Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 910/2019-T
Data da decisão: 2021-08-10  IRC  
Valor do pedido: € 176.653,60
Tema: IRC – Ajudas de custo; Tributação autónoma; Especialização de exercícios
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SUMÁRIO:

  • Na redacção da Lei 87.º-B/98, de 31/12, a expressão ajudas de custo “facturadas a clientes”, que constava da alínea f) do n.º1 do art.º41.º do CIRC para efeitos da dedutibilidade integral do seu valor, correspondia a encargos a esse título debitados aos clientes e incluídos no valor da factura, não se exigindo a discriminação do seu montante na própria factura, nem qualquer formalidade na sua escrituração.
  • O princípio da especialização dos exercícios não impede que um custo que contabilisticamente deva ser reconhecido num exercício anterior, seja reconhecido num exercício posterior, desde que tal não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 27 de Dezembro de 2019, A... – SGPS, S.A, NIPC ..., com sede na Rua ..., ...-... ..., Braga, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação adicional de IRC n.º ..., n.º ... e n.º ..., referentes ao ano de 2008, e n.º ..., n.º ... e n.º ..., referentes a 2009, bem como das respectivas liquidações de juros compensatórios e das correspondentes demonstrações de acerto de contas, no valor de €176.653,60, na parte em que reflectem as correcções relativas à tributação autónoma das ajudas de custo suportadas pela A..., SA e aos gastos alegadamente incorridos em exercício anterior e não aceites fiscalmente.

 

  1. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

 

 

  1. os custos incorridos com as ajudas de custo conferidas aos trabalhadores da A..., SA têm um fito exclusivamente empresarial e visam a compensação de despesas efectivamente incorridas em deslocações efectuadas por esses trabalhadores ao serviço daquela, que são efectivamente imputados e facturados aos clientes, não resultando do Código do IRC a obrigatoriedade de que constem expressamente discriminados nas facturas;  
  2. a interpretação literal do artigo 81.º, n.º 9 do Código do IRC, segundo a qual apenas as ajudas de custo que constem expressamente discriminadas nas facturas da A..., SA não se encontram sujeitas a tributação autónoma viola o princípio da proporcionalidade, na medida em que não é aquela interpretação adequada, necessária ou proporcional;
  3. para que fosse obrigatória a constituição de um ajustamento para créditos de cobrança duvidosa, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC, o crédito que a A..., SA detinha sobre a sociedade “B..., Lda.”, deveria resultar das relações correntes da sociedade A..., SA enquanto cliente para com a empresa “B..., Lda” enquanto fornecedor de serviços;
  4. o princípio da especialização dos exercícios não obsta a que a dedutibilidade do custo no montante de €77.973,74, seja reconhecido no exercício de 2009, dado que não resulta de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

 

  1. No dia 30-12-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 14-02-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 17-03-2020.

 

  1. No dia 01-07-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

  1. Por despacho de 19-11-2020 foi determinado o aproveitamento da prova testemunhal produzida no processo n.º ..., que correu termos no TAF BRAGA, 3.ª Unidade Orgânica e, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

