Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 429/2020-T
Data da decisão: 2021-02-18  IRC  
Valor do pedido: € 66.458,95
Tema: Dedutibilidade de encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital. Aplicação da lei no tempo face à revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF. Revisão oficiosa.
Versão em PDF

Sumário:

I – A revogação do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, operada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2014, não determina que os acréscimos de encargos financeiros suportados por uma SGPS com a aquisição de partes sociais, declarados nos períodos de tributação em que a norma se manteve em vigor, passem a ser dedutíveis na declaração de rendimentos referente a 2014;

II – O erro na autoliquidação apenas pode ser conhecido no pedido de revisão, apresentado nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 7 do artigo 78.º da LGT, caso seja interposto no prazo de dois anos após a apresentação da declaração de rendimentos, que se encontra previsto para a reclamação graciosa (artigo 131.º, n.º 1, do CPPT).

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

1. A..., S.A., anteriormente designada como B... SGPS, S.A., titular do número de identificação de pessoa colectiva ..., com sede social na Rua ..., ..., ...-... Porto, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação de IRC n.º 2015..., referente ao exercício de 2014, e, bem assim, do despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido, requerendo ainda o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

À data dos factos, a Requerente, então denominada B... SGPS, assumia a forma de uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), que tinha como actividade principal a gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indirecta do exercício de actividades económicas e a prestação de serviços técnicos de administração e gestão de sociedades em que detinha participações.

Em 31 de dezembro de 2014, a B... SGPS era a sociedade dominante do Grupo C... e, por referência ao período de tributação de 2014, procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC individual, bem como à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC do Grupo tributado ao abrigo do Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades.

 Na Declaração de Rendimentos individual, a Requerente inscreveu indevidamente no Campo 752 do Quadro 07 o acréscimo de € 236.772,34 referente a encargos financeiros não dedutíveis, directamente relacionados com a aquisição de partes de capital de que a Requerente era titular, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que vigorou até 31 de Dezembro de 2013 e à data da entrega da declaração se encontrava revogado, daí resultando um erro que conduziu ao apuramento de imposto superior ao devido e que justificaria que a Autoridade Tributária procedesse à anulação oficiosa do imposto liquidado em excesso.

No decorrer dos períodos de tributação de 2003 a 2013, e na expectativa de vir a usufruir do regime fiscal previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, a Requerente procedeu ao acréscimo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais, no valor total de € 2.828.823,51.

Sucede que o artigo 32.º, n.º 2, do EBF foi revogado, com efeitos a partir do dia 1 de Janeiro de 2014, pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2014, e no qual se previa que “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades”.

E por via da entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, foi aditado ao Código do IRC o artigo 51.º-C, o qual veio estabelecer que as mais-valias e as menos-valias realizadas com a transmissão de instrumentos de capital próprio não concorrem para a formação do lucro tributável, assistindo-se à transição de um regime especial para um regime geral, passível de ser aproveitado para efeitos fiscais por qualquer sujeito passivo residente.

Em resultado desta alteração legislativa, a Requerente viu-se confrontada com a impossibilidade de recuperar os encargos financeiros que não foram considerados gastos para efeitos fiscais, em exercícios anteriores, na expectativa de poder beneficiar de uma exclusão de tributação das mais-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital, ao abrigo do regime anteriormente previsto n.º 2 do artigo 32.º do EBF, o que implica uma violação dos princípios da tributação pelo lucro real e da igualdade.

Acresce que, desde 2003, a Requerente acresceu os gastos financeiros relacionados com a aquisição de participações, tendo por base o entendimento vertido na Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, na qual se determinava que os encargos financeiros suportados com empréstimos contraídos com vista à aquisição de partes de capital fossem desconsiderados, para efeitos do apuramento do lucro tributável das SGPS, no exercício a que os mesmos diziam respeito, “independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias”. Decorrendo adicionalmente do ponto 6 da Circular que, caso se concluísse, aquando da transmissão onerosa das participações sociais detidas por aquelas sociedades, que não se encontravam cumpridos os requisitos necessários para a aplicação do regime fiscal das sociedades holding, proceder-se-ia, então, “nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.

Com a Lei n.º 83-C/2013 foi revogado o benefício fiscal concedido às SGPS, que produziu efeitos a partir do dia 1 de janeiro de 2014, sem que o legislador tivesse estabelecido um regime transitório aplicável às situações em que os sujeitos passivos tenham apurado e acrescido ao lucro tributável os encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, durante os exercícios anteriores à entrada em vigor da lei revogatória.

De modo que a única forma de agora restituir essa penalização passa pelo reconhecimento, enquanto gasto fiscal, de todos os encargos financeiros suportados e não deduzidos no âmbito da aquisição de partes de capital, durante o período em que o aludido regime se encontrou em vigor.

Não releva, por outro lado, o entendimento de que o regime de participation exemption  consubstancia, na prática, uma extensão a todas as sociedades do regime fiscal anteriormente aplicável apenas às SGPS, ao abrigo do disposto no n.º 2 artigo 32.º do EBF, desde logo porque esse regime não impõe o acréscimo de quaisquer encargos financeiros e depende do cumprimento de determinados requisitos (previstos no artigo 51.º-C do Código do IRC ) que em nada se relacionam com os exigidos no âmbito do antigo n.º 2 do artigo 32.º do EBF.

Por outro lado, através da consagração do regime previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, foi criada a fundada e legítima expectativa de dedução dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais pelas SGPS, não lhes sendo exigível que contassem com a impossibilidade de dedução destes encargos, por força de uma imprevisível mutação do quadro legislativo, por via da qual estas sociedades ficaram totalmente inibidas de corrigir os custos acrescidos ao abrigo do regime anterior. O que constitui uma violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Neste contexto, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa do acto de autoliquidação, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º da LGT e na alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º do CPPT, que veio a ser indeferido por despacho de 11 de março de 2020.

