Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 893/2019-T
Data da decisão: 2020-09-22  IRC  
Valor do pedido: € 2.367.319,91
Tema: IRC - Período de tributação diferente do ano civil; Facto tributário: Alteração de taxa de IRC; Aplicação da lei no tempo.
* Decisão arbitral anulada pela STA/Pleno 2.ª Secção, P. n.º 117/20.5BALSB
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DECISÃO ARBITRAL

 

I. RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., com sede na ..., n.º ..., ..., ..., ...–... Lisboa, titular do número de identificação fiscal ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 Março, com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à:

- Declaração de ilegalidade e consequente anulação do indeferimento do pedido de revisão oficiosa n.º ...2019...;

- Declaração de ilegalidade parcial e consequente anulação do acto de autoliquidação de IRC n.º..., relativo ao período de tributação de 2014, do qual resultou valor a reembolsar de € 2.367.319,91;

- Condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) no reembolso do montante de € 2.367.319,91, acrescido de juros indemnizatórios.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 26 de Dezembro de 2019 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 12 de Fevereiro de 2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 13 de Março de 2020.

 

5. A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

                No ano de 2014, o período de tributação da Requerente não coincidia com o ano civil, iniciando-se o mesmo em 1 de Abril de 2014 e terminando em 31 de Março de 2015.

                No âmbito da autoliquidação de IRC, à matéria colectável apurada pela Requerente no valor de € 118.603.201,71, não teria sido aplicada a taxa de 21% expressamente referida naquela declaração. Pelo contrário, por definição do sistema informático da AT, havia sido erroneamente aplicada a taxa de 23%, o que teria resultado numa colecta de IRC no valor de € 27.224.178,92.

                A Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), em concreto o seu artigo 192.º, alterou a taxa geral do IRC constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC, tendo a mesma diminuído de 23% para 21%. A referida Lei entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2015, de modo que a taxa de IRC aplicável a partir de tal data passou a ser de 21%, uma vez que o artigo 12.º, n.º 1 da LGT, a respeito da aplicação da Lei no tempo, dispõe que as normas tributárias se aplicam aos factos posteriores à sua entrada em vigor.

Tendo em conta que a Requerente estava sujeita a um período de tributação que terminava a 31 de Março de 2015, e uma vez que a verificação do facto tributário apenas ocorria no último dia do período de tributação nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC, deveria ter sido aplicada à matéria colectável do período tributário de 2014 a taxa de 21%, na medida em que era essa a taxa então vigente.

                A este respeito, referiu ainda a Requerente que em anteriores alterações legislativas, sempre que o legislador pretendeu modificar a taxa de IRC e, simultaneamente, limitar a sua aplicação aos períodos tributários cujo início ocorresse após a entrada em vigor dessas mesmas modificações, o legislador introduziu disposições transitórias nesse sentido. Ora, no âmbito da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro o legislador não estabeleceu qualquer disposição transitória quanto à aplicabilidade da taxa de 21%, pelo que teria pretendido a sua aplicação quer aos períodos tributários que se iniciassem em ou após 1 de Janeiro de 2015, quer aos períodos tributários que ainda estivessem em curso e que apenas terminassem após essa data.

                Neste sentido, a aplicação da taxa de 23% que havia sido introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao invés da taxa de 21% fruto da alteração ao Código do IRC efectuada pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, teria resultado no apuramento pela Requerente no âmbito da autoliquidação de IRC de um montante de colecta superior ao efectivamente devido e, consequentemente, num excesso de imposto pago por referência ao período fiscal de 2014.

 

6. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual se defendeu por impugnação, tendo concluído pela improcedência da presente acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido.

A Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, tendo apenas procedido à junção aos autos do respectivo processo administrativo (PA).

 

7. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

O IRC é um imposto periódico, cujo facto gerador é complexo e de formação sucessiva, obedecendo a um princípio da anualidade. De acordo com este princípio, o lucro tributável sobre o qual incide o imposto será segmentado em termos anuais por via da estipulação de períodos tributários temporalmente delimitados.

O artigo 8.º, n.º 1 do Código do IRC estabelece que, em regra, cada período tributário coincide com o ano civil, versando a tributação sobre a riqueza gerada durante esse ano. Neste sentido, o facto de a Requerente ter adoptado um período de tributação que não coincide com o ano civil e que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou a 31 de Março de 2015, implica que a tributação incida sobre o lucro tributável obtido nesse período.