  1. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

  1. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

  1. A Requerente é, desde 2008, a sociedade dominante do “Grupo A...”, do qual faz parte a sociedade A..., S.A. (doravante, designada “A..., SA), tributado de acordo com o Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (“RETGS”).
  2. A A..., SA dedicava-se, essencialmente, à construção civil de obras públicas e particulares e, a título secundário, à extracção de saibro, areia e pedra britada.
  3. No desenvolvimento da sua actividade, a A..., SA executava todos os anos, várias obras ao abrigo de contratos de empreitada ou subempreitada.
  4. A A..., SA tinha sede em Braga, mas executava os seus serviços em vários pontos, de norte a sul, do país.
  5. Em 2008 e 2009, a A..., SA empregava cerca de 500 trabalhadores, nos quais se incluíam quadros técnicos e especializados.
  6. No exercício das suas funções, os trabalhadores da A..., SA tinham de se deslocar aos locais onde eram desenvolvidos os serviços contratados, sendo muitas vezes necessário que aí permanecessem durante o respectivo período de execução.
  7. A deslocação dos trabalhadores ao serviço da sua entidade patronal implicava a verificação de gastos acrescidos, nomeadamente, relacionados com alimentação e alojamento.
  8. A A..., SA encontrava-se obrigada a atribuir àqueles trabalhadores importâncias que se destinavam a compensar os gastos acrescidos com as deslocações.
  9. Os trabalhadores preenchiam boletins de itinerário nos quais surge identificado: o nome do trabalhador, o local e a data da deslocação, o tempo de permanência, o montante diário atribuído, assim como o serviço do qual resultava o direito a ajudas de custo e o valor total apurado a final.
  10. Os valores incorridos pela A..., SA a título de ajudas de custo relativamente a cada uma das prestações de serviços eram considerados na definição do preço estabelecido pela empresa para os seus clientes.
  11. As empreitadas efectuadas pela A..., SA eram realizadas em regime de preço global (chave na mão), sendo que o preço definido na celebração dos contratos de empreitada e subempreitada não sofria, em regra, revisões, sem prejuízo do pagamento de eventuais trabalhos a mais ou a menos que viessem a ser realizados.
  12. O preço fixado pela A..., SA incluía “todos os encargos directos e indirectos inerentes à execução dos respectivos trabalhos”.
  13. O preço fixado pela A..., SA era estabelecido mediante a elaboração de orçamento relativo a cada uma das relevantes empreitadas ou subempreitadas, onde eram incluídos todos os custos necessários à concretização da (sub)empreitada em causa, entre os quais se incluíam as ajudas de custo a pagar obrigatoriamente aos trabalhadores (encargos indirectos), tendo em conta a complexidade, duração, localização e número de trabalhadores envolvidos.
  14. No âmbito de um contrato de subempreitada celebrado com a sociedade “B..., Lda”, esta empresa emitiu à Requerente quatro facturas pelos trabalhos realizados, no valor global de €227.877,58, tendo a A..., SA, recusado o pagamento de € 94.348,23, alegando trabalhos não prestados.
  15. Nesse contexto, em 2006, a A..., SA emitiu uma nota de débito no valor de €77.973,74, acrescido de IVA no valor de €16.374,49.
  16. Em 19-05-2006, a nota de débito foi devolvida por parte da sociedade B..., Lda.
  17. A A..., SA relevou contabilisticamente o montante da nota de débito em conta de proveitos, no ano de 2006, tendo este proveito sido tributado em sede de IRC, naquele ano.
  18. Em 2007, a sociedade “B..., Lda” intentou uma acção judicial contra a A..., SA para cobrança de um crédito no valor de €94.348,93.
  19. A A..., SA contestou a referida acção pugnando pela sua improcedência e pela condenação da empresa “B..., Lda.” ao pagamento dos trabalhos da sua responsabilidade realizados pela A..., SA.
  20. Em 2009, a referida acção judicial foi decidida em sentido desfavorável à A..., SA, pelo que a sociedade foi obrigada a pagar o crédito da empresa fornecedora “B..., Lda”, acrescido de juros de mora e encargos.
  21. Em 2009, a A..., SA efectuou um lançamento na conta ... – Custos Ext.; Corr. Rel. Ex. Ant., no montante de €77.973,74, justificado pela emissão de uma nota de crédito, que visava a anulação da nota de débito, emitida em 2006, à sociedade “B..., Lda”, por trabalhos da responsabilidade desta no valor de €94.348,23.
  22. Em 2012, a A..., SA foi objecto de uma inspecção interna pelos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Braga, respeitante aos exercícios de 2008 e 2009.
  23. Em 26-07-2012, a A..., SA foi notificada do projecto de relatório de inspecção, nos quais se propunham correcções aos exercícios de 2008 e 2009.
  24. A A..., SA exerceu direito de audição ao projecto de relatório de inspecção, no qual aceitou algumas das correcções propostas, tendo, no entanto, contestado outras correcções.
  25. A A..., SA submeteu declarações de rendimentos Modelo 22 de substituição, respeitantes a 2008 e a 2009, nas quais foram regularizadas algumas correcções.
  26. Em 03-09-2012, enquanto aguardava a emissão do relatório final de inspecção, a A..., SA foi notificada de um segundo projecto de relatório de inspecção o qual “substitui o que já foi enviado à empresa” e corrigiu a fundamentação que sustentava a correcção de €77.973,74, referente a um gasto do exercício de 2009, relativo a exercício anterior, e não acrescido fiscalmente.
  27. A A..., SA exerceu também direito de audição quanto a esse projecto de relatório de inspecção.
  28. Em 25-09-2012, a A..., SA foi notificada do relatório final de inspecção, tendo sido efectuadas as seguintes correcções à sua matéria tributável:

Correcções à matéria tributável

2008

2009

Falta de acréscimo à matéria tributável de quota em ACE

€2.262,97

N/A

Perdas por imparidade em créditos

€82.131,00

- €66.417,00

Tributação autónoma das ajudas de custo

€66.278,09

€63.479,55

Gasto relativo a exercício anterior não acrescido fiscalmente

N/A

€77.973,74

Acréscimo à matéria colectável de custos incorridos pelo ACE “C...”

€71.243,55

€195.083,59

 

 

 

 

 

 

 

 

  1. A Requerente optou por não contestar as correcções relativas à falta de acréscimo à matéria tributável de quota em ACE e às perdas por imparidade em créditos.
  2. No relatório de inspecção tributária, no que diz respeito às correcções relativas à tributação autónoma das ajudas de custo e ao gasto relativo a exercício anterior não acrescido fiscalmente, consta, além do mais, o seguinte:

 

 

