em junho de 2019 (…)”;

foram juntos ao presente Requerimento, junção essa que igualmente se renova, cópias das Escrituras (cf. Documentos n.os 3 a 15), onde os respetivos vendedores declararam ter recebido a totalidade do Preço de Compra e Venda (e nada mais);”;

Assinala-se também que as entidades Vendedoras incluem instituições financeiras, entidades auditadas e inclusive cotadas em mercado regulamentado, umas e outras sujeitas a regulação e supervisão, tendo existido até intervenção estatal e supra-estatal (União Europeia) por via do Fundo de Resolução, porquanto não existe, também por isso, qualquer fundamento para considerar que o preço efetivamente pago poderia ter sido outro que não o Preço de Compra e Venda”;

As transações em causa e o Preço de Compra e Venda podem ainda ser comprovadas através das demonstrações financeiras dos Vendedores, as quais estão disponíveis para consulta através dos links (…[7]) que se dão por juntas aos autos (…)” e “através das comunicações efetuadas pelos Vendedores à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, de que se juntam um exemplar no link infra disponível para consulta e que se dá por junta aos autos (…[8])”;

      E, em todo o caso,

ao abrigo do princípio do inquisitório e da procura da verdade material que vincula a AT, consagrado i.a. nos artigos 58.º da LGT e 52.º do CPPT, esta, estando em posição para o fazer, deve utilizar todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correto apuramento dos factos, como sejam, caso se considere necessário, as declarações IES e Modelo 22 de IRC dos Vendedores.”.

      Assim, e sem prejuízo da disponibilidade que manifestavam para “prestar qualquer esclarecimento, ou partilhar documentação adicional”, concluíam,

dá-se por provado que o preço efetivamente pago pela aquisição dos Imóveis foi o Preço de Compra e Venda, ficando consequentemente ilidida a presunção contida no artigo 12.º do Código do IMT, devendo as Liquidações ter por base o Preço de Compra e Venda e não o VPT dos Imóveis e assim serem parcialmente anuladas.”,

pelo que

o Preço de Compra e Venda dever-se-á ter por demonstrado / comprovado como verdadeiro e a Presunção como consequentemente ilidida, e devem o Indeferimento Táctio / as Liquidações ser consideradas ilegais por erro nos pressupostos de facto e devolvido às Requerentes o imposto pago”.

           

IV.3. Posição da Requerida

Em contrapartida, quanto à primeira questão – a da natureza do Valor Patrimonial Tributário – a Requerida entendeu, em resposta, que a norma do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IMT constitui “um verdadeiro mecanismo de travão da celebração de negócios simulados quanto ao preço”, indo ao encontro da natureza anti-abusiva específica que as Requerentes lhe atribuíam, mas afastando-se delas por entender inexistir em tal norma “qualquer referência expressa que permita concluir tratar-se de uma presunção. Nem tal resulta da intenção do legislador.”. Em consequência, recusava a possibilidade de se poder substituir tal valor por outro.

Seguindo a sua Resposta, que, nesta parte, começava por recordar os contornos do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e as normas aplicáveis, sintetizando também a posição das Requerentes:

  1. O VPT funciona, assim, como um valor de referência, um limite mínimo do valor tributável, servindo a sua comparação com o valor declarado como instrumento de segurança do sistema contra a evasão e fraude fiscal – fins norteadores que importa não esquecer.”;
  2. o procedimento da prova do preço efetivo na transmissão de imóveis – previsto nos artigos 139.º e art.º 64.º do CIRC – só tem consequências no âmbito do IRC, não produzindo quaisquer efeitos em sede de IMI ou IMT, conforme resulta dos referidos artigos 139.º e art.º 64.º do CIRC e se sintetiza no Ofício Circulado 20136, de 2009-03-11, da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, que refere no seu ponto 27:

“O procedimento referido, bem como o valor que dele resultar provado, só tem consequências no âmbito do IRC, como resulta claramente das especificidades contidas nos artigos 58º -A e 129º do Código respetivo, não produzindo quaisquer efeitos em sede de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) ou IMT”.”;

  1. Note-se que o VPT constitui uma peça basilar na tributação do IMT, sendo o seu apuramento e determinação efetuado de acordo com as regras estabelecidas no IMI, assentando em princípios de objetividade, transparência e uniformidade, com vista a fixar o VPT de acordo com o valor de mercado dos imóveis;”;
  2. por outro lado, o legislador estabeleceu um procedimento próprio, autónomo, de reação contra a fixação do VPT nos termos previstos no art.º 30.º do CIMT, artigos 71.º a 77.º do CIMI e art.º 134.º do CPPT, tendentes a corrigir eventuais erros/ distorções relacionados com o VPT.”;
  3. Ora, considerar que o art.º 12.º do CIMT contém uma presunção, não só desvirtua, adultera, e inutiliza o procedimento de avaliação e fixação do VPT, uma vez que no limite o mesmo seria ignorado face à pretendida “presunção”, como constituiria uma forma de ultrapassar, os efeitos que advêm da utilização ou não dos meios de defesa previstos na Lei aplicáveis em matéria de fixação de valores patrimoniais.”;
  4. sobre esta matéria em concreto, veja-se, desde logo, o acórdão do STA proferido em16-09-2015 (processo nº 0156/15), e de cujo sumário resulta, desde logo, o seguinte:

«II - O disposto no artigo 12º, n.º 1 do CIMT não encerra qualquer violação do princípio da igualdade pelo facto de não ser aceite como valor atendível para efeitos de cálculo do imposto o valor da transacção no caso de ser inferior ao VPT;

III - O cálculo do imposto -CIMT- tendo por base o VPT, é a metodologia que melhor assegura o respeito pelo princípio da igualdade entre os contribuintes, por ser esse o que melhor reflecte o valor de mercado dos imóveis.»;

  1. Transcrevia de seguida várias passagens da fundamentação desse acórdão, da do Tribunal Central Administrativo Sul (TCASul) de 10 de Novembro de 2016 (processo n.º 04846/11)[9], bem como do sumário e da fundamentação do acórdão do STA de 9 de Dezembro de 2021 (processo n.º 0691/07.1BECBR), que para ele remetiam expressamente;
  2. Admitia a AT que “nem sempre o VPT é o critério escolhido pelo legislador (…) como se explicita no acórdão do STA de 08-06-2022 (processo n.º 01104/12.2BELRS)”, mas atribuía tal a estar-se “perante uma diferente ratio legis”, como se referia no sumário desse aresto:

“III - A ratio legis da norma ínsita na regra 16ª, do nº 4, do artº 12º do CIMT prende-se com a maior segurança da correspondência e conformidade do valor declarado ao valor real da transacção nas situações em que o acto da venda é realizado mediante a intervenção de autoridade administrativa, admitindo-se que existirá sempre um controlo daquelas autoridades sobre o valor da alienação.»”;

  1. E invocava ainda o decidido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 768/2022, de 15 de Novembro de 2022:

“a Constituição não impede que o legislador considere, para liquidação dos impostos, valores que não coincidem com os negociais (servem de exemplo, aliás, as diversas regras do artigo n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT). Nem sempre os valores negociais são os mais aptos a revelar a capacidade contributiva, seja devido à natureza e estrutura do negócio jurídico em causa, seja devido à natureza ou estrutura do imposto relacionado com aquele. Desde que a configuração do facto tributário não o descaracterize como revelador de capacidade contributiva ajustada ao imposto e sejam respeitadas as demais normas jurídico-constitucionais aplicáveis em matéria fiscal, o legislador pode aproximar-se mais ou menos dos valores negociais, designadamente quando, como é o caso, o faz para fazer prevalecer elementos objetivos – que estão por trás da determinação do Valor Patrimonial Tributário dos imóveis – que apresentam maior grau de certeza e congruência com o valor real do que o que resulta das inúmeras contingências dos processos negociais.»”;

  1. Finalmente, reafirmava que a sua actuação se pautara pelo respeito pelo princípio da legalidade e defendia-se do pedido de juros indemnizatórios invocando que, como reconhecido pelo CAAD no processo n.º 776/2021-T, não houvera “erro imputável aos serviços”.

 

IV.4. Decidindo:

Compreende-se o propósito das Requerentes no investimento na qualificação como “Presunção” do Valor Patrimonial Tributário de cada um dos 264 imóveis da lista constante da alínea c) dos Factos Provados – extrair dessa qualificação a consequência que o artigo 73.º da LGT impõe: “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”. Tanto admitem, aliás, que existe um “procedimento contraditório próprio” para o efeito (o do artigo 64.º do CPPT) – que, de resto, as Requerentes não accionaram.

No fundo, a qualificação defendida pelas Requerentes é instrumental para o efeito visado. Porém, a própria definição do artigo 349.º do Código Civil (“Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”) não permite senão duvidar que seja isso que está em causa na adopção do Valor Patrimonial Tributário como valor mínimo de transacção para efeitos de IMT[10].

Em alternativa, como as Requerentes admitem, podia dizer-se que se trata de uma ficção jurídica. Ou, mais razoavelmente, que a fórmula de cálculo do valor dos imóveis é uma “definição” do valor normal deste, sendo certo que o legislador tem ampla discricionariedade para escolher os elementos identificadores do que quer que seja (incluindo do que considera ser uma presunção). Basta talvez lembrar que, segundo o n.º 1 do artigo 38.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, os produtos da pesca são considerados "produtos agrícolas". Dizer que uma sardinha ou um atum se presumem produtos agrícolas não é mais forçado do que dizer, pelo inverso, que uma fórmula de cálculo é uma presunção. Em ambos os casos sabe-se exactamente o que se tem. Em ambos os casos não se infere coisa alguma desconhecida a partir disso: aplica-se a consequência jurídica que a norma determina. Em ambos os casos estamos fora da definição do artigo 349.º do Código Civil.

É certo que há abordagens jurisprudenciais e doutrinárias que admitem a natureza presuntiva do Valor Patrimonial Tributário, que as Requerentes aliás recensearam, mas há outras, de não menor racionalidade, que lhe negam essa natureza, como a AT também evidenciou. Que do “nome da coisa” se façam depender efeitos jurídicos não anda longe de puro nominalismo.

