Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 299/2020-T
Data da decisão: 2021-11-10  IRS  
Valor do pedido: € 113.650,60
Tema: IRS – Inutilidade superveniente da lide.
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SUMÁRIO:

Verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da causa, a solução do litígio deixe de ter interesse e utilidade, o que justifica a extinção da instância.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 08 de Junho de 2020, A..., NIF..., residente em ..., n.º ..., ...-..., ..., Vila Moura, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2020..., da demostração de acerto de contas n.º 2020 ... e da demonstração de liquidação de juros, referentes ao ano de 2018, no valor global de €113.650,60.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             violação do princípio da participação e do princípio do inquisitório, ínsitos nos artigos 8.º, 12.º e 13.º do CPA e 58.º, 60.º e 72.º da LGT;

ii.            falta de fundamentação da liquidação;

iii.           erro de direito pelo facto da AT entender que não será legalmente admissível cumular o reinvestimento das mais-valias imobiliárias na aquisição de novo imóvel, com o reinvestimento na realização de obras no mesmo imóvel, com vista a dotá-lo de condições de habitabilidade.

 

3.            No dia 09-06-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 03-08-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 02-09-2020.

 

7.            No dia 07-10-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente era dona e legítima proprietária de um prédio urbano, situado em ..., denominado “Lote...” situado em..., freguesia de ..., concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... .

2-            Em 15-11-2018, a Requerente vendeu o prédio urbano situado em ..., denominado “Lote...” situado em ..., freguesia de ..., concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o número ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ..., pelo preço de € 990.000,00.

3-            Em 30-11-2018, a Requerente adquiriu pelo preço de €280.000,00 o prédio urbano situado em ..., freguesia de ..., concelho de Loulé, descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o número ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... .

4-            Na escritura de compra e venda do referido imóvel, a Requerente declarou que o mesmo se destinava à sua habitação própria e permanente.

5-            Em 28-06-2019, a Requerente apresentou a declaração modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2018, a qual foi acompanhada do anexo G.

6-            Na declaração modelo 3 de IRS, referente aos rendimentos do ano de 2018, a Requerente declarou, no campo 4001 do quadro 4 do anexo G a alienação, pelo valor de €495.000,00, de uma quota-parte de 50%, do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Loulé, sob o artigo ..., que havia sido adquirida em janeiro de 2016 pelo montante de € 204.960,00.

7-            No campo 4002 do quadro 4 a Requerente declarou a alienação de igual quota do referido imóvel, pelo valor de €495.000,00, indicando como data de aquisição, o mês de Dezembro de 2014.

8-            A Requerente declarou na última coluna do campo 4001 despesas e encargos de €67.650,00.

9-            A Requerente declarou, no campo 5006, a intenção de reinvestir o montante de €687.974,25.

10-         A Requerente fez constar no campo 5008 (valor de realização reinvestido no ano da declaração após a data da alienação), do quadro 5, a quantia de €302.025,75, indicando como imóvel objecto do reinvestimento o imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ..., concelho de Loulé sob o artigo ... .

11-         Na sequência da entrega da declaração modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2018, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2019..., tendo-se apurado imposto a pagar no valor de €27.118,31.

12-         A Requerente procedeu ao pagamento da referida liquidação.

13-         Em 05-07-2019, a Requerente foi notificada pelo Serviço de Finanças de Loulé ... de uma divergência relativa à declaração de rendimentos do ano de 2018.

14-         Por correio eletrónico, em 15-07-2019, a Requerente, através dos serviços de contabilidade que a assessoravam, prestou esclarecimentos à AT, nos seguintes termos:

a.            A Requerente vendeu o prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ... no ano de 2018, o qual constituía a sua morada permanente;

b.            A Requerente adquiriu para reinvestimento, o prédio inscrito no artigo matricial n.º ... da freguesia de ..., no ano de 2018;

c.            Fez menção da sua intenção de proceder ao reinvestimento do ganho com a alienação do primeiro, na respectiva declaração de rendimentos;

d.            O prédio adquirido encontrava-se em ruínas, carecendo de obras, por não ter condições de habitabilidade;

e.            A Requerente solicitou parecer à Comissão da Reserva Agrícola do Algarve, da viabilidade das obras a efetuar;

f.             Após deferimento terá ainda de obter aprovação do projecto junto da Câmara Municipal de Loulé.