  1. Em 10-10-2012, na qualidade de sociedade dominante do “Grupo A...”, a Requerente foi notificada da nota de liquidação adicional de IRC de 2008, da liquidação de juros compensatórios e da respectiva demonstração de acerto de contas.
  2. Em 16-11-2012, na qualidade de sociedade dominante do “Grupo A...”, a Requerente foi notificada da nota de liquidação adicional de IRC de 2009, da liquidação de juros compensatórios e da respectiva demonstração de acerto de contas.
  3. Posteriormente, a Requerente foi notificada de duas liquidações de IRC de 2008 e de duas liquidações de IRC de 2009.
  4. Em 30-01-2013, a Requerente apresentou, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, impugnação judicial tendo por objecto as referidas liquidações, na qual contestou os seguintes montantes:
  • €129.757,64 relativos a tributações autónomas de ajudas de custo suportadas pela A..., SA;
  • €316.202,73 relativos a gastos alegadamente incorridos pela A..., SA no exercício anterior e não aceites fiscalmente e ao acréscimo à matéria colectável de custos incorridos pela “C..., ACE”, de que a A..., SA faz parte.
  1. A impugnação judicial correu termos na 3.ª Unidade Orgânica do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, sob o n.º ....
  2. No decurso da impugnação judicial, a correcção relativa ao acréscimo à matéria colectável de 2008 e 2009 dos custos incorridos pelo “C..., ACE”, foi revogada pela AT.
  3. Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, a Requerente solicitou ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga a extinção da instância referente ao processo n.º ..., por pretender o cometimento do mesmo para o Tribunal Arbitral constituído sob a égide do CAAD.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida no processo n.º ..., consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13[1], o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

 

B. DO DIREITO

As questões a decidir nos presentes autos, tal como configuradas pela Requerente, são as seguintes:

  1. aferir se os montantes pagos pela sociedade A..., SA aos seus trabalhadores com referência a deslocações e estadas estão sujeitos a tributação autónoma, nos termos do artigo 81.º, n.º 9 do Código do IRC, com a redacção em vigor à data dos factos;
  2. saber se foi – ou não – observado o princípio da especialização dos exercícios aquando do reconhecimento, em 2009, do custo associado à nota de crédito, no valor de €77.973,74 (acrescido de IVA), emitida pela sociedade A..., SA.

 

Vejamos cada uma das questões.

*

 

a.

A primeira questão a apreciar prende-se com a legalidade da sujeição a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º, n.º 9 e n.º 14 do CIRC aplicável, dos encargos relativos a ajudas de custo pagas aos trabalhadores da sociedade A..., SA, sem que nas facturas emitidas aos clientes desta tenha sido discriminado o valor pago a esse título.

Dispõe o referido artigo 88.º do CIRC, nos seus números 9 e 14:

“9- São ainda tributados autonomamente, à taxa de 5%, os encargos dedutíveis relativos a despesas com ajudas de custo e com a compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturadas a clientes, escrituradas a qualquer título, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário, bem como os encargos não dedutíveis nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 42.º suportados pelos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no exercício a que os mesmos respeitam.(…)

14 - As taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10
pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período
de tributação a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números
anteriores.

A questão que se coloca, prende-se com o preenchimento do requisito da tributação autónoma aplicada, constante do n.º 9 transcrito, relativamente à facturação aos clientes, dos encargos dedutíveis relativos a ajudas de custo, escriturados pela sociedade A..., SA como encargos dedutíveis.

A tributação autónoma em questão, foi introduzida pela Lei n.º 55-B/2004, de 30-
12 (Lei do OE/2005), que alterou o artigo 81.º do CIRC, e aditando-lhe, para além do mais
o n.º 9 (correspondente ao mesmo número do artigo 88.º do CIRC vigente à data dos factos
tributários ora em causa, e ainda hoje), consagrando, na matéria ora em causa, um regime
que se mantém nos seus traços essenciais[2].

O novo regime veio consagrar a restrição da incidência sobre os encargos referidos, quando dedutíveis, à verificação das seguintes circunstâncias:

a) que não sejam facturados a cliente;

b) que não haja, em todo ou em parte, lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário.

Pressuposto da tributação autónoma ora em questão (ajudas de custo não facturadas a clientes e não tributadas em sede de IRS do beneficiário, mas dedutíveis), tal como foi criada, e ainda hoje se mantém, é assim que o sujeito passivo possua, como acontece no caso, por cada pagamento efectuado, um mapa através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem as despesas, designadamente os respectivos locais, tempo de permanência, objectivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respectivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 45.º do CIRC, na redacção vigente à data dos factos tributários ora em causa (actual artigo 23.º-A/1/h)).

Para além disso, a tributação autónoma ora em análise (relativa a ajudas de custo e compensações por utilização de viatura própria do trabalhador não facturadas a clientes e não tributadas em sede de IRS do beneficiário, mas dedutíveis) apenas opera sobre despesas que não excedam os limites legais e que hajam observado os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado, já que noutros casos, por força do disposto na al. d) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS, as ajudas de custo e compensações por utilização de viatura própria do trabalhador serão sujeitas a IRS e, como tal, não sujeitas à tributação autónoma em causa, prevista na primeira parte da norma em apreço.

