Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2023-T
Data da decisão: 2023-08-29  IRC  
Valor do pedido: € 624.144,36
Tema: IRC – Juros indemnizatórios; artigo 43.º, n.º 1 LGT; Competência material
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SUMÁRIO:

 

Não se inserem no âmbito das competências dos tribunais arbitrais as questões relacionadas com a execução de julgados, carecendo também o Tribunal Arbitral de competência para apreciar um pedido autónomo de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, por erro imputável aos serviços, e de condenação da Requerida no pagamento dos mesmos.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Fernanda Maçãs (árbitro Presidente), Ana Rita do Livramento Chacim e Vasco Branco Guimarães (árbitros adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, constituído em 10.05.2023, acordam no seguinte:

 

 

  1. RELATÓRIO
  1. Identificação das Partes

Requerente: A…, S.A, com o número de identificação fiscal
… e com sede na Avenida …, Lisboa, doravante designado de “Requerente” ou “Sujeito Passivo”.

Requerida: Autoridade Tributaria e Aduaneira, doravante designada de “Requerida” ou “AT”.

A Requerente apresentou o pedido de constituição de Tribunal Arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) e no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante abreviadamente designado por “RJAT”).

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD, em 02.03.2023, e em conformidade com o preceituado no artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do
Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei
n.º 66­B/2012, de 31 de dezembro, tendo sido notificada nessa data a AT.

A Requerente, não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto do artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico, designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, aqui signatários, que comunicaram no prazo legalmente estipulado a aceitação dos respetivos encargos.

Em 19.04.2023 as partes foram devidamente notificadas dessa designação, e não manifestaram vontade de a recusar, nos termos do artigo 11.º n.º 1, alínea a) e b), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Desta forma, o Tribunal Arbitral Coletivo foi regularmente constituído em 10.05.2023, com base no disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT, para apreciar e decidir o objeto do presente litígio, tendo sido subsequentemente notificada a AT para, querendo, apresentar resposta, o que veio a fazer.

Por despacho de 08.07.2023, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT foi dispensada, bem como a produção de alegações, seguindo o processo para decisão arbitral.

As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

  1. Pedido

A ora Requerente deduziu pedido de pronúncia arbitral de declaração de ilegalidade em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), peticionando a ilegalidade da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º …, a qual incidiu sobre a legalidade dos atos de autoliquidação respeitantes a IRC, referente aos períodos de tributação de 2020 e 2021, plasmados, respetivamente, nas declarações de rendimentos Modelo 22 n.os …-C…-…, de 13 de julho de 2021, e …-C…-…, de 25 de maio de 2022, por serem manifestamente ilegais, com as necessárias consequências legais, pedindo o reconhecimento do erro imputável aos serviços e a consequente condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios nos termos previstos no artigo 43.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT).

 

  1. Causa de Pedir

A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, a Requerente alegou, com vista à declaração de anulação dos atos de liquidação, e em síntese, o seguinte:

É uma sociedade anónima, sujeito passivo de IRC, que tem como objeto social o exercício da atividade seguradora e resseguradora, de todos os ramos e operações, salvo no que respeita ao seguro de crédito com garantia do Estado, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro.

 

 

Na sequência de um processo de reorganização societária envolvendo diferentes aquisições, foi registada e produziu efeitos a fusão por incorporação a 1 de outubro de 2020, na B… S.A., da C… – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e da D…– COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., tendo a B…, S.A. alterado a sua denominação social para A…, S.A. (a aqui Requerente).

A 28 de janeiro de 2020, de forma a poder reportar (e, desse modo, deduzir) integralmente os prejuízos fiscais apurados pela B…, S.A., a Requerente apresentou requerimento, dirigido ao Ministro das Finanças, elaborado nos termos do artigo 52.º, n.º 12, do Código do IRC.

