Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 743/2023-T
Data da decisão: 2024-02-29  IRC IRS  
Valor do pedido: € 130.981,31
Tema: IRS e IRC de 2019. Deslocações em viatura própria do trabalhador. Retenção na fonte de IRS.
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Sumário

A responsabilidade decorrente da norma do artigo 103.º/4 do CIRS devidamente interpretada no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido (e não pelas importâncias não retidas), daí decorrendo que se torna necessário, em primeiro lugar, determinar o quantum daquele, e só depois o valor da retenção devida.

 

 

Os árbitros Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs (árbitro-presidente), Dr. Manuel Lopes da Silva Faustino e Dr. Augusto Vieira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral Colectivo formado em 02 de Janeiro de 2024, acordam o seguinte:

I – Relatório

 

  1. A..., S.A., NIPC..., sociedade anónima com sede na ..., n.º .../..., ..., Centro Empresarial de..., freguesia de ..., concelho de ..., ...-... ..., adiante designado por “Requerente”, vem ao abrigo do disposto no Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (“RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo apresentado pedido de pronúncia arbitral (PPA), visando a anulação da liquidação de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) e de juros compensatórios n.º 2023..., no valor de € 130.981,31 e da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) n.º 2023..., da qual consta um valor a reembolsar de € 4.936,24.

 

  1. Termina pedindo que seja admitida “a cumulação de pedidos relativamente aos actos de liquidação ... identificados, nos termos e para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 104.º do CPPT e, do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT; e, em consequência:
  1. Julgue procedente, por provado, o presente Pedido de Pronúncia Arbitral e que, em consequência, declare a ilegalidade das liquidações de IRC, de IRS e de juros compensatórios emitidas à Requerente.
  2. E, bem assim, que a Requerente seja indemnizada pelos custos que teve com a prestação de garantia bancária para suspender o processo de execução fiscal a que estes documentos deram origem, nos termos e para efeitos do artigo 52.º da LGT”.

 

  1. É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, adiante designada por Requerida ou AT.

 

  1. A Requerente fundamenta o pedido de pronúncia arbitral (PPA) nos seguintes termos:

 

  1. Discorda das correcções que a AT levou a efeito do exercício de 2019, quanto ao IRS (retenção na fonte enquanto substituto tributário) no valor de € 113 739,11 e quanto ao valor IRC de € 14 386.23 com relevância no menor valor a reembolsar no acerto de contas.
  2. Não concorda desde logo com a afirmação de que “o valor pago aos trabalhadores pela Requerente, a título de ajudas de custo e deslocações em viatura do próprio, seja elevado” uma vez que “face ao número de obras e localização das mesmas, o valor indicado está plenamente justificado”
  3.  Também discorda do “critério de verificação dos quilómetros declarados as inspeções dos veículos realizadas junto do IMTT, por comparação com os mapas de quilómetros preenchidos mensalmente para cada trabalhador
  1. em primeiro lugar, ...  é falacioso e não demonstra, de forma alguma, qualquer “conformidade” ou desconformidade (utilizando as expressões da AT no RIT) dos mapas de quilómetros.
  2. Mas, mesmo que assim não fosse, não pode a Requerente concordar que o número de quilómetros percorridos pelos veículos não tem correspondência com os quilómetros registados pelos mesmos nas inspecções junto do IMTT”.
  1.  Apresenta, por amostragem, 5 casos de trabalhadores (2 directores de obra, 2 encarregados de obra e o CEO da empresa) contrapondo os KM constantes dos mapas de deslocações e os que as viaturas tinham à data da inspecção e que são recolhidos pelas empresas de inspecção periódica de viaturas automóveis, concluindo:
  1. Neste contexto, ... é relevante reiterar que os quilómetros percorridos por um determinado funcionário num determinado período do ano não são indicativos, nem proporcionais, ao restante ano, uma vez que os quilómetros percorridos dependem das obras a que os trabalhadores estão afetos em cada momento.
  2.  E, naturalmente, há obras que ocorrem em locais mais próximos e outras em locais menos próximos da sede da Requerente.
  3.  Em 2019, a Requerente encontrava-se a realizar 50 (cinquenta) obras em Lisboa, Miraflores, Amadora, Guincho, Cascais, Sacavém e Porto.
  4.  O elevado número de obras em curso e as diferentes localizações das obras evidenciam o motivo para a necessidade de compensação dos trabalhadores pela deslocação em viatura própria, demonstrando ainda a disparidade de distâncias a percorrer pelos trabalhadores responsáveis pelas diferentes obras”.
  5.   ... “a comparação dos mapas de quilómetros dos trabalhadores não pode ser realizada pelo registo de quilómetros do IMTT, uma vez que os trabalhadores não percorrem os mesmos quilómetros todos os meses, nem tão pouco percorrem os mesmos quilómetros todos os anos, dependendo o número de quilómetros percorridos em cada ano de muitos outros fatores”.
  6. E isto porque “... a lei fiscal, ... apenas determina que os referidos mapas incluam alguns dos elementos mínimos exigíveis, permitindo a existência de algum controlo, de modo que, por um lado, sejam dedutíveis para efeitos de IRC e, por outro, tais valores sejam pagos aos trabalhadores sem tributação em sede de IRS, por se tratar de uma compensação pela deslocação dos trabalhadores ao serviço da empresa”.
  1. Discorda ainda da ilação retirada pela AT de que “como a empresa possuiu no seu ativo fixo um numero significativo de viaturas ligeiras que corresponde praticamente a uma viatura por colaborador; que estão na contabilidade registados consumos relevantes pela respetiva utilização e que naturalmente só poderiam ter sido utilizadas pelos trabalhadores, não se vislumbra como seria possível aos trabalhadores, para além de terem utilizado as viaturas da empresa ainda tivessem necessidade e tempo para utilizarem as suas”.  É que
  2. Em 2019, o número médio de trabalhadores ... foi de 38, tendo iniciado o ano com 32 trabalhadores e terminado com 42” e “... nesse ano de 2019 o número de veículos era de 20, correspondendo a 9 de mercadorias e a 11 de passageiros”, sendo que “... as necessidades da empresa vão mudando ao longo do ano, dependendo do número e complexidade das obras mantidas, quer o número quer de trabalhadores, quer de veículos vai variando”, pelo que sendo “o número de veículos, designadamente de passageiros, consideravelmente inferior ao número de trabalhadores, a conclusão tomada pela AT não é verdadeira nem corresponde à realidade dos factos”.
  3. E conclui: “o critério utilizado pela AT não é relevante nem pode ser tomado em linha de conta para verificação dos mapas de quilómetros, apenas sendo necessária a verificação de, pelo menos, alguns elementos dos mapas de quilómetros de modo a permitirem uma garantia de controlo ...”.
  4. Também discorda do RIT quanto conclui que “nos casos em que nos boletins não existe identificação de viatura, também os valores pagos não podem ser considerados, por se tratar de um requisito indispensável, nos termos da alínea h) do nº 1 do artigo 23º A do CIRC.” É que
  1. “... não concretiza nem indica quais os mapas em que considera que a viatura não se encontrava identificada”, uma vez que “... conforme resulta dos mapas juntos ...como exemplos (a Requerente optou por juntar uma amostra dos seus trabalhadores, considerando a função exercida e/ou o número de obras a que se encontravam afetos em 2019), os referidos requisitos legais encontram-se todos preenchidos”.
  2.  Acrescendo que “... mesmo que se entendesse que algum dos elementos referidos não estivesse preenchido, é jurisprudência assente dos tribunais superiores que os requisitos identificados na alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC são meramente exemplificativos, devendo o mapa conter um conteúdo mínimo exigível que permita compreender o destino e data da deslocação, bem como o seu objetivo”, sendo que
  3. a este propósito, e sobre correções realizadas em situações semelhantes pela AT (com base no critério de verificação do respetivo registo junto do IMTT), vieram já os nossos tribunais determinar que o critério relevante é, conforme referido, o preenchimento dos requisitos legais conforme determinado na alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC, acima transcrita”.
  4. E conclui: “não sendo relevante qualquer outro critério de apuramento dos quilómetros, nem tão pouco o argumento da desproporção e desconformidade das compensações pagas pela empresa, não pode, ainda, deixar de se referir o seguinte: Nos termos do n.º 1 do artigo 7.º da LGT, o contribuinte beneficia da presunção de veracidade das suas declarações fiscais e dos dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”.
  1. Discorda, por último, da actuação da AT na interpretação do nº 4 do artigo 103º do CIRS ao “pretender agora, 4 anos depois do ano em questão liquidar à Requerente retenção na fonte, sem proceder primeiro à liquidação ao contribuinte em questão, i.e., o trabalhador”. Ora,
  1. “... a retenção na fonte assume a forma de imposto por conta, procedendo-se ao necessário acerto no momento da entrega da declaração de IRS, no ano seguinte ao recebimento dos rendimentos”.
  2. E por outro lado “... o substituto tributário (in casu a Requerente) apenas pode ser notificado para pagamento do IRS em falta depois de notificado o devedor original (i.e., cada um dos trabalhadores) e esgotado o respetivo património, aplicando-se à situação em apreço, a liquidação de IRS liquidada à Requerente deverá ser anulada, por ferir de ilegalidade”.

