Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 320/2014-T
Data da decisão: 2014-11-26  IRS  
Valor do pedido: € 445.787,25
Tema: IRS- Cláusula geral Anti-abuso
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Jorge Lopes de Sousa (árbitro presidente), Ana Maria Rodrigues e Ricardo Rodrigues Pereira, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 4 de abril de 2014, A, NIF ..., e B, NIF ..., ambos com domicílio fiscal na ... (doravante, Requerentes), apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade parcial da liquidação de IRS n.º 2013.... relativa ao ano de 2009, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2013...., por vício de violação de lei, sendo Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT). Os Requerentes juntaram 9 (nove) documentos e arrolaram 4 (quatro) testemunhas.  

No essencial e em breve síntese, os Requerentes alegaram o seguinte:

Os Requerentes foram alvo de uma ação inspetiva, levada a efeito pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a qual teve por objetivo, segundo o plasmado no respetivo Relatório de Inspeção Tributária, «aferir o cumprimento das obrigações tributárias em sede de IRS, em geral, dos referidos sujeitos passivos, relativamente ao exercício de 2009, e em especial, o controlo das operações de alienação de partes sociais e a aplicação da norma geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária, relativamente à venda de quota (ações) por parte do sujeito passivo A – A e à aquisição por parte da sociedade C, NIPC ...».

Na sequência daquela ação inspetiva foram propostas correções aos valores declarados pelos Requerentes na declaração de rendimentos de IRS respeitante ao ano de 2009, no montante global de € 4.979.561,59, a que corresponde um montante de imposto no valor de € 497.956,16, ao qual acrescem € 66.848,90 de juros compensatórios contados relativamente ao período decorrido entre 29/05/2010 e 04/10/2013, à taxa de 4%.

O montante global das correções efetuadas tem duas proveniências distintas, a saber:

a)                 O montante de € 3.930.250,00, a que corresponde o imposto de € 393.025,00, respeita ao acréscimo de rendimentos da categoria G – mais-valias, apurado por aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º da LGT; e

b)                 O montante de € 1.049.311,59, a que corresponde o imposto de € 104.931,16, respeita ao acréscimo de rendimentos da categoria G – mais-valias, resultante de correções de natureza aritmética aos valores já declarados no anexo “G” relativos à alienação de partes sociais, sem recurso à cláusula geral anti-abuso.

Concretizada a respetiva liquidação adicional de IRS, foram os Requerentes notificados para efetuarem o pagamento do montante total de € 564.805,06.

Quer do Relatório de Inspeção Tributária quer das notificações remetidas aos Requerentes não consta a discriminação do montante de € 66.848,90 de juros compensatórios que corresponde a cada uma das citadas parcelas de imposto resultante das correções efetuadas. No entanto, por divisão proporcional, os Requerentes estimam que ao montante de € 393.025,00 de imposto corresponde o valor de € 52.762,25 de juros compensatórios.

Os Requerentes apenas impugnam as liquidações de IRS e de juros compensatórios resultantes da aplicação da cláusula geral anti-abuso, requerendo que seja declarada a sua ilegalidade, ou seja, impugnam o montante de € 393.025,00, no que se refere ao imposto liquidado, e o montante de € 52.762,25, no referente aos juros compensatórios liquidados.

Os Requerentes invocam que não estão preenchidos os pressupostos de facto e de direito para a aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38.º da LGT; sendo ainda que a AT incorre em vício de fundamentação na apreciação da existência ou não desses pressupostos.

Mais alegam os Requerentes que a interpretação que a AT faz da norma constante do artigo 38.º da LGT é inconstitucional, por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático e da liberdade de iniciativa privada e de organização empresarial.

Os Requerentes rematam o seu pedido de constituição de tribunal arbitral, formulando as seguintes conclusões:

«A) A transformação da sociedade “D, Lda.” em sociedade anónima foi determinada por critérios de natureza gestionária e de natureza económica e financeira e não para a obtenção de vantagens fiscais para os seus sócios;

B) Não foram utilizados meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos ou à obtenção de vantagens fiscais indevidas;

C) Não estão preenchidos os pressupostos que possibilitem a aplicação da norma geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT;

D) A AT incorre em vício de fundamentação na apreciação da existência ou não desses pressupostos;

E) A aplicação dessa norma configura, assim, uma ilegalidade;

F) Mesmo que a transformação da sociedade D, Lda. fosse motivada por razões exclusivamente fiscais – o que não é o caso e só por mero exercício de raciocínio se equaciona – a ativação da cláusula geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LTG continuaria a enfermar de ilegalidade, face às opções legislativas vigentes ao tempo a que se reportam os factos;

G) Em consequência, estão também feridas de ilegalidade as liquidações efetuadas com fundamento na aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT;

H) Se prevalecesse a interpretação da norma do art. 38.º-2 da LGT pretendida pela AT, sempre a mesma enfermaria de inconstitucionalidade, por violação, designadamente, dos princípios constitucionais, que valem quer para os cidadãos, quer para as pessoas coletivas (cfr. art. 12.º-1-2 da CRP), do Estado de Direito Democrático (art. 2.º da CRP) e da liberdade de iniciativa privada e de organização empresarial (arts. 61.º-1 e 80.º/c da CRP).»

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 8 de abril de 2014.

            3. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Conselheiro Jorge Lino Alves de Sousa (árbitro presidente), a Prof.ª Doutora Ana Maria Rodrigues e o Dr. Ricardo Rodrigues Pereira (árbitros vogais), que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 26 de maio de 2014, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 16 de junho de 2014.

6. No dia 2 de setembro de 2014, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugna, especificadamente, os argumentos aduzidos pelos Requerentes e conclui pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido. A Requerida não juntou qualquer documento, tendo arrolado uma testemunha. Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua contestação:

Não existiu nenhum motivo de natureza económica ou financeira que possa justificar a alteração da natureza jurídica da “D, Lda.” de sociedade por quotas em sociedade anónima.

A transformação da sociedade “D, Lda.” em “D, S. A.” apenas permitiu ao Requerente A efetuar a alienação da sua participação pelo valor de € 4.030.000,00, com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida por força do disposto no artigo 10.º, n.º 2, alínea a), do CIRS, na redação vigente à data da prática dos factos; com esta operação, o Requerente A obteve, pois, uma poupança fiscal, consubstanciada na não tributação da mais-valia resultante da alienação das partes sociais.

Se o Requerente A tivesse optado pela forma que seria habitual e normal de transmissão da sua quota pelo valor em causa, teria obtido uma mais-valia de € 3.930.250,00, sujeita a IRS à taxa de 10%, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea b) e artigo 72.º, n.º 4, ambos do CIRS; resultando, assim, imposto a pagar no valor de € 393.025,00.