Face a todo o exposto, a Requerente considera que no Campo 775 do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC individual relativa a 2014 deve  passar a constar o valor de € 2.823.930,69 referente à dedução dos encargos financeiros por si suportados e não deduzidos durante os períodos de tributação de 2003 a 2013 e que deixe de constar no Campo 752 do Quadro 07 o valor de € 236.772,34 que, por lapso, foi indevidamente acrescido a título de encargos financeiros não dedutíveis, suportados com a aquisição de participações sociais.

No pedido arbitral é requerida a anulação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e da liquidação de IRC, com todas as consequências legais, reconhecendo-se assim a correcção do prejuízo fiscal apurado pela B... SGPS, a título individual, no período de tributação de 2014, no montante fixado em € 3.060.703,03 e o apuramento de um prejuízo fiscal, ao nível do Grupo C..., no montante de € 2.359.776,85, bem como o reembolso do imposto liquidado em excesso e o pagamento de juros indemnizatórios.

 A Autoridade Tributária, na sua resposta, suscita a excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral quanto à parte do pedido em que se quantifica um concreto aumento do montante dos prejuízos fiscais apurado no âmbito do grupo de sociedades e da esfera individual de uma das sociedades e se peticiona a devolução do imposto liquidado em excesso acrescido dos juros indemnizatórios, por considerar que essas pretensões se prendem com o reconhecimento de direitos e a condenação à prática de actos de apuramento da matéria coletável e de liquidação de imposto que se não enquadram na competência do tribunal arbitral.

Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária refere que a reforma do IRC resultante da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que introduziu o regime de participation exemption, continua a preservar a possibilidade da efectiva realização de mais-valias em moldes idênticos aos antes previstos para as SGPS no artigo 32.º do EBF, apresentando-se como uma modificação legislativa de um contexto mais amplo, isso porque, por efeito do disposto no novo artigo 51.º-C do Código do IRC, a generalidade  dos sujeitos passivos de IRC, incluindo as SGPS, passaram a usufruir das vantagens fiscais já anteriormente previstas naquele preceito legal.

E, nesse sentido, a revogação do artigo 32.º o EBF e a não previsão de um regime transitório não tiveram consequências negativas para as SGPS, mas visaram a transição para um regime mais favorável do que o anteriormente previsto, desde logo e além do mais porque o legislador optou por não criar regras especiais limitativas de dedutibilidade quanto aos encargos financeiros por via da nova redacção dada ao artigo 67.º do Código do IRC.

 

Não podendo afirmar-se que tenha sido posto em causa o princípio da tutela da confiança e da igualdade tributária.

 

Conclui no sentido da procedência das excepções dilatórias e da improcedência do pedido arbitral.

 

2. A Requerente respondeu à matéria de excepção, dizendo que o objecto do pedido arbitral é declaração da ilegalidade do acto de autoliquidação de IRC que se enquadra no âmbito de competência dos tribunais arbitrais e que existe vasta jurisprudência arbitral relativamente à condenação da Autoridade Tributária no pagamento de quantias indevidamente pagas e no pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do disposto no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, assim se pronunciando no sentido da improcedência da excepção.

 

No seguimento do processo, a Requerente prescindiu da produção de prova testemunhal arrolada e, por despacho arbitral de 25 de Janeiro de 2021, o tribunal dispensou a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de alegações escritas por considerar não existirem quaisquer novos elementos sobre que as partes se devessem pronunciar, e relegou para final o conhecimento da matéria de excepção.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 23 de Novembro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção da incompetência do tribunal arbitral que será conhecida de seguida.

 

Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

4. A Autoridade Tributária suscitou a excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral relativamente ao pedido de condenação à prática dos atos de correção de resultados fiscais e no reembolso do imposto indevidamente pago e de juros indemnizatórios, por considerar que esses pedidos não se enquadram na competência do tribunal arbitral tal como se encontra definida no artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT.

Na petição inicial a Requerente deixa claro que a sua pretensão tem por objecto o acto de autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2014 e a decisão de indeferimento de revisão oficiosa deduzido contra esse acto. No entanto, na formulação do pedido, a impugnante requer não apenas a anulação do acto de autoliquidação e do despacho de indeferimento, mas também que se reconheça a correção do prejuízo fiscal apurado pela B... SGPS a título individual, no valor de € 3.060.703,03, e a correcção do prejuízo fiscal no âmbito do Grupo C..., no valor de € 2.359.776,85, bem como o reembolso do imposto liquidado em excesso e o pagamento de juros indemnizatórios.

 

Deve começar por dizer-se que embora a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária apenas compreenda as pretensões que envolvam a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de fixação da matéria colectável e de fixação de valores patrimoniais, nos termos das referidas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o certo é que constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a Administração Tributária deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).

 

Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (artigo 179.º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração ou a requerimento do particular (artigo 172.º do CPA).

 

No caso, a Requerente veio requerer complementarmente a correcção da liquidação tributária e o reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios, mas esses são pedidos meramente acessórios e condicionados à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de pedido autónomos de condenação na prática de acto devido ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral. 

 

Nesse sentido aponta ainda o facto de nada obstar a que o tribunal profira condenação, se for o caso, no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito. Sendo que o pagamento de juros indemnizatórios se torna exigível sempre que a prestação tributária indevida resulte de erro imputável aos serviços verificável quer em impugnação administrativa quer em impugnação judicial.

 

Assim sendo, a circunstância de a Requerente ter pedido a correcção do prejuízo fiscal declarado, em consequência da anulação do acto de liquidação impugnado, não implica a incompetência do tribunal já que esse é um mero efeito jurídico, em sede de execução de julgado, da eventual declaração de ilegalidade do acto tributário.

 

E, por outro lado, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de imposto, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, pelo que o tribunal arbitral, em caso de procedência do pedido, não está impedido de incluir no dispositivo essa cominação meramente consequencial.

 

Por todo o exposto, a invocada excepção mostra-se ser improcedente.