 

 

  1. Por despacho da Srª Presidente do Tribunal Arbitral de 03.01.2024 foi a Requerida notificada para contestar, tendo respondido em 07.02.2024 e juntou o PA (12 ficheiros).

 

  1. A Requerida na sua Resposta, impugnando, refere o seguinte:

 

  1. Relatório de Inspecção Tributária (RIT) – remete a impugnação para “... o entendimento da AT está devidamente justificado e fundamentado no Relatório de inspeção da DF de Lisboa (OI2022... de 30-06-2022) que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos e que foram efetuadas todas as diligências, seguidos todos procedimentos e recolhidos todos os meios de prova admitidos em direito, tendo em vista o apuramento dos factos tributários, que sustentaram as correções/liquidações efetuadas em sede retenção na fonte de IRS 2019 tendo sido observados os princípios da verdade material e do inquisitório (art.º 6º RCPITA e 58º da LGT)”.
  2.   E conclui: “contata-se pois que o Relatório de Inspeção Tributária contém todos os dados relevantes para a sua compreensão e o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido, nos termos legalmente previstos e conforme jurisprudência de tribunais superiores (Acórdão STA, nº 068/17 de 26/06/2017 e artigos 268º, nº 3 da CRP, 77º da LGT e 153º do CPA) cumprindo assim a AT, o ónus de provar a existência dos pressupostos de facto e de direito (art.º 74 nº 1 da LGT), que fundamentaram as correções efetuadas, nos termos das normas de incidência atrás citadas”.
  3. Quanto à prova apresentada pela Requerente em sede de PPA – refere que a Requerente “não vem demonstrar a veracidade do número de Km que constam nos mapas de deslocações, mas antes alega que o critério utilizado pela AT é falacioso e o número de quilómetros percorridos pelos veículos, e registados nos mapas de deslocações, não tem correspondência com os quilómetros registados pelos mesmos nas fichas de inspeção junto do IMTT” acrescentando que “não se entende o que pretende a Requerente provar com a expressão “não tem correspondência”, pois o critério utilizado pelos SIT parece-nos um critério aceitável e, utilizado com bom senso, não conduz a resultados falsos ou enganadores”, concluindo que “se com a referida expressão a Requerente pretende afirmar que os Km que constam nos mapas de deslocações não podem ser comparados com os Km que constam nas fichas de inspeção das viaturas, então é uma expressão que não podemos acompanhar”.
  4. Relativamente aos 5 casos de trabalhadores indicados pela Requerente conclui que ao invés do pretendido pela Requerente provam o contrário.