Como se deixou dito, a AT invocou “jurisprudência recente” (o Acórdão do STA de 9 de Dezembro de 2021) para apresentar uma abordagem a partir do regime do artigo 12.º do CIMT, em vez de a partir da taxonomia:

Decorre do referido preceito legal que o legislador elegeu um critério comparativo para determinar a matéria colectável para efeitos de IMT. Com efeito, a taxa de IMT incidirá sobre o mais elevado dos seguintes valores: o correspondente à contrapartida devida pelo adquirente ou o valor patrimonial tributário, verificando-se que o referido preceito legal não estabelece uma presunção, ou sequer uma ficção, de que nas situações em que o valor patrimonial tributário seja mais elevado, o preço corresponderá ao seu montante. De facto, o legislador elegeu como referência para o cálculo do imposto o valor mais próximo do valor real de mercado, o qual há-de corresponder ao valor declarado pelas partes ou ao valor patrimonial tributário (que desde a reforma da tributação do património constitui um valor aproximado do valor de mercado). A escolha da administração fiscal está, assim, limitada ao valor que for mais elevado. Esta opção legislativa é, aliás, um modo de prevenir a evasão fiscal e, assim, contribuir para a igualdade entre os cidadãos na tributação do património. Assim, não assiste ao contribuinte a possibilidade de provar, para efeitos de IMT, que o preço declarado corresponde ao preço efectivamente pago e é inferior ao valor patrimonial tributário.

 

 Remetia de seguida para o que o mesmo STA tinha entendido no seu Acórdão de 16 de Setembro de 2015 (Proc. 0156/15), e onde, entre o mais, se escrevera o seguinte:

Trata-se de uma norma de aplicação geral a todas as situações em que ocorra a alienação de imóveis, cuja determinação do valor ocorre de acordo com regras previamente estabelecidas por diploma legal, sabendo os interessados de antemão qual o regime que lhes será aplicável, assim se mostrando respeitado o disposto no artigo 13º, n.º 1 da CRP.

Contrariamente ao pretendido pela recorrente, a prova de que o valor da transacção foi inferior ao valor real do imóvel, não consubstancia um direito que o legislador, nem o ordinário, nem o constitucional, tenham querido atribuir aos contribuintes.

Na verdade, as razões que determinam que a tributação se faça pelo maior dos dois valores, o da transacção ou o real, visa precisamente contribuir para a igualdade de todos os cidadãos, isto é, visa criar um regime legal e que todos sejam tratados de igual forma, cfr. artigo 104º, n.º 3 da CRP.

A avaliação dos imóveis feita nos termos do CIMI (valor tributário) pretende ser uma avaliação o mais próxima possível dos valores de mercado, não contribuindo para a formação do valor circunstâncias próprias e específicas de cada contribuinte que possam determinar valores inferiores ou superiores. Tratam-se de condicionalismos objectivos, sem motivações de ordem subjectiva que possam criar distorção nesses valores.

Portanto, e ao contrário do que a recorrente pretende, não lhe assiste o direito de ver o imposto calculado sobre o valor concreto da transacção, apesar de esse valor ser inferior ao resultante da avaliação nos termos do CIMI, cfr. artigo 12º, n.º 1 do CIMT, nem isso constitui qualquer presunção inilidível de que o valor resultante da avaliação corresponde ao valor da transacção. É o próprio legislador que admite que o valor patrimonial resultante da avaliação possa efectivamente ser superior ao concreto valor da transacção, mas é esse valor resultante da avaliação que mais se aproxima do real valor de mercado dos imóveis, e só nesta medida é que é possível respeitar o disposto nos artigos 13º, n.º 1 e 104º, n.º 3 da CRP, ou seja, todos os cidadãos são tributados pelo valor de mercado dos imóveis que possuam.”.

*

            Na jurisdição arbitral, o caso mais próximo – no tempo e na sua configuração – foi decidido em 14 de Setembro deste ano (processo n.º 620/2022-T), num tribunal arbitral igualmente constituído com árbitros indicados por Requerente e Requerida e municiados com argumentação e um Parecer presumivelmente idênticos aos que foram apresentados nos presentes autos.

Em tal decisão escreveu-se, de permeio com largo inventário de doutrina, que

53. Verifica-se, portanto, que o objectivo subjacente à previsão do VPT como valor tributável foi o de atribuir ao património transmitido um valor transaccionável mínimo,

aproximado ao valor de mercado, calculado com base numa fórmula objectiva, transparente e     previsível, que vigora para efeitos de IMI, e que ainda assim consegue ter em consideração as específicas características do imóvel que podem influenciar positiva ou negativamente no seu valor.

e que

66. A tributação da riqueza transferida com base no VPT nada mais é do que a indexação pelo legislador da norma de determinação do valor tributável a um valor mínimo de mercado, calculado de forma uniforme quanto a todos os contribuintes, tal como sucede no domínio do IMI. E assim é porque, tal como se constatou, o objecto último da tributação é afectar o património em si considerado, cuja avaliação é conhecida e pré-determinada pelo legislador.