 

Matéria de facto

 

5. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           Em 31 de dezembro de 2014, a Requerente, então denominada B... SGPS, era uma sociedade gestora de participações sociais, que tinha como actividade principal a gestão de participações sociais noutras sociedades como forma indireta do exercício de actividades económicas e a prestação de serviços técnicos de administração e gestão de sociedades em que detinha participações.

B)           A essa data a B... SGPS era a sociedade dominante do Grupo C... encontrando-se sujeita Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), nos termos do disposto no artigo 69.º do Código do IRC.

C)           Nessas circunstâncias, e por referência ao período de tributação de 2014, a Requerente, em 22 de Maio de 2015, procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC individual, em que se apurou um prejuízo fiscal no valor de € 75.780,2 e um valor a recuperar de € 22.515,00.

D)           Na qualidade de sociedade dominante do Grupo C..., em 27 de Maio de 2015, a Requerente procedeu ainda à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC referente ao grupo de sociedades, no âmbito do mesmo período de tributação, em que se apurou um lucro tributável, no valor de € 700.926,18 e um valor de imposto a pagar no montante de € 93.629,34.

E)            Entre os ajustamentos fiscais que contribuíram para o resultado fiscal apurado pela B... SGPS, compreende-se o acréscimo indevidamente efetuado no valor de € 236.772,34 no Campo 752 do Quadro 07 da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC submetida a título individual, que se referia a encargos financeiros diretamente relacionados com a aquisição de partes de capital de que a Requerente era titular, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que entretanto se encontrava já revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2014.

F)            Na expectativa de vir a usufruir do regime fiscal previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF, de acordo com redação vigente à data, a Requerente procedeu também ao acréscimo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais, entre os períodos de 2003 a 2013, nos seguintes montantes:

 

Período de tributação    Montante acrescido

(em €s)

               

2003      238.594,57

2004      229.730,92

2005      206.501,12

2006      222.382,31

2007      252.302,10

2008      280.770,21

2009      263.163,17

2010      267.336,97

2011      296.169,56

2012      320.690,32

2013      251.182,26

TOTAL   2.828.823,51

G)           E, desse modo, relativamente a encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, a Requerente acresceu o valor total de € 2.828.823,51 relativamente aos períodos de tributação de 2003 a 2013.

F) Em 21 de Maio de 2019, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa da liquidação de 2014, pretendendo que fossem efetuadas as seguintes correções na Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC:

    i) Que no Campo 775 do Quadro 07 passe a constar o valor de € 2.823.930,69 referente à dedução dos encargos financeiros por si suportados e não deduzidos durante os períodos de tributação de 2003 a 2013; e

     ii) Que deixe de constar no Campo 752 do Quadro 07 o valor de € 236.772,34, indevidamente acrescido pela Requerente no período de tributação de 2014, a título de encargos financeiros não dedutíveis, suportados com a aquisição de participações sociais. 

H)           O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho do director adjunto da Direcção de Finanças do Porto, de 11 de Março de 2020, praticado ao abrigo de subdelegação de competências, e que foi notificado à Requerente por ofício datado do dia imediato.

I)             O despacho de indeferimento baseia-se em informação dos serviços que, na parte relevante, é do seguinte teor:

 

Da apreciação do pedido

16 - Prevê a segunda parte do anteriormente referido n.º 1 do art.º 78.º da LGT um prazo de quatro anos para a revisão a favor do s. p., por iniciativa da AT, após a liquidação, com o fundamente de erro imputável aos serviços.

17           – Deste modo cumpre analisar em que termos procedeu a AT à liquidação em causa, com referência aos encargos financeiros acrescidos nos termos do regime previsto no art.º 32.º do EBF, de forma a confirmar se estamos perante um erro imputável aos serviços.

18-         Segundo aquele regime as mais e menos valias fiscais realizadas pelas SGPS na alienação de partes de capital, desde que detidas por um período superior a um ano, bem como os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorriam para a determinação do lucro tributável.

19 - Para efeitos de aplicação daquela norma foi emitida a Circular n.º 7/2004 de 30 de março, da Direcção de Serviços de IRC (DSIRC), que veio regular o método de cálculo a utilizar par efeitos da afetação dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital e sobre o período em que deveriam ser feitas as correções fiscais desses encargos.

20           – Em linha com a argumentação constante do processo n.º 610/2017-T do CAAD, cumpre referir que o art.º 32.º do EBF assentava em dois princípios interrelacionados: uma desvantagem que consistia na indedutibilidade dos encargos financeiros associados à aquisição de partes de capital e uma vantagem que se consubstanciava na isenção das mais-valias correspondentes.

21– Ou seja, tratava-se de um regime fiscal que procurava por um lado, conferir maior competitividade às SGPS através da isenção de tributação de mais valias realizadas em sede de IRC, desde que verificadas determinadas condições, e, por outro lado, procedia ao alargamento da base tributável, através da desconsideração dos encargos financeiros que estavam na base da aquisição das participações sociais, contrabalançando dessa forma o benefício concedido a este tipo de sociedades face aos demais sujeitos passivos de IRC.

21           – A Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que entrou em vigor em no dia 01 de janeiro de 2014, revogou o art.º 32.º do EBF na sequência do Relatório da Comissão para a Reforma do IRC, que propôs a sua eliminação, "uma vez que o novo regime também consome o regime fiscal previsto para as SGPS, e atendendo a que estas não lograram atingir o objetivo originariamente proposto de se afirmarem como veículo de investimento fiscalmente competitivo no plano internacional."

22           - O referido documento refere ainda que “quanto aos encargos financeiros, numa lógica de simplicidade, optou-se por não criar regras especiais limitativas da respetiva dedutibilidade ou recaptura, reforçando-se, no entanto, o disposto no art.º 67.º do CIRC”.