E por isso conclui: “se dúvidas existiam sobre o que os SIT designam como a falta de comprovação da veracidade dos quilómetros indicados nos mapas de deslocações, com este exemplo que a Requerente traz ao processo essas dúvidas parecem desfeitas, e a conclusão não pode ser diferente da que foi retirada pelos SIT no relatório de inspeção:  “Os pagamentos … não reúnem o exigido alínea h) do nº 1 do artigo 23º A do CIRC para serem considerados como compensação pela deslocação em viatura própria, constituem rendimentos da categoria A de IRS do respetivo beneficiário por determinação da alínea c) do nº 3 do artigo 2º do CIRS e, como tal estão sujeitos, a retenção na fonte do IRS…”

  1. Quanto à liquidação das retenções na fonte de IRS – refere que: “...a sociedade ora requerente, na qualidade de substituto, recai a responsabilidade solidária pelo pagamento do tributo antes referido, conforme resulta do artigo 28.º da LGT e do n.º 4 do art.º 103.º do CIRS, aditado pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de dezembro (OE 2007) que refere: “tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção na fonte que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido””  indicando as decisões CAAD P. 118/2015-T, P 539/2017-T em defesa do seu ponto de vista.
  2. No que concerne ao pedido de indemnização dos custos com a prestação de garantia bancária – refere que “cumpre antes de mais referir que este documento fora emitido na sequência do Processo de Execução Fiscal nº ...2023..., nos termos e para os efeitos do nº 2 do art 169º CPPT”, pelo que deve considerar-se improcedente.
  3. Conclui pela improcedência de todos os pedidos e absolvição da AT.           

 

  1. Por despacho da Srª Presidente do Tribunal Arbitral de 12.02.2024, foi notificada a Requerente para informar os factos concretos sobre os quais pretende que se incida prova testemunhal.
  2. Por despacho do Tribunal, de 24 de Fevereiro, foi dispensada a prova testemunhal e a produção de alegações, nos termos que se dão por reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos. Foi igualmente fixada a data de 6 de Março como prazo limite de prolação da decisão arbitral.
  3. O pedido de constituição do tribunal arbitral (PPA) foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
  4. De acordo com o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228. ° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo (TAC) os signatários desta decisão, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
  5. As partes foram oportuna e devidamente notificadas da designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6. ° e 7.º do Código Deontológico.
  6. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo (TAC) foi constituído em 02 Janeiro de 2024, encontrando-se regularmente constituído.
  7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O processo não enferma de nulidades.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

  1. Os factos relevantes para a decisão da causa são os seguintes:
  1. A Requerente é uma sociedade comercial cujo objeto de atividade é o da construção de edifícios (residenciais e não residenciais), compra e venda de bens imobiliários e outras atividades especializadas de construção – artigo 22º do PPA e ponto III-1 do RIT
  2.  A AT realizou uma ação de inspeção tributária que teve por base a Ordem de Serviço n.º OI2022..., com data de 02/06/2022, em sede de IVA, IRC e IRS (retenções na fonte) do ano de 2019, com início a 13-10-2022 e conclusão a 06-06-2023 e teve como objeto o controlo de divergências e de situações de risco relativamente ao ano fiscal de 2019 (Código PNAITA, 102-28 - controlo declarativo) – artigo 23º do PPA, artigo 1º da Resposta da AT e ponto II-1 e II-2 do RIT;
  3. Após o exercício do direito de audição quanto ao projecto de RIT que foi notificado à Requerente, em 21-06-2023, foi notificada a versão final do RIT contendo as seguintes correcções de impostos:

 

- artigo 11º do PPA e parte final do ponto V do RIT;

  1. O RIT tem a seguinte fundamentação:

Deslocações em viatura própria do trabalhador” - Nas declarações mensais de remunerações, a que se refere (Art. 119, n.º 1, al. c) e d) do Código do IRS), a empresa comunicou ter pago aos colaboradores a títulos de "Ajudas de custo e deslocações em viatura do próprio (parte não sujeita)", o valor de 336.807,73€.

Dada a relevância do referido valor, nomeadamente quando comparado com as remunerações pagas sujeitas a imposto, foram os referidos pagamentos objeto de análise, no sentido de confirmar a respetiva coerência e legalidade.

Uma vez que os documentos justificativos desta rubrica indicavam tratar-se, na generalidade dos casos, de compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, para verificação da respetiva conformidade, procedeu-se à comparação do somatório do número de km indicados nos boletins com o número de km que as viaturas indicadas percorreram constante das respetivas fichas de inspeção obrigatória do IMTT.

Dado que as inspeções não coincidem com o ano civil, partiu-se das inspeções mais aproximadas ao exercício em análise, para cálculo dos Km percorridos reportado ao ano.

Relativamente às viaturas novas, cuja inspeção ocorreu em exercícios posteriores ao analisado, o intervalo entre inspeções considerou-se decorrido entre a data de matrícula, zero Km, e a data da primeira inspeção.

Em muitos casos verificou-se que o somatório dos km indicado nos boletins, por viatura, era significativamente superior ao número de km constante na correspondente da ficha de inspeção do IMTT e, assim sendo, não estando comprovada a veracidade dos km indicados nos boletins não podem os mesmos ser considerados.

Nos casos em que nos boletins não existe identificação de viatura, também os valores pagos não podem ser considerados, por se tratar de um requisito indispensável, nos termos da al. h) do nº 1 do artigo 23º A do CIRC.

Os pagamentos acima referidos como, pelos factos apontados, não reúnem o exigido al. h) do nº 1 do artigo 23º A do CIRC param serem considerados como compensação pela deslocação em viatura própria, constituem rendimentos da categoria A de IRS do respetivo beneficiário por determinação da alínea c) do no 3 do artigo 2º do CIRS e, como tal estão sujeitos, a retenção na fonte do IRS, conforme artigo 99º, às taxas personalizadas constantes da CIRCULAR Nº 1/2018, face ao disposto no nº 1 do artigo 99º-F do CIRS.

Dado que esses rendimentos sujeitos as retenções não foram contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o sujeito passivo, na condição de substituto tributário é nos termos do n o 4 do art.º 103º do CIRS, solidariamente responsável pela entrega do imposto não retido.

Salienta-se ainda que, como a empresa possuiu no seu ativo fixo um número significativo de viaturas ligeiras que corresponde praticamente a uma viatura por colaborador; que estão na contabilidade registados consumos relevantes pela respetiva utilização e que naturalmente só poderiam ter sido utilizadas pelos trabalhadores, não Se vislumbra como seria possível aos trabalhadores, para além de terem utilizado as viaturas da empresa ainda tivessem necessidade e tempo para utilizarem as suas

...

IRS Retenção na Fonte — Categoria A - Conforme descrito no capítulo IV a empresa, pagou aos seus colaboradores diversos montantes que considerou como ajudas de custo, mas que, de facto, conforme justificado ... são na realidade retribuições/rendimentos de IRS-Categoria A, e, por esta razão, a empresa estava obrigada, sobre estes rendimentos, a proceder à retenção na fonte do IRS, conforme artigo 99º, às taxas personalizadas constantes da CIRCULAR Nº 1/ 018, face ao disposto no nº 1 do artigo 99º-F do CIRS.