 

Em consequência, concluiu então a maioria dos membros desse colectivo que

71. Em face do exposto, conclui-se que o artigo 12.º, n º 1 do CIMT não consagra nenhuma presunção. Consequentemente, verifica-se uma impossibilidade objectiva de violação do disposto no artigo 73.º da LGT, que prevê o carácter obrigatoriamente ilisivo das presunções constantes de normas de incidência, aqui entendidas no seu sentido lato de normas de determinação e quantificação do imposto.”,

 

antecipando depois, com argumentação subsequente, que

73. Acresce que, também não se verifica qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade na sua dimensão de capacidade contributiva.”

*

Ainda que se pudesse aderir sem mais a essa posição – que também goza da deferência às decisões do mais alto Tribunal da jurisdição tributária (cujas decisões de 16 de Setembro de 2015, no processo n.º 0156/15, e de 9 de Dezembro de 2021, no processo n.º 0691/07.1BECBR, foram igualmente mencionados na fundamentação da referida decisão do CAAD) –, importa afastar o argumento que as Requerentes julgam poder desequilibrar a balança das opiniões adversas chamando à liça o Tribunal Constitucional:

- tendo em conta que a norma do Código do IRS que remetia para a norma do n.º 1 do artigo 12.º do CIMT (constante do n.º 2 do seu artigo 44.º [11]) foi julgada inconstitucional (Acórdão n.º 211/2017) porque constituía uma presunção inilidível (a autonomia das questões que antes se elencaram tende a diluir-se), o argumento das Requerentes sobre o paralelismo normativo poderia triunfar por essa via[12].

Podia até dizer-se que, ao pretender inferir um facto desconhecido de um facto conhecido, as Requerentes estavam a usar o Acórdão n.º 211/2017 do Tribunal Constitucional (para o qual remete o Acórdão n.º 488/2021) como presunção da inconstitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 12.º do CIMT.

Acontece, porém, que essa mesma decisão do Tribunal Constitucional afastava expressamente essa, digamos, “presunção das Requerentes”, afirmando que “é de registar que [a norma do artigo 44.º, n.º 2, do Código do IRS] não encontra paralelo no direito infraconstitucional”. E, para não deixar dúvidas de que o paralelismo invocado pelas Requerentes não existia, fazendo o “confronto com disposições legais cujo teor se afigura semelhante ao da norma posta em crise”, escrevia-se nesse aresto:

Também não se mostra determinante o teor do artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT. Aí se prevê, na determinação do valor tributável, que «o IMT incidirá sobre o valor constante do acto ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior». Contudo, esta norma não consagra rendimentos presumidos. O imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade sobre imóveis e das figuras parcelares desse direito e é devido pelo adquirente do imóvel (cfr. artigo 4.º, n.º 1, do CIMT), configurando-se como um imposto (dinâmico) sobre o património e não como um imposto sobre o rendimento.[13]

Tendo em conta que o Acórdão n.º 488/2021 do Tribunal Constitucional se limitou a remeter para esse, e a reproduzir trechos desse, anterior aresto (como o já fizera a Decisão Sumária n.º 45/2018), é seguro concluir que a jurisprudência constitucional que as Requerentes invocaram a seu favor depõe contra a sua pretensão. No mesmo sentido vão, aliás, o mais recente Acórdão n.º 768/2022, citado pela AT[14], e uma decisão precursora: a do seu Acórdão n.º 278/2006.

 Estava então em causa a seguinte norma do Código de Imposto Municipal de Sisa e do Imposto Sobre Sucessões e Doações (CIMSISD): “Se for feita avaliação, o valor resultante prevalece sobre qualquer dos valores indicados nos §§ 2.º e 3.º, excepto sobre o preço convencionado, quando este for superior.”, e escreveu-se o seguinte na referida decisão:

5.Não há, também, nenhuma similitude essencial entre a técnica das presunções inilidíveis de que o legislador fiscal lançou mão, em 1982, para tributar mútuos e aberturas de crédito efectuadas pelas sociedades a favor dos sócios, e a prevalência dos valores de avaliação sobre os declarados nas escrituras de compra e venda de imóveis. Nos mútuos e aberturas de créditos pelas sociedades aos seus sócios há transferências patrimoniais temporárias, como que “em circuito fechado”, que podem ter diferentes significados económicos. O que o Tribunal Constitucional censurou não foi a presunção de uma certa implicação fiscal, mas sim a impossibilidade de comprovar que essa implicação fiscal não devia ocorrer.

No caso dos autos, está-se apenas perante uma forma especial da regra geral formulada no § 2.º do artigo 19.º do CIMSISD:

“o valor dos bens será o preço convencionado pelos contratantes ou o valor patrimonial, se for maior.”

Quando a recorrente insiste em querer fazer prevalecer o preço declarado sobre a avaliação esquece que, no sistema de tributação da transferência de propriedade de imóveis adoptado no Código da Sisa, o preço de venda, mesmo sendo real (não esteve em causa que não fosse), cedia perante outros índices quando estes fossem mais elevados, nos termos do referido no § 2.º, de diversas das regras do § 3.º e do § 4.º do referido artigo 19.º.