23           - E o novo regime, designado por Participation Exemption, entrou em vigor a 1 de janeiro de2014, com a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, também designada por Lei da Reforma do IRC, tendo caráter universal, é aplicável ao investimento independentemente do país ou região em que este se materialize, é aplicável tanto à distribuição de lucros e reservas, quanto às mais valias e, bem assim, às diversas operações suscetíveis de serem consideradas substitutos próprios destas operações.

24           – De notar que não foi previsto pelo legislador qualquer regime transitório no sentido de enquadrar eventuais situações jurídicas já constituídas.

25           - Ao abrigo do novo regime, e na parte que para o caso importa, é de salientar que as mais-valias associadas à alienação de partes de capital continuam a ser excluídas de tributação, mas agora independentemente da forma jurídica da entidade alienante (SGPS ou outra).

26           - Assim, apesar de ter sido introduzido um novo regime, o princípio subjacente à não dedutibilidade dos encargos financeiros associados à aquisição de partes de capital mantém-se uma vez que as mais-valias continuam a ser excluídas de tributação.

27           - Daqui resulta que se se aceitasse para efeitos fiscais, em 2014, os encargos financeiros acrescidos durante o período de 2004 a 2013 tal significaria uma eliminação retroativa de parte do regime das SGPS, uma vez que, a partir de 2014, assistiu-se à aplicação às restantes sociedades do regime que anteriormente era de aplicação exclusiva das SGPS. Ou seja, não foram as SGPS que passaram a ter um regime fiscal diferente do que anteriormente lhes era aplicado, mas as restantes sociedades que passaram a poder beneficiar de algo que anteriormente era exclusivo das SGPS.

28           - Consequentemente, dado que a “vantagem” subjacente à não aceitação dos encargos financeiros se mantém (com pequenos ajustes) não devem agora ser aceites fiscalmente os encargos financeiros acrescidos ao longo da vigência do regime consagrado no artigo 32.º do EBF.

29           – Este é o entendimento seguido no Pedido de Informação Vinculativa (PIV) nº 8897, de 17 de julho de 2015.

30           – Nestes termos, a desconsideração dos encargos financeiros acrescidos pelo s. p. ao resultado líquido dos períodos de 2003 a 2103, não pode ser considerado erro imputável aos serviços.

31           – Por outro lado, o acréscimo indevido dos encargos financeiros na dec. mod 22 de 2014, consubstancia um erro na autoliquidação e, como tal, não pode, à luz da atual redação do art.º 78.º considerar-se erro imputável aos serviços.

Em conclusão

Em conformidade com o anteriormente exposto, a liquidação de IRC de 2014 identificada com o n.º 2025..., não padece qualquer erro imputável aos serviços, pelo que o presente pedido de revisão deve ser indeferido por falta de enquadramento legal.

 

J)            O pedido arbitral deu entrada em 31 de Agosto de 2020.

Factos não provados

 

Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.

 

Matéria de direito

 

                Dedutibilidade de encargos financeiros por efeito da revogação do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais

 

6. Num primeiro momento, a Requerente pretende que, por efeito da revogação do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), operada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, possam ser deduzidos, para efeitos do apuramento do lucro tributável de 2014, os encargos financeiros suportados em períodos de tributação anteriores, relativos à aquisição de participações que em 31 de dezembro de 2013 permaneciam na sua titularidade.

E assenta esse entendimento na circunstância de a referida disposição do EBF ter instituído uma exclusão de tributação das mais-valias obtidas por sociedades gestoras de participações sociais, relativamente a partes de capital de que fossem titulares, que tinha como contrapartida directa a não dedutibilidade dos encargos financeiros que se encontrassem associados, pelo que a eliminação desse benefício fiscal deverá determinar a dedutibilidade dos encargos financeiros relativos a participações que não foram transmitidas na vigência do artigo 32.º do EBF e, consequentemente, não deram origem a qualquer mais ou menos-valia que pudessem ser excluídas de tributação.

                 

E esse critério, ainda segundo a Requerente, encontra apoio no n.º 6 da Circular n.º 7/2004 que aponta para a possibilidade de ser revertido o princípio de não dedutibilidade dos encargos financeiros quando se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação do benefício fiscal.

 

A Autoridade Tributária sustenta, em contraposição, que a não dedutibilidade de encargos financeiros associados à aquisição de partes de capital pelas sociedades gestoras de participações sociais é uma medida legislativa autónoma em relação à que estabelece que as mais-valias e menos-valias realizadas não concorrem para a formação do lucro tributável, e, por outro lado, a revogação do regime do artigo 32.º do EBF apenas coloca um problema de sucessão de leis no tempo que deverá ser resolvido do seguinte modo: os encargos financeiros vencidos a partir de 1 de janeiro de 2014 passam a ser dedutíveis nas condições do artigo 23.º do Código do IRC, estando apenas limitados pelo disposto no artigo 67.º; e relativamente às mais-valias ou menos-valias de sociedades gestoras de participações sociais, a ser obtidas pela alienação de participações sociedades gestoras de participações sociais, é-lhes aplicável o regime de “participation exemption” previsto no artigo 51.º-C.

 

Deve começar por dizer-se que a questão não tem sido objecto de entendimento uniforme na jurisprudência arbitral.

 

No acórdão proferido no Processo n.º 285/2017-T, partindo do princípio de que o regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF constitui um benefício condicionado, que tinha como contrapartida a regra da não dedutibilidade dos encargos financeiros, considerou-se que a revogação da disposição desacompanhada de qualquer regra de direito transitório, implicando a manutenção do regime  especial de não dedutibilidade dos encargos financeiros e a concomitante perda do benefício fiscal, deixa as sociedades gestoras de participações sociais em posição de injustificado desfavorecimento face à generalidade das sociedades, violando o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva.

 

No acórdão proferido no Processo n.º 645/2017-T, em situação similar, julgou-se procedente o pedido arbitral com base na inobservância pela Administração Tributária do estabelecido no ponto 6 da Circular n.º 7/2004.