Assim, os valores declarados pelos Requerentes no Anxeo G1 (relativo a mais-valias não tributadas) foram devidamente anulados, tendo-se procedido ao acréscimo da operação em causa no Anexo G (relativo a mais-valias e outros incrementos patrimoniais) da declaração de rendimentos Modelo 3 – IRS do ano de 2009.

Desta forma, os requisitos previstos no artigo 38.º, n.º 2, da LGT encontram-se integralmente preenchidos no caso em apreço.

Ademais, a decisão de aplicação da cláusula geral anti-abuso cumpre, integralmente, o disposto no artigo 63.º do CPPT, apontando-se matéria e concretos pontos de facto no sentido de demonstrar a existência de atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

Por outro lado, os direitos de liberdade de empresa e de iniciativa económica não são direitos absolutos e não podem, em momento algum, ser exercidos de forma abusiva, a fim de subverter o espírito das normas de tributação e de concessão dos benefícios fiscais, e, dessa maneira, atingir um resultado contrário ao Direito.

Assim, não estando, nem podendo estar em causa a liberdade de escolha do contribuinte na conformação dos seus negócios, ou seja, não estando em causa o exercício da sua autonomia privada, o que se limita é a possibilidade de a vontade do contribuinte ser relevante no que respeita ao grau da sua oneração fiscal, pelo que a interpretação da norma constante do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, realizada pela AT, é conforme com a Constituição.

Conclui a Requerida no sentido de os atos de liquidação impugnados não padecerem de qualquer ilegalidade.

7. Por inexistirem matérias suscetíveis de discussão na reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, o Tribunal Arbitral, por despacho proferido pelo seu Presidente, dispensou a realização dessa mesma reunião.

No mesmo despacho, foram as partes convidadas a especificarem por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, os concretos pontos de facto não provados documentalmente, com vista a decidir da admissão ou não da prova testemunhal, por ambas requerida.

Apenas a AT correspondeu a esse convite do Tribunal Arbitral, tendo indicado, ainda que de forma imperfeita, os temas de prova sobre os quais pretendia a produção de prova testemunhal.

8. No dia 2 de outubro de 2014, realizou-se uma reunião do Tribunal Arbitral, tendo em vista a produção de prova testemunhal, à qual apenas compareceram os Ilustres Juristas designados pela AT.

Nessa ocasião, o Tribunal Arbitral, considerando que o processo contém já todos os elementos de facto para a solução de Direito, deu sem efeito, por inútil, a produção de prova testemunhal.

            9. O Tribunal Arbitral dispensou a apresentação de quaisquer alegações pelas partes.

            10. Por despacho do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, proferido em 3 de novembro de 2014, foi determinada a substituição do árbitro presidente deste Tribunal Arbitral coletivo, Senhor Conselheiro Jorge Lino Alves de Sousa, pelo Senhor Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, em virtude de aquele se encontrar impossibilitado, temporariamente, por motivos de saúde, para o cabal exercício das respetivas funções.

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT e art. 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

Nesta parametria, tendo em consideração, nomeadamente, as posições assumidas pelas partes, a prova documental produzida e o PA junto aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

1. Em 25/09/2006, foi constituída a sociedade comercial por quotas com a firma “D, Lda.”, NIPC ..., com sede na ..., em …, tendo por objeto social o “comércio de medicamentos não sujeitos a receita médica”, com o capital social de € 5.000,00, correspondente à soma de 3 quotas [artigo 23 da PI, aceite por acordo; cfr. doc. n.º 8 com a PI; cfr. fls. 7 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

Sócios

Valor das quotas (€)

%

A

3.325,00

66,50

E

1.425,00

28,50

F

250,00

5,00

2. Em 25/03/2008, a “D, Lda.” adquiriu a G e a seu marido, H, pelo preço de € 1.500.000,00, a quota, no valor nominal de € 5.000,00, que eles detinham na sociedade comercial por quotas com a firma “I” (artigo 25 da PI, aceite por acordo; cfr. escritura de cessão de quota e nomeação de gerente, junta como Anexo II (fls. 36 a 39) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)]).

3. Para o efeito, a “D, Lda.” contraiu, na ..., um mútuo do mesmo valor do preço da aquisição (artigo 26 da PI, aceite por acordo; cfr. doc. n.º 4 com a PI).

4. A sociedade “I” exercia a atividade de farmácia, para o que dispunha de alvará atribuído pelo Infarmed, explorando comercialmente um estabelecimento farmacêutico sito na ..., na freguesia de ... e concelho de ... (artigo 27 da PI, aceite por acordo).

5. Em 01/04/2008, foi deliberado o aumento do capital social da sociedade “D, Lda.”, de € 5.000,00 para € 150.000,00, mediante o reforço em espécie na modalidade de suprimentos, no valor de € 145.000,00, subscrito e realizado por todos os sócios, na proporção das suas quotas, ficando o capital social assim dividido [artigo 24 da PI, aceite por acordo; cfr. fls. 7 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

Sócios

Quota anterior (€)

Valor do aumento (€)

Quota em 01/04/2008 (€)

%

A

3.325,00

96.425,00

99.750,00

66,50

E

1.425,00

41.325,00

42.750,00

28,50

F

250,00

7.250,00

7.500,00

5,00

6. Em 31/07/2008, a “D, Lda.” celebrou com a sociedade “J…, S. A.” um contrato para o desenvolvimento da sua atividade no centro comercial denominado “... Shopping (artigo 27 da PI, aceite por acordo; cfr. doc. n.º 5 junto com a PI).

7. No referido contrato não está consignada a obrigação de a “D, Lda.” deliberar a sua transformação em sociedade anónima.

8. Em 23/03/2009, foi realizada uma Assembleia Geral Extraordinária da “D, Lda.” na qual estiveram presentes todos os sócios, tendo sido deliberado o seguinte [cfr. Acta n.º 7 junta como Anexo I (fls. 29 a 35) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)]:

a) Aprovar o projeto de fusão por incorporação da sociedade “I” na “D, Lda.”;

b) Proceder a um aumento de capital no valor de € 1.000,00, mediante a entrada de dois novos sócios;

  c) Transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima, passando a mesma a designar-se por “D, S. A.”.

9. A fusão por incorporação veio a concretizar-se e a ser registada em 28/04/2009, tendo-se fixado o dia 01/01/2009, como data a partir da qual se consideram as operações efetuadas por conta da sociedade incorporante [cfr. fls. 7 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

10. Os novos sócios da “D, Lda.” detentores, cada um, de uma quota de € 500,00, são B, cônjuge do sócio A e K, cônjuge do sócio E [cfr. Acta n.º 7 junta como Anexo I (fls. 29 a 35) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)].

