Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 3/2015-T
Data da decisão: 2015-12-07  IUC  
Valor do pedido: € 55.020,11
Tema: IUC – Incidência subjetiva; Presunções legais
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DECISÃO ARBITRAL

 

 

A – RELATÓRIO

 

1.    A… – …, LDA., pessoa colectiva n.º …, com sede na Avenida …, …, … Lisboa, veio requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos art. 2º, n.º 1, a) e 10º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no DL 10/2011, de 20 Janeiro, doravante designado “RJAT” e dos artigos 1º e 2º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, tendo em vista a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de Imposto Único de Circulação, referentes aos anos de 2009 A 2012, subsequente à apresentação de reclamações graciosas que obtiveram, respectivamente, deferimento parcial e indeferimento e o reconhecimento do direito a indemnização pela prestação de garantia, sendo requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “AT”).

 

2.    Admitido o pedido de constituição do tribunal arbitral singular, e não tendo a requerente optado pela designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro.

 

       As partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, tendo, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral ficado constituído em 02-02-2015.

 

3.    Notificada a AT veio, dentro do prazo de apresentação de resposta, invocar a ilegibilidade de documentos junto com o pedido de pronúncia arbitral, o que a impossibilitava de apresentar resposta.

 

4.    Na sequência de despacho proferido, a requerente, reconhecendo a ilegibilidade dos documentos apresentados, apresentou, em substituição dos documentos anteriormente identificados como doc. 3, novos documentos e, invocando ter incorrido em lapso, apresentou novos documentos em substituição dos juntos ao pedido como doc. 4.

 

5.    Veio, então, a requerida opor-se à junção destes últimos documentos, tendentes a sanar o invocado lapso, pretensão que foi indeferida, tendo sido admitida a junção requerida

 

6.    Foi dispensada, com a anuência das partes, a realização da reunião prevista no art. 18º do RJAT, bem como a apresentação de alegações.

 

* * *

 

7.    Pretende a requerente que seja declarada a ilegalidade e inerente anulação dos actos de liquidação do Imposto Único de Circulação referentes aos anos de 2009 a 2012, alegando em síntese:

 

       a)  É uma sociedade comercial que exerce a atividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos.

       b)  No âmbito da sua atividade, celebra contratos de aluguer de veículos e, no termo do contrato, procede diversas vezes à sua venda aos clientes.

       c)  Os veículos indicados no “Quadro I” do pedido foram objecto de venda.

       d) Sempre que esteve ao seu alcance, entregou aos novos proprietários os formulários de registo automóvel devidamente assinados, por forma a que estes procedessem ao averbamento do registo em seu nome junto da competente Conservatória do Registo Automóvel.

       e)  As vendas ocorreram em anos anteriores aos de 2009 e de 2012 e em data anterior ao facto gerador do imposto nos anos em causa.

       f)  Os veículos indicados no “Quadro II” do pedido foram objecto de sinistros (acidentes) na vigência dos contratos de aluguer dos veículos, tendo sido considerados pelas seguradoras como “Perda Total” e a estas alienados os respectivos salvados.

       g)  Recepcionadas as respectivas comunicações pelas seguradoras, a requerente procedeu à entrega de toda a documentação legal ao necessário cancelamento, por estas, das matrículas dos veículos junto das autoridades rodoviárias competentes.

       h)  Tais situações ocorreram em data anterior ao facto gerador do imposto nos anos de 2009 a 2012.

       i)   Foi notificada pela administração tributária para exercer o direito de audição prévia à emissão das liquidações de IUC em causa, que exerceu.

       j)   Na sequência das notificações de tais liquidações, deduziu reclamações graciosas.

       k)  Relativamente a uma das reclamações obteve deferimento parcial, tendo a outra sido indeferida.

       l)   As liquidações de IUC em apreço foram emitidas com fundamento no facto de a requerente se encontrar registada no Registo Automóvel como proprietária dos veículos em apreço, o que, para os serviços da administração tributária, é quanto basta para que a requerente deva ser considerada proprietária dos veículos e, como tal, o sujeito passivo do IUC.