15-         A Requerente juntou à sua resposta a escritura de compra e venda do prédio urbano situado em..., freguesia de ..., concelho de Loulé, descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o número ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo..., o pedido de parecer apresentado junto da CRAAlg e fotografias do estado real do imóvel.

16-         Em resposta, por email datado de 16-07-2019, veio o Serviço de Finanças de Loulé dizer o seguinte:

“Informo que no âmbito da divergência n.º ... e em conformidade com a alínea a) do n.º 5 do artigo 10.º do Código do IRS, existem três alternativas de reinvestimento para que beneficie da exclusão de tributação (total ou parcial) da mais valia decorrente da alienação de habitação própria e permanente:

.reinvestimento na aquisição da propriedade de outro imóvel;

.reinvestimento na aquisição de terreno para construção de imóvel e ou na respetiva construção; ou

.reinvestimento na ampliação ou melhoramento de outro imóvel

No seu caso, após a consulta à declaração de IRS verifica-se que cumula: reinvestimento na aquisição da propriedade de outro imóvel e intenção de reinvestimento na ampliação ou melhoramento de outro imóvel. E não sendo possível cumular o valor de aquisição com os encargos referentes a obras de melhoramento nesse mesmo imóvel, de harmonia com o n.º 5 do Artigo 10.º do CIRS, deve apresentar declaração de substituição de IRS.

Mais informo que o prédio adquirido, identificado pelo art.º ... da freguesia de ... e concelho de Loulé, trata-se de um Tipo de Prédio “Prédio em Prop, total sem andares nem div. Susc. De utilz. Independente” e não Tipo outros “Ruínas”.

E dispõe ainda o n.º 6 do art.º 10º do CIRS que o SP/agregado familiar tem que afetar o imóvel à habitação própria e permanente até decorridos 12 meses após o reinvestimento.”

17-         Em 06-02-2020, a Requerente foi notificada para efeitos de audição prévia, da intenção da AT proceder à liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2018.

18-         Da referida notificação, constava o seguinte:

“A declaração de rendimentos Mod. 3 de IRS, entregue por V. Exª para o ano de 2018, encontra-se com o código de divergência associado D25 (Reinvestimento em imóveis – Residência do titular diferente do imóvel objeto do reinvestimento).

Analisada a situação, constata-se que no que respeita à verificação dos elementos declarados no quadro 5 do anexo G, relativo ao reinvestimento, designadamente a análise do valor declarado no campo 5008 valor de realização reinvestido no ano da declaração após a data da alienação no valor de €302.025,75, considera-se que não pode beneficiar do regime de exclusão da tributação nos termos do n.º 5 do art.º 10.º do CIRS, dado não cumprir o disposto da alínea a) do n.º 6 do artigo 10.º do CIRS. Uma vez que tem o seu domicílio fiscal, desde 2018-02-20 e que o mantém até à presente data na “..., ..., ..., ...-... Quarteira”, correspondente ao imóvel alienado em 2015-11-15.

Assim, fica V. Ex.ª notificada, para, no prazo de 15 dias a contar da assinatura do presente aviso de receção, entregar uma declaração de substituição, através do Portal das Finanças, a fim de regularizar a situação acima identificada, ou caso pretenda exercer o direito de audição prévia a que se refere o artigo 60.º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, poderá apresentar as suas alegações no site www.portaldasfinancas.gov.pt, mediante seleção da opção “Serviços Tributários – Cidadãos – Consultar – Divergências”, ou, em alternativa, junto do Serviço de Finanças de LOULÉ..., localizado em R....– ..., ...-... QUARTEIRA.

Mais se esclarece, que se não cumprir aquela obrigação, no prazo que lhe é concedido os serviços procederão de imediato à correcção da referida declaração”.