Apenas cumprindo estas condições, as despesas em questão serão dedutíveis em sede IRC e não tributadas em sede de IRS, e como tal, susceptíveis de serem sujeitas à tributação prevista na primeira parte do n.º 9 do artigo 88.º do CIRC. Ou seja, e resumindo, a tributação autónoma sobre gastos dedutíveis relativos a ajudas de custo e compensações por utilização de viatura própria do trabalhador incide sobre encargos relativamente aos quais:

a) não se tenham excedido os limites legais da sua atribuição aos servidores do Estado;

b) se tenham observado os pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado; e

c) o sujeito passivo possua, por cada pagamento efectuado, um mapa através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem as despesas, designadamente os respectivos locais, tempo de permanência, objectivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respectivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos.

Cumpridas tais condições, a única via para não se sujeitar à incidência da tributação autónoma em causa é a facturação dos encargos aos clientes.

Aqui chegados, não é fácil vislumbrar qual o fundamento material atendível para a imposição da tributação autónoma em causa.

Assim, e desde logo, como aponta a Professora Ana Paula Dourado, será de excluir
a finalidade de assegurar a receita fiscal, por ser um argumento interpretativo ilegítimo (falacioso), uma vez que “Todas as normas fiscais em sentido estrito têm como objectivo a obtenção de receitas, e este objectivo não pode autojustificar-se.[3]

A tributação autónoma em questão, deverá, por isso, legitimar-se à luz dos
fundamentos materiais que, face aos princípios constitucionais aplicáveis, têm sido invocados para – justamente – sustentar as tributações autónomas em geral, designadamente as finalidades penalisadoras, antiabuso e mitigação de fringe benefits.

Não se poderá deixar de ter em vista que tais tributações autónomas, como se viu, respeitam a gastos que não tenham excedido os limites legais, e tenham observado os pressupostos, da sua atribuição aos servidores do Estado, e relativamente aos quais o sujeito passivo possua, por cada pagamento efectuado, um mapa que cumpra com o actualmente previsto no artigo 23.º-A/1/h) do CIRC.

Verificadas as referidas condições, será de considerar, pelo menos à partida, que a Administração Tributária terá ao seu dispor todos os elementos para verificar se, efectivamente e em que medida, as ajudas de custo e compensações pela deslocação em viatura própria do trabalhador foram incorridas exclusivamente no interesse da empresa ou não, sendo que no primeiro caso, obviamente, serão os gastos em questão dedutíveis e no segundo, de maneira igualmente óbvia, não o serão.

As referidas condições impostas pelo regime da dedutibilidade de tais gastos, pressuposto da tributação autónoma em questão, asseguram assim, crê-se, todas as garantias necessárias a, em princípio, aferir a efectividade dos gastos, não sendo, por isso legítimo considerar que aquela assenta na circunstância de que as despesas com ajudas de custo são de difícil comprovação. Com efeito, esta circunstância, que não se discute nos autos, está subjacente aos próprios requisitos da dedutibilidade que, cumpridos, permitem, como se disse, assegurar razoavelmente a comprovação necessária da respectiva efectividade.

Por outro lado, o cumprimento dos requisitos da al. d) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS, condição da não sujeição a IRS na esfera dos beneficiários, e igualmente pressuposto da tributação autónoma em questão, assegurará também suficientemente, crê-se, que as ajudas de custo em causa nem “correspondem (...) a verdadeiros salários dos trabalhadores”, nem “a verdadeiros complementos de salários assim encapotados”, já que, justamente, os limites e pressupostos da sua atribuição aos servidores do Estado visará, precisamente, assegurar que tal não acontece.

Do mesmo modo, não se deverá ter por subjacente à tributação autónoma em referência, o “facto de existirem algumas formas de rendimento que não eram tributadas nas pessoas dos seus beneficiários, ou porque não eram conhecidos ou porque o rendimento não era determinável com rigor.”, desde logo porque não está em causa nenhuma destas situações, ou seja, os beneficiários são conhecidos, e o valor que lhes é abonado está determinado com rigor, e depois porquanto a não tributação das ajudas de custo está legalmente regulada no CIRS, nos mesmos termos aplicáveis “aos servidores do Estado”, perfilhando, portanto, da mesma legitimação que assiste nos casos em que estão em causa ajudas de custo abonadas àqueles.

Para compreensão da tributação autónoma que ora nos ocupa, e do seu fundamento jurídico, cumpre, assim, ir mais além, e ter presentes os dois requisitos fundamentais da dedutibilidade dos gastos em sede de IRC que, como se sabe, são:

  1. a efectividade do gasto (e respectiva comprovação por meios idóneos);
  2. a necessidade daquele para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

As tributações autónomas de natureza não penalizadora[4], pode-se dizer que, de uma forma ou de outra, visam acudir a situações em que o regime geral de comprovação dos referidos requisitos fundamentais da dedutibilidade dos gastos em sede de IRC, consagrado no artigo 23.º do CIRC, é insuficiente na prática, face à realidade da vida económica, para assegurar, com a necessária credibilidade, a sua verificação.