 

Refere-se a esse propósito o seguinte:

 

(…) face ao entendimento publicitado no ponto 6 da referida Circular, vinculativo para a Autoridade Tributária e Aduaneira, a desconsideração dos encargos financeiros suportados pela Requerente com a aquisição de partes de capital estava condicionada à verificação dos requisitos para aplicação deste regime de não concurso das mais-valias realizadas para formação do lucro tributável: se se viesse a constatar, «no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores».

No pressuposto, adoptado na referida Circular, a desvantagem fiscal que constitui a desconsideração dos encargos financeiros está condicionada à obtenção do ulterior benefício fiscal que constitui a não tributação de mais-valias. Esta vantagem fiscal será uma contrapartida da desvantagem que constitui a não consideração dos encargos financeiros, pelo que tem de se concluir que, na perspectiva da referida Circular, a impossibilidade de vir a ser aplicado um regime privilegiado a nível da alienação será justificação para que seja eliminada a desvantagem referida. 

Utilizando a terminologia da referida Circular, poderá dizer-se que, tendo sido revogado o regime referido antes do «momento da alienação das participações», tem de se concluir, definitivamente, que o regime do artigo 32.º, n.º 2, não poderá ser aplicado. 

E, adquirida num determinado exercício, por ter sido revogado o regime legal, a certeza de que não se verificarão «todos os requisitos para aplicação daquele regime», a Autoridade Tributária e Aduaneira está vinculada a aplicar a estatuição que anunciou na parte final daquele ponto 6: «proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores».

 

Esse mesmo princípio foi adoptado no acórdão proferido no Processo n.º 754/2016-T, ainda que, nesse caso, com fundamento no facto de o sujeito passivo ter deixado de constituir uma sociedade gestora de participações sociais em 2013 e não ter podido beneficiar, por essa razão, do regime do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, constituindo essa circunstância o motivo determinante, à luz do ponto 6 da Circular n.º 7/2004, para considerar como gastos do exercício os encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais nos períodos de tributação anteriores.

 

Em sentido oposto, o acórdão proferido no Processo n.º 610/2017-T, seguido pelo acórdão tirado no Processo n.º 377/2018-T, considera que a situação do caso não se enquadra na previsão do n.º 6 da Circular n.º 7/2004, porquanto a revogação da norma do artigo 32.º, n.º 2, do EBF não pode entender-se como equiparável à falta de preenchimento dos requisitos para a aplicação do regime definido nesse dispositivo, quando este estava ainda em vigor. Além de que a Circular, ainda que possua eficácia vinculativa para a Autoridade Tributária, pelo seu carácter de acto regulamentar interno, não vincula os tribunais, que terão de aferir da legalidade da actuação administrativa em função das normas e princípios jurídicos aplicáveis ao caso. Acresce que a revogação do disposto no artigo 32.º do EBF teve como contrapartida a introdução do regime de participation exemption previsto no novo artigo 51.º-C do Código do IRC, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, de onde resulta que as SGPS passam a beneficiar da não sujeição a tributação de mais e menos-valias de participações sociais e a deduzir os encargos financeiros nos termos gerais dos artigos 23.º e 67.º desse Código. E, nesse sentido, a sucessão dos regimes legais não afronta o princípio da igualdade ou da protecção da confiança.

 

7. Afigura-se ao tribunal que não pode deixar de conceder-se prevalência ao entendimento sufragado nestas últimas decisões arbitrais, na linha do também decidido no acórdão proferido no Processo n.º 580/2018-T, que aqui se seguirá.

 

O artigo 31.º, n.º 2, do EBF, introduzido pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003) e depois renumerado pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de julho, como artigo 32.º, dispunha o seguinte:

 

As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.

O preceito foi depois objecto de diversas alterações sem reflexo no conteúdo normativo desse n.º 2, que veio a ser revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2014).

 

Tem ainda relevo considerar o n.º 6 da Circular n.º 7/2004 que dispunha nos seguintes termos:

 

Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correção fiscal dos que tiverem sido suportados com as aquisições de participações que sejam suscetíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no n.º 2 do artigo 31.º do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias. Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores. 

 

Como tem sido entendido, o regime de isenção de tributação em IRC das mais-valias realizadas pelas SGPS com a alienação de partes de capital detidas há mais de um ano, estabelecido no falado n.º 2 do artigo 32.º do EBF, encontra-se associado ao regime de desconsideração da dedutibilidade para efeitos fiscais dos encargos de natureza financeira directamente relacionados com a aquisição das participações sociais.

 

Isso mesmo é explicitado no relatório do Orçamento do Estado para 2003, em que se faz expressa referência a esse aspecto do regime legal ao dizer-se que se estabelece “a desconsideração da dedutibilidade, para efeitos da determinação do lucro tributável, dos encargos de natureza financeira diretamente associados à aquisição de partes sociais por parte das SGPS”.

Como se esclarece na decisão arbitral proferida no Processo 610/2017-T, com apoio na doutrina e na jurisprudência arbitral, a medida legislativa encontra-se justificada nos seguintes termos:

 

Por outras palavras, o objetivo do regime instituído em 2003 foi o de contrabalançar a atribuição de um benefício – a exclusão total de tributação das mais-valias – com a não concorrência de certos encargos financeiros suportados, criando um ambiente de neutralidade entre os eventuais ganhos com determinados ativos (certas imobilizações financeiras) e o passivo necessário à criação das condições para a obtenção de tais ganhos, isto é, o passivo relacionado com a aquisição de tais participações.

No fundo o legislador não quis que se cumulassem dois benefícios: as SGPS já viam as suas mais-valias de partes sociais isentas de imposto; pelo que, quando tal sucedesse, não poderiam elas cumular com o benefício de aceitação fiscal dos juros suportados com o financiamento para a aquisição dessas partes de capital.

