Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 309/2015-T
Data da decisão: 2015-12-14  IVA  
Valor do pedido: € 1.456.552,30
Tema: IVA – faturas; retificação; prazo
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Luís Menezes Leitão e Ana Maria Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral:

 

 

I – RELATÓRIO

 

1.      No dia 14 de Maio de 2015, A…, E.M., contribuinte n.º …, com sede na Rua…, n.º …, …-… …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade “dos atos de autoliquidação praticados em sede de IVA, que subjazem, relativos ao período compreendido entre janeiro e dezembro do ano de 2010 e entre janeiro e abril do ano de 2011”, bem como do “Despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa (...), proferido, em 09 de fevereiro de 2015, pela Exma. Senhora Diretora de Finanças Adjunta da Direção de Finanças do …, no uso de competências delegadas, e notificado, à aqui Requerente, no passado dia 13 de fevereiro pp., através do Ofício n.º …”.

 

2.      Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa dos referidos atos de autoliquidação padece de ilegalidade, invocando para o efeito a aplicabilidade do disposto no Artigo 98.º do Código do IVA e no Artigo 78.º da LGT, dos quais resulta que disporia do prazo de quatro anos para pedir a revisão dos atos tributários, pelo que não seria de aplicar ao caso sub judice o prazo de dois anos consagrado no Artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA, atinente ao regime das regularizações.

 

3.      No dia 18-05-2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.      A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.      Em 13-07-2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.      Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 28-07-2015.

 

7.      No dia 01-10-2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se quer por exceção, quer por impugnação.

 

8.      No dia 16-10-2015, notificada para o fazer, a Requerente respondeu à matéria de exceção contida na Resposta da Requerida.

 

9.      Atendendo a que, no caso, não se verificava qualquer das finalidades que legalmente lhe estão cometidas, ao abrigo do disposto nos arts. 16.º/c), 19.º e 29.º/2 do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, o Tribunal Arbitral dispensou a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

10.  Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

11.  Foi fixado o prazo de 30 dias para a prolação de decisão final, após a apresentação de alegações da Requerida.

 

12.  O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-      A Requerente, é uma pessoa colectiva pública, dotada de personalidade jurídica e de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, sujeita à superintendência do Município do … .

2-      O objeto social da Requerente é o “a gestão do parque habitacional do município, bem como a atividade de manutenção de equipamentos e infraestruturas, do domínio público ou privado”, para o Município, que nela delegou os poderes necessários à sua prossecução.

3-      A gestão do parque habitacional do Município “(…) abrange, designadamente, as funções de organizar e executar os processos de aquisição, atribuição e venda de fogos, assegurar a sua correta ocupação, assegurar todo o processo administrativo de cobrança de rendas ou outros quantitativos devidos pela sua utilização, elaborar propostas de atualização de taxas e rendas e assegurar a ligação com as entidades promotoras de habitação social.”.

4-      A atividade de manutenção de equipamentos e infraestruturas municipais, nomeadamente a realização de obras e outros serviços de manutenção, “(…) traduz-se na manutenção do parque municipal de vias, edifícios e equipamentos fixos e móveis.”.

5-      A relação entre a Requerente e o Município do … é disciplinada por contratos-programa celebrados anualmente, os quais definem pormenorizadamente o objeto e a missão da empresa municipal, bem como as suas funções.

6-      Para os anos de 2010 e 2011 foram celebrados os contratos-programa juntos como Documentos n.º 3 e n.º 4 do Requerimento Inicial.

7-      Nos sobreditos contratos-programa foi definido, com base no orçamento elaborado, o preço dos serviços (em concreto, a execução de empreitadas de construção civil) a serem prestados pela Requerente ao Município, no âmbito das competências anteriormente descritas.

8-      Adicionalmente, foi também definido o valor a transferir por parte do Município para cobertura dos prejuízos da Requerente (designado como “subsídio à estrutura”).

9-      Neste âmbito, e atendendo à sua natureza, os valores recebidos pela Requerente, previstos nos referidos contratos-programa, reportaram-se às seguintes situações:

a.       Realização de serviços de empreitada relacionados com a manutenção do parque habitacional, de infraestruturas e outros equipamentos;

b.      Redébito de despesas suportadas com o parque habitacional;

c.       Subsídio à estrutura; e

d.      Outros serviços, designadamente a manutenção de diversos equipamentos, como elevadores, sistemas de aquecimento, ventilação, ar-condicionado, gás, equipamentos de cozinha que se encontram em imóveis do Município e ainda a impressão e design do manual do inquilino.

10-  Na execução dos contratos-programa para os anos de 2010 e 2011, acima referidos, a Requerente ficou incumbida da realização de obras de manutenção do parque habitacional e de infraestruturas pertencentes ao Município ou cuja gestão lhe foi confiada (onde se incluíam diversos imóveis utilizados por instituições de intervenção social, escolas, pavilhões municipais e serviços municipais).

11-  No mesmo âmbito, a Requerente realizou também as intervenções que foram necessárias em imóveis que não estavam compreendidos no património municipal (intervenção em imóveis privados) e que lhe foram comunicadas pelo gabinete de segurança e salubridade ou por outra estrutura municipal equiparada (designadas de “obras coercivas”).

12-  A actuação da Requerente, nesta matéria, englobou a prática de todo e qualquer ato ou iniciativa, preventiva ou planeada, tendo em vista a conservação, manutenção e recuperação do edificado destinado a parque habitacional e infraestruturas, assegurando a respetiva subcontratação e realização das obras.

13-  No âmbito da referida actividade a Requerente desencadeou os adequados procedimentos de contratação, celebrando os respetivos contratos e assegurando a gestão das obras, desde a sua concepção até à recepção das mesmas por parte do Município.

14-  Durante a execução das obras, a Requerente centralizou todas as compras necessárias à sua realização, pagando aos fornecedores as respetivas faturas e desenvolveu as diligências necessárias à boa execução das obras, a serem entregues ao Município, junto do empreiteiro e dos demais fornecedores, e adquiriu bens e serviços diversos, desde (sub)empreitadas, projetos ou quaisquer outras prestações tidas por indispensáveis para assegurar a realização das obras em apreço.

15-  No ano de 2010 (fevereiro a dezembro), a aqui Requerente faturou ao Município do … a totalidade do valor dos serviços que adquiriu para a realização dessas obras, considerando que efetuava um mero redébito ao Município, dos serviços e bens que adquiria.

16-  Em 2010, a Requerente liquidou IVA, à taxa normal na faturação respeitante a bens e serviços conexos com as empreitadas que realizou para o Município do … (materiais adquiridos e mão-de-obra contratada para a obra, aluguer de equipamentos, fiscalização, taxa de certificação de instalações elétricas).

17-  Por outro lado, a Requerente aplicou a regra de inversão do sujeito passivo prevista na alínea j) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA sempre que se encontrava a faturar serviços de empreitada adquiridos a empreiteiros.

18-  A Requerente efetuou também o redébito ao Município de despesas que estavam relacionadas com o parque habitacional e com o seu funcionamento e eram incorridas e pagas pela Requerente (e.g. água, eletricidade, correios, condomínio).

19-  Com efeito, nos bairros sociais onde existia um condomínio constituído (o que acontecia nos imóveis onde existiam inquilinos que se tornaram proprietários das frações que ocupavam), a Requerente efetuou o pagamento do valor do condomínio (sem IVA) das frações cujo proprietário é o Município.

20-   Posteriormente, a Requerente debitou o valor do condomínio ao Município (proprietário das frações em causa).