Dado que esses rendimentos sujeitos a retenção não foram contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o sujeito passivo, na condição de substituto tributário é nos termos do nº 4 do art.º 103º do CIRS, solidariamente responsável pela entrega do imposto não retido.

O montante total das retenções na fonte não efetuadas e que deveria ter sido entregue ao Estado, foi calculado conforme mapas mensais ... que foram elaborados com base nos boletins de deslocação, (arquivados em papéis de trabalho), bem como dos mapas de vencimentos, ... para efeitos de apuramento dos valores sujeitos a retenção.

Relativamente a um número reduzido de casos em o imposto a entregar que apurámos, era inferior ao imposto apurado e entregue pela empresa, considerou-se valor nulo a entregar, e não valor negativo, uma vez que tal valor foi nesta data já tido em conta no imposto final IRS dos colaboradores.

Aos valores assim obtidos, foi recalculada a taxa de retenção aplicável, conforme tabelas para o exercício, em conformidade com a situação familiar do trabalhador.

Obtida a importância que deveria ter sido retida, deduziu-se o valor efetivamente retido, para obtenção da retenção em falta.

Os valores em falta por período, são os que se indicam:

 

 

Serão apresentados ... mapas mensais de apuramento, e mapa totalizador com duas páginas, sendo que a desconformidade conducente à não aceitação consta apenas deste último.

Tributação autónoma — Reversão” - Dado que a empresa sujeitou a tributação autónoma, nos termos do nº 9 do artigo 88º do CIRC, os valores que antes mencionámos, deverão os mesmos ser agora desconsiderados para efeitos dessa tributação, apurados do seguinte modo, conforme soma dos mapas mensais:

 

 -  artigos 14º, 16º, 17º, 20º do PPA e parte IV e V do RIT;

  1. Em datas não apuradas foi a Requerente notificada (1) da liquidação de IRC nº 2023 ... de 29.06.2023, indicando um valor a reembolsar de € 4 936,24 e (2) da liquidação de IRS 2023 nº ... de 29.06.2023, indicando um valor a pagar, incluindo juros compensatórios, de € 130 981.21– conforme parte inicial do PPA e Documentos nºs 1 e 2 juntos com o PPA;
  2. A Requerente foi citada para o Processo de Execução Fiscal n.º ...2023..., para cobrança coerciva da dívida e em 16 de Outubro de 2023 remeteu à AT o original de uma garantia bancária no valor de €166.177,45 – conforme artigo 27º do PPA e Documento nº 4 em nexo ao PPA;
  3. Em 2019, a Requerente encontrava-se a realizar 50 obras nas áreas de Lisboa, Miraflores, Amadora, Guincho, Cascais, Sacavém e Porto, conforme quadro seguinte:

 

- conforme artigo 63º do PPA e Documento nº 10 junto com o PPA apreciado nos termos do nº 7 do artigo 110º do CPPT

  1. Em 2019, o número médio de trabalhadores da Requerente foi de 38, tendo iniciado o ano com 32 trabalhadores e terminado com 42, conforme quadro resumo seguinte:

 

- conforme artigo 69º do PPA e Documento 11 em anexo ao PPA apreciado nos termos do nº 7 do artigo 110º do CPPT

  1. No ano de 2019 o número de veículos era de 20, correspondendo a 9 de mercadorias e a 11 de passageiros - conforme artigo 69º do PPA e Documento 12 em anexo ao PPA apreciado nos termos do nº 7 do artigo 110º do CPPT
  2. Em 19.10.2023 a Requerente apresentou o presente pedido arbitral – conforme registo no SGP do CAAD

 

Factos não provados

 

Não há factos não provados que possam ser considerados relevantes para a decisão da causa.

 

Motivação da fixação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos factos articulados no PPA e na Resposta da AT que estão em conformidade com a posição assumida por ambas as partes e bem assim com base nos documentos juntos com o PPA que não mereceram reparo das partes.

 

III - Matéria de direito

 

As disposições legais directamente em causa

 

A alínea h) do n.º 1 do artigo 23.º-A do Código do IRC refere que:

 

Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

(…)

h) As ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não faturados a clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não possua, por cada pagamento efetuado, um mapa através do qual seja possível efetuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respetivos locais, tempo de permanência, objetivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respetivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, exceto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respetivo beneficiário”.

 

O n.º 4 do artigo 103.º do Código do IRS refere que:

 

Tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido.”

 

Ordem de conhecimento dos vícios na sentença

           

            A Requerente invocou essencialmente duas desconformidades com a lei que assaca às liquidações impugnadas:

  • A de que o método usado pela AT (confronto com os quilómetros registados aquando das inspecções periódicas dos veículos face aos quilómetros registados nos mapas de controlo de deslocações) para desconsiderar os valores contabilizados como ajudas de custo a título de deslocações em viatura própria do trabalhador, não é suficiente para afastar a presunção de verdade da declaração de IRC e bem assim os registos contabilísticos (artigo 75º-1 da LGT, nº 3 do artigo 17º e artigo 123º do CIRC);
  •  A de que a AT não poderia liquidar os IRS por falta de retenções na fonte, porque “apenas pode ser notificada para pagamento do IRS em falta depois de notificado o devedor original (i.e., cada um dos trabalhadores) e esgotado o respetivo património, aplicando-se à situação em apreço, a liquidação de IRS liquidada à Requerente deverá ser anulada, por ferir de ilegalidade” face à correcta leitura do nº 4 do artigo 103º do CIRS.

 

Dispõe    o artigo 124º do CPPT que:

 

na sentença o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação” e que “nos referidos grupos a apreciação dos vícios é feita pela ordem seguinte:

a) No primeiro grupo, o dos vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos;

b) No segundo grupo, a indicada pelo impugnante, sempre que este estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público ou, nos demais casos, a fixada na alínea anterior”.

 

Ora, no caso a Requerente não colocou os vícios numa relação de subsidiariedade, pelo que, pode o Tribunal decidir segundo o critério da alínea a) do artigo 124º do CPPT.