Ora, no contexto de um princípio geral de prevalência do valor mais alto, é evidente que a aproximação da lógica da avaliação por uma Comissão ad hoc a uma presunção inilidível não tem qualquer fundamento. Em tal lógica, a estar alguma coisa mal na norma do § 4.º do artigo 19.º do CIMSISD, não seria a previsão de o valor determinado pelas Comissões de Avaliação prevalecer sobre o preço convencionado quando este fosse inferior, mas sim a própria regra da prevalência do maior valor – de que tal § 4.º era apenas um caso especial.

6. O que se disse, em consequência, remete para o primeiro argumento da recorrente, esse de âmbito mais alargado: em todos os casos em que se dê prevalência a um valor mais alto, sendo inferior o preço pago – e, mais especificamente, no caso dos autos –, não se estaria o imposto a desviar da capacidade contributiva e da tributação pelo valor real?

É evidente, porém, que tal argumento assenta no pressuposto de uma equiparação do valor real ao que é pago, quando o legislador, para efeitos de tributação de transmissão de imóveis, preferiu equiparar o valor real ao mais alto dos índices que o permitissem revelar, fosse ele o preço ou outro qualquer.

Ora, não só não é demonstrável que o preço tenha de reflectir sempre melhor do que esses outros índices o valor real do bem que é transaccionado, como nem sequer a tributação (da transmissão) do património está sujeita aos princípios constitucionais da tributação do rendimento, que (e expressamente só prevista para o caso das empresas) incide fundamentalmente sobre o rendimento real. Naturalmente, não é pelo facto de a recorrente ser uma empresa que tal princípio se estende às suas aquisições de imóveis.

*

Aliás, não são só esses acórdãos do Tribunal Constitucional que contrariam a tese das Requerentes sobre o paralelismo entre a norma do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IMT e a norma, aparentemente dela derivada, do n.º 2 do artigo 44.º do Código do IRS: também o Acórdão n.º 753/2014, invocado pelas Requerentes a propósito da distinção entre presunções implícitas e explícitas, afastava a possibilidade de qualquer dessas qualificações para uma norma em relação à qual, mutatis mutandis, se poderia replicar todo o seu discurso no PPA[15]:

Não há aqui uma presunção em sentido próprio. A norma não permite presumir um qualquer facto tributário, a partir da ocorrência de transacções de partes de capital entre empresas em relação de grupo, que o sujeito passivo pudesse contraditar através de um procedimento de prova. Limita-se a desqualificar como custo os resultados negativos que provenham dessas transações.

Certo é que essa desqualificação pode determinar um aumento do imposto a liquidar por virtude de não ser possível refletir na matéria coletável as perdas imputáveis à operação. Mas essa é a necessária decorrência de um mecanismo legal de funcionamento automático que incide sobre os critérios de dedutibilidade dos custos ou perdas. Tratando-se de um critério legal de apuramento da matéria coletável, e não de um facto tributário presumível que seja imputável ao sujeito passivo, não tem cabimento a admissão da prova em contrário.

 

Mesmo na ausência das já referidas pronúncias expressas dos juízes do Palácio Ratton, a partir da decisão que acaba de se citar já não haveria motivos para supor que uma norma de afastamento da relevância de certas despesas por serem presumivelmente manipuláveis fosse constitucionalmente conforme e uma norma que, pela mesma razão, estabelece um limite de relevância dos valores de transacção – para efeitos de tributação dessa transacção – não o fosse. Afinal, a desconsideração de despesas é mais drástica do que a limitação a valores padrão de transacção, preterindo os que, dependendo de circunstâncias tão mutáveis como a conjuntura económica, as motivações subjectivas de adquirentes e alienantes, ou o “estado de necessidade” dos vendedores, variam continuamente no mercado. Repete-se: “Tratando-se de um critério legal de apuramento da matéria coletável (…) não tem cabimento a admissão da prova em contrário.”.

A terceira questão a esclarecer não era, por isso, a da prova do preço pago – essa é expressamente desconsiderada pelo legislador quando inferior ao Valor Patrimonial Tributário – mas a da conformidade constitucional dessa desconsideração.

Assim, desinteressa considerar os índices de veracidade dos valores de cada uma das 264 aquisições efectuadas pelas Requerentes. A invocação de tais índices é irrelevante porque o sistema supletivo[16] de fixação do Valor Patrimonial Tributário para efeitos de IMT é – por opção legislativa que só poderia ser afastada com fundamento em desconformidade constitucional –, um sistema que não admite contra-prova. Foi isso que o STA estabeleceu no referido Acórdão de 16 de Setembro de 2015 (Proc. 0156/15), foi isso que o Tribunal Constitucional admitiu expressamente no seu Acórdão n.º 278/2006, foi isso que salvaguardou no seu Acórdão n.º 211/2017 e foi isso que reiterou no seu Acórdão n.º 768/2022.  