21-  Quando não existia um condomínio constituído, a Requerente suportou as despesas habituais dos condomínios (como água, eletricidade, correios) e efetuou também o respetivo redébito ao Município.

22-  Durante o ano de 2010, a Requerente faturou todas as despesas referidas, (água, eletricidade, correios, condomínio), ao Município, pelo exato valor que suportou, fazendo incidir IVA, à taxa normal, sobre o valor global das mesmas, não discriminando nas faturas que emitiu ao Município os bens e serviços que originaram esse mesmo débito.

23-  Os valores referentes a “subsídios à estrutura” recebidos pela Requerente correspondiam a uma dotação de receitas efetuada pelo Município à Requerente, nos termos dos contratos-programa celebrado anualmente entre estas duas entidades.

24-   Em 2010 e 2011 (janeiro a abril), a Requerente liquidou IVA à taxa normal sobre estes valores.

25-  Relativamente às situações descritas nas alíneas a) e b) do ponto 9 supra, a Requerente apresentou, no dia 21 de abril de 2010, um pedido de informação vinculativa com caráter urgente.

26-  Quanto ao enquadramento em IVA do “subsídio à estrutura”, a Requerente apresentou em 1 de Julho de 2011, um outro pedido de informação vinculativa, com caráter urgente.

27-  O enquadramento proposto e veiculado pela Autoridade Tributária, nas respostas aos pedidos apresentados consistiu, em suma, no seguinte:

a.       Os serviços de empreitada relacionados com a manutenção do parque habitacional, de infraestruturas e outros equipamentos [alínea a) do ponto 9 supra] devem ser tributados à taxa reduzida de IVA, independentemente da entidade que deve liquidar o IVA (i.e. da aplicação ou não da regra de inversão);

b.      No redébito de despesas suportadas com o parque habitacional [alínea b) do ponto 9 supra], deve ser aplicada a taxa de IVA respetiva ou a eventual não tributação, consoante a natureza dos valores a debitar; e

c.       Quanto aos subsídios à estrutura [alínea c) do ponto 9 supra], a Autoridade Tributária considerou que os mesmos não são sujeitos a IVA, em consonância com o disposto no Ofício n.º …, de 15 de abril de 2011, da Direção de Serviços do IVA.

28-  Em face da supraditas informações vinculativas, proferidas pela Autoridade Tributária, a Requerente procedeu à revisão dos seus procedimentos em matéria de IVA, para as situações e para os anos em causa.

29-  A Requerente procedeu à emissão de notas de crédito a corrigir o enquadramento em IVA aplicado às operações acima referidas, anulando o IVA liquidado em excesso nas faturas inicialmente emitidas, tendo na sua posse o respetivo comprovativo da tomada de conhecimento dessa retificação por parte do Município do … .

30-  Concretamente, em 30 de janeiro de 2014, emitiu a Requerente as notas de crédito 2014…, 2014…, e 2014…, nas quais apurou um montante total de IVA a regularizar de € 1.456.552,30.

31-  Tendo em vista recuperar o IVA que entendeu liquidado em excesso em resultado do enquadramento em IVA que havia aplicado às operações referidas, a Requerente apresentou, no dia 31 de janeiro de 2014, um pedido de revisão oficiosa, solicitando, à Autoridade Tributária, a regularização a seu favor do imposto pago em excesso durante os anos de 2010 e 2011, no valor total de €1.456.552,30.

32-  Na sequência do referido pedido, a Requerente foi notificada, no dia 13 de fevereiro de 2015, através do Ofício n.º …, de 10 de fevereiro, do Despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa apresentado.

33-  Que, por sua vez, relegou a respectiva fundamentação para o teor do projeto de decisão de indeferimento, previamente notificado à aqui Requerente através do Ofício n.º … de 14 de janeiro de 2015, no dia 16 de janeiro de 2015.

 

A.2. Factos dados como não provados

Inexistem.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

 

B. DO DIREITO

 

a. Questões prévias

            i. Da incompetência material

            Começa a Requerida por arguir a exceção de incompetência material do presente tribunal arbitral, alegando que “O ato objeto de pronúncia arbitral consubstancia-se na decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa, no qual a Requerente solicitou apenas a autorização para efetuar regularizações de imposto a seu favor”, pelo que, não se inserindo no âmbito das competências dos Tribunais Arbitrais “a apreciação de pedidos de autorização para regularização de imposto a favor dos sujeitos passivos ou de restituição ou reembolso de montantes liquidados e pagos em excesso”, verificar-se-á a “incompetência material do Tribunal para a apreciação do pedido de restituição ou reembolso de imposto liquidado”.

            Ressalvado o respeito devido, entende-se não assistir razão à Requerida, nesta matéria.

            Com efeito, e desde logo, o pedido de revisão oficiosa – naturalmente, e como inquestionavelmente resulta do artigo 78.º da LGT – é um pedido de revisão oficiosa de atos tributários (e não de apreciação, em primeira linha, de pretensões dos contribuintes, no caso, autorizações para a prática de atos), atos tributários esses que, no caso, não podem ser outros que não os atos de autoliquidação de IVA da Requerente, relativos ao período compreendido entre janeiro do ano de 2010 e abril do ano de 2011.

            Daí que não tem este Tribunal dúvidas da sua competência material para aferir da legalidade daqueles atos tributários, bem como da decisão do pedido de revisão oficiosa dos mesmos, e para daí retirar as devidas e legais consequências, incluindo-se aí, e sendo caso disso, condenar a AT a restituir imposto que, por força da ilegalidade de tais atos, haja sido indevidamente pago.

 

*

            Argui também a Requerida a incompetência material deste Tribunal Arbitral, na medida em que “que na situação sub judice sempre se impunha a precedência obrigatória de reclamação graciosa nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT”, já que “os litígios que tenham por objeto a declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, como sucede na situação sub judice, estão excluídos da competência material dos tribunais arbitrais se não forem precedidos de reclamação graciosa nos termos do artigo 131.º do CPPT”, entendimento que se imporá “por força dos princípios constitucionais do Estado de direito e da separação dos poderes (cf. artigos 2.º e 111.º, ambos da CRP), bem como da legalidade (cf. artigos 3.º, n.º 2, 202.º e 203.º da CRP e ainda o artigo e 266.º, n.º 2, da CRP, no seu corolário do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ínsito no artigo 30.º, n.º 2 da LGT, que vinculam o legislador e toda a atividade da AT”.

Como se vê, fundamenta a AT o seu entendimento no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

            Entende a AT, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na sua literalidade, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.

            Toda a argumentação da AT na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de atos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, porquanto é isso que diz no texto da norma interpretada.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela AT, uma razão substancial que explique a racionalidade do entendimento que sustenta. Efetivamente, não se descortina qualquer razão substancial – e a AT nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos atos de autoliquidação.

            Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela AT nos autos.

            Com efeito, a expressão empregue por tal norma é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

            A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de atos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia. Ou seja: tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela AT, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

            Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a AT dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente, bem como da doutrina que se tem formado[1], não se deslindando, na medida em que interpretação efetuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 20.º, 111.º, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 2, todos da CRP.

 

*

Sustenta, ainda, a Requerida a incompetência material do presente tribunal arbitral, alegando que a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa ora impugnado “foi motivada pela subsunção do caso em concreto à disciplina do n.º 3 do Artigo 78.º do Código do IVA, tendo-se, consequentemente, concluído pelo não cumprimento do prazo de dois anos para a regularização de faturas”, pelo que “não foi apreciada a legalidade de qualquer ato tributário de liquidação.”.