       m) Incidindo o IUC sobre os proprietários do veículo à data do facto gerador do imposto e tratando-se a regra prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC de uma presunção legal ilidível mediante prova em sentido contrário, a demonstração pela requerente de que alienou as viaturas em causa em data anterior à verificação do facto gerador do imposto nos anos de 2013 e 2014 é quanto basta para concluir não ser a ora requerente o sujeito passivo do imposto.

       n)  O que importa aferir é se, à luz daquela norma, são sujeitos passivos do IUC os proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontram registados ou, ao invés, se aquela norma estabelece apenas uma presunção legal ilidível no sentido de que são sujeitos passivos os proprietários dos veículos, considerando-se como tal aqueles em nome dos quais os veículos se encontram registados.

       o)  O art. 3º do CIUC estabelece uma presunção legal no sentido de que aqueles que constam no registo automóvel como proprietários serão, em princípio e presumivelmente, os atuais proprietários dos veículos, não se fazendo depender a incidência subjetiva do IUC da circunstância de a propriedade estar registada a favor de um determinado sujeito passivo.

       p)  Quer o elemento literal da norma prevista no artigo 3.º do Código do IUC, quer ponderação do seu elemento teleológico, apontam no sentido de uma presunção de que o proprietário do veículo é aquele em nome de quem o veículo se encontra registado, e não de que o registo automóvel é condição e evidência absoluta da propriedade do veículo para efeitos de IUC

       q)  Por outro lado, a ratio legis aponta no sentido de se pretender tributar os reais proprietários e utilizadores dos veículos, facto a que não é despiciendo, pois, o mencionado princípio da equivalência.

       r)  Tal presunção é, necessariamente, uma presunção ilidível, tendo designadamente presente o disposto no artigo 73.º da LGT.

       s)  Interpretação que melhor se coaduna com os princípios que norteiam a actividade da administração tributária, designadamente, o princípio do inquisitório e o princípio da descoberta da verdade material, previstos nos art. 55º e 58º da LGT.

       t)  Se o contribuinte demonstra que não é o proprietário do veículo, independentemente do registo, e sendo evidente que o IUC deve incidir e pretende tributar aqueles que são os proprietários do veículo, impõe-se aos serviços da administração tributária que relevem a situação real que lhes chega ao seu conhecimento, sob pena de desvirtuarem as finalidades do imposto.

       u)  O registo da propriedade não é facto constitutivo do direito e limita-se a presumir a sua existência, podendo ser afastado mediante prova em contrário.

       v)  Se os adquirentes, novos proprietários dos veículos, não providenciarem o registo do seu direito de propriedade, presume-se que este direito continua a ser do vendedor, podendo, todavia, esta presunção ser ilidida mediante prova em contrário, ou seja, prova, por qualquer meio, da respetiva venda.

       x)  A Requerente juntou aos autos faturas de venda dos veículos, assim como faturas de venda dos “salvados” e/ou declarações como “Perda Total” e comunicações das respetivas seguradoras, correspondentes aos veículos indicados nas liquidações sub judice, datadas de data anterior aos factos geradores de imposto nos anos de 2009 a 2012.

 

8.    Por seu turno a requerida veio em resposta alegar, em síntese:

 

       a)  A cumulação efectuada pela requerente é ilegal, por não se encontrar verificada a existência das mesmas circunstâncias de facto.

       b)  O pedido formulado é intempestivo, por estar ultrapassado o prazo de impugnação directa dos actos de liquidação e não ter a requerente tecido qualquer juízo de censura relativamente aos fundamentos que estiveram na génese do indeferimento das reclamações graciosas e, consequentemente, demonstrado qualquer fundamento (causa de pedir) susceptível de escorar a sua hipotética ilegalidade.