*

Ex abundanti, respigando as referências à eventual inconstitucionalidade de um tal regime – que as Requerentes recortaram (quase[17]) sempre por referência a presunções inilidíveis e em mimetismo com o regime de determinação do valor de aquisição dos imóveis inicialmente vigente em sede de IRS (e também por paralelismo com a inadmissibilidade de presunções inilidíveis em sede de imposto sucessório), paralelismo que já se viu soçobrar por inteiro –, constata-se que ele assentaria na violação de um de dois princípios – rectius, de ambos: o da capacidade contributiva e o da igualdade. Acontece que não há forma alguma de pretender que, para efeitos de tributação dinâmica da movimentação patrimonial por entidades que compram para revender – como é o caso das Requerentes – a capacidade contributiva[18] possa ser feita derivar do valor (maior ou menor) do que se adquire: como parece óbvio, pelo menos em tal caso a capacidade contributiva não é revelada pelo valor das coisas que se compram (embora o pudesse ser pela sua quantidade…).

Por outro lado, em matéria fiscal, o princípio da igualdade invocado pelas Requerentes[19], vai vinculando cada vez menos o legislador à medida que as opções que toma se vão aproximando das regras: tal princípio

deve sofrer uma interpretação e controlo tanto mais exigente quanto mais próximo nos encontremos dessas decisões primárias. A decisão sobre o critério a empregar na repartição dos impostos ou na repartição das taxas é mais relevante ao princípio da igualdade do que a decisão sobre a tributação dos rendimentos reais ou presumidos ou a decisão sobre a tributação dos custos directos ou indirectos associados a um serviço público, relativamente às quais se deve reconhecer ao legislador uma liberdade de conformação mais ampla.[20].

*

Finalmente: a comparação de regimes de aquisição de imóveis entre particulares e a sua aquisição “ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, bem como o dos adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa[21] também não revela qualquer desconformidade com a Lei Fundamental, se bem se interpretam os padrões do Tribunal Constitucional[22]. Recorde-se que a jurisdição constitucional fixou há muito o entendimento de que tanto é inconstitucional tratar desigualmente quem está em posição de igualdade, como tratar igualmente quem está em posição de desigualdade[23].

Tenha-se em atenção que, mesmo que se chegasse à conclusão que a coexistência dos dois regimes existentes excedia os limites da diferenciação consentida ao legislador “sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade”, a inconstitucionalidade tanto poderia ser a do regime regra (do Valor Patrimonial Tributário como valor mínimo de tributação de IMT), como a do regime excepcional que o legislador criou para o Estado, as Regiões Autónomas ou as autarquias locais, e para a arrematação judicial ou administrativa. Tendo em conta que o primeiro já teve validação constitucional, mais facilmente se poderia duvidar deste – em relação ao qual o presente Tribunal não tem de, nem pode, pronunciar-se.

*

            Inexistindo desconformidade constitucional da norma do n.º 1 do artigo 12.º do Código do IMT enquanto norma de determinação do valor a atender para efeitos de IMT, é impossível retomar a questão da forma de ultrapassar os seus resultados; fica assim encerrada a disquisição.

Conclui-se, portanto, com a jurisprudência do STA, do Tribunal Constitucional e do CAAD, que a norma do artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT não é uma presunção, não é contornável para efeitos dessa tributação patrimonial e não é inconstitucional.

Por estes motivos, há-que julgar improcedentes quer o pedido principal dirigido à anulação total das liquidações de IMT sindicadas e do indeferimento presumido da reclamação graciosa contra elas deduzida, assente na pretensa, mas inexistente ilegalidade/inconstitucionalidade da norma do artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT, que adviria de não se considerar nessa norma uma presunção ou de tal presunção ser inilidível, quer o pedido formulado a título subsidiário da sua anulação parcial por erro nos pressupostos de facto baseado na requerida, mas inviável ilisão da presunção, atenta a não instituição pela referida norma de qualquer presunção, mas da directa fixação de critério relevante para a determinação da base tributável do imposto.

 

 

IV.5. RESTITUIÇÃO DO IMPOSTO E JUROS

            Improcedendo o(s) pedido(s) não há lugar à restituição do imposto e a juros indemnizatórios.

 

  1. DECISÃO

Termos em que se decide:

a) julgar improcedentes as excepções dilatórias suscitadas pela Requerida;

b) julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo-se a Requerida de todos os pedidos formulados;

c) consignar que as custas do processo, por força do disposto nos artigos 12.º n.º 3 e 22.º, n.º 4 do RJAT, são a cargo das Requerentes, nos termos fixados infra.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

A AT solicitou a correcção do valor do processo para € 1.126.615,92, como se referiu supra (II. 15.B.3., in fine) – ainda que tal valor fosse incongruente com a simultânea alegação de inexistência de competência do Tribunal para a anulação total dos montantes liquidados. Em todo o caso, tendo sido esse o pedido principal das Requerentes, é pela soma dos valores totais das liquidações que ele teria de ser determinado.

Após reconhecerem que a AT tinha razão em quase todas as correcções de valores efectuadas, as Requerentes explicaram, como já visto, que a única discrepância se tinha ficado a dever a uma guia “erradamente emitida pela Autoridade Tributária como respeitando ao artigo n.º ... – Évora, quando deveria ter sido emitida por referência ao artigo n.º ... – Vila Franca de Xira” e que foi substituída, por motivos técnicos assumidos pela AT, por uma guia a zeros. Aceitando a documentação junta, que a AT não contestou, o valor real a considerar, caso todas as liquidações fossem anuladas em consequência de vício indivisível, seria, assim, de € 1.136.072,74 (um milhão, cento e trinta e seis mil e setenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos).