Assim, ainda na tese da Requerida, estaremos “perante um ato administrativo em matéria tributária que, por não apreciar ou discutir a legalidade do ato de liquidação, não pode ser sindicável através de impugnação judicial, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e do artigo 2.º do RJAT”, pelo que considerando “que não se insere no âmbito das competências arbitrais apreciar a legalidade ou ilegalidade de decisões de indeferimento de pedidos de regularização de IVA apresentados nos termos do 78°, da LGT”, se verificará a arguida exceção.

            Ora, é já claro desde o pedido de revisão oficiosa, para o Tribunal e para qualquer destinatário médio, que a Requerente almeja a anulação dos seus atos de autoliquidação de IVA relativos ao período compreendido entre janeiro do ano de 2010 e abril do ano de 2011, atos esses que, de resto, são do conhecimento e estão na posse da Requerida[2], e que tal pretensão se fundamenta no errado montante de imposto mencionado nas faturas que subjazem àquelas autoliquidações, fundando-se ainda, a presente ação arbitral, na alegada ilegalidade do ato de indeferimento do pedido de revisão oficiosa daqueles atos de autoliquidação, por errada aplicação do prazo a que alude o n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

            Por outro lado, como se disse já, o meio gracioso consagrado no artigo 78.º da LGT não tem por objeto pedidos de autorização ou “pedidos de regularização de IVA”, mas atos tributários já praticados na ordem jurídica.

            Por fim, é evidente para este Tribunal, conforme adiante se desenvolverá, que as faturas cuja correção a AT julgou inadmissível, por estar excedido o prazo do artigo 78.º/3 da LGT, são, não o objeto do pedido de revisão oficiosa, mas um pressuposto da legalidade dos atos de autoliquidação da Requerida – esses sim, objeto quer daquele pedido, quer do presente processo arbitral – atos esses que serão, no que ora importa, legais ou ilegais, em função de estarem não conformes àquilo que seja a faturação da Requerente, no caso, juridicamente relevante.

            Daí que, dúvidas não persistam de que no pedido de revisão oficiosa se conheceu, efetivamente, da legalidade dos atos de autoliquidação de IVA da Requerente, em causa no presente processo.

 

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            Por fim, alega a Requerida que “é forçoso concluir, como supra exposto, que a presente ação tem apenas como objeto imediato a decisão de indeferimento da revisão oficiosa, não tendo como objeto mediato qualquer ato tributário de liquidação”, uma vez que “não tendo a Requerente apresentado as faturas anuladas, não é possível aferir-se se, por um lado, as faturas emitidas em 2010 e 2011 continham um errado enquadramento em sede de IVA em conformidade com o entendimento veiculado nas respostas aos pedidos de informação vinculativa e, se, por outro lado, com a emissão de notas de créditos e novas faturas, tal erro foi corrigido”.

            Ora, salvaguardado, uma vez mais, o respeito, devido, será totalmente infundada a alegação em questão, uma vez que a apresentação, ou não, das faturas anuladas, será sempre matéria de prova dos factos alegados, e nunca de competência do Tribunal.

            Por outro lado, e como se disse já, o objeto mediato do presente processo são as autoliquidações de IVA da Requerente dos períodos entre janeiro de 2010 e abril de 2011.

            Assim, e face a todo exposto, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, deve a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral, ser julgada improcedente.

 

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                ii. Da tempestividade

            Admitindo já “que o objeto mediato do presente pedido de pronúncia arbitral é constituído pelos atos de autoliquidação, (...) identificados pela indicação dos períodos a que respeitam”, entende então a Requerida que “tendo sido ultrapassado o prazo de impugnação direta do ato de autoliquidação de imposto (ou seja, do ato primário), a “tempestividade” do pedido apenas poderia fundar-se na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso do ato de autoliquidação onde tivesse sido prolatada decisão a negar/indeferir, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (naquilo que constituiria um ato de segundo grau).”.

            Assenta, o entendimento da Requerida em questão, na já supra-analisada perspetiva de que “em sede de revisão oficiosa a Requerente apenas solicitou autorização para regularização de IVA, não tendo pugnado pela (i)legalidade de qualquer ato de autoliquidação.”.

            Ora, como se denotou já, o pedido de revisão teve como objeto atos tributários, e tais atos foram, inquestionavelmente, os atos de autoliquidação de IVA sobre os quais incide, também, a presente ação arbitral.

            Assim, existindo um meio de impugnação gracioso do ato de autoliquidação onde foi prolatada decisão a negar/indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (naquilo que constitui um ato de segundo grau), deverá, também, esta exceção ser julgada improcedente.

 

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b. Do fundo da causa

 

            A situação em causa nos presentes autos, e que se apresenta a decisão por este Tribunal, é, nos seus contornos essenciais, de simples definição.

            Com efeito, o que ocorre é que a Requerente, nos períodos entre janeiro de 2010 e abril de 2011, liquidou em faturas que emitiu ao Município do …, e recebeu deste, IVA que, na sua opinião, erradamente e em excesso, fez constar das suas correspondentes declarações periódicas e que, em tempo, entregou ao Estado. Posteriormente, em 30/01/2014 a Requerente procedeu à emissão de notas de crédito a corrigir o enquadramento em IVA aplicado às operações acima referidas, anulando o IVA liquidado em excesso nas faturas inicialmente emitidas, no montante de €1.456.552,30, e tendo na sua posse o respetivo comprovativo da tomada de conhecimento dessa retificação por parte do Município do …, e, no mesmo dia, apresentou um pedido de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação consubstanciados nas referidas declarações periódicas, pedido esse que foi indeferido pela AT, porquanto entendeu que para corrigir a situação em causa, era necessário proceder à correção das faturas nos termos dos artigos 29.º/7 e 78.º/1 do CIVA aplicável, dentro do prazo a que alude o n.º 3 deste último artigo.

            Cumpre aferir, então, da legalidade de tal decisão, bem como dos atos de autoliquidação da Requerente consubstanciados nas suas declarações periódicas dos períodos entre janeiro de 2010 e abril de 2011.

 

*

Na sequência do que vem de se dizer, cumprirá, então, verificar se as autoliquidações em questão foram, ou não, efetuadas em desconformidade com a lei.

            A este propósito, dispõe o artigo 27.º/1 do CIVA aplicável que “os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19.º a 26.º e 78.º, no prazo previsto no artigo 41.º, nos locais de cobrança legalmente autorizados[3], sendo que o montante do imposto exigível é apurado, pela dedução, nos termos dos artigos 19.º e seguintes do mesmo Código, a efectuar sobre o imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram.

            Para o efeito, e no que ao caso ora importa, os sujeitos passivos estão obrigados a “Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo” (artigo 29.º/1/c) do CIVA).

            São estas declarações que, na medida em que das mesmas decorre uma obrigação de pagamento a título de imposto constituem atos de (auto)liquidação, estiveram em causa no pedido de revisão oficiosa e estão, presentemente, em causa.

            Ora, salvo melhor opinião, o IVA incidente sobre as operações tributáveis que o sujeito passivo efetuou e que deverá constar de tais declarações, será o IVA que foi liquidado nas correspondentes faturas emitidas pelo sujeito passivo declarante, no cumprimento das obrigações legais consagradas nos artigos 36.º/5/d) e 37.º/1 do CIVA.

            Tal entendimento impor-se-á, desde logo, face ao próprio Regime Comum do IVA (Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006), que dispõe expressamente (artigo 203.º) que “O IVA é devido por todas as pessoas que mencionem esse imposto numa fatura”, sendo que, nos termos do artigo 226.º daquele, a fatura inclui, obrigatoriamente, a taxa do IVA aplicável[4].