19-         A Requerente exerceu direito de audição prévia junto do Serviço de Finanças de Loulé, tendo invocado o seguinte:

 

20-         Através do Ofício n.º ..., de 11-03-2020, a Requerente foi notificada da resposta da AT, nos seguintes termos:

 

21-         O procedimento de gestão de divergências deu origem à elaboração pelos serviços da AT de uma declaração oficiosa modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2018, a qual foi acompanhada do anexo G, tendo desaparecido no campo 5008 do quadro 5 do anexo G a referência a qualquer valor relativo ao valor de realização reinvestido no ano da declaração após a data da alienação, bem como a indicação da identificação matricial de qualquer imóvel que constituísse objecto de reinvestimento do montante inscrito no campo 5006.

22-         Em 06-05-2020, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRS n.º 2020 ..., da demonstração de acerto de contas n.º 2020..., e da respectiva liquidação de juros compensatórios, no valor global de €113.650,60.

23-         Em 12-05-2020, foi efectuada pela AT uma nova liquidação de IRS n.º 2020..., relativa ao ano de 2018, da qual resultou imposto a pagar no valor de €27.118,31.

24-         Relativamente à nota de cobrança com o n.º 2020..., foi anulado o montante de € 86.532,29, não se encontrando qualquer valor em dívida, atento o estorno efectuado com o valor apurado e pago na liquidação n.º 2019..., que ascendia a €27.118,31.

25-         A Requerente apenas teve conhecimento da liquidação e estorno referidos nos números que antecedem, na pendência do presente processo arbitral.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, e a prova documental junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO  

 

a.            Questão prévia: Da inutilidade superveniente da lide

 

A Requerente peticiona a anulação total da liquidação adicional de IRS n.º 2020..., da demonstração de acerto de contas n.º 2020... e da demonstração de liquidação de juros, relativas ao ano de 2018, no valor global de €113.650,60.

                Conforme resulta da matéria de facto dada como provada, a Requerente entregou em 28-06-2019, a declaração modelo 3 de IRS, relativa aos rendimentos auferidos no ano de 2018, tendo declarado no quadro 4 do anexo G, a alienação do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de  ...concelho de Loulé, sob o artigo ..., pelo valor global de €990.000,00. A Requerente declarou, ainda, no campo 5008 (valor de realização reinvestido no ano da declaração após a data da alienação), do anexo G, o reinvestimento no valor de €302.027,75, na aquisição do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Loulé sob o artigo ... e, no campo 5006, a intenção de reinvestir o montante de €687.974,25.

                A declaração modelo 3 de IRS entregue pela Requerente deu origem à liquidação de IRS n.º 2019..., na qual foi apurado imposto a pagar no valor de €27.118,31.

                Após, a AT iniciou um procedimento de divergências, quanto à mais-valia declarada no anexo G, tendo desconsiderado o valor do reinvestimento no ano da declaração e retirado do campo 5006 a identificação do imóvel objecto da intenção de reinvestimento e, na sequência disso, emitiu a liquidação adicional de IRS n.º 2020..., a demonstração de acerto de contas n.º 2020... e a liquidação de juros compensatórios, no valor global de €113.650,60

                Conforme refere expressamente a Requerente, quer nos pontos 19 e 20 do pedido de pronúncia arbitral, quer no introito do mesmo – embora não indique o número da liquidação adicional, mas antes refira o número da demonstração de acerto de contas -, são estes últimos os actos, no valor global de €113.650,30, cuja legalidade a Requerente pretende que seja apreciada, pugnando pela anulação total dos mesmos.

                Porém, conforme resulta igualmente da matéria de facto dada como provada, em 12-05-2020, a AT procedeu à emissão da liquidação n.º 2020..., da qual resultou imposto a pagar no valor de €27.118,31, tendo anulado o valor de €86.532,29, correspondente à diferença entre o valor apurado na liquidação oficiosa efectuada pela AT (liquidação n.º 2020...), no valor de €113.650,60 e a liquidação que resultou da declaração de rendimentos apresentada pela Requerente (liquidação n.º 2019...), no valor de €27.118.31.