       c)  O entendimento propugnado pela requerente decorre não só de uma enviesada leitura da letra da lei, como da adopção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

       d) O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3º, nº 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no nº 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.

       e)  Realça que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados.”.

       f)  O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do nº1 do artigo 3º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.

       g)  O legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas) as pessoas em nome das quais [os veículos] se encontrem registados. porquanto é esta interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.

       h)  Trata-se de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.

       i)   Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente, que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.

       j)   À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel, o registo dessa qualidade, é manifestamente errada, na medida em que é própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.

       k)  É falsa a alegação de que as vendas dos veículos se encontram suportadas em facturas.

       l)   Quer por os documentos juntos como comprovativos das vendas consubstanciarem meras notas de débito, outros notas de crédito (as quais não possuem os requisitos legalmente exigidos para serem considerados facturas, por não conterem sequer a firma ou denominação do pretenso vendedor, o número de pessoa colectiva, a sede social, a referência à conservatória do registo comercial e número de matrícula); sendo que uma das notas de crédito não indica matrícula e uma não se reporta a uma venda mas à anulação de um documento.

       m) Levantam-se, por isso, sérias dúvidas sobre a sua veracidade, tais são as discrepâncias que apresentam, não sendo aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como a compra e venda.

       n)  É falsa a alegação de que as entregas às seguradoras dos veículos se encontram suportadas em facturas, sendo parte dos documentos meras notas de débito, recibos de caução, havendo discrepâncias na emissão de outros.

       o)  À semelhança das acima referidas relativamente às vendas, estas facturas também não possuem os requisitos legalmente exigidos para serem consideradas como tais.

       p)  Por outro lado, nem a perda total do veículo não acarreta necessariamente a perda da propriedade automóvel, nem o pagamento de uma indemnização pela perda se traduz, sem mais, numa venda do objecto ou na transferência da propriedade do objecto para o indemnizado.

       q)  A interpretação veiculada pela requerente mostra-se contrária à Constituição, na medida em que viola o princípio da confiança e segurança jurídica, o princípio da eficiência do sistema tributário e o princípio da proporcionalidade.

       r)  Além de ser ofensiva do princípio da eficiência do sistema tributário, na medida em que se traduz num entorpecimento e encarecimento das competências atribuídas à requerida, com óbvio prejuízo para os interesses do Estado Português.

                                                          

* * *

 

7.    O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

 

       As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

       O processo não enferma de nulidades.

 

****

 

B. DECISÃO

 

1. MATÉRIA DE FACTO

 

1.1. FACTOS PROVADOS

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)    A requerente é uma sociedade que exerce a atividade de aluguer de veículos automóveis e a prestação de serviços conexos.

b)    No âmbito da sua atividade, celebra contratos de aluguer de veículos e, no termo do contrato, procede diversas vezes à sua venda aos clientes.

c)    Foi notificada pela AT para exercer o direito de audição prévia à emissão das liquidações de IUC em causa, direito que exerceu.

d)    Notificada das notas de liquidação de IUC objecto dos autos, deduziu reclamações graciosas relativamente às mesmas.

e)    Sobre tais decisões recaíram despachos de deferimento parcial e indeferimento, notificados à requerente em 30-09-2014 e em 15-12-2014, respectivamente.

f)    Tendo sido instaurados processos de execução pelo não pagamento do imposto liquidado, a requerente prestou garantia bancária tendo em vista a sua suspensão.

g)    A requerente apresentou, em 30-12-2014, o pedido de pronúncia arbitral que deu origem aos presentes autos.

 

1.2  Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo pela requerente, bem como pelo processo administrativo junto pela requerida.

 

1.3  FACTOS NÃO PROVADOS

      

       Não se deu por provado que a requerente tenha vendido os veículos automóveis a que respeitam as liquidações impugnadas, ou que os tenha transmitido a seguradoras, na sequência da sua perda total.