            Também – e como não podia deixar de ser – o ordenamento jurídico nacional aponta no mesmo sentido, dispondo, desde logo, o artigo 2.º/1/c) do CIVA, que são sujeitos passivos do imposto, “As pessoas singulares ou coletivas que, em fatura ou documento equivalente, mencionem indevidamente IVA.”.

            Daqui resulta, claramente, julga-se, a obrigação de entrega ao Estado do IVA faturado, ainda que indevidamente, seja por que motivo for, incluindo, obviamente, quer a aplicação de uma taxa superior à devida, quer a sua menção indevida, que são as duas situações em causa no presente caso.

            Por isso mesmo, dispõe o artigo 29.º/7 do mesmo Código que “Deve ainda ser emitida fatura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão”, devendo aqui ter-se presente o artigo 219.º da Directiva supra-referida, que dispõe que “É assimilado a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca.”.

            Por fim, mas não menos relevante, o artigo 97.º/3 do CIVA dispõe que “As liquidações só podem ser anuladas”, na sequência de recurso hierárquico, reclamação e/ou impugnação, “quando esteja provado que o imposto não foi incluído na fatura ou documento equivalente passado ao adquirente nos termos do artigo 37.º”.

            Deste modo fica demonstrado, julga-se, que a autoliquidação efetuada pelos sujeitos passivos de IVA, na declaração apresentada nos termos do artigo 29.º/1/c) do CIVA, apenas poderá ser anulada, quer em sede de revisão oficiosa, quer em sede de impugnação, no que se refere ao apuramento do montante de imposto incidente sobre as operações tributáveis que efetuaram, se o imposto em causa não estiver contido em fatura ou documento equivalente passado ao adquirente, e em vigor.

            O que, de resto, bem se compreende, já que, a mecânica do imposto em questão assenta na essencialidade da fatura, pelo que, desde logo, o(s) adquirente(s) dos serviços da Requerente, que detenham as faturas por esta emitidas, poderão, reunindo os requisitos que lei aplicável lhes imponha, deduzir o imposto contido nas mesmas.

            Conclui-se, assim, que para que fosse possível anular as autoliquidações em questão, era necessário que as faturas emitidas pela Requerente, nas quais esta, confessadamente incluiu 23% de IVA, fossem corrigidas, nos termos legais, para que, nuns casos, fosse eliminada a menção ao IVA, e, noutros, passasse a constar a taxa que a Requerente tem por correta, bem como o correspondente montante de imposto, decorrente da aplicação desta taxa, ao valor tributável da operação.

            Era necessário, por isso, que fosse seguido o procedimento estabelecido no artigo 78.º do CIVA, que dispõe, no seu n.º 1 que “As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura ou documento equivalente, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo.”.

Verificando-se tais requisitos, as autoliquidações poderão ser anuladas.

Não se verificando tais requisitos, inexistirá fundamento legal para a anulação das autoliquidações em questão, por estarem estas efetuadas em conformidade com as normas que a regulam.

Não obsta ao que vem de se concluir, a circunstância – que não se discute – de as operações em causa, face ao quadro legal (ao “bloco normativo”, nas palavras da Requerente) não serem tributáveis, ou serem-no a uma taxa inferior à faturada pela Requerente, de 23%. Com efeito, daí resulta, não a ilegalidade das autoliquidações efetuadas pela Requerente nas declarações a que alude o artigo 29.º/1/c) do CIVA, mas das liquidações efetuadas pela própria Requerente nas faturas que emitiu, em cumprimento do disposto no artigo 37.º/1 do CIVA[5], liquidações essa cuja correção se impunha à própria requerente, nos termos atrás expostos.

Assim, como se decidiu no Acórdão do TCA-Sul de 04-07-2000, proferido no processo 1525/98[6]:

“1. A dívida de IVA de cada sujeito passivo é encontrada deduzindo da totalidade do imposto mencionado nas faturas processada aos seus clientes o imposto suportado nas faturas de aquisição de bens e serviços destinados à sua produção, tudo reportado a um certo período de tempo;

2. Se houver alteração do valor tributável dos bens ou serviços pode o sujeito passivo proceder à sua retificação, sendo a mesma facultativa se o imposto mencionado na fatura for superior, e obrigatória, se tal imposto for inferior;

3. Em caso de imposto mencionado na fatura de montante superior ao devido, enquanto não for retificado, é o mesmo devido, cabendo à AF a sua liquidação adicional, no caso de o sujeito passivo o não fizer;”.

 

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            No caso, apura-se então que a Requerente procedeu à emissão de notas de crédito a corrigir o enquadramento em IVA aplicado às operações acima referidas, anulando o IVA liquidado em excesso nas faturas inicialmente emitidas, no montante de €1.456.552,30, e tendo na sua posse o respetivo comprovativo da tomada de conhecimento dessa retificação por parte do Município do … .

            Questiona, em primeiro lugar, a Requerida, em sede arbitral, que a Requerente tenha dado cumprimento ao disposto nos artigos 29.º/7 e 78.º/1 do CIVA aplicável, porquanto não juntou aos autos cópias das faturas corrigidas que terá emitido.

            Ressalvado o respeito devido, entende-se não assistir, em tal matéria, razão à AT, na medida em que as disposições em causa devem ser interpretadas à luz do Direito Comunitário aplicável e, como se viu já, o artigo 219.º da Directiva IVA, dispõe que “É assimilado a fatura qualquer documento ou mensagem que altere a fatura inicial e a ela faça referência específica e inequívoca”, o que é o caso, inquestionável, julga-se, das notas de crédito apresentadas pela Requerente.

            Argumenta ainda a AT, nos presentes autos, que a regularização do imposto decorrente da retificação das faturas em questão, deveria ocorrer na declaração do período em que se dá a retificação, e não no período a que se reportam as faturas retificadas, afirmando que “a reposição da verdade fiscal, no caso concreto, efetua-se mediante a emissão de novas faturas, as quais devem ser relevadas no campo 40 da declaração periódica referente ao período em que foi efetuada a regularização, e nunca através da substituição ou anulação das declarações periódicas relativas ao período correspondente às faturas que se anularam”.

            Também aqui se considera não assistir razão à AT. Com efeito, e desde logo, aquela Autoridade louva tal posição no anexo V ao Ofício-Circulado n.º 30082/2005, de 17 de Novembro, da Direção de Serviços do IVA, o qual não contém qualquer fundamentação.

            Ora, devidamente interpretadas as normas aplicáveis ter-se-á de concluir em sentido oposto, ou seja, que a retificação das faturas deverá ser repercutida na declaração periódica relativa ao período em que as mesmas foram emitidas, e não do período em que se deu a retificação.

            Com efeito, a retificação não corresponde à realização de uma nova operação tributável, ou, sequer, a uma alteração daquela, mas, antes, à retificação do valor tributável da mesma, ou do montante de imposto sobre ela incidente, constante da fatura originariamente emitida[7], pelo que se deverá repercutir na liquidação de imposto do período em que se foi emitida a fatura corrigida, e não daquele em que se deu a correção.

            Aqui residirá, de resto, o fundamento para a limitação temporal de 2 anos, estatuída na norma do n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

            Com efeito, e salvo melhor opinião, tal limitação estará diretamente relacionada com o prazo geral de caducidade do direito à liquidação de tributos, fixado no artigo 45.º/1 da LGT, por um lado, e com o mecanismo do direito à dedução, intrínseco ao funcionamento do IVA, por outro. É que, correspondendo, por regra, a liquidação de imposto por um sujeito passivo daquele imposto, ao direito à dedução de outro sujeito passivo, a correção para menos, por um sujeito passivo de imposto, no valor tributável de uma operação, ou do imposto devido por esta, corresponderá, por regra, a uma diminuição no correspondente direito à dedução de outro sujeito passivo.