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, als. c) e e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária), fixa-se o valor do processo em € 1.136.072,74 (um milhão, cento e trinta e seis mil e setenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos).

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo das Requerentes, nos termos do disposto nos artigos 12.º n.º 3 do RJAT, da Tabela II do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e do disposto no seu artigo 5.º.

Lisboa,  22  de Janeiro de 2024

 

O Árbitro presidente e relator

 

 

Victor Calvete

 

 

O Árbitro Adjunto

 

Sérgio Vasques

 

O Árbitro Adjunto

 

 

João Menezes Leitão

A redacção da presente decisão adopta a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.

 

 

 



[1] Sobre a nota que consta no final do Quadro, cfr. infra, VI.

[2]  José Maria Fernandes Pires, Lições de Impostos sobre o Património e do Selo, 2015, 3ª edição, Almedina, pág. 234.

 

[3] Casalta Nabais, Contratos Fiscais (Reflexões acerca da sua admissibilidade), Coimbra, 1994, pág. 279.

 

[4] Um ponto que se abordará adiante.

 

[5] Onde se escreveu o seguinte:

em matéria de impostos sobre o património – estáticos (IMI) ou dinâmicos (IMT) –, a base coletável é (ou pode ser) determinada a partir da avaliação do imóvel para efeitos de determinação do seu valor patrimonial tributável (VPT), uma técnica de «acertamento» que procura responder às exigências de procedimentos tributários de massas, fazendo prevalecer critérios unitários previamente fixados pelo legislador, cujo resultado pode não coincidir com o valor de mercado do bem avaliado.

[6] Recorde-se que supra (IV.I.), se assumiu que a última questão a decidir seria a dos meios de prova em caso de se ter estabelecido que se poderia afastar o Valor Patrimonial Tributário ou, em alternativa, a da conformidade constitucional dessa inadmissibilidade – sem prejuízo de uma conclusão de inconstitucionalidade reenviar para essa questão (então já não alternativa).

 

[7] Seguia-se a listagem dos localizadores electrónicos dos Relatórios anuais de vários fundos imobiliários e de um banco.

[8] Seguia-se o referido.

[9]  Também invocava passagens da fundamentação do Acórdão de 8 de Maio de 2019 do TCASul (processo n.º 607/13.6 BELRS), mas que não convocavam o referido acórdão de 2015 do STA.

[10] Uma observação já feita na decisão (que adiante se retoma) do CAAD no processo n.º 620/2022-T, que considerou o Valor Patrimonial Tributário um “valor patrimonial de segurança”:

62. Opção esta que, ao contrário do que sustentam as Requerentes, não consiste na consagração de uma presunção legal, isto é, de uma disposição que assevera um facto desconhecido com recurso a um facto conhecido (artigo 349.º do Código Civil).

[11] Dispunha o citado n.º 2:

“2 - Nos casos das alíneas a), b) e f) do número anterior, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis ou, não havendo lugar a esta liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.”

 

[12] As redacções que as Requerentes apresentavam como equivalentes não eram decalcadas da reproduzida na nota anterior (na verdade, até afastavam a formulação para efeitos de IMT da que foi tida em conta para efeitos de IRS):

“Para a determinação dos ganhos sujeitos a IRS, considera-se valor de realização, tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, o valor constante do acto ou do contrato ou o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior”

Ou

 “O IRS sobre as mais valias relativas a direitos reais sobre bens imóveis incidirá sobre o valor constante do acto ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior.”.

Ainda assim, as Requerentes concluíam sobre essa equivalência:

Não há dúvidas que a mesma existe e nem poderia ser tão facilmente camuflada por mero truque de legística, em que a mera alteração da sintaxe retirasse a proteção i.a. do artigo 73.º da LGT. Sendo mister reconhecer que o resultado de qualquer dos textos é o mesmo, de igual modo deverá ser pacífica a existência de uma presunção no artigo 12.º, n.º 1, independentemente de ser aplicável ex vi artigo 44.º, n.º 2 do Código do IRS ou diretamente.”

[13]  O que o acórdão sublinha, se bem o lemos, é que o que releva é o paralelo dos referentes, não dos significantes, e que não faz sentido tomar por idênticas as situações de quem vende um activo (e realiza um encaixe que a lei presume que seja, no mínimo, o valor “individualmente tabelado” do bem) e de quem compra um activo (e desembolsa um montante que a lei presume que seja, no mínimo, o valor “individualmente tabelado” do bem). A semelhança, no caso, esgota-se na reciprocidade das posições activas e passivas de vendedor e comprador. Para além disso, a aprofundar a diferença dessas posições jurídicas, num caso está em causa a tributação do rendimento, na outra a do património. Assim, não parece desadequado citar Sérgio Vasques, O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, Coimbra, 2008, p. 76:

na exploração da igualdade tributária, a hipótese de partida não deve ser a de um monismo de princípios, a de que um critério de repartição possa ou deva valer para todo o sistema, mas a hipótese contrária, a hipótese de um pluralismo de princípios, a de que no interior do sistema tributário a igualdade ganhe um significado distinto consoante a área em que nos situemos e de que no sistema convivam, pois, critérios de repartição diferentes.