Refere também a Requerida que, pese embora as taxas de imposto a aplicar não se encontram previstas nas normas de incidência, nem por isso deixam de consistir num elemento da relação jurídico-tributária, consubstanciando um elemento essencial do imposto que não se confunde com a obrigação tributária, definindo-se esta última no início do período de tributação, quando este não coincide com o ano civil, inexistindo a esse respeito qualquer controvérsia. Assim, a verificação do facto gerador do imposto no último dia do período de tributação, que pode ou não coincidir com o ano civil, seria uma questão diversa. Isto na medida em que o facto gerador do imposto não se pode confundir nem com a determinação da matéria colectável nem com a taxa aplicável, as quais têm a sua própria autonomia conceptual, concretizando-se em momentos diferentes.

Deste modo, ao período de tributação que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015 apenas seriam aplicáveis as regras em vigor no período de tributação de 2014. Por seu turno, ao período de tributação que se iniciou em 1 de Abril de 2015 e terminou a 31 de Março de 2016 seriam aplicáveis as regras em vigor no período de tributação de 2015 e assim sucessivamente. Quer isto dizer que não é a data de encerramento do período que determina a taxa aplicável, sendo esta aquela que houver sido definida para cada um daqueles períodos.

Entende deste modo a Requerida que obrigação tributária que nasce após a aprovação e publicação da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), apenas se aplica aos períodos de tributação com início em ou após 1 de Janeiro de 2015. Por seu turno, não tendo aquela Lei revogado o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não se verificaria uma questão de sucessão de leis no tempo, continuando a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, a ser aplicável ao período de 2014.

Em suma, considerou a Requerida que seria aplicável a taxa de 23% e não a de 21%, porquanto esta última apenas havia sido definida para o período de 2015, enquanto que a primeira teria sido a taxa definida pelo legislador para o período de 2014.

Por último, entendeu que a aplicação da taxa de 21% ao período de 2014 que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou a 31 de Março de 2015 resultaria numa violação do princípio da igualdade, na medida em que se estariam a aplicar taxas diferentes ao mesmo período de tributação pela única circunstância de terem sido adoptados pelos sujeitos passivos períodos de tributação diferentes, não se verificando qualquer outro facto distintivo ao nível do imposto que justificasse tal distinção.

                Desta feita, não se verificaria qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade do acto de liquidação, nem existiria fundamento legal que permitisse sustentar a pretensão da Requerente, pelo que esta deveria ser julgada improcedente.

 

8. Por despacho proferido em 19 de Junho de 2020, foram as partes notificadas de que, ao não haver lugar à produção de prova constituenda, por um lado, e ao não ter sido suscitada matéria de excepção, por outro, foi dispensada a realização da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade processuais previstos nos artigos 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2, ambos do RJAT.

Notificaram-se igualmente as partes para a produção de alegações escritas no prazo de 15 dias a partir da notificação do referido despacho, sendo que apenas a Requerente apresentou alegações, tendo reiterado as posições anteriormente assumidas nos articulados.

 

9. Designou-se o dia 13 de Setembro de 2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, prazo prorrogado, pelas razões constantes do despacho de 11 de Setembro de 2020, que se dão por reproduzidas, para o dia 13 de Outubro de 2020.

 

II. SANEAMENTO

 

10. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 5.º, ambos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Não foram alegadas pelas partes, nem existem quaisquer excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

                11. Para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

                a) A Requerente é uma sociedade comercial residente em território português que exerce, a título principal, actividade comercial, industrial ou agrícola;

b) A Requerente não se encontra sujeita a tributação nos termos do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades;

c) Relativamente ao exercício de 2014 a Recorrente adoptou um período especial de tributação que não coincidia com o ano civil e cujo início ocorreu em 1 de Abril de 2014 e o respectivo termo em 31 de Março de 2015;

d) Em 26 de Agosto de 2015 a Requerente apresentou a declaração Modelo 22 do IRC referente ao período de tributação de 2014 com o n.º de identificação ... (documento n.º 1), tendo ainda apresentado declarações de substituição em 28 de Abril de 2016 com o n.º de identificação ... (documento n.º 2), em 6 de Junho de 2016 com o n.º de identificação ... (documento n.º 3) e em 7 de Julho de 2016 com o n.º de identificação ... (documento n.º 4);