            Será esta circunstância que justificará a estatuição do prazo reduzido de 2 anos, para as retificações em causa, já que, se assim não fosse, e o sujeito passivo pudesse proceder àquelas em 4 anos, ocorrendo a retificação perto do fim deste prazo, a AT ficaria impossibilitada de fiscalizar e corrigir as repercussões da retificação operada, na esfera jurídica da contraparte do sujeito passivo que efetuasse a correção.

            Assim sendo, como se verá, a limitação a dois anos da possibilidade de correção apenas será compreensível, no quadro do entendimento que considere que a retificação não corresponde à realização de uma nova operação tributável, ou a uma alteração nesta, mas, antes, à retificação do valor da operação original, ou do montante de imposto incidente sobre a mesma, constantes da fatura originariamente emitida, uma vez que, se assim não fosse, e a retificação fosse considerada uma nova operação tributável, ou uma alteração naquela, não faria qualquer sentido limitar a possibilidade da retificação a dois anos contados da operação subjacente à fatura retificada, já que sempre a AT disporia do prazo de 4 anos, contados da retificação, para fiscalizar e corrigir o que entendesse.

            Aliás, justamente por a retificação se reportar ao período em que foi emitida a fatura inexata, é que só pode “ser efetuada sem qualquer penalidade até ao final do período seguinte àquele a que respeita a fatura a retificar[8].

            Conclui-se, deste modo, que as retificações realizadas nos termos do n.º 3 do artigo 78.º do CIVA, se deverão repercutir na liquidação de imposto do período em que se foi emitida a fatura corrigida, como ocorreu no caso sub iudice, e não daquele em que se deu a correção.

 

*

            Não obstante se considerar, como se vem de ver, que a Requerente procedeu à correção das faturas que entendeu enfermarem de erro, por aplicação indevida da IVA, ou por aplicação de uma taxa superior à devida, e que as rectificações se devem repercutir nas autoliquidações dos períodos em que foram emitidas as faturas retificadas, com aconteceu, julga-se que não serão as retificações operadas pela Requerente, em questão no presente processo, eficazes em sede de IVA, porquanto ocorreram para lá do prazo consagrado no artigo 78.º/3 do CIVA, conforme se entendeu na decisão do pedido de revisão oficiosa.

            Sustenta a Requerente que aquele prazo não será aplicável, in casu, porquanto, na sua opinião, “é aplicável à situação sob apreço a regra constante no n.º 1 do artigo 98.º do Código do IVA, que prevê que “quando por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78º da LGT”, podendo o IVA liquidado em excesso ser recuperado no prazo de 4 anos”.

            Ora, ressalvado o respeito devido, julga-se que, ao contrário do que parece entender a Requerente, as normas do artigo 98.º/1 e 78.º/3 do CIVA não serão incompatíveis ou exclusivas uma da outra.

            Com efeito, e na sequência de tudo quanto atrás se expôs, tem de se ter presente que uma coisa será a liquidação de imposto operada na fatura emitida por um sujeito passivo, em que cobra o imposto ao adquirente do bem ou serviço, e outra será a autoliquidação efetuada na correspondente declaração periódica, onde fixa o imposto a entregar ao Estado.

            Como se viu, também, a autoliquidação deverá estar em conformidade com o IVA efetivamente liquidado pelo sujeito passivo declarante na sua faturação (deduzido do IVA mencionado em faturas em que aquele conste como adquirente, e que seja dedutível). Daí que a ilegalidade daquela (autoliquidação), em prejuízo do sujeito passivo, para o que ora nos interessa, poderá decorrer de dois tipos de situação, a saber:

-       da desconformidade entre a autoliquidação e o IVA efetivamente liquidado pelo sujeito passivo declarante na sua faturação, ou mencionado em faturas em que aquele conste como adquirente, e que seja dedutível;

-       da retificação, para menos, do IVA efetivamente liquidado pelo sujeito passivo declarante na sua faturação.

Quer num quer noutro dos casos, aplicar-se-á o disposto no artigo 98.º/1 do CIVA. Todavia, no primeiro dos referidos casos, a autoliquidação será desde logo ilegal, por não estar em conformidade com o IVA efetivamente liquidado pelo sujeito passivo declarante na sua faturação, ou mencionado em faturas em que aquele conste como adquirente, e que seja dedutível. Já no segundo dos casos referidos, a autoliquidação apenas se tornará ilegal, supervenientemente, em função das retificações na faturação. E aqui é que entrará a norma do n.º 3 do artigo 78.º do CIVA, que não limita o prazo de revisão oficiosa dos atos de autoliquidação de IVA, questão regulada pelo artigo 98.º/1 do CIVA, nem sequer, como entendeu a AT na decisão do pedido de revisão oficiosa, estabelece um prazo especial para a regularização de erros na autoliquidação[9], mas apenas restringe a eficácia, para efeitos daquele imposto, das retificações de faturas em que foi liquidado imposto a mais[10].

            No caso concreto, os erros em que a Requerente assenta a sua pretensão deram-se nas liquidações integradas nas faturas por si emitidas ao Município do …, e não nas suas autoliquidações, que foram feitas em conformidade com o imposto por ela mencionado naquelas faturas, e, como tal, com a lei. Daí que a Requerente, confessadamente[11], haja procedido à retificação das faturas por si emitidas ao Município do …, justamente por ter consciência de que as autoliquidações por si levadas a cabo apenas seriam ilegais – e, como tal, suscetíveis de serem oficiosamente revistas ou contenciosamente anuladas – se estivessem em desconformidade com o IVA liquidado na sua faturação.

            Sucede, todavia, que as rectificações encetadas pela Requerente deram-se para lá do prazo a que alude o artigo 78.º/3 do CIVA, e reportam-se a faturas onde terá sido liquidado imposto a mais.

            Alega a Requerente que não será caso de aplicação de tal norma (do artigo 78.º/3 do CIVA), porquanto não estarão em causa faturas “inexatas”, como é pressuposto daquela norma, decalcando, nesta matérias, argumentos constantes da decisão do processo arbitral 245/2013-T do CAAD, onde se escreveu que:

“Estando os requisitos a que as faturas devem observar expressamente previstos no referido artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA, estamos perante uma situação de inexatidão da fatura quando um dos requisitos a que a mesma se encontra adstrita não está observado.”.

            Diverge-se, todavia e desde logo, deste entendimento, na medida em que se entende que se estará perante uma situação de inexatidão da fatura, não só quando um dos requisitos a que a mesma se encontra adstrita não está observado (por exemplo, não haver menção à taxa de IVA aplicável, ou ao imposto liquidado), como, igualmente, quando um de tais requisitos esteja incorretamente observado (quando a taxa mencionada ou o imposto liquidado não sejam os corretos), como acontece nos autos.

            Aliás, não se poderá perder de vista que o n.º 3 do artigo 78.º do CIVA se relaciona diretamente com o n.º 1[12], não havendo, por isso, dúvidas, de que a retificação a que se alude no n.º 3, é a mesma a que alude o n.º 1, ou seja, respeitante ao “valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto”, que não só, por norma, nos casos de retificação, não estará omisso, mas, simplesmente, incorreto, como, nos casos em que estiverem omissos, da retificação da fatura, pelo menos no que diz respeito à omissão do imposto devido, nunca resultará o pagamento de imposto a menos[13], pelo que, no limite, a interpretação propugnada no aresto onde a Requerente se ancora redundaria numa (praticamente) total inutilização do regime dos artigos 78.º/1 e 3 do CIVA.