 

2. QUESTÕES PRÉVIAS A APRECIAR

 

2.1. CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

 

A requerida suscitou a ilegalidade da cumulação de pedidos feita pela requerente, por entender não se encontrar verificada a existência das mesmas circunstâncias de facto, na medida em que “estamos perante veículos diferentes, com datas de transmissão diferentes, a proprietários totalmente diferentes, por valores completamente diferenciados e, sobretudo, com fundamentos de transmissão diferentes.

 

Dispõe o n.º 1 do art. 3º do RJAT que “a cumulação de pedidos ainda que relativos a diferentes actos e a coligação de autores são admissíveis quando a procedência dos pedidos dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito”.

 

Segundo o entendimento da requerida, a cumulação de pedidos tem um alcance limitado pressupondo identidade de circunstâncias de facto.

 

Não é esse, todavia, o espírito da norma em causa, o que resulta, desde logo, da expressão “essencialmente” de que aquele preceito se socorre, do que decorre que o que se exige é que haja semelhança dos pontos fácticos da questão jurídica-fiscal a apreciar.

 

Como diz Jorge Lopes de Sousa – RJAT, anot. 5.4 ao art. em questão: “ não é necessário, para ser viável a cumulação de pedidos … que haja uma identidade absoluta das situações fácticas, bastando que seja essencialmente idêntica a questão jurídica-fiscal a apreciar e que a situação fáctica seja semelhante nos pontos que relevem para a decisão”. Acrescentando que ”os factos serão essencialmente os mesmos quando forem comuns às pretensões do autor ou autores, de forma a que se possa concluir que, se se provarem os alegados relativamente a um acto, existirá o suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência das pretensões de todos os pedidos”.

 

Se esse não fosse o entendimento, estar-se-ia a desvirtuar o espírito da coligação de pedidos, legalmente previsto no art. 3º do RJAT e 104º do CPPT, que, como diz o STA, no Ac. STA de 06-03-2013 – Proc. 0327/12, a propósito da coligação de pedidos na impugnação judicial são: “exigências de racionalidade de meios, da celeridade da decisão e até para evitar decisões contraditórias, que tudo aponta também no sentido das liquidações em causa serem analisadas na mesma acção, devendo o art. 104º do CPPT ser interpretado à luz do princípio pro actione, corolário do direito à tutela judicial efectiva (sublinhado nosso).

 

No caso em apreço é indiscutível que é a mesma a questão jurídica-fiscal a apreciar, decorrente dos mesmos factos, ou seja, apurar o alcance da aplicação do n.º 1 do art. 3º do CIUC, no caso de ter ocorrido a transmissão da propriedade dos veículos automóveis, sem a correspondente inscrição no registo automóvel.

 

É, por isso, legal, a cumulação de pedidos efectuada pela requerente, improcedendo a excepção invocada pela requerida.

 

2.2. TEMPESTIVIDADE DO PEDIDO

 

Entende também a requerida que o pedido é intempestivo, por entender que este teria como prazo limite 90 dias após o término do prazo de pagamento voluntário do imposto, o qual já estaria expirado aquando da apresentação do pedido de pronúncia arbitral, que ocorreu em 30-12-2014.

 

Entende a requerida que tendo a requerente deduzido reclamações graciosas, o respectivo pedido deveria ter sido formulado no sentido “tendente à anulação do que nessa sede (i.e, reclamação graciosa), foi decidido”.

 

Vejamos se assim é.

 

É um facto que a requerente formulou o seu pedido unicamente no sentido de ser declarada a ilegalidade das liquidações efectuadas e a sua consequente anulação.

 

Sendo certo que iniciou o seu requerimento declarando reagir às decisões de deferimento parcial e de indeferimento proferidas naquelas reclamações, além de esgrimir os fundamentos invocados naquelas decisões ao longo do articulado (designadamente, nos arts. 21º a 25º).

 

Ora, deduzido pedido arbitral do indeferimento de uma reclamação graciosa, a impugnação arbitral tem por objecto quer a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, quer o próprio acto tributário - a liquidação - cuja anulação se pretende.

