Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 290/2023-T
Data da decisão: 2023-10-19  IRS  
Valor do pedido: € 74.135,00
Tema: IRS - Extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide. Anulação administrativa do ato tributário impugnado.
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Sumário:

Tendo a Autoridade Tributária anulado administrativamente os atos de liquidação impugnados ainda antes do encerramento da discussão, verifica-se a impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

 

            1. A..., com o NIF ..., e B..., com o NIF ..., com morada em ..., apt. ..., ..., na Bélgica, vieram requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos atos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares n.º 2022... e n.º 2022..., com um valor total a pagar de € 74.135,00, bem como do indeferimento tácito da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios.

A Autoridade Tributária foi notificada para responder por despacho arbitral de 30 de junho de 2023, e na resposta, apresentada em 27 de setembro seguinte, veio dizer que a reclamação graciosa foi deferida por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ..., de 6 de julho de 2023, com base em informação dos serviços que foi notificada aos Requerentes.

Entretanto, por requerimento de 28 de setembro, a Autoridade Tributária juntou aos autos uma informação dos serviços em que é proposta a revogação dos atos de liquidação impugnados, bem como o despacho de concordância da Subdiretora Geral do IRS, datado de  27 de setembro de 2023.

 Ainda por requerimento de 4 de outubro de 2023, os Requerentes vieram solicitar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, tendo em consideração a revogação dos atos de liquidação que constituíam o objeto do processo arbitral.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.°da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 30 de junho de 2023.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

3. Os Requerentes procederam à entrega da declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS relativa ao exercício fiscal de 2021, declarando as mais-valias imobiliárias resultantes da aquisição, em 15 de abril de 2016, do prédio misto inscrito na matriz urbana sob o artigo ..., e na matriz rústica sob o artigo ..., secção B, do município de Sintra, e da sua ulterior alienação, em 27 de julho de 2021.

 

Em 23 de agosto de 2022, os Requerentes procederam ao pagamento das notas de liquidação no valor individual de € 37.067,52.

 

Segundo as notas de liquidação, é imputado aos Requerentes o rendimento global de € 132.384, ao qual foi aplicado a taxa de tributação autónoma de 28% sobre a totalidade das mais-valias auferidas, tendo daí resultado IRS devido por cada um dos Requerentes, no valor de € 37.067,52.

 

Os Requerente são sujeitos passivos não residentes em território português e alegam, no pedido arbitral, a violação do princípio da não discriminação entre residentes e não residentes num Estado-Membro, consagrado no artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), considerando que o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é, no caso das transmissões onerosas de direitos sobre bens imóveis efetuadas por residentes, apenas considerado em 50% do seu valor, conforme estabelece o n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS.

 

Por despacho da Subdiretora Geral do IRS, de 27 de setembro de 2023, foram revogados os atos de liquidação impugnados, com base em informação dos serviços em que se declara que “deverá ser aplicada nas liquidações vigentes o disposto no artigo 43.º, n.º 2, do CIRS considerando-se o saldo das mais-valias imobiliárias em apenas 50% do seu valor, restituindo-se o imposto pago, assim como o pagamento dos respetivos juros indemnizatórios”.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, informou ter sido dado provimento à reclamação graciosa apresentada pelos Requerentes, por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa ..., de 6 de julho de 2023, e, por requerimento de 28 de setembro, juntou aos autos o despacho da Subdiretora Geral do IRS, de 27 de setembro de 2023, que determina a revogação dos atos de liquidação impugnados.

Por requerimento de 4 de outubro de 2023, os Requerentes vieram solicitar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, tendo em consideração a revogação dos atos de liquidação que constituíam o objeto do processo arbitral.

 

Neste contexto, cabe analisar os efeitos processuais do dito ato revogatório.

 

4. A esse propósito, importa preliminarmente referir que o novo Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, passou a distinguir entre a revogação e a anulação administrativa, fazendo corresponder a cada uma destas figuras as duas anteriores modalidades de revogação ab-rogatória ou extintiva e revogação anulatória. Segundo a definição constante do artigo 165.º do CPA, a revogação é “o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade”, ao passo que a anulação administrativa é “o ato administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade”. A revogação produz, em regra, apenas efeitos para o futuro (artigo 171.º, n.º 1), enquanto a anulação administrativa, tendo por objeto a eliminação da ordem jurídica de atos anuláveis, tem, em regra, efeitos retroativos (artigo 171.º, n.º 3).