 

Apreciação da ilegalidade das liquidações face ao nº 4 do artigo 103º do CIRS

 

Este Tribunal adere, por concordar, com o que a decisão 30.07.2022, que obteve vencimento no processo CAAD nº 638/2021, num caso similar ao deste processo, onde se escreveu:

 

A questão central a decidir consiste em saber se o Imposto sobre o Rendimento das pessoas Singulares (IRS), alegadamente indevidamente não retido, no caso dos autos, sobre os montantes pagos a título de ajudas de custo poderá ser liquidado, e o seu pagamento exigido, diretamente e em primeira instância, à própria Requerente, ao abrigo da norma prevista no artigo 103.º, n. º4, do CIRS.  

            Segundo a Requerente, em termos sintéticos, a liquidação ora contestada deveria ter sido notificada não a si (substituto), como sucedeu efetivamente, mas a cada um dos trabalhadores (substituídos), na sua qualidade de sujeito passivo do imposto e responsável originário pelo pagamento do imposto não retido. Na verdade, sendo o substituído o verdadeiro titular do rendimento sujeito a tributação, mais especificamente das verbas agora requalificadas pela Administração Tributária como rendimento do trabalho dependente, é a sua situação tributária que carece de correção, devendo a liquidação do imposto em falta ser-lhe dirigida.

             Em sentido contrário, argumenta a Requerida que segundo a norma do artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, introduzida no ordenamento jurídico pela Lei do OE de 2007, tratando-se de rendimentos de IRS sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados, nem comunicados como tal aos respetivos beneficiários, deve ser o substituto a assumir a responsabilidade solidária pelo imposto não retido. 

Vejamos.

 A questão assim colocada já foi objeto de análise designadamente nas Decisões

Arbitrais correspondentes aos processos n.ºs 119/2015-T e 120/2015-T, cuja jurisprudência, por com ela concordarmos, passamos a reproduzir, no caso dos autos.           Começando pela análise dos textos legais pertinentes, nos termos da LGT podemos distinguir dois tipos de solidariedade tributária, com especificidades próprias suficientes para justificar tratamentos distintos entre ambas. Assim, e por um lado, temos a solidariedade que ocorre “quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, denominada, pelo artigo 21.º da LGT, como “solidariedade passiva”, e que se poderá designar, igualmente, como “originária”, na medida em que existe uma ligação direta dos obrigados solidários, ao facto gerador da obrigação de imposto.

            Por outro lado, deteta-se na LGT um outro tipo de solidariedade, que se poderá, à luz da sistemática desta, qualificar como “não originária”, e que se reporta à responsabilização de terceiros pela dívida tributária do sujeito passivo originário, conforme genericamente previsto no artigo 22.º, n.º 2 daquela Lei. Aqui, ao contrário da solidariedade originária a que se reporta o artigo 21.º, “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, uma vez que este não é – por definição – sujeito passivo originário.

Como ficou consignado na Decisão Arbitral, proferida no processo n.º 119/2015-T, este tipo de casos – do artigo 22.º, n.º 2 da LGT – é distinto do primeiro – a que alude o artigo 21.º da mesma Lei, não restarão dúvidas, já que nesta última situação, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, todos os obrigados serão sujeitos passivos originários do imposto, na medida em que, justamente, os pressupostos do facto tributário se verificam em relação a todos eles, enquanto que na hipótese a que alude o artigo 22.º, n.º 2 da LGT, confessadamente, estão em causa terceiros, que não o sujeito passivo originário do imposto.

  “Ou seja: nos casos em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa”, como, por exemplo, na tributação do agregado familiar em sede de IRS, teremos uma situação de solidariedade tributária originária; nos casos em que “os pressupostos do facto tributário” não se verificam em relação ao responsável solidário, mas que, por força da lei, aquele é solidariamente responsável pela dívida tributária, e eventuais acessórios, do devedor originário – como acontece no caso dos gestores de bens ou direitos de não residentes – teremos uma situação de solidariedade tributária não originária.

           “A análise da distinção entre aqueles dois tipos de solidariedade tributária que resultam da LGT, não carece de ser iniciado do zero, já que a doutrina civilística, estudiosa da matéria de longa data, detectou já a comunhão de fim das obrigações solidárias, como um dado incontornável a ter em conta na matéria, sendo tido, inclusivamente, como um pressuposto da genuína solidariedade (…)”.

            “Trata-se de casos que têm por objecto a mesma prestação e em que ao credor é reconhecida a faculdade de exigir de qualquer dos devedores a prestação integral, mas que escapam ao regime regra da solidariedade”.

            “Exemplos deste tipo de situações são o caso do operário atropelado em serviço, que poderá exigir a indemnização quer ao atropelante, quer à entidade patronal; o caso do comerciante furtado, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao ladrão, quer ao vigilante que, negligenciou os seus deveres de vigia; ou o caso da vítima de incêndio, que poderá exigir a reparação do prejuízo quer ao incendiário, quer à seguradora que previamente contratou para cobrir esse risco”.

            “Nota característica destas situações, é que o cumprimento da obrigação perante o credor por um dos devedores, em certos casos extingue a responsabilidade dos restantes, enquanto que noutros não. Assim, se, nos exemplos supra, o atropelante, o ladrão ou o incendiário reparem os danos, a entidade patronal, o vigilante ou a seguradora, respectivamente, ver-se-ão exonerados de qualquer obrigação; já se forem estes últimos a satisfazerem, perante o credor, a obrigação que lhes cabe, a obrigação dos restantes permanecerá, respondendo eles pela totalidade da obrigação, perante o devedor que cumpriu perante o credor (…)”.

            “Como conclui o Ilustre Mestre Antunes Varela (…), “quando, na intenção das partes ou no espírito da lei, exista comunhão de fim a unir as obrigações, ou seja, colaboração dos devedores ao serviço do mesmo interesse do credor, há solidariedade; quando, pelo contrário, não há comunhão de fim, mas simples coincidência de fins das prestações, assente uma disjunção ou num escalonamento sucessivo das obrigações, falta a solidariedade (havendo apenas uma pluralidade de obrigações independentes, destinadas à satisfação do mesmo interesse do credor), embora alguns preceitos das obrigações solidárias possam ser aplicados, por analogia, ao tratamento jurídico de tais situações.”