e) Na autoliquidação de imposto relativa ao período de tributação de 2014 a requerente apurou uma matéria colectável no valor de € 118.603.201,71 e uma colecta no valor de € 27.224.178,92 (documento n.º 4);

f) O montante da colecta foi obtido por via da aplicação da taxa de 23% à matéria colectável, não permitindo o sistema informático da AT a aplicação da taxa de 21% (documento n.º 4);

g) Ao não se conformar com a taxa de IRC aplicada ao exercício de 2014, a Requerente deduziu um pedido de revisão oficiosa (documento n.º 5) tendo em vista o reembolso do montante de imposto liquidado em excesso no valor de € 2.367.319,91 (documentos n.ºs 1, 2, 3, 4, 10, 11 e 12);

h) Em 26 de Setembro de 2019 foi proferido despacho de indeferimento pelo Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de Subdelegação de competências, quanto àquele procedimento autuado com o n.º ...2019..., tendo sido o mesmo devidamente notificado à Requerente (documento n.º 5).;

 

III.1.2. Factos não provados

 

12. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

13. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que importam à decisão e determinar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo a obrigação de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre dos termos conjugados do artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

Neste sentido, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7, do CPPT, bem como às provas documentais por estas apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

                14. A questão de mérito que cumpre conhecer prende-se com a determinação da taxa de IRC aplicável à matéria colectável da Requerente quanto ao período de tributação de 2014.

               

Cumpre então estabelecer, a título prévio, o enquadramento normativo da questão ora em juízo.

                Estabelece o artigo 1.º do Código do IRC que “O imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo quando provenientes de atos ilícitos, no período de tributação, pelos respetivos sujeitos passivos, nos termos deste Código.”.

                Por seu turno, dispõe o artigo 3.º, n.º 2 do Código do IRC que “(…) o lucro consiste na diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código.”.

                A seu título determina-se no artigo 8.º, n.º 1 daquele diploma legal que “O IRC (…) é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo.”.

                Nos termos do n.º 2 daquele mesmo artigo 8.º, estabelece-se que “As pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em território português, (…) podem adotar um período de imposto diferente do estabelecido no número anterior, o qual deve ser mantido durante, pelo menos, os cinco períodos de tributação imediatos.”.

                Por último, cumpre referir que “O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.”, conforme se dispõe nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC.

                Em suma, tal como refere SALDANHA SANCHES “O IRC deve ser pago em função do lucro obtido durante um determinado período – em princípio, um ano – e o facto considera se realizado depois do decurso desse período de tempo. Quer isto dizer que o facto gerador da dívida de IRC, embora possa ser decomposto em outros factos igualmente relevantes, é considerado como uma realidade unitária na perspectiva da sua aptidão para fazer nascer a dívida fiscal.”.

 

15. Ora, foi ao abrigo deste quadro normativo que no exercício de 2014 a Requerente adoptou um período especial de tributação que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015, tendo-se assim verificado o facto tributário gerador de imposto no último dia daquele período de tributação.

Sendo aquele o momento que releva para efeitos do enquadramento tributário do sujeito passivo, caberia então determinar qual a taxa de IRC aplicável, em virtude das alterações legislativas que se verificaram no período de tributação de 2014.

Em primeiro lugar, por via da reforma do IRC efectuada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, a taxa de imposto constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC foi fixada em 23%, determinando-se no artigo 14.º daquele primeiro diploma que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente Lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”. Posteriormente, por via da Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), em concreto do seu artigo 192.º, a taxa geral do IRC constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC foi fixada em 21%, determinando-se no artigo 261.º daquele primeiro diploma legal que “A presente lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2015.”.

 

16. A questão da determinação da Lei aplicável nos presentes autos foi submetida a apreciação e julgada por Tribunal arbitral singular, em 15 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º 179/2018-T, processo esse invocado pela Requerente para fundamentar a sua pretensão.

Sucintamente, no âmbito desse processo considerou-se que, “ao contrário do que fez nos anteriores diplomas legais que alteraram a taxa de IRC, o legislador não estabeleceu na Lei do Orçamento de Estado para 2015 qualquer disposição transitória relativa à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal”. Neste sentido, caberia “atender às regras gerais sobre a aplicação no tempo da lei fiscal”, nomeadamente ao artigo 12.º, n.º 1 da LGT que dispõe que “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos”. Uma vez que naquele processo o facto tributário do período de tributação de 2014 se gerou após a entrada em vigor da Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), considerou aquele Tribunal arbitral que seria aplicável a taxa de 21% e não a taxa de 23% que havia sido introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro.