11. A sociedade “D, Lda.” foi transformada de sociedade por quotas em sociedade anónima, tendo passado a denominar-se “D, S. A.” e o capital social de € 151.000,00 passou a estar representado por 30.200 ações, no valor nominal de € 5,00 cada, tendo as mesmas sido atribuídas aos sócios, agora acionistas, da seguinte forma incorporante [cfr. fls. 7 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

Acionistas

N.º de ações

Valor nominal

Valor da participação (€)

%

A

19.950

5,00

99.750,00

66,06

E

8.550

5,00

42.750,00

28,31

F

1.500

5,00

7.500,00

4,97

B

100

5,00

500,00

0,33

K

100

5,00

500,00

0,33

12. Na referida Assembleia Geral Extraordinária, foram eleitos os órgãos sociais para o primeiro mandato, quadriénio 2009 a 2012, tendo sido nomeados para o conselho de administração [cfr. Acta n.º 7 junta como Anexo I (fls. 29 a 35) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)]:

- A, na qualidade de presidente;

- E, na qualidade vogal;

- F, na qualidade de vogal.

            13. Em 23/09/2009, as acionistas L e K alienaram as suas 200 ações – 100 ações cada uma – que detinham na D, S. A., à sociedade “M, S. A.”, NIPC  …, pelo respetivo valor nominal, ou seja, € 5,00 por ação [cfr. fls. 8 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

            14. Na sequência dessa alienação, o capital da sociedade D, S. A. ficou assim distribuído: 

Acionistas

N.º de acções

Valor nominal

Valor da participação (€)

%

A

19.950

5,00

99.750,00

66,06

E

8.550

5,00

42.750,00

28,31

F

1.500

5,00

7.500,00

4,97

M, S. A.

200

5,00

1.000,00

0,66

15. Por contrato de compra e venda de ações, celebrado em 22/12/2009, o A vendeu à sociedade “C”, NIPC ..., as suas 19.950 ações que detinha no capital social da sociedade “D, S. A.”, pelo preço de € 4.030.000,00 [cfr. Contrato de Compra e Venda de Ações junto como Anexo III (fls. 40 e 41) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)].

16. O mesmo A detinha 95% do capital social da sociedade “C”, pertencendo os restantes 5% à sua cônjuge L [cfr. fls. 6 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

17. Em 02/10/2009, o A e a sua cônjuge, L, alienaram as participações que detinham no capital social da sociedade “C” à sociedade “N, S. A.”, NIPC ..., tendo-se o A mantido como gerente daquela sociedade [cfr. fls. 6 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

18. Foi o A quem representou a sociedade “C” na celebração do Contrato de Compra e Venda de Ações supra referenciado em 15. [cfr. Contrato de Compra e Venda de Ações junto como Anexo III (fls. 40 e 41) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA3.pdf)].

19. Entre 2008 e 2011 a empresa “D” apresentou a seguinte estrutura e nível de atividade [cfr. fls. 8 e 9 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf); cfr. Anexos V (fls. 44), VI (fls. 45), XIII (fls. 79 e 80) e XIV (fls. 81 e 82) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiros PA3.pdf e PA5.pdf)]: 

Anos

2008

2009

2010

2011

Volume de negócios

343.523,79

1.773662,45

3.561.554,93

3.881.190,45

Total do ativo

2.172.122,04

2.955.053,34

3.567.823,30

4.522.105,88

Total do capital próprio

107.952,04

-204.290,80

500.928,05

583.635,98

Total do passivo

2.064.170,00

3.159.344,14

3.066.895,25

3.938.469,90

20. O aumento do nível de atividade e estrutura financeira da empresa “D” em 2008, 2009, 2010 e 2011 resultou da fusão por incorporação da sociedade “I”, bem como do aumento das dívidas dos sócios à sociedade e do aumento das dívidas da sociedade aos fornecedores [cfr. Anexos V (fls. 44), VI (fls. 45), XIII (fls. 79 e 80) e XIV (fls. 81 e 82) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiros PA3.pdf e PA5.pdf)].

21. A transformação da sociedade “D, Lda.” em sociedade anónima e a redenominação do respectivo capital social em ações, permitiu ao Requerente A efetuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, pelo valor de € 4.030.000,00, com o benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida, por força do regime legal vigente à data dos factos.

22. Pela Ordem de Serviço n.º OI... de 2013/05/09, foi determinada ação inspetiva externa aos Requerentes, os quais foram notificados da carta aviso com o número de saída ... de 13/05/2013, através de correio registado com o número RC ... PT [cfr. fls. 5 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

23. A acção inspetiva teve início em 17/06/2013 (data da assinatura da Ordem de Serviço pelo Requerente marido), concluindo-se os atos de inspeção em 19/07/2013 (com a assinatura do mesmo) [cfr. fls. 5 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].    

24. O procedimento de inspeção teve por objectivo aferir o cumprimento das obrigações tributárias em sede de IRS, em geral, do Requerentes, relativamente ao exercício de 2009, e em especial, o controlo das operações de alienação de partes sociais e a aplicação da norma geral anti-abuso prevista no n.º 2 do art. 38.º da LGT, relativamente à venda de quota (ações) por parte do Requerente marido e à aquisição por parte da sociedade “C”, NIPC ... [cfr. fls. 5 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)].

25. Os Requerentes foram notificados através do ofício número ... de 26/07/2013 da Direção de Finanças de Lisboa, conforme registo dos CTT n.º RC ... PT, do seguinte [cfr. fls. 19 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf); cfr. Anexo XI (fls. 65 a 67) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA4.pdf)]: «Nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 4 e 5 do art. 63.º do Código de Procedimento e Processo Tributário, de que dispõe de um prazo de 30 dias para, querendo, se pronunciar, por escrito ou oralmente, sobre o teor do Projeto de Aplicação da Cláusula Geral Antiabuso, previsto no n.º 2 do art. 38.º da Lei Geral Tributária, a que se refere o ponto 3.1 do Relatório anexo.»

26. O Requerente marido exerceu aquele direito de audição, por escrito, conforme resposta entregue no Serviço de Finanças de …, em 28/08/2013, a qual corresponde à entrada número ... de 04/09/2013 da Direção de Finanças de Lisboa [cfr. fls. 19 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf); cfr. Anexo XII (fls. 68 a 78) ao Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA4.pdf)].

27. Os Requerentes foram notificados através do ofício número … de 22/11/2013 da Direção de Finanças de Lisboa, conforme registo dos CTT n.º RC …PT, do Relatório de Inspeção Tributária (cfr. ficheiros PA2.pdf, PA3.pdf, PA4.pdf e PA5.pdf).