            “Retornando ao domínio do direito fiscal, e aplicando aqui a doutrina que se vem de referir, concluir-se-á que nas situações que acima se designaram como de solidariedade originária, estaremos perante casos de verdadeira comunhão de fim, fundada na comunhão do próprio facto tributário, justificativa da aplicação directa dos preceitos civis relativos à solidariedade”.

            “Já nas situações que acima se designaram como de solidariedade não-originária, o que verificará é a referida coincidência de fins, como, retornando ao exemplo dos gestores de bens ou direitos de não residentes, decorre da circunstância de o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo originário (não residente, no exemplo) exonerar o responsável solidário (gestor, no mesmo exemplo), enquanto que o cumprimento pelo responsável solidário (gestor), não exonerará o sujeito passivo originário da sua obrigação (que persistirá, agora, perante aquele, por via do direito de regresso), o que poderá justificar a aplicação, por via da analogia, das partes do regime geral da solidariedade, na medida em que tal se justifique”.

            “Pode-se concluir, assim, face ao quadro legal positivo, com suficiente segurança, que as diferenças entre os dois tipos de solidariedade tributária detectada, relacionados essencialmente com as circunstâncias de:

  • num deles (artigo 21.º da LGT) haver uma comunhão no facto tributário entre os devedores (que, como tal, assumirão a qualidade de sujeitos passivos originários do imposto), com a consequente existência de um nexo relacional entre eles, em termos de o cumprimento da obrigação tributária por qualquer deles, gerar o direito de regresso do cumpridor sobre os restantes;
  • enquanto noutro (artigo 22.º/2 da LGT), o facto tributário se verifica apenas quanto a um devedor (ou, academicamente, a um grupo de devedores), que se assume como sujeito passivo originário, pelo que, cumprindo este a obrigação tributária, nenhum direito lhe caberá contra os restantes, que, por seu lado, cumprindo, poderão exigir do(s) devedore(s) originário(s) o pagamento de quanto lhes foi imposto pagar;

são justificativas de um tratamento distinto, na medida em que as diferenças verificadas o justifiquem.”

          Transpondo o exposto ao caso dos autos, importa conjugar os preceitos analisados com o disposto no artigo 103.º, n. º4 do CIRS, segundo a redação vigente à data do facto tributário (ano de 2019).

  A Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, aditou ao artigo 103.º do CIRS um n.º 4, em que estabelece que «tratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido».

Como vimos, foi com base neste preceito que a Autoridade Tributária e Aduaneira se baseou para liquidar o IRS e juros compensatórios e notificar a Requerente para o seu pagamento.

Esta norma visa especificamente os pagamentos de rendimentos que constituam «remunerações» como deixou claro o Relatório do Orçamento do Estado para 2007, em que se refere, na página 29, o seguinte:

Responsabilidade Solidária

 Instituição de um regime de responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido aos beneficiários dos rendimentos em situações qualificadas como práticas fraudulentas relacionadas com a omissão ou redução do montante das remunerações pagas, seja pela sua não contabilização, seja pela sua caracterização como rendimentos não sujeitos a tributação (v.g. ajudas de custo).

 O preceito contido no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS constitui uma exceção à regra do n.º 2 do artigo 28º da LGT, aplicável às restantes situações de retenção na fonte de rendimentos efetuada meramente a título de pagamento por conta de imposto devido a final, em que se estabelece que «cabe ao substituído a responsabilidade originária pelo imposto não retido e ao substituto a responsabilidade subsidiária»1.

Mas, como se vê pelo facto de neste n.º 4 se prever a responsabilidade do substituto como solidária, a responsabilidade originária do imposto não retido continua a caber ao substituído, consubstanciando-se o regime excecional do n.º 4 apenas na natureza da responsabilidade do substituto que, em vez de ser subsidiária, é solidária, para além de o substituto ser responsável exclusivo pelos «juros compensatórios devidos desde o termo do prazo de entrega até ao termo do prazo da apresentação da declaração pelo responsável originário ou até à data da entrega do imposto retido, se anterior».

            Estamos aqui, portanto, perante um caso em que o titular do rendimento sujeito a IRS, e substituído, é o responsável originário (em consonância com a primeira parte do artigo 28.º, n.º 2, da LGT) e em que a responsabilidade tributária (cfr. artigo 22.º, n.ºs 1 e 2 da LGT) do substituto é, não subsidiária, conforme regra do artigo 22.º, n. º4, da LGT, reafirmada na segunda parte do n.º 2 do artigo 28.º da LGT, mas solidária.

           Aplicando ao caso concreto o quanto acima se expôs, entende-se que, no caso concreto, desde logo, o procedimento de liquidação e, sobretudo, o consequente ato de liquidação, deveriam ter sido dirigidos (pelo menos também) contra o responsável originário – os substituídos, titulares dos rendimentos sujeitos a imposto – e não unicamente contra o responsável solidário. Com efeito, não estando aqui em causa uma situação abrangida pelo artigo 21.º, n.º1 da LGT, ou seja, em que “os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação” ao responsável solidário, inexiste, na esfera deste, facto tributário, pelo que a liquidação terá de ser feita na esfera do sujeito passivo originário, de acordo com as normas próprias do imposto em causa (no caso, o IRS), e ainda que com a participação no procedimento respetivo (de liquidação) do responsável solidário, ao abrigo do disposto no artigo 9.º, n.º 2 do CPPT.

            Assim, retomando o que ficou dito na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 119/2015-T, como resulta da leitura da norma do artigo 103.º, n. º4 do CIRS, em causa, o substituto é responsabilizado solidariamente pelo imposto não retido e não pelas importâncias não retidas. Com efeito, não se poderá – e o legislador não o faz (…) – confundir imposto com importâncias retidas por conta daquele.

            “Com efeito, como se escreveu ainda no recente Acórdão do STA de 23-09-2015, proferido no processo 0997/15: “O imposto sobre o rendimento de pessoas singulares é um imposto que, como a sua denominação indica é devido por pessoas singulares, incidindo sobre o valor anual dos rendimentos por estas auferidos ao longo do ano, artº 1º do Código de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares.

A retenção na fonte não é um imposto, mas um mecanismo de cobrança, instituído pelo sistema fiscal português com o objectivo de aumentar a eficácia na cobrança do imposto (IRS). Pela utilização de tal mecanismo, o Estado recebe, mensalmente, por conta do imposto que será devido no final de cada ano pelos trabalhadores por conta de outrem ou trabalhadores que prestem serviços e que não estejam abrangidos pelo regime de isenção uma parte do imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que a estas compete pagar.