A este respeito, arguiu-se ainda que não seria possível extrair a conclusão de que “(…) na verdade, apenas por mero lapso o legislador não estabeleceu uma norma transitória na Lei do Orçamento de Estado para 2015, sendo sua intenção que a nova taxa de IRC se aplique apenas aos períodos de tributação iniciados depois de 01/01/2015.”, dado que tal solução seria contrária ao disposto no artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil segundo o qual o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Em síntese, o legislador teria “pretend[ido] a imediata aplicação da nova taxa a todos os períodos de tributação iniciados em 01/01/2015, após 01/01/2015 ou em curso a 01/01/2015.”.

 

Por seu turno, foi submetida a apreciação e julgada questão análoga à dos presentes autos por Tribunal arbitral singular, em 20 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo n.º 412/2019 T, processo esse invocado pela Requerente nas suas alegações para fundamentar a sua pretensão.

Em termos sucintos, defendeu-se no seio desse processo que “diferentemente do que aconteceu anteriormente, o legislador da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, não previu nenhuma solução específica sobre o âmbito de aplicação temporal da nova taxa geral de IRC que foi instituída.”, pelo que “o âmbito de aplicação temporal da alteração à taxa geral do IRC (…) tem de ser determinado a partir das regras gerais de interpretação da lei e de aplicação das leis no tempo”. Neste sentido, invocou-se naquele processo que o artigo 12.º da LGT constitui a norma de âmbito genérico sobre a aplicação da Lei tributária no tempo, decorrendo do seu n.º 1 que “a norma tributária apenas se aplica aos atos ou factos ocorridos no seu domínio temporal de vigência”. Contudo, no caso de factos tributários de formação sucessiva, caberia aplicar o n.º 2 daquele mesmo preceito que determinava que a Lei nova apenas seria aplicável ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor, sendo assim a lei tributária aplicada segundo uma regra pro rata temporis.

Não obstante, defendeu-se que em virtude de a LGT “não possui[r] qualquer valor reforçado e, precisamente por se situar no mesmo nível hierárquico, é sempre suscetível de ser derrogada por qualquer disposição legal posterior; mais, importa ainda ter presente a relação entre lei geral e lei especial (…)”. Deste modo, “atento o disposto no artigo 8.º, n.º 9, do Código do IRC e a configuração aí dada ao facto gerador do imposto, afigura-se-nos que o legislador consagrou uma solução particular quanto à aplicação da Lei fiscal no tempo e à retroatividade; entendemos, assim, que vigora neste âmbito uma regra especial que resolve diretamente os problemas de sucessão de normas fiscais no tempo e que afasta a aplicação da regra geral constante do artigo 12.º, n.º 2, da LGT.”.

E tal solução não seria contrária à proibição constitucional da retroactividade das normas fiscais, constante do artigo 103.º, n.º 3 da CRP, na medida em que a aplicação da Lei nova a todo o período de tributação (ainda que, em bom rigor, o facto tributário apenas se verificasse no último dia daquele) sempre seria mais favorável ao contribuinte, de tal modo que a aplicação da taxa de 21% ao exercício de 2014 “não s[eria] contrári[a] à segurança jurídica e, portanto, não viola[ria] a tutela da confiança do contribuinte”. A seu título, também não seria violado o princípio da igualdade, na medida em que a aplicação de taxas diferentes ao período de tributação de 2014 seria justificada pela diferente situação jurídica verificada quanto aos diversos sujeitos passivos tributados naquele exercício, “uma vez que o facto gerador do imposto ocorre em momentos temporais diferentes quanto a uns e a outros”.

Em síntese, a “tributação deve[ria] ser efetuada em consonância com a lei em vigor no termo do período de tributação.”, pelo que seria aplicável a taxa de 21% introduzida pela Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, no caso de o período tributário terminar após a sua introdução, porquanto o facto gerador de imposto já se verificaria ao abrigo da lei nova.

 

Pese embora aquelas duas decisões arbitrais, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes, tenham dado razão à tese propugnada pela Requerente, a verdade é que no recente acórdão arbitral de 27 de Fevereiro de 2020, proferido no âmbito do processo n.º 411/2019 T, foi submetida a apreciação e julgada uma questão análoga à dos presentes autos, tendo-se decidido em sentido favorável à Requerida, sendo que este acórdão arbitral foi invocado pela Requerente nas suas alegações para fundamentar a sua pretensão.