Refere que, atendendo a que o termo do prazo para apresentação das declarações de rendimentos Modelo 22 dos períodos de tributação de 2020 e 2021 o requerimento em referência estava pendente de apreciação, a Requerente, cumprindo escrupulosamente as suas obrigações fiscais, apresentou as referidas declarações sem proceder à dedução dos prejuízos fiscais apurados pela B…, S.A.

Desta forma, a Requerente procedeu ao pagamento do IRC relativo ao exercício de 2020 no montante de € 12.111.084,56, e no montante de € 10.719.928,02, relativo ao exercício de 2021.

A 25 de julho de 2022 foi a Requerente notificada da decisão final de deferimento parcial do seu pedido, tendo-lhe sido autorizada a dedução de prejuízos no montante global de
€ 197.184.044,43.

Por não concordar com a referida decisão, a Requerente apresentou reclamação graciosa das suas autoliquidações de IRC dos períodos de tributação de 2020 e 2021, tendo solicitado, à luz da decisão de deferimento parcial acima referida, a restituição dos montantes de
€ 5.553.600,66 e € 9.053.650,12 autoliquidados em excesso, acrescida de juros indemnizatórios calculados nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em virtude do incumprimento pela AT do prazo de decisão estabelecido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT.

 

 

Em resultado, a Requerente foi notificada a 3 de novembro de 2022 do projeto de deferimento parcial da reclamação graciosa, tendo a AT projetado deferir o pedido relativo à devolução do imposto e indeferir o pedido relativo aos juros. O projeto de decisão foi convertido em decisão final.

A Requerente salienta o entendimento expresso pela AT sobre a sua pretensão: «Vem a Reclamante alegar que, segundo o disposto no n.º 1 do art.º 57.º da LGT, a AT dispunha de quatro meses para concluir o procedimento tributário. Ou seja, uma vez que o requerimento de autorização para a manutenção dos prejuízos fiscais não deduzidos e reportáveis foi apresentado à AT no dia 28 de janeiro de 2020, o procedimento deveria ter sido concluído até 28 de maio de 2020. Sendo que, a AT apenas se pronunciou no dia 25 de julho de 2022, privando, assim, a Reclamante da dedução dos prejuízos fiscais reportáveis nas declarações Modelo 22 que entregou atempadamente referentes aos períodos de tributação de 2020 e 2021 […].» Contudo, e ainda que a AT tenha reconhecido o incumprimento do prazo estabelecido no artigo 57.º, n.º 1, da LGT, refere a Requerente que a AT sustenta a sua posição no sentido de não serem devidos juros indemnizatórios dado que o incumprimento de tal prazo: (i) não constitui o sujeito passivo no direito à reparação da lesão decorrente da indisponibilidade do montante em causa, tendo como única consequência a formação da presunção de indeferimento tácito; (ii) de igual modo, não preenche o conceito de erro imputável aos serviços para efeitos de subsunção no disposto no artigo 43.º, n.º 1, da LGT; (iii) e a Requerente poderia ter «lançado mão» da intimação para um comportamento, estabelecida no artigo 147.º do CPPT.

Salienta ainda a Requerente que a 2 de fevereiro de 2023, a AT ordenou a transferência, para a conta bancária da Requerente, do montante de € 5.553.600,65 (correspondente ao IRC liquidado em excesso por referência ao ano de 2020), cumprindo, assim, parcialmente a decisão da reclamação graciosa. Desta forma, não recebeu qualquer outro pagamento tendente ao cumprimento integral da decisão da reclamação graciosa pela AT.

 

 

Em suma, entende a Requerente que, resulta claro que o thema decidendum que subjaz ao presente pedido de pronúncia arbitral se reconduz a aferir do direito da Requerente à perceção de juros indemnizatórios, com fundamento em erro imputável aos serviços da Autoridade Tributária, em virtude do incumprimento do prazo de decisão estabelecido no artigo 57.º,
n.º 1, da LGT.

Nos termos do referido artigo, «[o] procedimento tributário deve ser concluído no prazo de quatro meses […]». Por inexistir norma especial aplicável nesta matéria, quanto aos pedidos de dedução de prejuízos fiscais elaborados nos termos do artigo 52.º, n.º 12, do Código do IRC, mostra-se aplicável o prazo de quatro meses previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT.