28. No Relatório de Inspecção Tributária é afirmado que, no decurso do referido «procedimento de inspecção, foram analisados negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos por meios artificiosos e com abuso das formas jurídicas, à redução de impostos que seriam devidos sem a utilização desses meios, que em nosso entender, constituem fundamento para proceder à aplicação da norma legal antiabuso prevista no n.º 2 do artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT).» [cfr. fls. 6 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]

29. No Relatório de Inspeção Tributária é concluído o seguinte relativamente à transformação da sociedade “D, Lda.” em sociedade anónima [cfr. fls. 9, 11 e 12 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

«12 – Os factos descritos permitem admitir que:

12.1 – Não existe nenhum motivo de natureza económica ou financeira que possa justificar a alteração da natureza jurídica de sociedade por quotas para sociedade anónima porquanto, o aumento do nível de atividade e estrutura financeira em 2009, 2010 e 2011 resultou de a aquisição em março de 2009 e posterior incorporação da sociedade “I” (Anexos I e II) assim como do aumento as dívidas dos sócios à sociedade e consequente aumento das dívidas da sociedade aos fornecedores (Anexos V e VI), não sendo portanto resultado da alteração da sua natureza jurídica.

12.2 – A composição acionista não revela que a intenção fosse a criação de qualquer unidade económica que justificasse a utilização da figura de sociedade anónima porquanto, as duas novas acionistas são as respetivas cônjuges dos sócios/acionistas maioritários, A e E, as quais subscreveram apenas valores simbólicos, mantendo os acionistas que já eram sócios, praticamente a mesma estrutura de participação, ou seja, apesar da existência formal de 5 subscritores de capital, na realidade existe um, que detém 66,06% do capital e outro 28,31% o que totaliza 94,37%, mais, simbolicamente, 2 familiares próximos e outro com 4,97%.

13 – O ato ou negócio jurídico da transformação da sociedade D, Lda. em sociedade anónima não resultou, conforme os factos comprovam, da necessidade de ajustar a sua natureza jurídica a qualquer alteração na sua estrutura operacional. No entanto permitiu ao sócio/accionista A efetuar a alienação da participação que detinha no capital da referida sociedade, após a transformação em sociedade anónima e redenominação do capital em ações, pelo valor de 4.030.000,00 com benefício da exclusão da tributação da mais-valia obtida, por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 10.º do Código do IRS.

14 – De acordo com as normas de incidência aplicáveis, caso o contribuinte tivesse optado pela forma “normal” de transmissão da sua quota pelo valor em causa, teria obtido uma mais-valia de 3.930.250,00 (4.030.000,00 – 99.750,00), sujeita a IRS nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 10.º do CIRS, à taxa de 10% conforme estabelece o n.º 4 do art. 72.º do mesmo Código, como segue:

N.º de “ações” transmitidas = 19.950

Valor nominal das “ações” transmitidas = 19.950 x 5,00€ = 99.750,00

Preço de venda das “ações” = 4.030.000,00

(…)

Face a todo o exposto (…) entende-se estarem verificadas as condições para que se possa lançar mão do mecanismo previsto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT (…).

Resulta então (…) que estão cumpridos os pressupostos e procedimentos previstos no n.º 3 do art. 63.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário para aplicação da disposição prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, concretamente:

a)                           Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como indicação da normas de incidência que se lhes aplicam; e    

b)                           A demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou a prática do ato jurídico foi essencialmente ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou deferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato jurídico com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais.»

30. Da referida acção inspetiva resultaram correções, em sede de IRS, na esfera dos Requerentes, relativas ao período de tributação de 2009, consubstanciadas no seguinte [cfr. fls. 5 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

a) Acréscimo de rendimentos da categoria G – Mais-valias, resultante de correcções de natureza aritmética, apurado por aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista nos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT, no montante de € 3.930.250,00;

b) Acréscimo de rendimentos da categoria G – Mais-valias, resultante de correcções de natureza aritmética sem recurso à norma geral anti-abuso, no montante de € 1.409.311,59.  

31. Os valores declarados pelos Requerentes no Anexo G1 (relativo a mais-valias não tributadas) foram anulados pela AT, tendo-se procedido ao acréscimo da operação em causa no Anexo G (relativo a mais-valias e outros incrementos patrimoniais) da declaração de rendimentos Modelo 3 – IRS do ano de 2009, nos seguintes termos [cfr. fls. 12 do Relatório de Inspeção Tributária (ficheiro PA2.pdf)]:

Titular

Realização

 

Despesas

Saldo Mais-Valia

Ano

Mês

Valor (€)

Ano

Mês

Valor (€)

 

 

SP A

(A)

2009

12

134.333,33

2006

09

3.325,00

0

131.008,33

SP A

(A)

2009

12

3.895.666,67

2008

04

96.425,00

0

3.799.241,67

---

Total

4.030.000,00

Total

99.750,00

0

3.930.250,00

 

32. Em 25 de novembro de 2013, a AT emitiu as liquidações impugnadas, tendo como data limite de pagamento voluntário o dia 06.01.2014 (cfr. documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos com a PI).

33. Em 4 de abril de 2014, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo (cfr. sistema informático de gestão processual do CAAD).

*

III.1.2. FACTOS NÃO PROVADOS

            Não resultaram provados os seguintes factos:

            1. A transformação da sociedade “D, Lda.” em sociedade anónima visou dotá-la de instrumentos mais eficazes para a realização de investimentos e correlativos financiamentos, ao nível dos ativos imobilizados e em necessidades em fundo de maneio, potenciando o seu desenvolvimento e sustentabilidade.

            2. A transformação da sociedade “D, Lda.” em sociedade anónima teve por finalidade dotar a empresa de órgãos sociais mais adequados à sua dimensão, a fim de lhe permitir enfrentar com mais segurança os desafios do futuro.

            3. A Banca, nomeadamente o “BANCO ..., S. A.”, invocava a dificuldade de conceder mais crédito à “D, Lda.”, por esta ser uma empresa recente e pela sua dimensão, aconselhando a sua transformação em sociedade anónima, o que permitiria aumentar o grau de credibilidade perante as instituições financeiras, designadamente por ser obrigatória a revisão das contas por ROC credenciado e estar submetida a requisitos mais exigentes em termos de gestão. 

            4. Face ao tipo de atividade que a “D, Lda.” desenvolvia, o crédito em conta corrente concedido por fornecedores, designadamente pelas empresas de distribuição de produtos farmacêuticos, assumia primordial importância para o desenvolvimento do negócio.

            5. Era de toda a conveniência libertar a transmissão das participações sociais, por parte dos sócios da “D, Lda.”, dos constrangimentos constantes do Pacto Social, sendo as mesmas, dessa forma, valorizadas, dotando ainda os participantes do capital de melhores e mais credíveis meios de garantia que lhes permitissem obter, eles próprios, capitais com que pudessem financiar a sociedade.