Como refere J.L. Saldanha Sanches, “[n]este tipo de tributação, o legislador procura responder à questão reconhecidamente difícil do regime fiscal de despesas que se encontram na zona de intersecção da esfera pessoal e da esfera empresarial, de modo a evitar remunerações em espécie mais atraentes por razões exclusivamente fiscais ou a distribuição oculta de lucros.[5]. Ora, no caso concreto, nada parece fazer presumir que as ajudas de custo pagas se traduzem em remunerações em espécie ou em distribuições ocultas de lucros. Tanto assim é que a própria AT reconhece, no relatório de inspecção que “Da nossa análise não logramos obter prova suficiente para considerarmos que os valores pagos a título de ajudas de custo tivessem outra natureza”. 

Aquelas que são as notas habitualmente atribuídas às tributações autónomas não penalizadoras, podem reconduzir-se à referida constatação. Assim, o combate à erosão ilegítima da base tributável, o desincentivar de determinados gastos de causação presumidamente não empresarial, ou a tributação de distribuição encapotada de rendimentos a terceiros, não tributados na esfera destes, por meio das tributações autónomas, terá subjacente a constatação que o regime normal da dedutibilidade dos gastos, assente no artigo 23.º do CIRC, não é, nos gastos sujeitos àquela, adequado, de per si, a garantir que as referidas situações, contrárias àquela, não se verificam na realidade.

Ou seja: relativamente a determinados gastos, o legislador entendeu que os procedimentos contabilísticos e fiscais vigentes para a generalidade dos casos, não eram suficientemente eficazes para assegurar que aqueles cumpriam com um ou ambos dos referidos requisitos fundamentais da dedutibilidade, e, em ordem a mitigar as consequências daí decorrentes, optou por sujeitá-los a tributação autónoma, diminuindo, no fundo, o seu quociente de dedutibilidade.

No caso que nos ocupa, crê-se então que a tributação em causa se funda exclusivamente na referida inidoneidade do regime geral da dedutibilidade dos custos assegurar a efectiva necessidade das ajudas de custo sujeitas a tributação autónoma para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC, já que, como se viu, a comprovação da efectividade das mesmas (ou seja, da sua efectiva realização nos valores contabilizados e a identificação dos reais beneficiários) não está em causa, uma vez que é assegurada pelos requisitos adicionais consagrados pelo legislador para a sua dedutibilidade.

Compreende-se assim, a esta luz, a razão de ser do requisito da facturação a clientes consagrado na norma do n.º 9 do artigo 88.º do CIRC, como dirigindo-se a assegurar que as ajudas de custo em questão hajam sido incorridas para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

Coloca-se, então, a questão de apurar se o requisito em questão deve ser entendido na sua aparente literalidade, ou seja, se quando a norma em causa utiliza a expressão “não faturados a clientes”, está a exigir que sejam mencionadas expressa e discriminadamente na facturação os dados relativos às ajudas de custo incluídas no valor facturado, ou se o texto legal se reporta antes à exigência de demonstração que o valor das ajudas de custo se encontra abrangido pelo valor facturado a clientes, como comprovação de que aquelas foram incorridas para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

A este propósito, sustenta a AT que “a expressão «facturadas a clientes» no seu sentido próprio apela para a menção no descritivo das facturas das despesas de deslocação ou designação similar, que indique ao destinatário dos bens ou serviços que, ao valor da operação realizada, é acrescida uma importância correspondente às despesas incorridas pelas pessoas ou colaboradores a título das deslocações efectuadas para a execução dos serviços nas instalações dos clientes ou em locais por estes referenciados.

Ressalvado o respeito devido, não se pode concordar com o entendimento da AT.

Com efeito, e desde logo, tem sido reiteradamente afirmado pelos Tribunais Tributários superiores, que a facturação para efeitos de IRC é menos exigente do que para o IVA, e que se destina essencialmente a veicular “os elementos essenciais da operação que titulam, por forma a possibilitar à AT quer ao controle da legalidade da dedução para efeitos fiscais do gasto, quer da respectiva tributação dos montantes auferidos pelos prestadores de serviços.[6].

No mesmo sentido, o Tribunal Central Administrativo Norte, por exemplo, decidiu que “[n]a redacção da Lei 87.º-B/98, de 31/12, a expressão ajudas de custo “facturadas a clientes”, que constava da alínea f) do n.º1 do art.º41.º do CIRC para efeitos da dedutibilidade integral do seu valor, correspondia a encargos a esse título debitados aos clientes e incluídos no valor da factura, não se exigindo a discriminação do seu montante na própria factura, nem qualquer formalidade na sua escrituração.”[7].

Tendo em vista este entendimento, que se perfilha, não será de presumir que o legislador fiscal tenha pretendido adicionar ao já complexo emaranhado de obrigações e deveres contabilísticos e declarativos dos sujeitos passivos abrangidos pelo regime de contabilidade organizada, a imposição de especificar na factura o montante das ajudas de custo.