Significa isto, que a liquidação sindicada nos presentes autos foi parcialmente anulada, no montante de €86.532,29, que reflectia a desconsideração, por parte da AT, do valor do reinvestimento na aquisição do prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Loulé sob o artigo ... .

Embora a anulação tenha sido praticada antes da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente apenas teve conhecimento da mesma na pendência da presente acção arbitral, pelo que a mesma só então se pode considerar como produzindo qualquer efeito.

Face ao ocorrido, torna-se inútil, nessa parte, o prosseguimento da presente lide, quanto ao valor de €86.532,29 já objecto de anulação por parte da Requerida, na medida em que, do prosseguimento daquela, não resultará qualquer efeito sobre a relação jurídica material controvertida.

Como se sabe, verifica-se a inutilidade superveniente da lide quando, por facto ocorrido na pendência da causa, a solução do litígio deixe de ter interesse e utilidade, o que justifica a extinção da instância (cfr. artigo 277.º, al. e), do Código de Processo Civil). Como referem LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA, RUI PINTO, a inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide “dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.

Assim, se, por virtude de factos novos ocorridos na pendência do processo, parte do escopo visado com a pretensão deduzida em juízo já foi atingido por outro meio, pelo que a decisão a proferir não envolve efeito útil, ocorre, nesse âmbito, inutilidade superveniente da lide.

Decorre da actuação administrativa dada como provada que a pretensão formulada pela Requerente, que tinha como finalidade a declaração de ilegalidade e anulação total por este Tribunal do acto sindicado, ficou, em parte, prejudicada porquanto a anulação das correcções e dos seus efeitos foi conseguida por outra via, depois de iniciada a instância. Na verdade, a revogação parcial da liquidação impugnada, implica que a instância atinente à apreciação da legalidade dessa liquidação na parte respeitante ao montante de €86.532,29, se extinga por inutilidade superveniente parcial da lide, dado que, por terem sido eliminados os seus efeitos, perde utilidade a apreciação, em relação a tais liquidações, dos vícios alegados em ordem à sua invalidade, ficando sem objecto a pretensão impugnatória contra elas deduzida.

Permanecendo, porém, parcialmente na ordem jurídica o acto de liquidação, não tendo a Requerente encontrado totalmente na via administrativa a satisfação da sua pretensão, sempre se deverá manter a instância para apreciação da liquidação na parte relativa ao valor de €27.118,31.

Nestes termos, este Tribunal julga verificar-se a inutilidade superveniente parcial da lide no que concerne ao pedido de anulação do acto tributário no montante de €86.532.29, relativamente à não consideração do valor reinvestido na aquisição do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia de..., concelho de Loulé sob o artigo..., o que implica a extinção parcial da correspondente instância nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e) do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT.

 

*

b.            Da violação do princípio da participação

 

Começa a Requerente por invocar a violação do princípio da participação já que, em seu entender, “a AT na sua «decisão final» fez absoluta «tábua rasa», não apreciando os fundamentos da pronúncia da Impugnante em audição prévia e limitando-se a concluir pela manutenção do projeto de decisão”, pelo que “ao não ter em consideração os factos alegados em sede de «audição prévia» e ao ter ignorado o seu especial dever de inquisitório, incorreu a AT em clara violação do princípio da participação e do inquisitório”.

                De facto, o direito à participação é um direito constitucional que decorre do artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, que consagra o direito dos cidadãos participarem na formação das decisões que lhes disserem respeito e encontra expressão no artigo 60.º da LGT, que prescreve o seguinte:

“A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária”

                Por outro lado, de harmonia com o preceituado no artigo 60.º, n.º 7 da LGT, se o titular do direito de audiência, no exercício deste direito, suscitar elementos novos, eles deverão ser considerados na fundamentação da decisão.

A Requerente não contesta que foi notificada para o exercício de audição prévia, o que argui é que a AT não considerou os argumentos e as justificações apresentadas na elaboração da decisão final.