            6. A opção pela forma societária de sociedade anónima contribuiria para que a “D, Lda.” pudesse resolver os seus problemas de financiamento e dar uma rápida resposta às solicitações e modificações próprias do seu negócio.

            7. A decisão de transformar a “D, Lda.” em sociedade anónima foi determinada por critérios de natureza gestionária e de natureza económica e financeira.   

*

III.1.3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nas afirmações feitas nos articulados, nos pontos indicados, em que não foi posta em causa a respetiva aderência à realidade e nos documentos juntos aos autos, referenciados em relação a cada um dos pontos, cuja correspondência à realidade não foi questionada.

Relativamente à factualidade não provada, esta foi assim considerada em resultado da ausência de quaisquer elementos probatórios suscetíveis de, inequivocamente, a comprovarem.

*

III.2. DE DIREITO

Como resulta da matéria de facto fixada, foi realizada uma inspecção tributária, no seguimento da Ordem de Serviço n.º OI..., tendo em vista controlo dos elementos declarados pelos Requerentes na declaração Modelo 3 de IRS, respeitante ao exercício de 2009, e, em especial, o controlo das operações de alineação de partes sociais, nomeadamente em relação às mais-valias obtidas com a alienação de acções representativas do capital da sociedade D, S.A..

Desta ação inspectiva foram propostas correcções aos valores declarados pelos Requerentes na declaração de rendimentos de IRS respeitantes ao ano de 2009, no montante global de €4.979.562,59, a que corresponde um montante de imposto no valor de € 497.956,16, conforme nota de liquidação de IRS n.º 2013, ao qual acrescem juros compensatórios, referentes ao período de 29/05/2010 a 4/10/2013 à taxa de 4%, no montante de 66.848,90.

Desse valor global de € 4.979.562,59, o valor de € 1.409.311,59 resultou de correcções de natureza meramente aritmética sem recurso à norma geral anti-abuso, e que não foi impugnado, bem os respetivos juros compensatórios, pelos requerentes no âmbito do presente processo.

Desse valor global de correcções resultantes da acção inspectiva resultou correcções por aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista nos artigos 38.º da LGT e 63.º do CPPT, e que o requerente impugnou, no valor de € 3.930.250,00 p e respetivos juros compensatórios no valor de € 52.762,25.

O valor de € 3.930.250,00 adveio de uma mais valia realizada em consequência da alienação à sociedade C SGPS, Lda. de 19.950 acções da sociedade D, S.A., pelo montante de € 4.030.000,00. Resultou da realização dessa mais valia um imposto a pagar no montante total de € 393.025,00, à qual acrescem os respetivos juros compensatórios, cf. referido acima.

III.2.1. Questão da violação dos pressupostos da aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA).

Em primeira linha, os Requerentes defendem que não se encontram reunidos os pressupostos, de facto e de direito, de que depende a aplicação da CGAA, violando a Autoridade Tributária e Aduaneira, por errada interpretação e aplicação, o artigo 38.º, n.º 2, da LGT, e os artigos 10º, nºs 1, alínea b), e 2, alínea a), e 43.º, nº 4, alínea b), do CIRS.

O artigo 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária estabelece uma cláusula geral antiabuso, nos termos da qual «são ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas»

No caso em apreço, a Administração Tributária decidiu a aplicação da cláusula geral antiabuso considerando que os negócios jurídicos de transformação da sociedade por quotas D, LDA em sociedade anónima deve ser desconsiderada para efeitos de tributação em IRS, por os Requerentes terem visado com essa transformação beneficiar da não tributação das mais-valias que, ao tempo, era aplicável à transmissão de acções de sociedades comerciais, mas não à transmissão de quotas.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, em suma, que os Requerentes:

– ao procederem, em 23-03-2009 – cerca de 90 dias antes da alienação das participações socais, à transformação da sociedade por quotas D, Lda. em sociedade anónima, D, S.A. ,

– caso não tivessem optado pela transformação do tipo societário e tivessem procedido apenas à alienação onerosa das quotas das sociedades D, Lda., as mais-valias obtidas seriam tributadas à taxa especial de 10% prevista no n. º 4 do art.º 72.º do CIRS;

– Entende a Autoridade Tributária e Aduaneira que a única justificação racional para a realização da transformação das sociedades por quotas em sociedades anónimas (acto jurídico realizado) terá que ser procurada na obtenção das vantagens fiscais referidas, não sendo justificada por critérios de natureza gestionária, económica e financeira;

– ou seja, os sujeitos passivos com o acto de transformação das sociedades por quotas em sociedades anónimas procuram de forma premeditada e artificiosa – através de uma sequência de actos conducentes à transformação da sociedade D por quotas em sociedade anónima antes da alienação -, e com abuso de formas jurídicas – a opção pela figura de sociedade anónima e em detrimento da manutenção da sociedade por quotas revela-se dispensável ao negócio e à própria forma jurídica da sociedades face aos condicionalismos associados a essa forma jurídica -, excluir as mais-valias da tributação em IRS;

– exclusão que não aconteceria se, de forma mais simples (sem a transformação do tipo societário), alienassem a sociedade por quotas – um acto de idêntico fim económico – sujeitando-as a tributação em sede de IRS.

 

III.2.2. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo

 

Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches[1]: o planeamento fiscal legítimo «consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais»; enquanto o planeamento fiscal ilegítimo «consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo».

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal[2] passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta «um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal»[3]. Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar «uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema»[4]. Este tipo de actuação é comummente designada de «fraude à lei fiscal» mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de «evitação abusiva de encargos fiscais», «evitação fiscal abusiva» ou ainda «elisão fiscal»[5].

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem[6].

Sub judice, sucintamente, os Requerentes contestam que configure planeamento fiscal abusivo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, por entenderem que não há abuso de formas jurídicas e que o legislador optou deliberadamente por um tratamento de excepção e favor das mais-valias provenientes de alienação de participações sociais em sociedades anónimas, excluindo-as de tributação, e que o resultado fiscalmente menos oneroso é admitido, tolerado e estimulado pela lei e/ou pelo sistema fiscal em geral, pelo que os actos e negócios jurídicos realizados pelos Requerentes não poderão ser condenáveis e enquadráveis na CGAA, por inexistência de fraude às normas em causa.

A Autoridade Tributária e Aduaneira entende que aquele comportamento constitui um planeamento fiscal abusivo, na medida em que, através daquela transformação em sociedade anónima, que considera desnecessária e fiscalmente motivada, e subsequente venda de acções (em vez de quotas), os Requerentes evitam a tributação de mais-valias em sede de IRS.

Assim sendo, a questão colocada a este tribunal, na sequência do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso — um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo —, reside em saber se a actuação do sujeito passivo se situa intra ou extra legem, ou seja, se o planeamento fiscal que adoptou é legítimo ou ilegítimo, se é não abusivo ou abusivo.