 

Diga-se, antes de mais, que, no caso em apreço, não estamos perante um caso de reclamação necessária, mas facultativa.

 

As decisões de que a requerida se socorre em defesa da sua tese, referem-se a casos de reclamação necessária, relativos a autoliquidação, em que há uma impugnação imediata da decisão naquela proferida, na medida em que só com a reclamação é levado ao conhecimento da Autoridade Tributário o acto que se pretende anular.

 

Como já se disse, não é o caso ora em apreço. A liquidação foi efectuada pela AT, notificada à requerente que dela reagiu, em primeira linha, por via graciosa e, agora, através do pedido de pronúncia arbitral.

 

Reage a AT ao facto de a requerente não esgrimir os fundamentos que foram invocados na reclamação graciosa, o que, salvo o devido respeito, não se compreende.

 

É que no caso de impugnação judicial subsequente a reclamação graciosa, o acto tributário de liquidação integra também o objecto da mesma impugnação, desde que se impugne o mesmo acto de liquidação que foi objecto da decisão de reclamação (cfr. Ac. STA de 04-04-2011 – Proc. 0989/10 e de 12-01-2005 - Proc. n.º 949/04).

 

Sendo jurisprudência unânime do STA que na impugnação judicial subsequente a reclamação graciosa, podem ser invocadas e apreciadas todas as ilegalidades que afectem o acto tributário, quer tenham sido, ou não, invocadas nessa sede (além dos arestos citados, veja-se AC. STA Unif. Jurisprudência de 03-06-2015 – Proc. 0793/14).

 

Quer isso dizer que, contrariamente ao que defende a requerida, a requerente não está, no presente processo arbitral, limitada aos fundamentos invocados na reclamação graciosa, podendo até desprezá-los e invocar outros que não tenham sequer sido suscitados.

 

Como diz, Pedro Gonçalves - “Relações entre as impugnações administrativas necessárias e o recurso contencioso de anulação de actos administrativos”, Almedina, 1996, pág. 84, “…a impugnação administrativa prévia ao recurso contencioso não implica qualquer limitação à invocação de fundamentos (causa de pedir) neste recurso, pelo que o recorrente pode alegar vícios não alegados em sede administrativa e pode deixar de alegar vícios que invocou como causa de pedir naquela sede.”

 

Não se acolhe, por isso, a argumentação da ATA no sentido de não ser de considerar, para efeitos de contagem de prazo de dedução de pedido arbitral, as reclamações graciosas, em virtude de a “requerente não ter tecido qualquer juízo de censura relativamente aos fundamentos que estiveram na génese do indeferimento das reclamações graciosas”.

 

“Tendo o contribuinte optado por deduzir reclamação graciosa contra o acto de liquidação, o prazo para o impugnar judicialmente deixa de se contar da data limite para pagamento voluntário do tributo, passando a relevar a data do indeferimento (expresso ou silente) dessa reclamação” (Ac. STA de 02-10-2013 – Proc. 043/13).

 

Face à data das notificações das decisões proferidas no âmbito das reclamações graciosas - 30-09-2014 e 15-12-2014 -, é manifesto que o pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

 

Improcede, pois, a excepção de caducidade invocada pela requerida.

 

3.    O DIREITO

 

A questão de fundo a apreciar no presente pedido de pronúncia arbitral reside na interpretação a dar ao n.º 1 do art. 3º do CIUC no sentido de apurar se a norma de incidência subjectiva, nele contida, estabelece uma presunção legal juris tantum – e, como tal, susceptível de ilisão (como sustenta a requerente) ou, pelo contrário, uma definição expressa e intencional da incidência pessoal, no sentido de que é necessariamente sujeito passivo do imposto aquele em nome de quem o veículo automóvel está registado como proprietário.

 

Dispõe o n.º 1 do art. 3º do CIUC: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares e colectivas, de direito público ou privado, em nome dos quais os mesmos se encontrem registados”.