                A obrigatoriedade de a AT considerar os elementos novos aduzidos em sede de direito de audição, na fundamentação da decisão, que decorre do n.º 7 do artigo 60.º da LGT, traduz-se em eles deverem ser mencionados e apreciados, não implicando, portanto, que a AT tenha, obrigatoriamente, de com eles concordar.

                Toda a argumentação expedida pela Requerente em sede de direito de audição prévia, à intenção da AT proceder à liquidação adicional de IRS relativa ao ano de 2018, se reconduziu à temática da desconsideração do reinvestimento da mais-valia obtida no ano de 2018, na aquisição de outro imóvel (prédio urbano com o artigo... da freguesia de...).

Embora a AT não tenha, numa primeira fase, acolhido a argumentação da Requerente, procedeu, posteriormente, à anulação da referida liquidação na parte em que desconsiderava o reinvestimento.

Quanto à parte da liquidação cuja apreciação da legalidade subsiste, no montante de 27.118,21€, a Requerente não apresentou em sede de audição prévia à intenção da AT proceder à emissão de uma liquidação adicional de IRS, qualquer fundamento que pudesse ser tomado em consideração na formação da decisão, por parte da AT, de emitir a liquidação adicional, pelo que, não se vislumbra qualquer violação do direito da participação/audição prévia constante do artigo 60.º da LGT, motivo pelo qual improcede o alegado vício.        

 

c.            Da violação do princípio da fundamentação

Alega a Requerente que “a decisão aqui sob sindicância não se encontra bem fundamentada, tendo-se a AT limitado a manter uma pretensa proposta de decisão, sem tecer quaisquer considerações quanto aos factos invocados pela Impugnante na sua audição prévia”.

Como é sabido, a fundamentação é uma exigência dos atos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268.º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).

Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

1.            Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

2.            Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas;

3.            Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;

4.            Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação  (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um acto tributário, deve ser aquela que funcionalmente é em concreto necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. Esta será – julga-se – a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quando, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o acto tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o acto padecerá de falta de fundamentação.

Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.” , e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.” .

O artigo 77.º/1 da LGT refere, assim, que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.

Descendo ao caso concreto, e conforme já se apontou atrás, está em causa a sindicância da liquidação n.º 2020..., na parte relativa ao montante de €27.118,21.

Como resulta da matéria de facto provada, a Requerente fundou toda a sua argumentação em sede de direito de audição prévia à intenção da AT proceder à emissão de uma liquidação adicional de IRS, na desconsideração do reinvestimento da mais-valia na aquisição de outro imóvel, nenhuma consideração tecendo quanto à liquidação na parte relativa ao montante de €27.118,21.

E tal é compreensível já que, de facto, a parte da liquidação que subsiste, no montante de €27.118,21 é consentânea com a liquidação que teve origem na declaração de rendimentos apresentada pela Requerente pelo que, resulta evidente, que a Requerente conhecia os fundamentos na origem da liquidação daquele montante.

Com efeito, não tendo a Requerente aduzido em sede de audição prévia qualquer argumento que pudesse suscitar a questão da ilegalidade da liquidação na parte relativa ao montante de €27.118,21, não se vislumbra como é que poderia a AT, em sede de decisão final, considerar esses argumentos.

Deste modo, entende-se que, considerado o contexto concreto em que foram produzidos os actos de liquidação em questão nos presentes autos, nada haverá a censurar, na perspectiva do dever de fundamentação, aos actos tributários objecto do presente processo, não se mostrando violado qualquer dos normativos indicados pela Requerente, motivo pelo qual improcede o alegado vício de falta de fundamentação.  

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)            Declarar a inutilidade superveniente da lide no que concerne ao pedido de anulação do acto tributário na parte correspondente ao montante de €86.532,29;

b)           Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral subsistente;

c)            Condenar as partes nas custas do processo, na proporção do respectivo decaimento, fixada-se o montante de € 740,00, a cargo da Requerente, e de € 2.320,00, a cargo da Requerida.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €113.650,60, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes, na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, uma vez que a inutilidade superveniente da lide é imputável à AT, e o remanescente do pedido foi julgado improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Rui Ferreira Rodrigues)

 

O Árbitro Vogal

(Sofia Ricardo Borges)