III.2.3. Elementos da cláusula geral antiabuso

Sob a epígrafe «Ineficácia de actos e negócios jurídicos», dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:

«São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas».

 

Esta norma é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo[7].

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal[8];

– no elemento resultado, que tem a ver com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos «normais» e de efeito económico equivalente[9];

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja «essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos» (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte «pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam»[10];

– no elemento normativo, que «tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela»[11];

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, «efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas» (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

 

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, «a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro», pelo que estes «não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente»[12].

III.3. Análise da situação

III.3.1. Elemento resultado

Comparando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das acções (actos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (actos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação beneficiava de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objecto de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, a segunda é considerada uma mais-valia, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do CIRS, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4, do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.

Verifica-se, por isso, este elemento resultado, pois os Requerentes obtiveram uma vantagem fiscal com a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima.

III.3.2. Elemento normativo

O legislador não é particularmente exigente no que toca à fundamentação deste aspecto atinente à reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida, no entanto, a doutrina tem vindo a considerar que este é fundamental na distinção entre planeamento legítimo e ilegítimo.

Na pena de Saldanha Sanches, é «necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador»[13]. Com efeito, sublinha, deve ser possível extrair-se uma «intenção inequívoca de tributação»[14], pelo que não basta haver uma lacuna ou uma disposição menos clara.

Este Autor dá, inclusive, como exemplo de «lacuna consciente de tributação» a situação que aqui é objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções), sublinhando que «se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais»[15].

Efectivamente, «mesmo que a transformação [fosse] motivada por razões exclusivamente fiscais», é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.

E fê-lo deliberada e insistentemente, pois trata-se de uma norma várias vezes revista e ponderada.

Na verdade, na redacção inicial do CIRS, previa-se já a tributação em IRS das mais-valias obtidas com a «alienação onerosa de partes sociais» [artigo 10.º, n.º 1, alínea b), na redacção do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro], mas excluíam-se as mais-valias provenientes da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 24 meses» [artigo 10.º, n.º 2, alínea c)], limite temporal este que tinha como objectivo evidente afastar a exclusão da tributação relativamente a mais-valias que, no conceito então vigente, eram consideradas especulativas.

Esta regulamentação era completada com a que constava do EBF, na redacção inicial, dada pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de Julho, em que se estabelecia o seguinte:

 

Artigo 35.º (EBF)

Transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas

Para efeitos do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, da alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º do Código do IRS e do artigo 34.º deste Estatuto, considera-se que a data de aquisição de acções resultantes da transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas é a data da aquisição das quotas que lhes deram origem.

 

Esta norma, que tinha em vista o regime transitório, era completada com uma norma idêntica de aplicação permanente, que constava do artigo 18.º, n.º 5, alínea a), do EBF.

Estas duas normas evidenciam a enorme dimensão da preocupação legislativa em incentivar a transformação de sociedades por quotas em anónimas, que vai ao ponto de afastar a tributação em sede de mais-valias mesmo em situações em que o sujeito passivo detém as novas acções resultantes da transformação por um período muito curto, inclusivamente em situações em que a venda das novas acções é feita imediatamente a seguir à transformação, pois é precisamente a situações de detenção das novas acções por curtíssimo prazo que se aplicam as normas referidas. Isto evidencia que, ponderando os valores conflituantes nesta situação, se entendeu legislativamente prescindir da tributação em sede de mais-valias, independentemente de a vantagem fiscal concedida esse fosse o único objectivo da transformação, pois se considera de superior interesse público o resultado económico alcançado, da posterior existência de uma sociedade por acções.

Com a Lei n.º 30-B/92, de 28 de Dezembro, esta alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º passou a excluir da tributação as «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», aumentando, assim, o âmbito da não tributação da alienação de acções, ou, doutra perspectiva, a restrição do conceito de mais-valias especulativas.

A Lei n.º 39-B/94, de 27 de Dezembro, reafirmou a vigência deste regime, eliminando a alínea c) do n.º 2 do artigo 10.º, mas transpondo a sua redacção para a nova alínea b).

A Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, eliminou a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções, mas limitou a exclusão às acções adquiridas após a sua entrada em vigor, mantendo expressamente o regime anterior para as acções adquiridas antes dessa data (artigo 4.º, n.º 5, do DL n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 30-G/2000).

Este novo regime não chegou a ser aplicado, pois a Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, estabeleceu, no n.º 9 do seu artigo 147.º, que nos anos de 2001 e 2002 seria aplicável regime anterior à Lei n.º 30-G/2000 e, depois, o Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, reintroduziu o regime de não tributação das mais-valias derivadas da alienação de «acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses», ao dar uma nova redacção à alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º do CIRS.

Esta redacção manteve-se até à sua revogação pela Lei n.º 15/2010, de 26 de Julho.

É, assim, manifesto, que houve uma opção legislativa deliberada, mantida com variações desde a redacção inicial do CIRS, no sentido da não tributação de algumas das mais-valias provenientes da alienação de acções, opção essa, como a da fixação de uma taxa liberatória reduzida, é justificada pela existência de uma «política de desenvolvimento do mercado financeiro», expressamente reconhecida no 5.º parágrafo do ponto 12 do Relatório do CIRS.

A «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 1/IX, que veio a dar origem à Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, que concedeu ao Governo a autorização legislativa necessária para aprovar o Decreto-Lei n.º 228/2002 é elucidativa no sentido de se ter reconhecido que a não tributação das mais-valias não especulativas provenientes da alienação de acções era preferível à sua tributação dizendo-se:

Com a entrada em vigor da Lei n.º 30-G/2000, que tornou indispensável a revisão do Código de IRS operada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho, foi alargado o âmbito de incidência a todas as mais-valias de valores mobiliários e eliminou-se a taxa liberatória de 10%.

Na sequência desta alteração as mais-valias de valores mobiliários são simultaneamente englobadas e sujeitas às taxas gerais progressivas, que se situam entre 12% e 40%.

Acresce que, de acordo com o artigo 3.º da Lei n.º 30-G/2000, o referido regime de tributação das mais-valias só é aplicável aos valores mobiliários adquiridos após 1 de Janeiro de 2001, mantendo-se o anterior regime de tributação para as mais-valias quanto aos adquiridos antes dessa data.

Aquele regime tributário foi contudo alterado, transitoriamente, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2002), a qual veio estabelecer uma isenção da tributação das mais-valias relativamente a rendimentos inferiores a 2500 Euros, fazendo-se, no entanto, o englobamento, apenas, para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos.