 

Com base na redacção deste preceito, sustenta a requerida - AT - que a base de incidência pessoal, que este define, não comporta hoje qualquer presunção legal, uma vez que aquele transmite de forma expressa e intencional o pensamento do legislador tributário, no sentido de se considerar, de modo irrefutável, como sujeitos passivos do IUC as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontrem registados.

 

Aduz em abono da sua tese, razões hermenêuticas de interpretação da lei, com apelo não só à sua literalidade, como aos elementos sistemático e teleológico.

 

Invocação plena de sentido, na medida em que, de acordo com o disposto no art. 11º da LGT, “na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”. É que, como referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação a tal artigo, “… sem afastar a letra da lei, que tem de ser a principal referência e ponto de partida do intérprete, se exclui a sua aplicação automática, supondo que nas leis há uma racionalidade operante que o intérprete se deve esforçar por reconstruir”.

 

É, pois, dentro deste quadro de interpretação da lei fiscal, no caso o art. 3º, n.º 1 do CIUC, que teremos de encontrar a resposta ao antagonismo de posições entre a requerente e a AT.

 

Para a AT é decisivo para a determinação do sujeito passivo do IUC o registo de propriedade do veículo automóvel, de modo a que será considerado como tal, de modo irreversível, aquele em nome de quem este está registado.

 

O registo de propriedade de veículos é, face ao disposto no art. 5º, n.º 1, a) e n.º 2 do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, obrigatório, pelo que, qualquer direito de propriedade que incida sobre a viatura está sujeito a registo, com o que se pretende a segurança do comércio jurídico, bem como a publicidade da situação jurídica dos mesmos.

 

Tal registo goza, nos termos do disposto no art. 7º do Código do Registo Predial (aplicável ao registo automóvel por força do art. 29º do referido DL 54/75), da “… presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

Temos, por isso, que a inscrição de registo de propriedade do veículo é, também ela, uma presunção de que o direito de propriedade sobre o mesmo existe nos termos constantes do registo.

 

Quer dizer, o registo de propriedade automóvel não constitui qualquer condição de validade dos contratos a ele sujeitos, à semelhança do que ocorre com o registo predial (cujo regime, como já apontamos, é extensivo ao registo automóvel); o registo tem uma função meramente declarativa.

 

Acontece que o art. 5º, n.º 1 do Código do Registo Predial, impõe que “os factos sujeitos a registos só produzem efeito contra terceiros depois da data do respectivo registo”. Do que parece resultar que tal bastaria para que a AT invocasse a ausência de registo para fazer funcionar de imediato o art. 3º, n.º 1 do CIUC, exigindo o pagamento do imposto àquele em nome de quem o veículo está registado, por ser o sujeito passivo do imposto.

 

Sucede que o n.º 4 do art. 5º do Código do Registo Predial restringe tal entendimento, ao determinar que “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”. Donde resulta que, por essa via, nunca a AT estaria habilitada a invocar a falta de registo, na medida em que não preenche o conceito de terceiro.

 

Posto isto em termos gerais, há que apurar se, pese embora o que vem de referir-se, o n.º 1 do art. 3º do CIUC contém, ou não, uma presunção legal.

 

Tudo está, em suma, em determinar se a expressão “considerando-se”, ali utilizada, tem a natureza de presunção legal.

 

Parece mais ou menos evidente que, quer do ponto de vista sistemático, quer teleológico, a expressão “considerando-se”, adoptada no n.º 1 do art. 3º do CIUC contempla uma verdadeira presunção, a isso não se opondo a aparente literalidade da expressão, nem o ordenamento tributário.