 

No caso vertente, a Autoridade Tributária praticou, segundo a nova terminologia, um ato de anulação administrativa, isto é, um ato que tem como fundamento considerações de legalidade administrativa e não de mera discricionariedade. Assim sendo, o falado despacho de 27 de setembro de 2023, embora adote a fórmula verbal anteriormente aplicável, corresponde a um verdadeiro ato anulatório.

Por outro lado, não está vedado à Administração operar a anulação administrativa do ato impugnado já na pendência do processo arbitral.

O artigo 168.º do CPA, que define os condicionalismos aplicáveis à anulação administrativa, no seu n.º 3, estabelece que “quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional, a anulação administrativa só pode ter lugar até ao encerramento da discussão”. Deve entender-se como encerramento da discussão, em correspondência com o estabelecido no artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC, o momento em que as partes produzam alegações orais ou o termo do prazo para alegações escritas ou o termo da fase dos articulados quando as partes tenham dispensado as alegações finais e o estado do processo permita sem necessidade de mais indagações a apreciação do pedido.

Haverá de concluir-se, por conseguinte, que o CPA alargou os poderes de disposição da Administração na pendência do processo, permitindo, na linha do que já vinha sugerido pela doutrina, que a anulação administrativa, quando o ato tenha sido objeto de impugnação jurisdicional possa ter lugar até ao encerramento da discussão, e não apenas até à resposta, como estava previsto no artigo 141.º, n.º 1, do CPA de 1991.

Dito isto, não pode deixar de reconhecer-se que a anulação administrativa é tempestiva, visto que a Autoridade Tributária informou a prática do ato anulatório ainda dentro prazo para a apresentação da resposta, e, nessa sequência, juntou o documento comprovativo ainda antes de qualquer novo desenvolvimento processual, havendo de atribuir-se à anulação, nesse condicionalismo, os correspondentes efeitos de direito.

No que concerne às consequências processuais da anulação administrativa interessa considerar a norma do artigo 64.º do CPTA, subsidiariamente aplicável, que, entre outros dispositivos, se refere às situações em que, na pendência do processo impugnatório, o ato impugnado é objeto de anulação administrativa acompanhada ou seguida de nova definição da situação jurídica, caso em que se admite que o processo impugnatório prossiga contra o novo ato com fundamento na reincidência nas mesmas ilegalidades. Prevê-se aí a hipótese típica de ampliação do objeto do processo quando, na pendência de um processo impugnatório, a Administração anule o ato impugnado praticando um novo ato em sua substituição contra o qual o impugnante poderá ter ainda interesse em reagir.

 É patente, no entanto, que não é essa a situação do caso.

A Administração limitou-se a anular o ato impugnado sem instituir uma qualquer nova regulação da situação jurídica. E sendo assim, a anulação administrativa, ocorrida na pendência do processo jurisdicional, satisfazendo a pretensão impugnatória do autor, conduz à impossibilidade superveniente da lide, que constitui causa de extinção da instância (artigo 277.º, alínea e), do CPC).

Acresce que o tribunal não tem de pronunciar-se sobre o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago e de pagamento de juros indemnizatórios. Relativamente a essas questões o pedido arbitral apenas pode ser entendido com uma pretensão condenatória de natureza acessória ou consequencial relativamente ao pedido principal, e a pronúncia do tribunal quanto a esses outros pedidos apenas poderia ocorrer se o processo devesse prosseguir para a apreciação do mérito da causa e eventual declaração de ilegalidade do ato impugnado.

Em todo o caso, o reembolso do imposto e o pagamento de juros indemnizatórios é uma consequência da anulação administrativa, tal como resulta do disposto no artigo 172.º do CPA, que impõe à Administração o dever de reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse praticado, em consonância com o também estabelecido no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

 

Acresce que a informação dos serviços em que se baseou o despacho anulatório reconhece o direito por parte dos Requerentes ao reembolso do imposto e ao pagamento dos respetivos juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

 

Valor da causa

Os Requerentes indicaram como valor da causa o montante de € 74.135,00, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).

Notifique-se.

Lisboa, 19 de outubro de 2023.

O Árbitro Presidente

(Carlos Alberto Fernandes Cadilha)

Relator

O Árbitro Vogal

(Rui Zeferino Ferreira)

O Árbitro Vogal

(Jorge Belchior de Campos Laires)