Considerando que o impacto desta reforma fiscal no mercado de capitais foi altamente prejudicial para os investidores, configurando-se como um desincentivo ao investimento, com todas as inerentes consequências negativas para o desenvolvimento de uma política de recuperação económica, urge revogar o regime de tributação das mais-valias aprovado pela Lei n.º 30-G/2000 e, posteriormente, acolhido pelo Decreto-Lei n.º 198/2001 e, em consequência, retomar o regime de aplicação da taxa liberatória de 10%, bem como da exclusão de tributação das mais-valias de valores imobiliários detidos pelo seu titular durante mais de 12 meses, tributando-se apenas as mais-valias especulativas.

 

O Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, que reintroduziu a exclusão da tributação das mais-valias provenientes da alienação de acções detidas pelo seu titular há mais de 12 meses é também elucidativo sobre a existência desta intenção legislativa ao dizer:

O regime de tributação dos rendimentos de mais-valias derivados da alienação onerosa de valores mobiliários, aquando da entrada em vigor do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, foi significativamente alterado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.

Os traços mais salientes do quadro então instituído consistiram na abolição da exclusão tributária de que beneficiavam as mais-valias provenientes da alienação de obrigações e de outros títulos de dívida e da alienação de acções detidas pelo seu titular durante mais de 12 meses, passando a incidir uma tributação generalizada sobre estes rendimentos, atenuada por uma isenção de base para os saldos positivos inferiores a determinado montante e pela consideração dos saldos positivos ou negativos em percentagem variável em função do período de detenção dos títulos pelo alienante.

Por força do estabelecimento, pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, de um regime transitório de tributação aplicável a estes rendimentos nos anos 2001 e 2002, o regime emergente da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, não chegou a ser aplicado.

O presente decreto-lei vem dar execução à autorização concedida ao Governo pela Lei n.º 16-B/2002, de 31 de Maio, no sentido da reposição, no Código do IRS, das linhas essenciais do regime de tributação destes rendimentos

 

Do ponto de vista sistemático, acresce a preferência manifestada pelo legislador pela adopção do modelo de organização societária da sociedade anónima, cuja adopção desde a redacção inicial do CIRS pretendeu fomentar e é patente no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, que reformou um vasto conjunto de leis relacionadas com as sociedades comerciais, com especial atenção para a simplificação e eliminação de actos e procedimentos registrais e notariais (artigo 1.º, n.º 1) e para as sociedades anónimas (artigo 1.º, n.º 2: «o presente decreto-lei visa ainda actualizar a legislação societária nacional, adoptando designadamente medidas para actualizar e flexibilizar os modelos de governo das sociedades anónimas»).

Explanando as razões de política económica subjacentes à reforma, o legislador afirma, no preâmbulo daquele Decreto-Lei:

 

Assim, as linhas de fundo da reforma realizada por este decreto-lei prendem-se com as seguintes ideias. De um lado, a preocupação de promover a competitividade das empresas portuguesas, permitindo o seu alinhamento com modelos organizativos avançados. A presente revisão do Código das Sociedades Comerciais assenta no pressuposto de que o afinamento das práticas de governo das sociedades serve de modo directo a competitividade das empresas nacionais. Esse é o primeiro objectivo de fundo que este decreto-lei visa prosseguir, em prol de uma maior transparência e eficiência das sociedades anónimas portuguesas. Ao encetar este caminho, Portugal colocar-se-á a par dos sistemas jurídicos europeus mais avançados no plano do direito das sociedades, salientando-se o Reino Unido, a Alemanha e a Itália como países que têm identicamente orientado reformas legislativas com base nestes pressupostos. […] Importa ainda apontar o atendimento das especificidades das pequenas sociedades anónimas como preocupação que esteve subjacente à preparação deste decreto-lei”.

Neste contexto, detecta-se uma opção legislativa deliberada no sentido de afastar a tributação das mais-valias não especulativas, como incentivo à criação de sociedades anónimas, formas de organização mais avançada, que proporciona tendencialmente gestão mais profissionalizada e eficiente, com benefícios para a economia em geral e, reflexamente, para o próprio interesse da tributação de rendimentos empresariais.

Por outro lado, é de notar que a afirmação do interesse público em não tributar as mais-valias não especulativas derivadas da detenção de acções foi, conscientemente, considerado superior ao da arrecadação das receitas que a tributação podia gerar e que esta afirmação foi efectuada já depois da Lei Geral Tributária ter previsto a cláusula geral antiabuso, no seu artigo 38.º, n.º 2.

Sendo assim, não pode a Autoridade Tributária e Aduaneira, num Estado de Direito, assente na soberania popular, no princípio da separação de poderes e no primado da Lei (artigos 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa), deixar de acatar os juízos de valor legislativamente formulados, não podendo sobrepor os seus próprios juízos sobre a gestão de interesses públicos à ponderação de valores conflituantes efectuada legislativamente, mesmo que os considere mais adequados e equilibrados que os emanados dos órgãos de soberania com competência legislativa.

Isto é, mais concretamente, tendo o legislador expressamente considerado o interesse público da criação de sociedades anónimas superior ao interesse na tributação de mais-valias não especulativas e materializado a sua preferência num incentivo à criação de sociedades anónimas, criando para os detentores do seu capital um regime fiscal privilegiado em relação aos detentores do capital de sociedades por quotas, não pode, por via da aplicação da cláusula geral antiabuso, ser inviabilizado, por via administrativa, esse objectivo legislativo, aplicando àqueles que deram satisfação àquele interesse público através da criação de sociedades anónimas o regime que lhes seria aplicável se o não tivessem satisfeito.

Ou, de outra perspectiva, talvez mais clarificadora, não se poderá, em regra, numa situação de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónima, entender que o acto foi essencial ou principalmente dirigido à satisfação de interesse fiscal dos intervenientes (como exige o n.º 2 do artigo 38.º da LGT para ser accionada a cláusula geral antiabuso), pois esse acto, objectiva e forçosamente, com vontade do sujeito passivo ou sem ela, dirige-se sempre à satisfação do interesse público do incremento da criação de sociedades anónimas, interesse este que, na óptica legislativa, é sempre o essencial ou principal a atender nessa situação, para efeitos de tributação.

Por isso, em situações deste tipo, de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, o abuso de formas jurídicas indispensável para viabilizar a aplicação da cláusula geral antiabuso e a existência de uma intenção contrária ao desígnio legislativo só são perscrutáveis em situações em que não possa considerar-se satisfeito aquele interesse público da criação de sociedades anónimas, como, por exemplo, poderá suceder em situações em que a criação da sociedade anónima não é seguida da sua manutenção como realidade económica por um período de tempo apreciável.

No caso em apreço, é inequívoco que não se verifica uma situação desse tipo e, por isso, foi satisfeito com a operação de transformação das sociedades por quotas em sociedades por acções o interesse que, na perspectiva legislativa, é o principal a atender, superior ao da própria tributação.