Ora, salienta a Requerente que a AT demorou cerca de dois anos e cinco meses (de 28 de janeiro de 2020 a 24 de junho de 2022) a decidir o pedido apresentado, tendo assim extravasado em muito o prazo-limite de quatro meses.

Perante tal incumprimento, entende a Requerente ter direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, na medida em que se viu impedida de oportunamente deduzir os prejuízos fiscais em referência, o que conduziu ao pagamento de imposto em excesso no montante global de € 14.607.250,78 (€ 5.553.600,66 relativos a 2020 e € 9.053.650,12 relativos a 2021).

A Requerente fundamenta o seu entendimento com suporte em doutrina e jurisprudência, no sentido de concluir pelo direito à perceção de juros indemnizatórios, constatando que foi sujeita a um sacrifício patrimonial desconforme ao Direito.

Conclui assim a Requerente pelo preenchimento dos requisitos de que depende o respetivo direito à perceção de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, computando-se os mesmos, de acordo com o artigo 61.º, n.º 5, do CPPT, «desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito».

 

 

  1. Da resposta da Requerida

A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou tempestivamente a sua resposta na qual, em síntese, alegou o seguinte:

Começa por sintetizar os principais aspetos em que assenta o pedido do Requerente, defendendo-se quer por exceção, quer por impugnação.

Desta forma, a Requerida suscita a competência decisória do Tribunal Arbitral em matéria de juros indemnizatórios, entendendo existir incompetência material do Tribunal para a apreciação de pedido autónomo de reconhecimento do erro imputável aos serviços e de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, formulados no petitório da presente ação arbitral.

Fundamenta assim o seu entendimento salientando que a competência dos tribunais arbitrais se encontra circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, não tendo o legislador alargado a competência dos tribunais arbitrais às matérias que são apreciadas na jurisdição judicial através de ação para reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. Assim, por força da remissão do n.º 1 do artigo 4.º do RJAT, a vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos nos termos desse diploma fica na dependência do disposto na Portaria n.º 112-A/2011, designadamente quanto ao tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.

Em suma, não se inserem no âmbito das competências dos tribunais arbitrais, as questões que são apreciadas nos tribunais tributários através da ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo. E nem as relacionadas com a execução de julgados, carecendo o Tribunal Arbitral de competência para determinar, impor ou pronunciar-se sobre a forma como foi concretizada uma decisão arbitral ou qualquer outra.

 

 

Como tal, alega a Requerida que, muito embora concorde que a competência dos tribunais arbitrais não se limita à anulação de atos tributários ilegais, compreendendo, como afirma a Requerente, «a condenação da Autoridade Tributária nas diligências necessárias à reposição da situação que existiria se a ilegalidade não tivesse sido cometida», é manifesto que não se insere no âmbito destas competências a apreciação de um pedido autónomo de juros indemnizatórios e de pedido de reembolso do imposto pago em excesso, decorrentes da decisão proferida em sede de um procedimento administrativo de reclamação graciosa, no seguimento de um pedido de autorização de reporte de prejuízos fiscais que havia sido apresentado ao abrigo do artigo 52.º, n.º 12, do Código do IRC.

Acrescenta que, os pedidos formulados pela Requerente não são sequer consequência, a nível de execução, de uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação proferida pelo Tribunal arbitral, como ocorreu, aliás, nas ações arbitrais que originaram a jurisprudência invocada pela Requerente. E mesmo se assim não fosse e se os pedidos formulados constituíssem, hipoteticamente, consequência, a nível de execução, de uma declaração de ilegalidade de atos de liquidação proferida pelo Tribunal arbitral, semelhante entendimento seria de aplicar, pois, como decorre do previsto no artigo 24.º do RJAT, a definição dos atos em que se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).