Por outro lado, e sob pena, crê-se, de inconstitucionalidade, a sujeição a tributação autónoma dos valores relativos a ajudas de custo, não sujeitas a IRS, por simplesmente “não faturados a clientes”, não poderá ser entendida na sua literalidade já que a facturação dos encargos aos clientes não será, em variadas situações, como sejam os casos de deslocações no interesse geral da empresa[8], de todo viável. Ou seja, se se entender que os encargos com ajudas de custo são “não faturados a clientes” se não estiverem expressa e discriminadamente mencionados numa factura, estar-se-á a sujeitar imperativamente a tributação autónoma, obstando à sua dedutibilidade integral, uma série encargos insusceptíveis (nesse sentido) de facturação, por terem sido contraídos no interesse geral da empresa, e não no serviço a um cliente concreto.

Esta consequência será ainda mais problemática, se se atentar que a dedutibilidade dos gastos com ajudas de custo estava (como está) expressamente garantida pelo artigo 23.º do CIRC (à data dos factos tributários, como ainda hoje, na al. d) do n.º 1), normativo que se verá contrariado pelo entendimento de que a tributação autónoma em causa inviabiliza, tout court, a dedução integral de tais gastos, no caso de não serem tributadas em IRS nem facturadas a clientes, mesmo que se comprovem devidamente e para lá de qualquer dúvida razoável a efectividade do gasto e a sua necessidade para obter ou garantir os rendimentos sujeitos a IRC.

Cair-se-ia então, naquela situação descrita pela Professora Ana Paula Dourado, em que “se o objectivo fosse o de desincentivar a dedução de despesas a que as empresas têm direito, a tributação autónoma (...) seria difícil de compatibilizar com a Constituição e a tributação da capacidade contributiva e do lucro real.[9], sendo que “o legislador não pode recorrer a presunções inilidíveis, ficções e todas as técnicas presuntivas semelhantes, sempre que (a partir do momento que) a utilização das mesmas ponha em causa a prevalência da tributação sobre o rendimento real[10].

Também no Acórdão arbitral proferido no processo 735/2014-T, se concluiu que “Embora não se exigindo que os custos a que se reporta o n° 9 do artigo 88° do CIRC sejam reflectidos/ inscritos de forma expressa nas facturas emitidas aos clientes, tal facto não exclui (...) que a Requerente esteja dispensada de provar que o preço final inscrito nas facturas tenha incorporado os valores relativos a despesas com ajudas de custo e com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador.”.

É, em suma, este o entendimento que se perfilha, ou seja, que os gastos a que se reporta o n° 9 do artigo 88° do CIRC não necessitam de ser reflectidos/ inscritos, de forma expressa, nas facturas emitidas aos clientes, devendo os sujeitos passivos de imposto que pretendam não sujeitar aqueles gastos a tributação autónoma possuir, para além do mais, elementos aptos à demonstração que, não obstante tal facto, o preço final indicado e efectivamente facturado ao cliente contempla os valores relativos a despesas com ajudas de custo e com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador.

Face a tal entendimento, verifica-se desde logo que o acto tributário objecto da presente acção arbitral enferma de erro de direito, na interpretação e aplicação da norma do artigo 88.º/9 do CIRC, já que, conforme resulta do RIT, o mesmo assenta no entendimento de que nas facturas emitidas para cada uma das obras “em nenhuma delas está expressamente mencionado o montante de ajudas de custo, e, como tal, concluímos que as mesmas não foram facturadas ao cliente, já que não se encontra especificamente mencionado o seu montante e como tal não reúne as condições para que possa ser afastada a sua tributação”, entendimento este que, pelo que atrás se expôs, não é o que se deverá considerar como resultando da norma do artigo 88.º/9 do CIRC, daí que, haverá que concluir, desde logo, pela anulabilidade do acto
tributário objecto da presente acção arbitral, atento o apontado erro de direito.

Não obsta a tal conclusão as circunstâncias, apontadas no RIT, relativas a eventuais irregularidades nos mapas de itinerário. Com efeito, tais irregularidades, o que indiciam é que alguns dos trabalhadores, indicados no RIT, poderão não ter efectuado as deslocações constantes daqueles mapas, ou incorrido nas despesas neles mencionadas. Mas nada disso tem a ver com a sujeição a tributação autónoma por não facturação das ajudas de custo (consensualmente) suportadas pela Requerente.

Com efeito, e não se tem qualquer dúvida a esse respeito, nada alteraria o alegado no RIT a propósito das irregularidades nos mapas de itinerário, se os montantes contabilizados da forma ali descrita, tivessem sido mencionados nas facturas, que é no que verdadeiramente se fundamenta aquele relatório.

Efectivamente, estivessem aquelas importâncias expressamente mencionadas nas facturas, e não colocaria a AT a questão de as mesmas serem sujeitas a Tributação autónoma, apesar daquelas irregularidades. Poderia questionar, isso sim, a sua efectividade ou a sua dedutibilidade, mas, em caso algum, sujeitá-las a tributação autónoma.

Ora, no seguimento do quanto previamente se expôs, a menção, ou não, de forma expressa na factura não é fundamento da sujeição à tributação autónoma em causa.

Daí que, não questionando a AT a efectividade ou indispensabilidade do gasto, e tendo, de forma certa ou errada, o mesmo contribuído para os valores facturados aos clientes da Requerente, nenhum fundamento haverá para aplicação daquela tributação.