Em termos concisos, defendeu-se no referido processo que a determinação da taxa aplicável ao período de tributação de 2014, cujo facto tributário apenas se verificou no decurso do ano civil de 2015, já após a entrada em vigor da Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, passaria por uma correcta interpretação do teor normativo do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, isto é, passaria por “(…) apurar se, e em que medida, a norma do supra referido art.º 14.º estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015.”. Isto na medida em que “se se considerar que aquela norma vigorava a 31 de Janeiro de 2015, por força da mesma, ter-se á de considerar que a taxa de imposto aplicável era, ainda, a instituída na Lei que a consagra.”, ou seja, continuaria a ser aplicável a taxa de 23% e não a taxa de 21% como defendido pela Requerente.

O artigo 14.º da referida lei dispunha que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”, tendo-se procurado no aresto em questão destrinçar o sentido e o alcance daquela norma.

Relativamente ao seu teor literal, referiu-se que se poderiam extrair diferentes conclusões. Por um lado, poderia concluir se que “se aplicariam as normas da Lei 2/2014, relativamente aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2014, mesmo que relativos ao exercício de 2013.”, o que seria o caso da Requerente naquele processo, uma vez que o seu período de tributação de 2013 terminou já na vigência daquela lei, altura em que se se verificou o facto tributário. Por outro lado, “situando-nos ainda no plano da letra da lei, também se poderia concluir que da mesma resultaria que as normas da Lei 2/2014, por força do seu art.º 14.º, se aplicariam aos exercícios e factos tributários, ocorridos nos exercícios e anos de 2015 e seguintes, e portanto, abrangendo o facto tributário em causa no presente processo arbitral, a menos que se concluísse que aquele artigo 14.º tivesse sido revogado”.

Não sendo o elemento literal da interpretação suficiente para determinar o alcance do preceito, caberia ter devidamente em consideração o seu elemento teleológico. Isto na medida em que, do ponto de vista lógico, interpretar a referida norma como sendo aplicável a todo e qualquer facto tributário verificado após a sua entrada em vigor tornaria a referência a “(…) períodos de tributação que se iniciem (…) em ou após 1 de janeiro de 2014.” desprovida de sentido, porquanto já estaria abrangida pela parte final do preceito que se refere “(…) aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”. Deste modo, tendo em conta que “a Lei 2/2014 procede a alterações profundas em sede de IRC e, também, em sede de IRS, imposto estes cuja tributação assenta, por norma, em períodos de tributação, mas que, incidentalmente, podem impor tributação de factos tributários isolados (como seja no caso das tributações autónomas).”, as referências supra-referidas não deveriam ser interpretadas como estando numa relação de alternatividade, mas sim de subsidiariedade. Dito de outro modo, em termos porventura mais explícitos, “o que o art.º 14.º da Lei 2/2014 pretende dizer é que o disposto nesta lei se aplica aos períodos de tributação, quando esta assente naqueles, e aos factos tributários, quando a tributação não tenha por base aqueles.”.

Tendo agora em consideração o elemento sistemático, concluiu-se no âmbito do referido aresto que o preceito em análise, ao delimitar o âmbito de vigência temporal das disposições da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, teve “subjacente o propósito de dispor na matéria de modo distinto do que resultaria da aplicação da referida norma da LGT.”, ou seja, pretendeu afastar a aplicação das regras gerais quanto à aplicação da lei tributária no tempo, constantes do artigo 12.º da LGT.

Em suma, entendeu-se que “o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação.”.

Por último, considerou-se naquele acórdão que o preceito normativo em análise ainda se encontrava em vigor no momento da verificação do facto tributário, isto é, no termo do período de tributação de 2014 que ocorreu no decurso do ano civil de 2015. E isto, ainda que a Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, que introduziu a taxa de 21%, tenha entrado em vigor a 1 de Janeiro de 2015.