 

Por sua vez, a revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, operada pela Lei n.º 83-C/2013, deve ser entendida à luz das considerações formuladas no Relatório da Comissão de Reforma do IRC (concretizada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro), em que se afirma, a propósito especificamente do regime de participation exemption, o seguinte:

 

Numa preocupação de escopo diametralmente oposto, a adoção do novo regime de participation exemption veio tornar redundantes, na perspetiva da Comissão de Reforma, diversos regimes fiscais especiais atualmente existentes. Por esta razão, propõe-se a eliminação dos seguintes regimes:

(…)

c) uma vez que o novo regime também consome o regime fiscal previsto para as SGPS, e atendendo a que estas não lograram atingir o objetivo originariamente proposto de se afirmarem como veículo de investimento fiscalmente competitivo no plano internacional, propõe-se a eliminação do artigo 32.º do EBF, recomendando ainda que seja extinto o regime jurídico-societário destas entidades, hoje previsto no Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro.

(…)

Despesa fiscal decorrente da exclusão de tributação aplicável às mais-valias e menos-valias obtidas por sociedades gestoras de participações (SGPS), sociedades de capital de risco (SCR) e investidores de capital de risco (ICR) 

A criação de um regime de participation exemption, justificada neste relatório no respetivo Capítulo f., traduzir-se-á na transposição para o Código do IRC de um modelo de tributação dos rendimentos de partes de capital que mantém, no essencial, as vantagens que o Estatuto dos Benefícios Fiscais concedia a este tipo de entidades. 

Acresce que é entendimento da Comissão que a eliminação deste regime não se traduziria na captação de um montante equivalente de receita fiscal, na medida em que, na sua ausência, um número elevado das operações que dele beneficiam não seriam concretizadas, ou o seriam por vias que, usando configurações alternativas, produziriam resultados idênticos.

(…)

 

O regime de participation exemption foi entretanto concretizado pelo artigo 51.º-C, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que institui para todas as sociedades (independentemente de se tratar de sociedades gestoras de participações sociais) um regime de isenção de IRC relativamente às mais e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa de participações sociais (dentro do condicionalismo aí previsto). Por outro lado, manteve-se o regime geral de dedutibilidade dos encargos financeiros nos termos do disposto no artigo 23.º do Código do IRC, com as limitações constantes do artigo 67.º do CIRC.

 

Deste modo, a revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, ainda que não acompanhada de qualquer disposição de direito transitório material, determinou que as sociedades gestoras de participações sociais passassem a beneficiar de um regime de não sujeição a tributação de mais e menos-valias de participações sociais (artigo 51.º-C) e de dedução de encargos financeiros com a aquisição de participações sociais (artigos 23.º e 67.º).

 

8. Revertendo ao caso concreto, deve começar por dizer-se que não tem qualquer aplicação à situação dos autos o disposto no n.º 6 da Circular n.º 7/2004.

 

Afirma-se aí que “[c]aso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.” O momento relevante para considerar que não se encontram preenchidos os requisitos da aplicação do regime do artigo 32.º, n.º 2, é, pois, o da “alienação das participações”, facto que nem sequer ocorreu, no caso vertente, dado que a Requerente era ainda titular das participações sociais a que se referem os encargos financeiros à data da revogação do regime constante do artigo 32.º, n.º 2, do EBF.

 

Ou seja, no domínio do regime definido nesse preceito, às SGPS apenas era permitido, no momento da alienação das participações sociais, deduzir os encargos com a aquisição dessas participações sociais quando não pudesse ser obtida a vantagem traduzida na isenção de mais-valias. Enquanto a Requerente pretende deduzir os encargos incorridos com a aquisição de partes sociais, apesar de manter na sua titularidade as participações, com base na ideia de que a revogação do regime jurídico corresponde ao não preenchimento dos requisitos que implicavam a isenção da tributação de mais-valias que decorressem da alienação.

 

É, no entanto, patente que a aplicação do disposto na Circular, com a consequente possibilidade de dedução de encargos financeiros, tem como pressuposto a ocorrência de alienação de participações sociais, e, por outro lado, a revogação do regime legal não é equiparável ao não preenchimento dos requisitos de que dependia a isenção da tributação de mais-valias nos termos dessa Circular. O que sucede é que o regime constante do artigo 32.º, n.º 2, foi substituído por um outro, pelo que a dedução de encargos financeiros apenas pode ocorrer no quadro da nova disciplina legal e não por efeito da fictícia aplicação de uma Circular que visava esclarecer dúvidas interpretativas que pudessem ser suscitadas no âmbito do regime precedente.

 

Cabe ainda assinalar, a título de reforço de argumentação, que a eventual inobservância da orientação genérica constante da Circular nunca poderia determinar, por si só, a ilegalidade do acto tributário.

 

                As circulares, tendo em vista ditar regras de procedimento ou uniformizar a interpretação das normas legais ou regulamentares, caracterizam-se como regulamentos internos, emitidos no exercício de um poder de direcção hierárquica, que se dirigem para o interior da própria organização administrativa, sem repercussão directa nas relações entre esta e os particulares. Só nos casos em que regulamentos extravasem o seu carácter funcional e prescrevam disposições susceptíveis de interferir na relação de serviço existente entre a Administração e os funcionários ou de afectar os interesses de terceiros, é que adquirem eficácia externa e poderão ser objecto de impugnação contenciosa.

 

                É irrelevante, por outro lado, que a Administração Tributária se encontre vinculada às orientações genéricas constantes das circulares (artigo 68.º-A, n.º 1, da LGT). Essa vinculação constitui a necessária decorrência de se tratar de regulamentos que se destinam a uniformizar o entendimento dos serviços. Tratando-se de normas sem eficácia externa a sua inobservância pelos serviços apenas poderá produzir efeitos disciplinares e não tem qualquer consequência no plano da definição do direito.

 

                É ao tribunal que cabe dizer o direito à luz das normas e princípios jurídicos aplicáveis ao caso, pelo que a ilegalidade do acto impugnado não pode resultar do incumprimento de uma orientação genérica mas unicamente da violação da lei. Assim se compreendendo, de resto, que o próprio artigo 68.º-A, que confere vinculatividade às orientações genéricas, acabe por impor à Administração o dever de rever essas orientações atendendo, nomeadamente, à jurisprudência dos tribunais superiores (n.º 4).