 

A este propósito, referem Diogo Leite Campos, Benjamim Rodrigues, J. Lopes de Sousa – LGT 4ª ed., em anotação ao art. 73º, pag. 651: “as presunções em matéria de incidência tributária podem ser explícitas, reveladas pela utilização da expressão “presume-se” ou semelhante, como sucede, por exemplo, nos n.º 1 a 5 do art. 6º, na alínea a) do n.º 3 do art. 10º, no art. 19º e 40º, n.º 1, do CIRS. No entanto, as presunções também podem estar implícitas em normas de incidência, designadamente de incidência objectiva, quando se consideram como constituindo matéria tributável determinados valores de bens móveis ou imóveis, em situações em que não é inviável apurar o valor real …”, enumerando-se depois um conjunto de exemplos.

 

Entendemos que é precisamente esse o caso contemplado pelo art. 3º, n.º 1 do CIUC: uma presunção implícita, no caso, uma presunção de incidência subjectiva. Presunção, aliás, que sempre existiu no domínio do imposto de circulação automóvel, pese embora anteriormente definido de forma explícita.

 

Ora, o n.º 2 do art. 350º do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos expressamente previstos na lei.

 

E, no que respeita à ilisão das presunções, temos por boa a doutrina a que o STJ recorreu na fundamentação do Assento n.º 1/91 de 03-04-1991 (DR n.º 114, de 18 de Maio) - para classificar como juris tantum uma presunção estabelecida num diploma laboral - defendida por Vaz Serra [Provas (direito probatório material), BMJ 110-112, pag. 35], bem como por Mário de Brito (Código Civil Anotado, pag. 466) e Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, pag. 429): “… as presunções juris tantum constituem a regra, sendo as presunções jure er de jure a excepção. Na dúvida, a presunção legal é juris tantum, por não se dever considerar, salvo referência da lei, que se pretendeu impedir a produção de provas em contrário, impondo uma verdade formal em detrimento do real provado”.

 

Por seu turno, no âmbito do direito tributário, o art. 73º da LGT dispõe que “as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. O que significa que todas as presunções em matéria de incidência tributária, como a que o n.º 1 do art. 3º do CIUC consagra, são juris tantum e, como tal, ilidíveis.

 

Aliás, no que ao IUC respeita, pareceria ofensivo à unidade do sistema jurídico-legal – e até, com as devidas adaptações, em oposição aos n.º 2 e 3 do art. 11º da LGT - que um indivíduo viesse a considerar-se como não proprietário de um bem para efeitos civis e tivesse de o ser necessariamente para efeitos tributários.

 

Por outro lado, em cumprimento dos princípios - com consagração no nosso ordenamento comunitário - do poluidor-pagador e da equivalência, o CIUC importa preocupações de ordem ambiental e energética, pretendendo que os custos decorrentes dos danos ambientais provocados pela utilização dos veículos automóveis sejam suportados pelos reais proprietários (e não pelos presumidos proprietários).

 

Ao que acresce o facto de a AT dever nortear a sua actividade pela observância dos princípios da legalidade, do inquisitório e descoberta da verdade material, insíto ao ditame constitucional da capacidade contributiva.

 

Posto isto, vejamos, então, se, no caso em apreço, a requerente logrou fazer prova de que não era a proprietária dos veículos a que a respeitam as liquidações objecto do presente pedido arbitral, nas datas limite dos respectivos pagamentos.

 

A requerida impugnou expressamente os documentos juntos pela requerente tendentes a fazer prova da transmissão da propriedade dos veículos a que respeitam as liquidações impugnadas, na medida em que não se limitou a colocar em crise que determinado tipo de documentos seja idóneo a provar a venda dos veículos, mas, mais do que isso, invocou a sua falsidade.

 

Com efeito, mais do que definir, como princípio balizador, a validade de notas de débito e crédito, recibos de caução e até facturas, para os efeitos pretendidos (a efectiva transmissão de propriedade dos veículos), pôs em causa a sua genuidade.

 

Quer dizer, impugnou directamente o conteúdo dos documentos apresentados, apontando várias incongruências na emissão dos mesmos (denominação, sede, descritivos, identificação dos vendedores, etc.), concluindo pela invocação da sua falsidade.