            Daí que se considere, em suma, que se estará perante uma situação de inexatidão da fatura, relevante para efeitos, e passível de correção nos termos, dos n.ºs 1 e 3 do artigo 78.º CIVA, quando o valor tributável da operação ou o respetivo imposto nela mencionados, não forem os corretos, face aos factos apurados e ao direito aplicável.

            Por outro lado, como se viu já atrás, a própria Requerente – corretamente – apercebeu-se que para que fosse possível a correção das autoliquidações por si efetuadas, era necessário que, previamente, fossem corrigidas as faturas por si emitidas, nos termos legais, para que, nuns casos, fosse eliminada a menção ao IVA, e, noutros, passasse a constar a taxa que a Requerente tem por correta, bem como o correspondente montante de imposto, decorrente da aplicação desta taxa, ao valor tributável da operação, sendo certo que, quer uma (a taxa), quer outro (o montante de imposto), constam expressamente, da alínea d) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA.

            Mais se expende na referida decisão que:

“o enquadramento jurídico-tributário de uma operação não se encontra previsto em nenhum dos requisitos estipulados no artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA.

Não obstante ser feita referência às taxas aplicáveis e ao montante de imposto devido, afigura-se que tal não abrange os erros de enquadramento legal. Efetivamente, o montante de imposto indicado nas faturas iniciais emitidas (objeto de alteração) estava em concordância com o enquadramento, em IVA, conferido pela Requerente às suas operações.

Estaremos perante situações de inexatidão das faturas, relativamente aos requisitos em apreço, quando, não obstante um correto enquadramento da operação, o sujeito passivo indica uma taxa de IVA incorreta ou o montante de imposto é incorretamente computado ou indicado na fatura.

Assim, a incorreta aplicação de determinado regime jurídico às operações realizadas não constitui uma inexatidão da fatura, pelo que é manifesto que não lhe pode ser aplicado o regime referido no artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA.

O erro no enquadramento jurídico-normativo em sede de IVA de uma operação não é uma inexatidão da fatura, nos termos referidos do artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA, porque consubstancia um erro de direito sobre o regime jurídico aplicável e não uma inexatidão no cumprimento dos requisitos formais previstos para as faturas.”.

            Ressalvado o muito respeito devido pelo decidido, e na sequência do que se vem de expor, se é certo que o enquadramento jurídico-tributário de uma operação não se encontra expressamente previsto em nenhum dos requisitos estipulados no artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA, menos certo não é que é a menção do montante de imposto devido e da taxa aplicável estão ali expressamente previstos, na alínea d), sendo – salvo melhor opinião – impossível apurar se por uma determinada operação é devido algum montante de imposto, bem como qual a taxa a aplicável, sem proceder a um enquadramento jurídico-tributário – certo ou errado – da mesma operação.

            Por outro lado, será incontornável que uma das causas normais – senão a principal – das inexatidões nas menções impostas pela al. d) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA será, justamente, o errado enquadramento jurídico tributário.

            Assim, sendo correta a ligação – decorrente do próprio texto da norma do artigo 78.º/1 do CIVA – entre as inexatidões passíveis de correção nos termos daquele n.º 1 e do subsequente n.º 3, e o artigo 36.º/5 do CIVA, considera-se que o referido regime – dos n.ºs 1 e 3 do artigo 78.º - será aplicável às rectificações de inexatidões nas menções impostas por aquele n.º 5, independentemente da causa de tais inexatidões, ou seja, de estas serem devidas a um errado enquadramento do direito ou dos factos, a dolo de fraude, a negligência, inépcia, desleixo, ou qualquer outra causa ou motivação.

Não se vislumbra, efetivamente, qualquer fundamento material para distinguir, como se faz na decisão ora em análise, os casos em que o “o sujeito passivo indica uma taxa de IVA incorreta”, intencionalmente, por estar errado no enquadramento que faz da operação, de todos os restantes casos em que tal ocorra, sem querer ou propositadamente. Com efeito, como se apontou já, julga-se que a limitação temporal consagrada no artigo 78.º/3 do CIVA tem subjacente a necessidade de assegurar à AT uma dilação suficiente para, dentro do prazo de caducidade dos tributos, proceder às fiscalizações e correções que, em função das retificações operadas, se tornem necessárias. Ora, a verdade é que tal necessidade se verifica precisamente com a mesma intensidade, quer a retificação se dê porquanto o sujeito passivo procedeu, nas faturas que emitiu, a um errado enquadramento de direito da operação tributável em que interveio, quer aquela se dê por qualquer outro motivo, não se detetando, ao contrário do que alega a Requerente, qualquer injustiça (ainda menos, “manifesta”)[14], na circunstância de Autoridade Tributária poder efetuar correções contra o contribuinte no prazo de 4 anos, e ao contribuinte apenas ser permitido acautelar correções a seu favor num prazo inferior (2 anos), desde logo, porquanto as correções que estarão limitadas a 2 anos, nos termos do artigo 78.º/3 do CIVA serão as correções nas liquidações a terceiros[15], realizadas pelo sujeito em faturas que emitiu, das quais resulte imposto a pagar a menos, e não nas autoliquidações de imposto a entregar por si ao Estado, e, depois, porquanto, como se viu, decorrendo da retificação das faturas, nos termos do artigo 78.º/3, da qual resulte imposto a menos, a necessidade, por regra, de correções a jusante[16], pelo menos[17], será de justiça que a AT disponha de um prazo razoável – e dois anos é-o – para assegurar que tais correções se verificam[18].

            Por outro lado, se os casos em que “o montante de imposto é incorretamente computado ou indicado na fatura” na sequência de erros materiais ou de cálculo, são passíveis de retificação nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 78.º do CIVA, não esgotam tais situações o âmbito daquela espécie de retificação, desde logo porquanto quando o legislador pretendeu que assim fosse, disse-o, como acontece no n.º 6 do mesmo artigo 78.º, onde se referiu, expressamente[19].

            Entende-se, por isso, que “a incorreta aplicação de determinado regime jurídico às operações realizadas” pode, ou não, constituir uma inexatidão da fatura, conforme esta esteja, ou não, de acordo com o que o direito devidamente interpretado, aplicado aos factos tal como se verificaram, impõe.

            Deste modo, se, por exemplo, por “incorreta aplicação de determinado regime jurídico às operações realizadas” um sujeito passivo não deduz imposto, corretamente mencionado em faturas que possui, e que é dedutível, está-se perante um erro de direito da autoliquidação, sem que haja qualquer inexatidão das faturas[20].

            Por outro lado, se “a incorreta aplicação de determinado regime jurídico às operações realizadas” leva a que as faturas não tenham sido emitidas nos termos em que, face à lei e aos factos, o deveriam ter sido, então as mesmas serão inexatas e, como tal, carentes de retificação.

            Assim, se, aqui como ali, “o montante de imposto indicado nas faturas iniciais emitidas (objeto de alteração) estava em concordância com o enquadramento, em IVA, conferido pela Requerente às suas operações”, o certo é que “o montante de imposto indicado nas faturas iniciais emitidas” não estará, afinal, conforme àquilo que a Requerente, agora, considera ser a correta interpretação do direito e dos factos, e face à qual tais faturas serão, então, inexatas, tanto agora, como à data em que foram emitidas.