Entende que, in casu, a ilegalidade que constituiu fundamento de anulação da autoliquidação não foi objeto de decisão judicial do Tribunal arbitral, pelo que a prática de novo ato de liquidação expurgado do vício que o inquinava terá que ser efetivada no âmbito das diligências de execução da decisão administrativa, sendo nessa sede que se procederá à «reposição da situação que existiria se a ilegalidade não tivesse sido cometida».

Em suma, alega mostrar-se verificada a incompetência material do Tribunal para a apreciação de pedido autónomo de reconhecimento do erro imputável aos serviços e de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, formulados no petitório da presente ação arbitral.

Concluí a Requerida que a incompetência material do Tribunal consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

Sem conceder, a Requerida apresenta igualmente a respetiva defesa por impugnação. Nesta sede, remete para a conclusão dos Serviços no sentido de que «não estarmos perante um erro num ato de liquidação ou um atraso numa revisão administrativa, mas apenas diante de um não cumprimento do prazo previsto no n.º 4 do art.º 57.º da LGT, cuja cominação se circunscreve tão só ao nascimento da presunção de indeferimento tácito de um pedido de autorização para dedução de prejuízos fiscais reportáveis efetuado ao abrigo do disposto no n.º 12 do art.º 52.º do CIRC, sem qualquer influência em matéria de juros indemnizatórios, seja qual for o regime previsto no art.º 43.º da LGT». Acrescenta que a decisão contestada é legal, tendo a UGC demostrado que o incumprimento pela AT do prazo previsto no artigo 57.º, n.º 1, da LGT não constitui pressuposto para determinar o pagamento de juros indemnizatórios, à luz dos pressupostos consagrados em todas as normas constantes do artigo 43.º da LGT.

Entende ainda a Requerida que carece igualmente de fundamento legal o argumento de que «a Requerente não podia ter aguardado pela decisão de deferimento do seu pedido para apresentar as declarações de rendimentos Modelo 22 dos exercícios de 2020 e 2021 – e assim deduzir, ab initio, os prejuízos fiscais em causa (…)». Refere assim que é sempre possível submeter declarações de substituição, as quais, se apresentarem erros de validação central são objeto de controlo através do sistema de gestão de divergências, permanecendo na situação de não liquidáveis, sendo possibilitada a correção dos erros no prazo de 30 dias. Acrescenta que, sem que as situações de divergências declarativas determinem, desde logo, a instauração de procedimento de contraordenação e muito menos a aplicação de métodos indiretos de tributação, metodologia apenas aplicável perante a impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria coletável (cfr. art. 90.º da LGT).

 

 

Por último, e ainda que pudesse admitir-se o direito a juros indemnizatórios, o que se faz por cautela e dever de patrocínio, sem conceder, o dies a quo da sua contagem não seria o dia 14 de julho de 2021, por referência ao exercício de 2020, e o dia 27 de maio de 2022, quanto ao exercício de 2021, como sustenta a Requerente.

 

  1. Por Requerimento apresentado a 03.07.2023, veio a Requerente pronunciar-se sobre a exceção invocada pela Requerida na sua resposta, solicitando que não seja atendida a pretensão manifestada de absolvição da instância com fundamento na incompetência material deste Tribunal Arbitral. Para o efeito, salienta que o entendimento da Requerida desconsidera por completo o facto de a mesma (Requerida) ter recusado expressamente o pagamento de juros indemnizatórios à Requerente. Significa isto que, contrariamente ao que parece entender a AT, o direito da Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios não resulta da decisão administrativa proferida no procedimento de reclamação graciosa, não podendo, assim, ser efetivado através da execução dessa decisão. Pelo contrário, a pretensão da Requerente pressupõe a eliminação parcial na ordem jurídica desse ato em matéria tributária, na parte em que expressamente negou o direito à perceção de juros indemnizatórios.