 

9. A solução legislativa também não contraria o princípio da tributação segundo o lucro real e o princípio da capacidade contributiva, como corolário do princípio da igualdade, nem o princípio da protecção da confiança.

A tributação segundo o lucro real pressupõe que a determinação do lucro tributável seja efetuada de acordo com a contabilidade da empresa, com base na documentação e comprovação das receitas e dos custos do sujeito passivo, e, por isso, exige um sistema fiável de informação sobre os resultados empresariais. Não sendo possível determinar o rendimento real da empresa através de métodos contabilísticos, a base da tributação terá de ser definida, não através dos lucros efectivamente auferidos, mas dos lucros presumivelmente realizados, assim se compreendendo que a norma constitucional explicite que a tributação incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real (neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 1100).

Por outro lado, a tributação segundo o lucro real não impede que a Administração Tributária possa efetuar correções administrativas à declaração do sujeito passivo que possam levar à desconsideração de custos comprovados como custos fiscais e à consequente alteração da quantificação do lucro tributável (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 753/2014).

Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva tem ínsita sobretudo “a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica, assim, igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5ª edição, Coimbra, 2009, págs. 151-152).

Também o Tribunal Constitucional tem analisado o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consigna que “[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação”.

O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adoptadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará “a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo”.

O Tribunal Constitucional tem vindo, portanto, a afastar-se de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adoptar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.

Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).

Por seu lado, segundo a jurisprudência constitucional sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais: (a)        a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda (b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Os dois critérios enunciados são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas  ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção (cfr., entre outros, o acórdão n.º 287/90).   

10. No caso vertente, como se deixou entrever, o legislador substituiu o regime constante do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, que implicava uma vantagem (isenção de mais-valias da alienação de participações sociais) e uma desvantagem (indedutibilidade de custos de financiamento para a aquisição dessas participações sociais), por um outro critério que permite que as sociedades possam beneficiar não apenas da isenção de mais-valias como também da dedução dos encargos financeiros segundo o regime geral, o que se traduz num benefício adicional relativamente ao regime precedente.

Como foi explicado no Relatório da Comissão de Reforma do IRC, a eliminação do regime especial do artigo 32.º, n.º 2, do EBF para as sociedades gestoras de participações sociais foi determinada pela implementação do novo regime de participation exemption, que mantém, no essencial, as vantagens que o Estatuto dos Benefícios Fiscais concedia a este tipo de entidades, e foi ainda justificada pelo facto de o anterior regime fiscal previsto para as SGPS não ter atingido o objetivo originariamente previsto de facilitar o investimento fiscalmente competitivo no plano internacional.

A revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF assume-se, por conseguinte, como uma medida de política legislativa justificada por razões de interesse público e teve em vista extinguir o regime especial aplicável às SGPS e substituí-lo por um regime mais favorável que se torna aplicável à generalidade das entidades empresariais.

Certo é que a Requerente, por efeito do novo regime legal, apenas pode deduzir os encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais a partir de 1 de Janeiro de 2014, ao passo que os encargos incorridos no âmbito do regime fiscal anteriormente previsto no artigo 32.º, n.º 2, não eram dedutíveis e a isenção de tributação de mais valias apenas poderia ocorrer quando se verificasse a alienação das participações sociais.

Não se vislumbra, em qualquer caso, em que termos é que sucessão de leis no tempo afecta a tributação segundo o lucro real, quando este princípio do direito fiscal tem sobretudo em vista assegurar que o rendimento real das empresas seja fixado através de métodos contabilísticos para o aproximar dos resultados empresariais que tenham sido obtidos.

Da mesma forma que não se descortina de que modo é que a alteração legislativa e a não previsão de direito transitório podem pôr em causa a generalidade e a uniformidade do imposto, de modo a poder considerar-se verificada a violação do princípio da capacidade contributiva, quando é certo que o novo modelo de tributação de rendimentos de capital manteve, no essencial, as vantagens do Estatuto dos Benefícios Fiscais, alargando-o à generalidade das sociedades. Além de que, manifestamente, não pode entender-se violado o princípio da igualdade tributária, na modalidade de proibição do arbítrio, quando o novo regime se encontra justificado por razões de política legislativa com um fundamento material bastante.

Falha também, com um suficiente grau de evidência, a verificação de qualquer dos requisitos que poderia justificar a tutela jurídico-constitucional da «confiança», como corolário do princípio da segurança jurídica. Não se vê em que medida é que a instituição de um regime fiscal especial para as sociedades gestoras de participações havia de gerar nos beneficiários a expectativa fundada de continuidade do regime, de tal modo que os interessados tivessem deixado de proceder à alienação de participações sociais, antes da entrada em vigor da nova lei, por terem acreditado que o benefício fiscal de isenção de tributação relativo às mais valias resultante da alienação nunca seria abolido ou sempre seria salvaguardado por uma lei posterior. Mas para além disso, como se deixou exposto, a alteração legislativa encontra-se justificada em boas razões de interesse público, o que desde logo e por si só afasta a violação do princípio da protecção da confiança.

 

Acréscimo indevidamente efectuado ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais

 

11.  A Requerente impugna ainda o acréscimo indevidamente efectuado no campo 752 da declaração de rendimentos, no valor de € 236.772,34, referente a encargos financeiros relacionados com a aquisição de partes de capital, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, que entretanto se encontrava já revogado.

 

Tendo sido suscitada esta questão no pedido de revisão oficiosa, a Autoridade Tributária, no despacho de indeferimento, limitou-se a considerar que o acréscimo indevido dos encargos financeiros consubstancia um erro na autoliquidação que, como tal, não pode considerar-se erro imputável aos serviços à luz da actual redacção do artigo 78.º da LGT.