E não se diga, como de alguma forma a AT o faz, que o que está em causa, é a circunstância de não se poder reconduzir alguns dos montantes contabilizados a título de ajudas de custo, e aceites como pagos pela Requerente, a uma factura, ou grupos de facturas específicos, poderá fundamentar a sua tributação autónoma.

É que, se assim fosse, e como previamente se expôs já, todas as deslocações efectuadas no interesse genérico da empresa, seriam, impreterivelmente, sujeitas a tributação autónoma.

Acresce ainda que resulta dos factos provados, para além do mais, que:

  1. No desenvolvimento da sua actividade, a A..., SA executava todos os anos várias obras ao abrigo de contratos de empreitada ou subempreitada, em vários pontos, de norte a sul, do país.
  2. No exercício das suas funções, os trabalhadores da A..., SA tinham de se deslocar aos locais onde devem ser desenvolvidos os serviços contratados, sendo muitas vezes necessário que aí permanecessem durante o respectivo período de execução.
  3. A deslocação dos trabalhadores ao serviço da sua entidade patronal implicava a verificação de gastos acrescidos, nomeadamente, relacionados com alimentação e alojamento, encontrando-se a A..., SA obrigada a atribuir àqueles trabalhadores importâncias que se destinavam a compensar os gastos acrescidos.
  4. Os trabalhadores preenchiam boletins de itinerário nos quais surgia identificado: o nome do trabalhador, o local e a data da deslocação, o tempo de permanência, o montante diário atribuído, assim como o serviço no âmbito do qual se conferiu o direito a ajudas de custo e o valor total apurado a final.
  5. As empreitadas efectuadas pela A..., SA eram realizadas em regime de preço global (chave na mão), sendo os valores incorridos pela A..., SA a título de ajudas de custo relativamente a cada uma das prestações de serviços considerados na definição do preço estabelecido pela empresa
  6. O preço fixado pela A..., SA era estabelecido mediante a elaboração de orçamento relativo a cada uma das relevantes empreitadas ou subempreitadas, onde eram incluídos todos os custos necessários à concretização da (sub)empreitada em causa, entre os quais se incluíam as ajudas de custo a pagar obrigatoriamente aos trabalhadores (encargos indirectos), tendo em conta a complexidade, duração, localização e número de trabalhadores envolvidos.

Face a tais factos, haverá que concluir que a Requerente apresentou elementos aptos à demonstração que, não obstante não estarem expressamente mencionados na factura, o preço final indicado e facturado aos clientes contemplava os valores relativos às despesas com ajudas de custo que não sujeitou a tributação autónoma.

Com efeito, a articulação da orçamentação, contratualização e facturação, com os mapas de itinerários, serão elementos suficientes para a AT aferir se, e em que medida, o preço facturado pela Requerente aos seus clientes repercute as ajudas de custo por si abonadas, contabilizadas como dedutíveis e não sujeitas a tributação autónoma.

Ao desconsiderar tais elementos, incorreu o acto tributário também em erro de facto, igualmente gerador da respectiva anulabilidade.

Assim, em face de tudo quanto se expôs, procede, nesta parte o pedido arbitral.

 

b.

Insurge-se, ainda, a Requerente contra a correcção operada pela AT no sentido de desconsiderar como gasto, no exercício de 2009, o valor de €77.973,74 relativo à emissão de uma nota de crédito que visou a anulação da nota de débito n.º ..., de 19-04-2006 emitida à empresa “B..., Lda.”.

Sustenta a Requerente que, a anulação da nota de débito em causa resultou da procedência da acção judicial intentada pela “B..., Lda.” para cobrança desse montante e que não poderia ter constituído ajustamento para créditos de cobrança duvidosa, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC (com a redacção em vigor à data), pois “consiste no valor de facturação emitida pelo cliente – a sociedade A... SA – ao fornecedor – a empresa B..., Lda.” e, por isso, não se integra no conceito de “créditos resultantes da actividade normal”, previsto no referido normativo.

Mais sustenta que, mesmo que fosse de subscrever o entendimento propugnado pela AT – no sentido de que a empresa deveria ter constituído um ajustamento para créditos de cobrança duvidosa, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRC -, sempre seria de aceitar a dedutibilidade do custo, atendendo a que não resultou de omissões intencionais ou voluntárias, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

Por sua vez, sustenta a Requerida está em causa “(i) um crédito resultante da atividade normal que no fim do exercício de 2007 podia ser considerado de cobrança duvidosa, i.e. resulta de uma relação contratual no âmbito de uma subempreitada adjudicada à sociedade B..., Lda e (ii) o crédito tinha sido reclamado judicialmente, portanto, nos termos do artigo 34.º, n.º 1, alínea a) e artigo 35.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, deveria ter sido constituída provisão”, concluindo que “Ao não relevar contabilisticamente a provisão, a A..., SA, desrespeitou também o princípio da especialização dos exercícios, enunciado no artigo 18.º, n.º 1, do Código do IRC e, consequentemente, o custo não foi imputado ao lucro tributável do exercício em que se verificaram os factos indiciadores da existência de risco de incobrabilidade que determina a ocorrência do custo”.