Para o sujeito passivo de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares trata-se de um pagamento antecipado do imposto que é devido no final de cada ano. Para a entidade que procede à sua retenção trata-se de uma dívida tributária e não do pagamento de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Esta apenas procede ao desconto no vencimento do trabalhador da quantia que o estado tem a receber em sede de tributação de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares desse trabalhador, incumbindo-lhe a entrega desse valor ao estado. O mesmo ocorre quando a entidade a quem foi prestado um serviço retém do custo do serviço que deveria pagar ao prestador, e, para este seria rendimento tributável em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, o valor correspondente ao imposto sobre o rendimento de pessoas singulares.

Mas a empresa que procede à retenção na fonte não passa, por isso a ser tributada em sede de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares. Arrecada os valores de imposto sobre o rendimento de pessoas singulares que são devidos pelos trabalhadores/ prestadores de serviço que deve entregar nos cofres do estado.”

“Assim, na presente situação não restarão dúvidas que o substituto pode ser responsabilizado solidariamente pelo imposto, que é aquilo que a lei refere, e não já pelas importâncias não retidas.”

            “Ora, o imposto, in casu, só é definido (só se torna líquido, certo e exigível) após a liquidação realizada, nos termos do CIRS, aos respectivos sujeitos passivos. Só aí é que vai ser determinado, nos termos legais, o quantum de imposto legitimamente exigível pelo credor tributário, e só aí, justamente, será determinável a extensão da responsabilidade solidária do substituto relapso, confrontando o valor dos montantes cuja retenção foi ilegalmente omitida, com o valor do imposto devido, havendo-o, restringindo-se a responsabilidade em questão, ao menor dos dois valores”.

            “Ou seja: entende-se que a responsabilidade decorrente da norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, devidamente interpretada no contexto sistemático em que se insere, consagra a responsabilização solidária do substituto pelo imposto não retido (e não pelas importâncias não retidas), daí decorrendo que se torna necessário, em primeiro lugar, determinar o quantum daquele, e só depois o valor da retenção devida.”

            “Assim, e concretizando, se estiver em falta uma retenção de 100, e, liquidado o imposto nos termos do CIRS, resultar, por exemplo:

  • a existência de um imposto a pagar de 120, o substituto será solidariamente responsável por 100;
  • a existência de um imposto a pagar de 60, o substituto será solidariamente responsável por 60, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100;
  • a inexistência de imposto a pagar (ou mesmo um reembolso), a responsabilidade solidária do substituto será nula, não obstante as importâncias não retidas ascenderem a 100”.

“A única – e fundamental – diferença introduzida pela norma do artigo 103.º/4 do CIRS aplicável, ora em causa, é a alteração do tipo de responsabilidade tributária do substituto, do regime regra da responsabilidade subsidiária (decorre da regra geral do artigo 22.º/4 da LGT, e específica do artigo 28.º/2 da mesma Lei), para o regime excepcional da responsabilidade solidária, e não uma alteração do objecto daquela mesma responsabilidade tributária”.

“Ou seja: o artigo 103.º/4 do CIRS, em questão, altera o tipo de responsabilidade tributária, mas não o seu objecto, que não deixa de ser o imposto, para passar a ser a importância não retida”.

“Por isso, e em suma, no caso do artigo 103.º/4 do CIRS, em análise, o substituto não se torna responsável por nada diferente do que já o era, nos termos do artigo 28.º/2 da LGT, apenas variando o grau de responsabilidade, pelo mesmo, por assim dizer, objecto”.

“Tudo isto, bem se compreenderá, se se atender às regras próprias do cálculo do imposto devido em sede de IRS, e à circunstância de o respectivo funcionamento normal poder, com facilidade, gerar situações em que o imposto devido pelo sujeito passivo originário, seja nulo ou, não o sendo, inferior à retenção devida. Daí que, apenas liquidado, devidamente, o IRS devido pelo(s) sujeito(s) passivo(s) originários, e contrastado com este o montante das importâncias cuja retenção foi devida, seja possível determinar a extensão da responsabilidade solidária do substituto, sob pena de se poderem gerar situações de enriquecimento injustificado para a Fazenda Pública (…)”.

“Conclui-se .... que a AT, nos actos tributários em crise, converteu o substituto em substituído, como se fosse titular ou beneficiário do rendimento que se pretende tributar.”.

“Efectivamente, relativamente à Requerente não se verificou qualquer facto tributário sujeito a IRS. A mesma é responsável, a título solidário, pelo imposto devido pelos seus trabalhadores, a quem terá omitido, ilegalmente, retenções na fonte, até ao valor das retenções omitidas. Mas não foi esse (o IRS dos sujeitos passivos originários) o imposto liquidado nos actos tributários em crise”.

“Deste modo, atenta a arguida inexistência de facto tributário subjacente às liquidações objecto da presente acção arbitral, e tendo em conta que “como vem afirmando a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, inexistindo facto tributário (...), não se verifica o pressuposto do imposto” (…) (no caso, o artigo 1.º do CIRS)”.

“Tratando-se o vício em questão, de um vício de violação de lei, e inexistindo qualquer norma legal que o fulmine com nulidade, deverão as liquidações objecto da presente acção arbitral, então, ser anuladas.”

           Em suma, também no caso em apreço não se nega que a Requerente pudesse ser solidariamente responsável e demandada em primeira linha, como defende a Requerida, mas apenas pelas dívidas de imposto de cada um dos trabalhadores, que ilegalmente não reteve, e não pelas importâncias que ela própria não reteve, que servirão, unicamente, como limite àquela responsabilidade, e que foi aquilo (o facto) sobre que foi, ilegalmente, como se viu, liquidado imposto, nas liquidações objeto de impugnação.

            Dito por outras palavras, a entidade Requerida poderia efetivamente demandar a Requerente, mas apenas pelo montante de imposto que deveria ter retido, depois de previamente determinado o quantum da sua responsabilidade, através da liquidação do imposto devido pelos sujeitos passivos originários, o que não ocorreu. Com efeito, a Requerida limitou-se a refazer os cálculos apurando uma hipotética retenção que, segundo o seu entendimento, deveria ter sido efetivada pela Requerente quando disponibilizou as remunerações aos trabalhadores.