 

 A Administração tinha especialmente presente a revogação do n.º 2 do artigo 78.º da LGT operada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março.

 

O n.º 1 desse preceito prevê que a “revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, no prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade, ou, por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação ou a todo o tempo se o tributo ainda não tiver sido pago, com fundamento em erro imputável aos serviços”. E o n.º 2 acrescentava o seguinte: “[s]em prejuízo dos ónus legais de reclamação ou impugnação pelo contribuinte, considera-se imputável aos serviços, para efeitos do número anterior, o erro na autoliquidação.” 

 

Esse n.º 2 foi revogado pela referida Lei n.º 7-A/2016, pelo que a questão que poderia colocar-se era a da aplicação da lei no tempo em atenção ao disposto no artigo 12.º, n.º 2, da LGT que estipula que “[a]s normas sobre procedimento e processo são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes”. Poderia entender-se, por conseguinte, que, não obstante a revogação da falada disposição do n.º 2 do artigo 78.º da LGT, o contribuinte poderia ainda invocar, no pedido de revisão oficiosa, a existência de erro na autoliquidação na medida em que se tinha constituído o direito, na sua esfera jurídica, ao abrigo da legislação anterior, de invocar esse erro no prazo legalmente previsto caso esse prazo ainda não se encontrasse decorrido.

 

Este segundo aspecto da questão prende-se com os prazos e os fundamentos de impugnação aplicáveis.

 

Como resulta do transcrito n.º 1 do artigo 78.º da LGT, a revisão dos actos tributários pode ser efectuada por iniciativa do sujeito passivo, com fundamento em qualquer ilegalidade, no prazo de reclamação administrativa, ou por iniciativa da administração tributária, no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, devendo entender-se como tal o erro material, o erro de facto ou o erro de direito (cfr. acórdão do STA de14 de Março de 2012, Processo n.º 01007/11). Esta distinção quanto a prazos relaciona-se, por outro lado, com o disposto no artigo 131.º do CPPT, que, sob a epígrafe “Impugnação em caso de autoliquidação”, prescreve no seu n.º 1, que “[e]m caso de erro na autoliquidação, a impugnação será obrigatoriamente precedida de reclamação graciosa dirigida ao dirigente do órgão periférico regional da administração tributária, no prazo de 2 anos após a apresentação da declaração”.

 

Entende-se também, por efeito do disposto no n.º 7 desse artigo 78.º, que a revisão oficiosa pode ser desencadeada pelo sujeito passivo mediante requerimento dirigido ao órgão competente da Administração Tributária e com base nos mesmos pressupostos legais, no prazo de quatro anos e com fundamento em erro imputável aos serviços. O que se tem entendido como uma decorrência do princípio da justiça e da verdade material (cfr., neste sentido, JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento Tributário, 5.ª edição, Coimbra, págs. 227-228; SERENA CABRITA NETO/CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I, Coimbra, 2017, pág. 605).

 

Constituindo o pedido de revisão um procedimento de segundo grau que tem o mesmo efeito jurídico da reclamação necessária a que se refere o artigo 131.º do CPPT, na medida em que permite o reconhecimento pela Administração da existência de ilegalidade na prática do acto tributário, haverá de concluir-se que a lei confere ao interessado dois meios alternativos de reação administrativa contra o acto tributário com idênticos efeitos de direito, não existindo nenhum motivo  para que não possa estabelecer-se a equiparação entre esses meios (cfr., neste sentido, acórdão proferido no Processo n.º 550/2017-T).

 

A questão está, portanto, na limitação que a lei estabelece quanto aos prazos que resulta dos dois segmentos normativos o n.º 1 do artigo 78.º da LGT: o sujeito passivo, por sua iniciativa, pode solicitar a revisão dos actos tributários pela entidade que os praticou dentro do prazo de reclamação administrativa e com fundamento em qualquer ilegalidade (n.º 1, primeira parte); a administração tributária, por sua iniciativa, pode proceder à revisão oficiosa no prazo de quatro anos após a liquidação, com fundamento em erro imputável aos serviços, possibilidade que se torna extensiva ao contribuinte por força do n.º 7 do artigo 78.º da LGT.

 

No caso vertente, o que se constata é que a Requerente submeteu a declaração de rendimentos em 27 de Maio de 2015 e apresentou o pedido de revisão oficiosa em 21 de Maio de 2019. Fê-lo, portanto, para além do prazo de dois anos de que dispunha para interpor a reclamação graciosa, e, ainda que se atribua ao pedido de revisão oficiosa o mesmo efeito jurídico da reclamação graciosa, essa equivalência apenas pode ser reconhecida quando o pedido de revisão oficiosa tenha sido apresentado dentro do prazo previsto para aquela forma de impugnação administrativa, isto é, dentro do prazo de dois anos (artigo 131.º, n.º 1, do CPPT).

 

Impondo-se concluir que o pedido de revisão oficiosa apenas podia abarcar qualquer ilegalidade, como prevê o artigo 78.º, n.º 1, primeira parte, da LGT, caso fosse interposto no prazo de dois após a apresentação da declaração de rendimentos. Tendo sido apresentado para além desse prazo, a revisão oficiosa apenas podia fundar-se em erro imputável aos serviços - o que não se verifica quando estamos perante uma autoliquidação -, pelo que o pedido arbitral mostra-se ser improcedente também nesta parte.

Reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios

 

12. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação no reembolso do imposto indevidamente pago e de juros indemnizatórios.

 

III – Decisão

Termos em que se decide

 

a)            Julgar improcedente o pedido arbitral e manter na ordem jurídica o acto de liquidação de IRC impugnado, bem como o despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa contra ele deduzido;

b)           Julgar prejudicado o conhecimento do pedido de condenação no reembolso do imposto indevidamente pago e de juros indemnizatórios.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 66.458,95, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 2.448,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2021

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

Armando Oliveira

 

A Árbitro vogal

Raquel Franco