Ou seja: se a interpretação do direito e dos factos ora sustentada pela Requerente é correta, tanto o será agora, como o era quando as faturas foram emitidas, pelo que, nesse caso, as faturas serão objetivamente inexatas, tanto agora como no momento em que foram emitidas, não se vislumbrando como possa ser legítimo aferir a regularidade da fatura, em função do que, em cada momento seja a apreciação do quadro factual e jurídico subjacente, efetuada pelo seu emitente.

Não se ratifica, assim, a afirmação da Requerente, segundo a qual o preço e o montante do imposto devidos, indicados nas mencionadas faturas, estavam corretos “tendo em consideração o enquadramento em IVA dado, na altura, pela GOP, às referidas operações”. Com efeito, a consideração deste entendimento subjetivo da Requerente carecerá de apoio na lei, já que nada no regime legal em causa – salvo melhor opinião – permite sustentar que a correção da faturas se deva aferir em função do que seja a percepção subjetiva – seja dos factos seja do quadro legal aplicável – do respetivo emitente.

Entende-se assim, e em suma, que a regularidade da fatura se deverá aferir objetivamente, em função do que seja o direito em concreto aplicável aos factos tal como ocorreram, pelo que, na perspetiva em que a Requerente sustenta a sua pretensão, as faturas em causa no presente processo se deverão reputar como inexatas.

            Mais se escreveu ainda, no aresto em causa, que:

“no caso concreto estamos perante um “erro no enquadramento das operações” ou “erro de direito”. Com efeito, a Requerente vinha a conferir às operações identificadas nos subpontos i) a iii) da alínea g) dos factos provados um determinado enquadramento em IVA, tendo procedido a uma alteração do mesmo.

Neste âmbito, a Requerente emitiu notas de crédito a anular as faturas iniciais e emitiu novas faturas (cfr. al. l) dos factos provados).

Assim, importa aferir se o referido erro de enquadramento ou “erro de direito” é um requisito que conduza a que uma retificação seja suscetível de qualificar a fatura enquanto “inexata”.

Neste âmbito, não se afigura que o enquadramento da operação realizada seja enquadrável no conceito de “fatura inexata” previsto no artigo 78.º, n.º 3 do Código do IVA.”.

            Ora, uma vez mais, considera-se que a leitura a fazer do regime legal aplicável será distinta do ali efetuado. Com efeito, face ao teor das normas dos n.ºs 1 e 3 do artigo 78.º do CIVA, afigura-se que sempre que uma fatura careça de retificação ao valor tributável ou ao montante do imposto nela mencionados, a mesma será, para efeitos do referido artigo 78.º/3 do CIVA, inexata, independentemente, como se viu já, das motivações subjetivas de tal inexatidão[21].

            Não obsta ao que vem de se dizer a redação do artigo 29.º/7 do CIVA, segundo o qual “Deve ainda ser emitida fatura ou documento equivalente quando o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente sejam alterados por qualquer motivo, incluindo inexatidão”, já que “o valor tributável de uma operação ou o imposto correspondente” podem, nos termos do CIVA, ser alterados por outros motivos que não a inexatidão da fatura, nos termos acima entendidos, nos casos, por exemplo, a que alude o n.º 2 do artigo 78.º daquele Código.

            Por todo o exposto, considera-se que tratando-se de uma retificação para menos do valor do imposto respeitante às operações tributáveis operadas pela Requerente, a retificação das faturas deveria ser sido efetuada no prazo de 2 anos, conforme decorre do n.º 3 do artigo 78.º do CIVA.

            Não o tendo sido, cumpre apurar quais as consequências do excesso de tal prazo.

            Tais consequências não se refletirão, desde logo, na tempestividade do pedido de revisão oficiosa do ato tributário, matéria que, como se viu já, é exclusivamente regulada pelos artigo 98.º/1 do CIVA e 78.º/1 da LGT.

            Também não decorrerá da violação da limitação temporal em apreço, julga-se, a ilegalidade/invalidade da retificação operada pela Requerente. Efetivamente, a relevância das faturas não se esgota a nível fiscal e, dentro desta área, ao âmbito do Imposto sobre o Valor Acrescentado.

            Daí que estando em causa a violação de uma norma própria deste imposto, relativa a regularizações, a consequência de tal violação deverá circunscrever-se ao âmbito da regulação em questão. Por isso, considera-se que as faturas em que haja imposto liquidado a mais, retificadas para lá do prazo estatuído no n.º 3 do artigo 78.º, serão válidas e juridicamente relevantes, excepto no que respeita às regularizações, para menos, em sede de IVA, matéria em que não serão susceptíveis de produzir quaisquer efeitos (serão, para estes efeitos, ineficazes).

            Por isso, tendo as rectificações operadas pela Requerente na sua faturação, em questão no presente processo, sido efetuadas para lá do prazo fixado no artigo 78.º/3 do CIVA, não serão as mesmas susceptíveis de produzir efeitos no que respeita às pretendidas regularizações pelo menos em sede de IVA.

Assim sendo, não padecerão as autoliquidações da Requerente objeto do presente processo de qualquer ilegalidade, na medida em que estão de acordo com a sua faturação, tal como esta releva para efeitos do tributo em causa, pelo que se deverão as mesmas reputar como conformes às normas que disciplinam a autoliquidação, atrás analisadas, não se verificando, ao contrário do que alega a Requerente, e pressuposto pelo artigo 98.º/1 do CIVA, que na autoliquidação tenha sido liquidado imposto superior ao devido[22], sendo a sua anulação proibida nos termos do n.º 3 do artigo 97.º do CIVA.

Não será caso, igualmente, de aplicação do artigo 98.º/2 do CIVA, também invocado pela Requerente, na medida em que não está em causa – manifestamente – uma situação de direito à dedução, nem de reembolso de imposto entregue em excesso. Com efeito, tendo a Requerente entregue ao Estado o imposto que faturou (que consta da sua faturação juridicamente relevante para o efeito) terá entregado, justamente, o imposto devido, e não em excesso.

Não se acolhe, tampouco, a argumentação da Requerente, segundo a qual “em bom rigor, o pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente não consubstancia uma correção de faturas inexatas mas sim, diversamente, um pedido de revisão oficiosa apresentado com vista à correção de um erro no enquadramento das operações (i.e., reitere-se, um “erro de direito”)”, que, em si, e salvo o devido respeito, encerra vários equívocos subjacentes à pretensão formulada.

Assim, e desde logo, é certo que “o pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente não consubstancia uma correção de faturas inexatas”, nem o poderia consubstanciar, uma vez que o pedido de revisão oficiosa, como se disse já, tem como objeto atos tributários, pelo que, no caso teve como objeto, as autoliquidações incorporadas nas declarações periódicas de IVA da Requerente, para os períodos em causa.

 Pela mesma razão, todavia, não se trata aquele pedido de “um pedido de revisão oficiosa apresentado com vista à correção de um erro no enquadramento das operações”, uma vez que o “erro no enquadramento das operações” (o tal, “erro de direito”) em questão não se deu nas autoliquidações objeto do pedido de revisão oficiosa, mas nas liquidações efetuadas pela Requerente ao Município do …, nas faturas que oportunamente lhe emitiu.