 

É sabido que o art. 342º, n.º 1 do Código Civil, estabelece como regra geral probatória que “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.

 

Ora, como decorre do que atrás se expôs, partimos aqui de uma presunção legal (a que é estabelecida o art. 3º, n.º 1 do CIUC) que, como se concluiu, é ilidível. A ilisão da presunção legal obedece ao disposto no art. 347º do mesmo CC, quando impõe que “a prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto.

 

Por sua vez, em matéria de contraprova, resulta do art. 346º do mesmo código que se a parte contrária conseguir tornar duvidosos os factos relativamente aos quais for apresentada prova, “a questão é decidida contra a parte onerada com a prova”.

 

Analisadas os documentos juntos ao pedido de pronúncia, concatenadas com as incongruências invocadas pela requerida, subsistem sérias dúvidas quanto à efectiva transmissão dos veículos a que dizem respeito as liquidações impugnadas.

 

É que não se vislumbra como meros documentos contabilísticos como notas de débito, crédito ou recibos de caução possam ser considerados adequados, ainda que do ponto de vista estritamente contabilístico, para titular vendas ou transacções.

 

Acresce que, como bem nota a requerida, nem sob o ponto de vista contabilístico pode ser dada credibilidade aos documentos probatórios apresentados pela requerida, como facturas. Documentos que, com excepção de dois, não contêm sequer os elementos mínimos exigidos pela lei fiscal, designadamente pelo art. 36º, n.º 5º do CIVA.

 

Trata-se de meros impressos, desconhecendo-se quem é o seu emitente, por neles não estar inserida, entre outros, a designação social do vendedor, n.º de contribuinte, sede, etc.

 

Pelo é manifestamente insuficiente e inconsequente a prova que a requerente pretende carrear para os autos, no sentido de demonstrar não ser proprietária dos veículos automóveis, com o que afastaria a presunção estabelecida no art. 3º do CIUC.

 

Assim, pese embora propendamos, em tese, a admitir que as facturas de venda possam constituir meio idóneo de prova (como já temos considerado noutras decisões arbitrais), face às fortes dúvidas que as incongruências contidas nas facturas em causa nos suscitam, temos de considerar como não provada a transmissão de veículos alegada pela requerente. Conclusão que assenta no princípio da liberdade de apreciação da prova em que o tribunal baseia a sua convicção, formada a partir do exame e avaliação dos meios de prova constantes do processo (art. 607º, n.º 5 do CPC).

 

Desse modo, não tendo a requerente logrado afastar a presunção legal de incidência subjectiva de IUC que sobre si impende, face ao disposto art. 3º, n.º 1 do CIUC, necessariamente falece a sua pretensão, na medida em que nenhum juízo de censura pode ser apontado às liquidações impugnadas.

 

Decorre do exposto que a AT actuou no escrupuloso cumprimento da lei, liquidando imposto àquele que presumidamente seria o sujeito passivo do mesmo, nenhuma ilegalidade podendo ser assacada às liquidações objecto dos autos.

 

***

 

 

4. DECISÃO

 

Face ao exposto, decide-se:

a)      julgar totalmente improcedente o pedido de anulação dos actos tributários objecto do pedido arbitral correspondentes às liquidações de IUC referentes aos anos de 2009 a 2012, bem como o pedido de indemnização pela prestação de garantia;

                                             b) condenar a requerente no pagamento das custas do processo.

 

 

VALOR DO PROCESSO: De acordo com o disposto nos art. 306º, n.º 2 do Código de Processo Civil, art. 97º-A, n.º 1, a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e art. 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de 55.020,11 € (cinquenta e cinco mil vinte euros e onze cêntimos).

 

 

CUSTAS: Nos termos do disposto no art. 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 2.142,00€ (dois mil cento e quarenta e dois euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 07-12-2015

 

 

 

 

O árbitro

                                                                                                  

                                                                                                  

 

 

 

António Alberto Franco