 

[14] Supra, IV.3. i).

[15]  Na altura, a redacção dessa, digamos, “norma específica anti-abuso”, era a seguinte:

Artigo 23.º

Custos ou perdas

[…]

7 — Não são, igualmente, aceites como custos ou perdas do exercício os suportados com a transmissão onerosa de partes de capital, qualquer que seja o título por que se opere, a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 58.º, ou a entidades com domicílio em país, território ou região com regime de tributação claramente mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, ou entidades residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação.

[16] É verdade que essa “supletividade” só se mantém enquanto o valor da transacção for superior ao Valor Patrimonial Tributário, tornando-se imperativa quando este é inferior, mas a opção do legislador podia ser – hipoteticamente – a inversa.

 

[17]  A excepção, contrastando o regime regra com o que é aplicável à determinação do valor de transacção de imóveis em circunstâncias específicas, é tratada abaixo.

 

[18] Transcreve-se do artigo 173.º do PPA, que cita o “Acórdão de 2 de maio de 2017 (Processo n.º 285/15)”:

O princípio da capacidade contributiva, enquanto «princípio geral da imposição segundo a capacidade contributiva de cada um» (Acórdão n.º 211/2003), exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente.

Pode até entender-se que o argumento não é de todo adequado ao caso. No sentido de que “A capacidade contributiva aponta (…) para uma tributação da base larga, sendo com ela incompatíveis quaisquer impostos especiais sobre o património.”, Sérgio Vasques, “Capacidade Contributiva, Rendimento e Património” (disponível em https://www.isg.pt/wp-content/uploads/2021/02/23_2_svasques_cpacidadecontributiva_f23.pdf), texto associado à nota 60 – a mesma posição do Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal (Lisboa, 1996), citada pelo A., idem, texto associado à nota 61:

a tributação patrimonial selectiva não tem justificação cabal num sistema fiscal baseado no princípio da capacidade contributiva. Os bens imóveis constituem apenas um dos elementos constitutivos dos patrimónios e nem sequer, nos dias de hoje, são necessariamente o mais importante.”.

E o A. escreve na Conclusão:

a origem da capacidade contributiva não a limita apenas quanto aos tributos comutativos, limita-a também no próprio universo dos impostos. De fato, todos os seus corolários foram construídos com o imposto sobre os rendimentos pessoais em mente, resultando daí dificuldades incontornáveis quando se procura reproduzir o modelo relativamente a impostos com contornos diferentes.

 

[19] Transcreve-se do artigo 175.º do PPA, que cita Casalta Nabais:

“o princípio da igualdade assente no princípio da capacidade contributiva, diz-nos que (…) os contribuintes com a mesma capacidade pagarão o(s) mesmo(s) imposto(s) (igualdade horizontal) e os contribuintes com diferente capacidade contributiva pagarão diferentes impostos, seja em termos qualitativos, seja em termos quantitativos (igualdade vertical).”

 

[20] Sérgio Vasques, Princípio..., cit., p. 75. Sobre “o problema central ao princípio da igualdade”, que “está na escolha e justificação do critério que há-de servir de base à comparação das pessoas ou situações de vida a tratar pela lei.*”, v. A. e ob. cit., pp. 41-44 (a citação veio das pp. 41-42 e a nota suprimida remetia para outra doutrina).

 

[21] Invocada nos artigos 76.º e 223.º do PPA como prova de que a fixação do Valor Patrimonial Tributário como valor mínimo de transacção dos imóveis assenta numa suspeita sobre os valores de mercado – rectius: sobre os valores que intervenientes privados teriam interesse em apresentar como valores de mercado. Parece desde logo anómalo que as Requerentes sublinhem o tratamento diferenciado que o legislador dá a particulares e entes públicos e não estranhem que o legislador lhes dê a elas, que compram por grosso para revenda, o mesmo tratamento que é dado a quem compra em singelo para uso próprio, ou compra com recurso a fundos que não tem (com crédito).

 

[22] Cfr., vg, o Acórdão n.º 25/2010, onde se voltou a escrever o seguinte:

E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio [o da igualdade], não compete «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da Repúblicade 23 de Agosto de 1983, pág. 120, também citado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, que vimos acompanhando).

À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes precisos termos o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007).”.

Lamentando que o controlo do legislador fiscal por esse Tribunal não seja mais rigoroso, Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 306. Desenvolvidamente sobre “A Estrutura Formal do Princípio da Igualdade” e a evolução do seu controlo pela jurisprudência constitucional em matéria tributária, v. Sérgio Vasques, Princípio…, cit., pp. 38-68 e 87-90.

 

[23] Por exemplo, no Acórdão n.º 563/96 do Tribunal Constitucional (em passagem reproduzida, vg, nos Acórdãos ns. 319/00 e 232/2003) escreveu-se:

Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamen­te, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o trata­mento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais)  -  cfr., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão nº 186/90, os Acórdãos nºs. 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94”.