 

  1. SANEAMENTO

O Tribunal foi regularmente constituído, é competente, tendo em vista as disposições contidas no artigo 2.º, n.º 1 e artigo 5.º, nºs. 1 e 3 ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas, estando ambas regularmente representadas, de harmonia com os artigos 4.º e 10.º, nº 2, ambos do RJAT.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

A matéria de exceção suscitada pela Requerida será previamente apreciada.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. Matéria de facto

  1. Factos provados

Para a decisão da causa submetida à apreciação do Tribunal, cumpre enunciar os factos relevantes que se julgam provados nos documentos juntos por estas ao presente Processo:

  1. A Requerente é um sujeito passivo de IRC que tem por objeto social o exercício da atividade seguradora e resseguradora, de todos os ramos e operações, salvo no que respeita ao seguro de crédito com garantia do Estado, podendo ainda exercer atividades conexas ou complementares das de seguro ou resseguro.
  2. Submissão pela Requerente das declarações de rendimentos Modelo 22 de IRC dos exercícios de 2020 e 2021, respetivamente, a 13 de julho de 2021 e a 25 de maio de 2022.

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  1. A Requerente apresentou requerimento para dedução de prejuízos fiscais, dirigido ao Ministro das Finanças, elaborado nos termos do artigo 52.º, n.º 12, do Código do IRC.

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  1. Pagamento do IRC relativo, respetivamente, ao período de tributação de 2020 e 2021, nos montantes de € 12.111.084,56 e €10.719.928,02, conforme comprovativos de transferência bancária constantes do processo administrativo.

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  1. Apresentação pela Requerente de procedimento de reclamação graciosa das autoliquidações de IRC dos períodos de tributação de 2020 e 2021 (cf. cópia junta ao processo administrativo).
  2. Notificação do projeto de decisão no sentido de deferimento parcial da reclamação graciosa apresentada, entendendo não serem devidos juros indemnizatórios.
  3. Notificação de Decisão final por despacho proferido em 22.11.2022.

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  1. Factos não provados e fundamentação e fixação da matéria de facto

Com relevo para a decisão não existem factos não provados.

 

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT.

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

III. 2. Matéria de Direito

  1. Questão prévia - Da Exceção invocada pela Requerida

Tendo sido apresentada pela agora Requerente, reclamação graciosa para correção dos atos tributários de autoliquidação de IRC dos períodos de tributação de 2020 e 2021, por considerar que os referidos atos foram praticados sob vício material nos termos apresentados, foi então igualmente solicitado o pagamento de juros indemnizatórios em caso de respetivo deferimento.

Na sequência da respetiva decisão de deferimento parcial obtida, entende a Requerente ter direito à perceção de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, na medida em que se viu impedida de oportunamente deduzir os prejuízos fiscais em referência, o que conduziu ao pagamento de imposto em excesso. Sendo que, nos termos do referido normativo “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” (sem prejuízo das restantes circunstâncias legalmente previstas).

 

 

A expressão "erro imputável aos serviços" deve reconduzir-se a qualquer "ilegalidade" fundante da anulação, total ou parcial, do ato tributário. Neste sentido aponta o estipulado no já citado artº. 100º, n.º 1, da LGT, em conjugação com o artº 43.º, nº.1 da mesma lei, em que se consagra, na lei ordinária, a teoria da reconstituição da situação atual hipotética, em virtude da anulação, total ou parcial, de um ato tributário (vd. TCA-S, CT, 22-05-2019, proc. n.º 1770/12.9BELRS). [Processo nº 357/2021-T].

Conclui a Requerida pela incompetência material do Tribunal, a qual consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do artigo 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea a) do Código Processo Civil (CPC), que conduz à absolvição da instância nos termos do disposto no artigo 278.º do mesmo diploma legal, no artigo 89.º, n.º 4, alínea a) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT. Desta forma, remeter-se-ia para a execução de julgados aplicável à execução de atos administrativos inimpugnáveis (cf. artigo 157.º, n.º 3 do CPTA aplicável por remissão do artigo 146.º. n.º 1 do CPPT).

Para enquadramento normativo da análise à questão em apreço, recorda-se o disposto no artigo 2.º, n.º 1 do RJAT, segundo o qual “1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta; b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais; c) (Revogada).”