Tal conclusão deveu-se ao facto de “a Lei do Orçamento para 2015, não cont[er] nenhuma norma que revogue, expressamente, o disposto naquele art.º 14.º, sendo que, ausência de norma transitória, invocada pela Requerente, e notada na decisão arbitral supra-citada [a decisão arbitral proferida em 15 de Outubro de 2018, no âmbito do processo n.º 179/2018-T], não deverá, de per si, ter-se como evidenciadora de uma intenção revogatória.”. Na verdade, tendo em conta que o artigo 14.º disciplinava o âmbito temporal de todas as alterações normativas introduzidas pela respectiva lei, apenas seria possível que a Lei do Orçamento do Estado para 2015 tivesse revogado tácita e parcialmente aquela norma, no que respeitava à taxa de IRC aplicável. Contudo, tal decisão não seria passível de ser defendida em virtude da ligação entre o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, e o artigo 261.º da Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, ou seja, o facto de o primeiro se consubstanciar enquanto norma especial e o segundo enquanto norma de âmbito geral obstaria à referida hipótese de revogação parcial tácita.

Em síntese, caberia “conclui[r], nos termos expostos, que o art.º 14.º da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014”.

 

17. Uma vez percorridas as decisões arbitrais conhecidas que versaram sobre questões análogas ao caso ora em juízo, cumpre então decidir qual a Lei aplicável e, consequentemente, qual a taxa aplicável ao período de tributação de 2014 da Requerente que se iniciou em 1 de Abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015.

Enquanto ponto de partida, e com o devido respeito pelas doutas decisões arbitrais proferidas no âmbito do processo n.º 179/2018-T, de 15 de Outubro de 2018, e no âmbito do processo n.º 412/2019 T, de 20 de Dezembro de 2019, adere-se à argumentação sufragada no âmbito do processo n.º 411/2019 T, de 27 de Fevereiro de 2020, porquanto se considera que é esta que concretiza uma correcta interpretação das normas aplicáveis e, consequentemente, uma correcta interpretação do Direito. Senão vejamos.

No decurso do seu pedido de pronúncia arbitral a Requerente invocou a favor da sua pretensão a decisão proferida no âmbito do processo n.º 179/2018-T, de 15 de Outubro de 2018, fazendo uso dos argumentos aí tecidos para justificar a aplicação ao exercício de 2014 da taxa de IRC de 21%. Para o efeito, referiu a Requerente que a Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, não continha qualquer norma transitória que limitasse a sua produção de efeitos, sendo que o artigo 12.º, n.º 1 da LGT dispunha que as normas tributárias se aplicam aos factos posteriores à sua entrada em vigor. Neste sentido, tendo-se verificado o facto tributário gerador de imposto em 31 de Março de 2015, isto é, após a entrada em vigor daquela Lei, a taxa de IRC vigente naquela data seria a de 21%, devendo a mesma ser aplicada ao período de tributação da Requerente de 2014.

Ora, se é certo que o facto tributário ocorreu após a entrada em vigor daquela Lei, tal como já prontamente se referiu, a verdade é que a referida solução normativa não efectua o correcto enquadramento das normas aplicáveis. Desde logo, a serem aplicáveis as normas gerais em matéria tributária relativamente à aplicação da lei no tempo, sempre seria de aplicar o artigo 12.º, n.º 2 da LGT que consagra um critério pro rata temporis para os impostos periódicos, relativamente aos quais o facto tributário é de formação sucessiva. E a este respeito cumpre salientar que não obsta a tal consideração a circunstância de o facto tributário dever ser tratado enquanto uma realidade unitária, cuja verificação apenas se dá, nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC, no último dia do período de tributação.

Conforme refere RUI DUARTE MORAIS, “(…) o IRC é um imposto periódico, ou seja, tem por base um facto gerador de carácter tendencialmente duradouro (a actividade da empresa) que (…) é – artificialmente – cindido em períodos (exercícios) para apuramento de resultados.

Sendo o facto gerador duradouro, coloca-se a questão do momento a considerar para determinar qual a lei que regerá a obrigação de imposto relativa a dado exercício. A resposta resultará, em princípio, do disposto no n.º 9 do art. 8.º: o facto gerador de imposto considera se verificado no último dia do período de tributação. Ou seja, a lei fiscal aplicável será, por regra (admitindo a normal coincidência do exercício com o ano civil), a vigente em 31 de Dezembro. O que resulta coerente com a anualidade dos impostos (…).”.  (sic)

Neste sentido, o momento da verificação do facto gerador de imposto consiste no parâmetro aferidor do enquadramento tributário do sujeito passivo relativamente a cada um dos períodos de tributação, isto é, baliza no tempo o momento para a aferição e definição daquele enquadramento. Contudo, isso não significa que seja a norma constante do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC que estabeleça e concretize, por si só, esse mesmo enquadramento legal.