Contrariamente ao defendido pela Requerida, o artigo 103.º, n.º 4, do Código do IRS não tem uma pretensão antiabusiva nos termos colocados. O referido artigo pretende, sim, assegurar dois objetivos complementares: em primeiro lugar, colocar sobre o substituto, enquanto entidade mais qualificada, um ónus de diligência adicional na determinação dos montantes sujeitos a retenção na fonte/tributáveis e, em segundo lugar, facilitar o processo de cobrança coerciva. Com efeito, não se tratando de responsabilidade subsidiária, não será aplicável o artigo 23.º, n.º 2 da LGT que obriga à excussão prévia do património do devedor principal. Assim, após a determinação do imposto devido (e não das quantias a reter) e da respetiva notificação do sujeito passivo de facto (no caso concreto os trabalhadores), a Autoridade Tributária e Aduaneira pode, ainda em primeira linha, reclamar o pagamento do imposto junto do substituto sem curar desenvolver um demorado processo de verificação do património do substituído e confirmar se este tem, ou não, património para proceder ao pagamento do imposto em falta.

“De resto”, como ficou consignado na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 120/2015-T, “será esta a interpretação que se compagina com o princípio constitucional da proporcionalidade, pois, sendo a responsabilidade solidária uma responsabilidade por dívidas de outrem e sendo apenas em relação ao devedor originário que se verifica a capacidade contributiva que justifica a tributação, não é razoável fazer-lhe a exigência da dívida sem se verificar uma situação de necessidade, que só se verifica em caso de incumprimento pelo devedor originário no prazo de pagamento voluntário”.

            “Sendo este o entendimento que se deve adoptar em geral quanto à exigência de  pagamento ao responsável solidário, a sua adopção justifica-se reforçadamente na situação excepcional de responsabilidade solidária prevista no artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, desde logo, porque, antes de mais, é imprescindível apurar se há algum imposto devido pelo devedor originário e, em caso afirmativo, qual o seu montante, que, no caso de rendimentos sujeitos a englobamento para determinação do IRS, é óbvio que não tem de coincidir com o montante que seria retido na fonte se a retenção fonte fosse efectuada”. Acresce que, a interpretação ora seguida é, igualmente, a que melhor salvaguarda a obtenção de receita fiscal por parte do Estado. Isto porque, sendo a retenção por conta, o quantum do imposto devido pode ser inferior ao montante da retenção - caso em que estaria em causa o princípio da capacidade contributiva – mas pode perfeitamente ser superior caso em que o Estado se veria privado de receita fiscal devida.

 Conclui-se, assim, que, por estas razões, a interpretação adequada do artigo 103.º, n.º 4, do CIRS, tendo em conta os elementos hermenêuticos, sistemático e teleológico, mediados pelo princípio da proporcionalidade, vai no sentido propugnado pelas decisões arbitrais mencionadas.

Assiste desta forma razão à Requerente ao defender que inexiste facto tributário, quanto à liquidação de IRS, pois, o facto tributário que gera a responsabilidade solidária é constituído pelo não pagamento voluntário pelos devedores principais dos montantes de IRS não retidos possam ser exigido a cada um destes (e não pelo montante que devia ser retido, que é apenas o limite máximo da responsabilidade do responsável solidário, a nível do imposto), situação essa que não ocorreu. Só depois de ser apurado qual o montante do imposto a pagar por todos os devedores principais é que poderá existir uma situação de responsável solidário da Requerente, relativamente ao montante que se vier a ser apurado, na medida em que não for pago voluntariamente.

Termos em que se justifica a anulação da liquidação de IRS, com fundamento em vício de violação de lei, por inexistência de facto tributário”.

 

Também aqui é possível concluir tal como se concluíu na Decisão CAAD P.638/2022:

 

“Procedendo o pedido de pronúncia quanto à liquidação de IRS, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento das demais questões colocadas pela Requerente ...”.  

        

Procede, pois, o PPA, porquanto as liquidações padecem de desconformidade com o artigo 103º nº 4 do CIRS, na leitura aqui adoptada.

 

IV - Indemnização por prestação de garantia indevida

 

A Requerente, além do pedido de declaração de ilegalidade e anulação dos actos de liquidação, pediu que lhe fosse reconhecido o direito a indemnização por garantia indevidamente prestada.

Provou-se que a Requerente foi citada para o Processo de Execução Fiscal n.º ...2023..., para cobrança coerciva da dívida e em 16 de Outubro de 2023 remeteu à AT o original de uma garantia bancária no valor de € 166.177,45, para evitar o prosseguimento da cobrança coerciva.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida, consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

Artigo 53.º

Garantia em caso de prestação indevida

            1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

            2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

            3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

            4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

 

 No caso em apreço, é manifesto que o erro subjacente à liquidação de IRS, juros compensatórios e IRC é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois as liquidações resultaram de acto da AT em desconformidade com os elementos da contabilidade da Requerente e com os elementos da declaração de rendimentos.

Por isso, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada que é corresponde às despesas comprovadas que vier a ter pela sua emissão e manutenção.

 

  1. Decisão

 

De harmonia com o exposto, este TAC decide:

  1. julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e em consequência anular as liquidações: de IRC nº 2023 ... de 29.06.2023, indicando um valor a reembolsar de € 4 936,24 e de IRS nº2023 ... de 29.06.2023, incluindo juros compensatórios, indicando um valor total a pagar de € 130 981.21;
  2. Reconhecer o direito da Requerente a ser indemnizada pela garantia prestada no Processo de Execução Fiscal n.º ...2023..., que é corresponde às despesas comprovadas que vier a ter pela sua emissão e manutenção.

 

Valor da causa

A Requerente indicou como valor económico, € 130 981,31 o que não foi contestado pela Requerida, sendo este o valor relevante nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 97ºA do CPPT que aqui se fixa à causa.

 

 

Custas

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 3, do RJAT, e 5.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela II anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3 060,00, ficando a cargo da Requerida em função do decaimento.

 

Notifique.

 

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024

Tribunal Arbitral Colectivo, 

 

Fernanda Maçãs

(presidente),

 

 

Dr. Manuel Faustino

(vogal)

 

Dr. Augusto Vieira

(vogal)