A competência dos tribunais arbitrais é delimitada pela vinculação conferida pela AT, a qual veio a ser legislativamente estabelecida, considerando o disposto no artigo 4.º, n.º 1 do RJAT, através da Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de março, que estabelece no respetivo artigo 2.º: “Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões elativas a ‘impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

 

 

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição antiabuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo.”

Com respeito à questão controvertida, salienta-se igualmente o enquadramento referente ao regime de execução de julgados, aplicável à execução de atos administrativos consolidados (inimpugnáveis).

Dispõe assim o artigo 146.º, n.º 1 do CPPT a respeito dos meios processuais acessórios que “(…) são admitidos no processo judicial tributário os meios processuais acessórios de intimação para a consulta de documentos e passagem de certidões, de produção antecipada de prova e de execução dos julgados, os quais serão regulados pelo disposto nas normas sobre o processo nos tribunais administrativos”. Na decorrência de alterações introduzidas, a remissão constante do citado preceito legal contempla o disposto no artigo 157.º, n.º 2 (e 3) do CPTA: “As vias de execução previstas no presente Título também podem ser utilizadas para obter a execução de atos administrativos inimpugnáveis a que a Administração não dê a devida execução, por quem possa fazer valer uma pretensão dirigida à execução desses atos.” [nosso sublinhado]

Sendo entendimento da Requerida de que não há direito da Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios por não se mostrarem cumpridos os requisitos constantes do artigo 43.º, n.º 1 da LGT, e aqui suscitada a respetiva competência material do Tribunal Arbitral, cabe analisar e decidir.

A matéria jurídica em questão foi já objeto de análise em várias decisões do CAAD, as quais naturalmente beneficiam o presente pedido de pronúncia pela exposição técnica aportada. Desta forma, considera este Tribunal o entendimento já proferido no Processo n.º 496/2018-T: “Com efeito, a competência dos Tribunais Arbitrais em matéria tributária apenas compreende as pretensões que envolvam a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de fixação da matéria coletável e de fixação de valores patrimoniais, nos termos das referidas alíneas a) e b) do RJAT, constituindo um efeito da decisão arbitral de procedência que a AT deva praticar o ato tributário legalmente devido de substituição do ato impugnado e restabelecer a situação que existiria se esse ato não tivesse sido praticado (cfr. artigo 24.º, n.º 1, do RJAT). (…) Essa é a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de atos administrativos (cfr. artigos 173.º e 179.º do CPTA, aplicáveis ex vi artigo 146.º, n.º 1 do CPPT), que se torna extensivo, nos exatos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da AT ou a requerimento do particular (cfr. artigo 172.º do CPA). [nosso sublinhado]

Conclui assim o Tribunal que “(…) Nada obsta, também, a que o Tribunal Arbitral profira condenação, se for o caso, no pagamento de juros indemnizatórios. (…) Com efeito, inexiste qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no artigo 2.º do RJAT, ainda que constituam consequência, a nível de execução de julgados, da declaração de ilegalidade de atos de liquidação.”

 

A respeito da questão em apreço, refere-se igualmente o entendimento proferido no Processo n.º 481/2018-T (CAAD), “(…) como resulta do disposto no artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pagamento de juros indemnizatórios é devido como efeito da decisão arbitral de procedência sobre o mérito da pretensão deduzida pelo sujeito passivo e tem em vista restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto de decisão arbitral não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT).

Estando em causa a anulação do acto tributário por iniciativa da Administração Tributária, o pagamento de juros indemnizatórios é devido no âmbito do próprio procedimento tributário, em aplicação do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

De resto, ao contrário do que parece pressupor o acórdão do STA de 7 de janeiro de 2016 (Processo 0574/14), a condenação em juros indemnizatórios não poderia resultar directamente da anulação oficiosa, mas implicaria o prosseguimento do processo judicial para efeito de apreciar a validade do acto tributário, visto que só em caso de procedência do mérito da pretensão é que o tribunal pode proferir uma decisão condenatória. [nosso sublinhado]