Tal como se referiu no seio do processo n.º 412/2019 T, de 20 de Dezembro de 2019, no qual se dispôs que “Apesar de a LGT conter aqueles que são os grandes princípios ordenadores do sistema jurídico-tributário nacional, não possui qualquer valor reforçado e, precisamente por se situar no mesmo nível hierárquico, é sempre suscetível de ser derrogada por qualquer disposição legal posterior; mais, importa ainda ter presente a relação entre lei geral e lei especial e, concretamente, o princípio lex posterior generalis non derogat lei speciali priori.”. Neste sentido, considerou-se naquele aresto que as regras gerais em matéria de aplicação da lei no tempo constantes da LGT não seriam aplicáveis, uma vez que a vigência do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC consistia numa norma especial em face do artigo 12.º, n.º 2 da LGT. Assim seria afastado o critério pro rata temporis, aplicando-se a lei nova a “todos os factos e situações ocorridos no período de tributação em que entra em vigor”, isto é, aplicando se a Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, bem como a taxa de 21% por ela consagrada ao exercício de 2014.

A referida solução jurídica não tem, em nossa opinião, em consideração a devida relação que se estabelece entre as leis potencialmente aplicáveis, efectuando um erróneo enquadramento jurídico. De facto, tal como se referiu, o artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC determina o momento da verificação do facto tributário para efeitos do enquadramento normativo da situação jurídica da Requerente quanto a um determinado período de tributação não consistindo, em si, o critério de determinação da lei aplicável. Esse será sempre determinado pelas normas tributárias vigentes potencialmente aplicáveis à situação do sujeito passivo.

No caso em apreço, como vimos, a Requerente adoptou um período especial de tributação que se iniciou em 1 de abril de 2014 e terminou em 31 de Março de 2015. A taxa aplicável é a que resulta, por vontade expressa do legislador, vazada na Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro.

Com efeito, o legislador quis que a taxa de imposto, constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC e fixada em 23%, se aplicasse aos períodos de tributação, tais como o da Requerente, que se iniciaram em 2014 e completaram o seu ciclo de tributação anual, tornando-se exigíveis, em 2015. É neste sentido claro o teor do preceito ao dizer que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente Lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”. (destacado nosso) O legislador, consciente de situações como a da Requerente, cujo período tributário não coincide com o ano civil, e para evitar situações de desigualdade, resolveu o problema colocando os ciclos tributários iniciados em 2014, mas que possam terminar em 2015, sob o mesmo regime jurídico, quanto à taxa aplicável. Esta técnica jurídica evitou que o legislador de 2015 tivesse necessidade de fixar qualquer norma transitória.

Com efeito, o âmbito de proteção da Lei n.º 2/2014 não é minimamente contrariado pela Lei n.º 82 B/2014, de 31 de dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2015), em concreto do seu artigo 192.º, em que a taxa geral do IRC constante do artigo 87.º, n.º 1 do Código do IRC foi fixada em 21%.

Na verdade, determina-se, no artigo 261.º daquele primeiro diploma legal que “A presente lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2015.” Ou seja, resulta claro que esta norma visa aplicar-se apenas aos períodos tributários iniciados em 2015 (a um de janeiro ou posteriormente). O que não é manifestamente o caso da situação da Requerente, cujo período tributário se iniciou em 2014.

Em suma, qualquer interpretação que pretenda fazer aplicar à situação em apreço o artigo 192 da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, não tem na sua letra qualquer apoio.   

A interpretação ora sufragada, tal como consignado na Decisão arbitral proferida no processo n.º 411/2019-T, é a “que melhor se coaduna com os elementos clássicos da interpretação, uma vez que é a que melhor compatibiliza o teor literal, sistemático e teleológico do preceito. Veja-se, desde logo, que propugnar uma interpretação que não fixasse uma taxa de IRC de 23%, quanto aos actos regidos e dependentes do período de tributação de 2014 (como era o caso do facto gerador de imposto que apenas se verifica no término deste período), a par da fixação daquela mesma taxa para todos os demais actos tributários que se verificassem no decurso daquele exercício e que cuja verificação não assentasse ou necessitasse do culminar do período de tributação, seria propugnar uma interpretação desprovida de sentido, porquanto redundante. De facto, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”, conforme estabelece o artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil, pelo que se considera acertada a interpretação da norma que procura extrair as devidas consequências jurídicas quanto a cada uma das circunstâncias nela enunciadas, ao invés de tomar factos diversos expressamente definidos como tal pelo legislador como constituindo realidades idênticas às quais aplicam os mesmos efeitos jurídicos.