Por outro lado, não se vislumbra nesta actuação dos Requerentes, em perfeita sintonia com o desígnio legislativo que se visou atingir com criação de um regime mais favorável de tributação dos detentores de acções, o uso de qualquer meio artificioso ou fraudulento ou abuso de formas jurídicas (como exige a aplicação da cláusula geral antiabuso) já que a transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas está expressamente prevista na lei como um meio normal de criação de sociedades deste tipo (artigos 1.º, n. 2, e 130.º do Código das Sociedades Comerciais), inclusivamente no âmbito da tributação do rendimento [artigo 43.º, n.º 6, alínea b), do CIRS]. O que, decerto, constituiria artifício ou fraude legislativa, incompaginável com o princípio constitucional da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, seria incentivar legislativamente os sujeitos passivos de IRS à criação de sociedades anónimas, através do anúncio da atribuição de uma vantagem fiscal e, uma vez satisfeito o interesse público que se visava com tal incentivo, não lhes reconhecer o direito à vantagem prometida.

Consequentemente, não se verifica uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, desde logo por não existir um acto que possa considerar-se dirigido essencial ou primacialmente à obtenção de vantagens fiscais (pois ele foi dirigido também à criação de uma sociedade anónima por se pretender que ela funcionasse com as características e potencialidades que lhe são inerentes), mas também por não ter sido utilizado qualquer meio artificioso ou fraudulento para obtenção de vantagens fiscais.

Esta interpretação não é desconforme com a Constituição, designadamente com o princípio da capacidade contributiva, da igualdade, da legalidade e da neutralidade fiscal.

A eventual violação desses princípios apenas poderá emergir da própria diferença de tratamento legal entre a venda de quotas e a venda de acções e não da interpretação que ora se efectua, sobre a não verificação de uma situação de aplicação da cláusula geral antiabuso. Por outro lado, aqueles princípios não representam valores absolutos, não havendo obstáculo constitucional a que eles sejam limitados para prossecução de outros valores constitucionalmente protegidos, como sucede, nomeadamente, com a generalidade das situações em que são concedidos benefícios fiscais. No caso, essa diferença de tratamento, conforme supra se expôs, resulta de um longo e reiterado caminho percorrido pelo legislador, que tem evidenciado a vontade de não tributar essas situações e de privilegiar e promover a adopção de «modelos de governo das sociedades anónimas». Enquadra-se num quadro legislativo que não se limita à dinamização do mercado bolsista, pois a criação de sociedades anónimas, que são uma forma mais avançada de organização das sociedades comerciais e potenciadora de maior concentração de capital e maior eficiência económica, alinha-se com a primeira das incumbências prioritárias do Estado arroladas no artigo 81.º da CRP, que é a promoção do aumento do bem-estar económico e qualidade de vida das pessoas, que pressupõe a criação de riqueza e a adopção de formas de organização das empresas que a potenciem.

Conclui-se, assim, que, mesmo que a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima tenha sido motivada por razões exclusivamente fiscais, não se estará perante um acto condenável face ao ordenamento jurídico tributário, uma vez que o próprio legislador fiscal optou por tributar em sede de IRS os ganhos decorrentes da venda de quotas e por não tributar em sede daquele imposto os ganhos resultantes da venda de acções.

Uma situação destas, em que o legislador resistiu longamente a eliminar tal regime mantendo uma «lacuna consciente de tributação», não se mostra susceptível de aplicação da cláusula geral antiabuso, em situações em que foi atingido o fim legislativamente visado de criação de sociedades anónimas, designadamente, como sucede no caso em apreço, em que as sociedades anónimas criadas subsistem como realidades económicas com as características próprias e potencialidades diferentes das que teria a manutenção das sociedades por quotas. Neste contexto, há que notar que, apesar de os contratos de compra e venda terem como pressuposto a gestão pelo Requerente A, não há qualquer obstáculo a que as sociedades anónimas criadas subsistam para além dos contratos e possam exercer, a prazo, actividades não incluídas no seu âmbito.

Refira-se anda, como indício legislativo de que estas situações de transformação de sociedades por quotas em anónimas não foram previstas como potencialmente geradoras de situações de planeamento fiscal abusivo, o facto de o Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de Agosto, que visou especificamente prevenir o controlo de situações desse tipo, não lhes fazer qualquer alusão, designadamente não estabelecendo deveres de comunicação, informação e esclarecimento à administração tributária sobre essas transformações.

E não cabe ao aplicador da lei substituir-se às opções de tributar ou não tributar certas realidades formuladas pelo legislador fiscal. [16]

***

IV. DECISÃO

            Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral coletivo decide:

a)      Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral na parte em que é pedida a declaração de ilegalidade com fundamento em violação do artigo 38.º, n.º- 2, da LGT;

b)      Anular, com fundamento na violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT:

– a liquidação parcial de IRS n.º 2013 ..., de 25-11-2013, relativa ao ano de 2009, no valor de € 393.025,00 (trezentos e noventa três mil e vinte cinco euros);

– a liquidação parcial de juros compensatórios n.º 2013 ...31, de 25-11-2013, respeitante ao período compreendido entre 29-05-2010 e 04-10-2013, à taxa de 4%, no valor de € 52.762,25 (cinquenta e dois mil, setecentos e sessenta dois euros, vinte cinco cêntimos).

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VALOR DO PROCESSO:

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 445.787,25 (quatrocentos e quarenta e cinco mil setecentos e oitenta e sete euros e vinte e cinco cêntimos).

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CUSTAS:

Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.038,00 (sete mil e trinta e oito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

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Lisboa, 26 de novembro de 2014.

 

Os árbitros,

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

(Ana Maria Rodrigues)

 

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 



[1]                      Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 21.

[2]                      Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[3]                      Cfr. Jónatas Machado e Nogueira da Costa, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 340-341.

[4]                      Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 181.

[5]                      Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 12-02-2011, processo n.º 04255/10.

[6]                      Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: «a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudulentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudulentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais». Cfr., também, Marques, Paulo, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

[7]                      Ou seja, a uma «actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário» (cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Almedina, Coimbra, 2009, pp.15-17 e 163-165; bem como Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15-02-2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

[8]                      Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos».

[9]                      Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2, da LGT: «redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios». Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, alíneas a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, «a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam» e «a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais».

[10]                    Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 180.

[11]                    Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 211.

[12]                    Cfr. Courinha, Gustavo Lopes, Cláusula..., p. 165. Identicamente, Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma «relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei».

[13]                    Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 180.

[14]                    Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., pp. 180-181.

[15]                    Cfr. Saldanha Sanches, J.L., Os Limites..., p. 182.

[16]                    Na fundamentação de direito segue-se de perto a decisão arbitral proferida no Processo n. 264/2014-T do CAAD.