Acresce que o artigo 172.º do CPA, sob a epígrafe “Consequências da anulação administrativa”, reproduz o disposto no artigo 173.º do CPTA, aplicável à execução de sentenças de anulação de actos administrativos, estipulando um conjunto de deveres de executar relativamente ao acto anulado administrativamente que correspondem aos que igualmente se impõem à Administração se houver lugar a anulação contenciosa no âmbito de um processo impugnatório. O que faz supor que as consequências resultantes da anulação de um acto administrativo são fundamentalmente idênticas, independentemente da anulação resultar de um acto da própria Administração ou de decisão jurisdicional proferida em processo impugnatório (nestes precisos termos, CARLOS FERNANDES CADILHA, “Implicações do Novo Regime do Código de Procedimento Administrativo no Direito Processual Administrativo”, in Julgar n.º 26, maio-agosto 2015, pág. 31).

 

 

Sendo um dos deveres em que a Administração fica constituída, por efeito da anulação administrativa do acto, a reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, mediante a execução do efeito repristinatório da anulação, nada impede que nesse âmbito sejam devidos juros indemnizatórios por pagamento indevido de prestação tributária, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

E não está excluído, em qualquer caso, que a Requerente possa deduzir um pedido indemnizatório em acção de responsabilidade civil autónoma.

O que não pode deixar de reconhecer-se é que o presente processo arbitral por efeito da anulação administrativa dos actos impugnados não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide. [nosso sublinhado]

A este respeito, considera ainda este Tribunal o entendimento de Jorge Lopes de Sousa, aqui citado pela Requerida, segundo o qual “(…) não se justifica que um processo de execução de julgado anulatório proferido [no] processo de impugnação judicial, que é um complemento deste como meio de tutela judicial do direito violado, não possa ser um meio adequado para definir a existência ou não do direito a juros indemnizatórios, quando o seu objecto directo é reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão (art. 100.º da LGT) e, por isso, discutir e determinar os actos necessários para a reintegração plena da ordem jurídica violada pelo acto anulado, com se estabelece no art. 173.º, n.º 1, do CPTA. Isto é, o processo de execução de julgado é mais adequado a determinar a existência de tal direito a juros indemnizatórios que o próprio processo de impugnação judicial, cuja finalidade primacial é apreciar a legalidade do acto impugnado (art. 124.º do CPPT) e, por isso, por maioria de razão, deveria ser o meio privilegiado para definir aquele direito. O processo de execução de julgado será mesmo o meio processual mais adequado para fazer valer o direito em juízo, e, por isso, de harmonia com o disposto no art. 97.º, n.º 2, da LGT, deve ser reconhecido como o escolhido por lei para assegurar aquele direito indemnizatório”. [nosso sublinhado]

Da análise efetuada à matéria de facto e de direito apresentada é convicção deste Tribunal a ausência de suporte legal que permita ao tribunal arbitral apreciar um pedido autónomo de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios, por erro imputável aos serviços, e de condenação da Requerida no pagamento dos mesmos.

A incompetência material do Tribunal consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo e determina a absolvição da instância da entidade requerida, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) do CPC e do artigo 89.º, n.º 4, alínea a) do CPTA, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

  1. Questões de conhecimento prejudicado

Procedendo a exceção dilatória invocada pela Requerida fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas.

 

  1. DECISÃO

Termos em que se decide:

  1. Julgar procedente a exceção dilatória suscitada pela Requerida;
  2. Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.

 

  1. VALOR DO PROCESSO

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 624.144,36, que a AT não questionou e corresponde ao valor da liquidação de imposto a que se pretendia obstar, para efeitos do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

 

 

  1. CUSTAS

Custas a cargo da Requerente, no montante de € 9.180,00, nos termos do art.º 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 29 de Agosto de 2023

 

A Presidente do Tribunal Arbitral

 

Fernanda Maçãs

 

A Árbitra vogal

 

Ana Rita Chacim (relatora)

 

O Árbitro vogal

 

Vasco Branco Guimarães