“Por último, cabe referir que tal solução em nada viola o princípio da igualdade tributária, uma vez que foi pretensão expressa do legislador que a taxa de 23% definida na Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, se aplicasse a todos os períodos de tributação de 2014, independentemente do seu início e do seu termo. Deste modo, não existe qualquer discriminação em face dos sujeitos passivos a quem seja aplicada a taxa de 21% definida pela Lei n.º 82 B/2014, de 31 de Dezembro, na medida em que não estão em causa situações idênticas. Ainda que ambos os factos tributários se verifiquem após a entrada em vigor desta última lei, a verdade é que estão em causa períodos de tributação diferentes relativamente aos quais o legislador definiu taxas de imposto diferentes.”

 

18. Em face de tudo o exposto, conclui-se que o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014 mantinha a sua vigência aquando da verificação do facto tributário em 31 de Março 2015, na parte em que determinava a aplicação da taxa de 23% à matéria colectável de IRC apurada por referência ao período de tributação de 2014, concluindo pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os demais pedidos a ele acessórios.

 

III.3. JUROS INDEMNIZATÓRIOS

15. A requerente pediu ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, à taxa legal, calculados sobre o imposto, até ao reembolso integral da quantia devida.

 

Em concreto, sobre o montante de imposto que considerou ter sido indevidamente pago no valor total de € 2.367.319,91, caberia o pagamento de juros indemnizatórios contados nos seguintes termos:

a) Quanto ao montante de € 1.590.226,67, desde a data do seu pagamento em 28 de Agosto de 2015;

b) Quanto ao montante remanescente no valor de € 777. 093,24, desde a data do seu pagamento em 28 de Abril de 2016;

 

Fundamentou a requerente a sua pretensão com base no facto de que “o erro de que padece a (auto)liquidação contra a qual se reclama resulta[r] de erro dos Serviços sobre os pressupostos de direito que condicionou informaticamente o preenchimento da declaração (Modelo 22) de autoliquidação, (…) agravado ainda pelo indeferimento do pedido de revisão oficiosa”. Neste sentido, citando doutrina e jurisprudência para alicerçar a sua posição, considerou a Requerente que existia erro imputável aos serviços não só em virtude da apresentação da impugnação administrativa daquela autoliquidação, mas também em virtude da procedência do pedido de pronúncia arbitral, uma vez que a declaração da sua ilegalidade parcial e a consequente anulação judicial do acto de autoliquidação demonstrariam o erro dos serviços ao terem decidido pela sua manutenção, que resultou no consequente pagamento de imposto em montante superior ao legalmente devido.

 

A respeito da obrigação legal de pagamento de juros indemnizatórios estabelece o artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Por seu turno, nos termos do artigo 100.º da LGT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT que “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”.

Por fim, dispõe o artigo 43.º, n.º 1 da LGT, invocado pela Requerente, e aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT que “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”.

 

Ora, tendo em consideração que se julgou improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral em virtude de não se imputar qualquer ilegalidade, quer à autoliquidação em juízo, quer à actuação da Requerida, não se pode considerar que ocorreu um qualquer erro imputável aos serviços que justifique a plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido praticado aquele acto de autoliquidação nos termos anteriormente referidos. Quer isto dizer que, sendo o acto de autoliquidação legal, e não se imputando qualquer erro à Autoridade Tributária conforme fundamenta a Requerente, não foi pago qualquer montante de imposto em excesso que deva ser reembolsado, não assistindo àquela o direito ao pagamento de quaisquer juros indemnizatórios que houvessem de ser calculado sobre esse montante.

 

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

a) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, absolver a Requerida do pedido

b) Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

V. VALOR DO PROCESSO

Atendendo ao disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 2.367.319,91.

 

VI. CUSTAS

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 30.600,00, a cargo da Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

Lisboa, 22 de Setembro de 2020.

 

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs

 

Graça Martins

 

Carla Castelo Trindade

(Relatora)

 

* Decisão arbitral anulada pela STA/Pleno 2.ª Secção, P. n.º 117/20.5BALSB