Dispõe o artigo 18.º, n.º 1 do CIRC aplicável, que:

“1 - Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.”.

Nos termos do n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, “a lei admite (por força de um outro princípio - o da solidariedade dos exercícios) excepções ao princípio em questão, dispondo que os custos fiscalmente relevantes e os proveitos respeitantes a exercícios anteriores possam ser imputados ao exercício em causa quando, na data do encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputados, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidos.[11]

Assim, tal princípio, no seu extremo rigor, levaria a que só pudessem ser imputados a cada ano os proveitos e custos nele verificados, independentemente dos respectivos recebimentos e pagamentos.

A jurisprudência do STA, tem admitido, porém, a possibilidade de se flexibilizar o princípio da especialização dos exercícios, permitindo-se a imputação de custos relativos a exercícios anteriores, quando não tenham resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios[12], quando a omissão de tal possibilidade possa colocar em causa o princípio da justiça.

Senão vejamos:

Se a AT tinha razão na correcção que efectuou, a Requerente, em princípio, teria sido prejudicada pelo seu próprio erro ao declarar a matéria colectável no ano de 2009, pois, abatendo um custo em ano posterior àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer em ano posterior e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera em ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir pois, em tal circunstância, a Requerente, que já era a única prejudicada pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitada de efectuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A AT, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não teria direito.

Conforme decorre da jurisprudência do STA[13]:

“III - O princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.

IV - Contudo esse princípio deve tendencialmente conformar-se e ser interpretado de acordo com o princípio da justiça, com conformação constitucional e legal (artigos 266.º, n.º 2 da CRP e 55.º da LGT), por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.”.

Descendo ao caso sub iudice, não existe qualquer indício de que a conduta da Requerente tenha sido provocada voluntária e intencionalmente com o intuito de operar a transferência de resultados entre exercícios. Não se vislumbra, na conduta da Requerente, qualquer indício de fraude ou de evasão.

De resto, em princípio, do deferimento da contabilização deste gasto, como se disse, apenas resultaram prejuízos para a Requerente, pois esta só viu o lucro tributável desonerado de tais gastos em momento posterior àquele em que tal deveria ter ocorrido.

Portanto, no confronto entre dois deveres - o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização e o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça -, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.

Com efeito, estando em causa uma omissão da Requerente que não visa a transferência

 de resultados entre exercícios, e da qual não resulta qualquer prejuízo para a receita fiscal, considerando o princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, nada obsta a que o gasto seja considerado no exercício de 2009 pelo que, procede, também nesta parte, o pedido arbitral, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

  1. Anular os actos de liquidação adicional de IRC n.º ..., n.º ... e n.º ..., referentes ao ano de 2008, e n.º ..., n.º ... e n.º ..., referentes a 2009, bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios e as correspondentes demonstrações de acerto de contas;
  2. Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 176.653,60, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.672,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

10 de Agosto de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Marcolino Pisão Pedreiro)

 

O Árbitro Vogal

(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)

 



[1] Disponível em www.dgsi.pt, tal como a restante jurisprudência citada sem menção de proveniência.

[2] Note-se ainda que, ao contrário do que, à data da entrada em vigor da Lei n.º 55-B/2004, de 30-12, acontecia com as tributações autónomas sobre despesas de representação, e do que ainda hoje (e à data dos factos tributários, acontece com a tributação autónoma sobre gastos com viaturas), não foi prevista a não sujeição dos sujeitos passivos isentos subjectivamente pelo que, em rigor, também as próprias entidades a que se referem os artigos 9.º e 10.º do CIRC, deverão liquidar e pagar tributação autónoma sobre as ajudas de custo abonadas aos seus trabalhadores, desde que não tributadas em sede IRS nem facturadas a clientes.

[3] “Direito Fiscal”, Almedina, 2016. p. 227

[4] Entendendo-se por tributações autónomas de natureza penalizadora aquelas que incidem sobre gastos não dedutíveis ou cuja taxa excede a taxa normal de IRC.

[5] “Manual de Direito Fiscal”, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2007. p. 407.

[6] Neste sentido, p. ex., cfr. Ac. do TCS-Sul de 21-05-2015, proferido no processo 07833/14.

[7] Neste sentido, p. ex. cfr. Ac. Do TCA-Norte de 03/12/2015, proferido no processo 00005/04.2BEPNF. No mesmo sentido, cfr. Ac. do TCA-Sul de 15/07/2009, proferido no processo n.º 02014/07

[8] Deslocações para prospecção de mercado, divulgação de produtos, formação do trabalhador, contactos com
entidades públicas, incluindo a própria Autoridade Tributária, etc.

[9] Cit. p. 228.

[10] Cit. p. 240.

[11] Ac. do TCA-Sul de 03-03-2016, proferido no processo 04403/10

[12] Ac. do STA de 25-06-2008, proferido no processo n.º 0291/08.

[13] Cfr. Ac. de 14-03-2018, proferido no processo 0716/13.