A “correção de faturas inexatas” é, então, no caso, um requisito da ilegalidade das autoliquidações em questão. Ou seja: estas (as autoliquidações), como se viu, serão legais se estiverem em conformidade com a faturação juridicamente relevante, e serão ilegais se não o estiverem. Tendo sido a retificação das faturas inexatas efetuada para lá do prazo consagrado no artigo 78.º/3 do CIVA, não serão atendíveis para efeitos de regularização de imposto nelas liquidado a mais, pelo que, para efeitos da legalidade das correspondentes autoliquidações de imposto a entregar ao Estado, relevarão, unicamente, nos termos das normas atrás indicadas, as faturas originais.

Não procederá, também, a alegação da Requerente, com base no “n.º 3 do artigo 78.º do Código do IVA (...) conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 98.º do mesmo Código”, segundo a qual “o regime previsto naquele inciso legal permite a correção de faturas inexatas no prazo de 2 anos, sem que, para tal, seja necessária a sua apreciação prévia por parte da Autoridade Tributária (...) mantendo-se, contudo, a possibilidade de, quando o imposto a corrigir tenha sido pago há mais de 2 anos, ser solicitada, pelo sujeito passivo, a respetiva revisão oficiosa à Autoridade Tributária[23], dado que se estará aqui, uma vez mais e ressalvado o respeito devido, perante uma confusão do âmbito das normas implicadas. Com efeito, reitera-se que o artigo 78.º/3 tem como objeto as faturas onde o sujeito passivo liquidou, a mais, imposto a terceiros, e que enfermam de inexatidão no valor tributável da operação ou no respetivo imposto, enquanto o artigo 98.º/1, para o que ora releva, se reporta à revisão de atos tributários em que é o próprio sujeito passivo o devedor de imposto, e que, no caso, correspondem às autoliquidações de IVA.

            Deste modo, e por todo o exposto, deverá improceder totalmente o pedido arbitral formulado.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)      Absolver a Requerida do pedido;

b)      Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €1.456.552,30, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €19.584,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

14 de Dezembro de 2015

 

O Árbitro Presidente

 

 

 

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

(Luís Menezes Leitão)

 

 

 

O Árbitro Vogal

 

 

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

 

 



[1]              Cfr., neste sentido, Carla Castelo Trindade, “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária - Anotado”, Almedina, pp. 96 e ss.

[2]              O que, para além do mais, convoca a aplicação do artigo 74.º/2 da LGT.

[3]              Sendo que, no presente caso, em que é obrigatória a emissão de fatura, o imposto tornou-se exigível com a emissão daquela, nos termos do artigo 29.º/1/a) do CIVA.

[4]              “Sem prejuízo das disposições específicas previstas na presente directiva, as únicas menções que devem obrigatoriamente figurar, para efeitos do IVA, nas faturas emitidas em aplicação do disposto nos artigos 220.º e 221.º são as seguintes: “(...) 9) A taxa do IVA aplicável;”

[5]              “A importância do imposto liquidado deve ser adicionada ao valor da fatura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços”.

[6]              Disponível em www.dgsi.pt.

[7]              Embora possa não ser muito clara à primeira vista, a mesma poderá ser facilmente ilustrada: dar-se-á uma alteração da operação tributável quando, por exemplo, as partes, posteriormente à realização daquela, acordarem numa redução do preço; haverá uma alteração na fatura, quando, por lapso, esta haja sido emitida com um preço diferente do que tinha sido acordado.

[8]              Cfr. artigo 78.º/3 do CIVA.

[9]              Com efeito, a autoliquidação, enquanto estiver em conformidade com o faturado – para o que ora interessa – estará regular. Daí que se deva entender que o artigo 78.º/3 do CIVA não dispõe sobre a regularização da autoliquidação, mas da liquidação do imposto nas faturas. Será a rectificação destas, se legítima, que, subsequentemente, imporá a regularização da autoliquidação.

[10]             Assim, se as faturas forem alteradas dentro do prazo a que alude o artigo 78.º/3 do CIVA, nada obstará a que o pedido de revisão oficiosa seja apresentado dentro do prazo de 4 anos a que se reporta o artigo 98.º/1 do CIVA, deste modo se demonstrando que, ao contrário do que parece entender a Requerente, a aplicablidade deste último artigo não implica a exclusão da aplicabilidade do primeiro. Daqui, de resto, é que decorre, também, o entendimento de que no pedido de revisão oficiosa se conheceu do mérito do pedido da Requerente, pressuposto da competência deste Tribunal, nos termos atrás decididos. Com efeito, se na decisção daquele pedido, se tivesse considerado que o mesmo tinha sido apresentado para lá do prazo do artigo 98.º/1 do CIVA, e 78.º/1 da LGT, estaria em causa um pressuposto procedimental, sem que houvesse conhecimento do mérito. Estando em causa o prazo do artigo 78.º/3 do CIVA, não é questionada a tempestividade do meio processual utilizado, mas antes (a eficácia d)o direito da Requerente a corrigir as faturas por si incorrectamente emitidas.

[11]             Cfr. pontos 54. a 56., do Requerimento inicial, e 21., 22., e 89. a 95. das suas Alegações.

[12]             Com efeito, dispõe o n.º 1 que “As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo”, e o n.º 3 que “Nos casos de faturas inexactas que já tenham dado lugar ao registo referido no artigo 45.º, a retificação é obrigatória (...) [ou] facultativa”.

[13]             Com efeito, se a fatura estiver omissa quanto  ao imposto devido, a rectificação consistente na respectiva menção, acarretará a obrigação de pagar o imposto mencionado.

[14]             E, consequentemente, nenhuma violação do artigo 266.º da CRP.

[15]             Com efeito, não se poderá perder de vista que, economicamente, a correção pretendida pela Requerente, será, na sua óptica, neutra. Com efeito, a Requerente entregou ao Estado o imposto que cobrou ao Município do …, daí não tendo, tanto quanto resulta do processo, qualquer prejuízo patrimonial para aquela. A regularização pretendida, acarretaria a obrigação da Requerente devolver ao Município do … os montantes de imposto indevidamente faturados, e, para aquele Município, a obrigação de corrigir as deduções efectuadas, nos termos do artigo 78.º/4 do CIVA. Ou seja: o sujeito passivo sujeito à limitação de 2 anos consagrada no artigo 78.º/3 do CIVA não será, por regra, como acontece no caso, prejudicado com a faturação inexata.

[16]             Desde logo as prescritas pelo artigo 78.º/4 do CIVA.

[17]             Já que, em determinados casos, a redução do valor de IVA poderá implicar, por exemplo, correções a nível de IRC.

[18]             Tratar-se-á, assim, de uma daquelas situações necessárias a evitar a fraude e evasão fiscais, próprias do regime do imposto em causa.

[19]             “A correcção de erros materiais ou de cálculo

[20]             Foram esses os casos em apreciação, por exemplo, nos processos arbitrais 185-2014T, 277-2014-T e 56-2015-T.

[21]             Ou seja, de a errada menção do valor tributável ou do montante do imposto na fatura ter sido involuntária ou deliberada, e, neste caso, de se ter devido a erro no enquadramento legal da operação, ou a qualquer outra motivação subjectiva do sujeito passivo emitente.

[22]             Com efeito, estando a autoliquidação em conformidade com a faturação juridicamente relevante para o efeito, o imposto nela apurado terá de se haver como correto. Onde, porventura, terá sido liquidado imposto superior ao devido, terá sido nas faturas emitidas pela Requerente ao Município do …. Todavia a rectificação destas, como se viu, à data em que ocorreu, não era já susceptível de ter relevância para efeitos de regularizações de IVA.

[23]             Afirmação essa contraditória, de resto, com outra, já atrás analisada, segundo a qual “em bom rigor, o pedido de revisão oficiosa submetido pela Requerente não consubstancia uma correção de faturas inexatas”.