Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 323/2020-T
Data da decisão: 2021-11-23  IRS  
Valor do pedido: € 900.682,08
Tema: IRS; divergências entre o valor declarado e o valor real da transmissão – Artigo 52.º do Código do IRS; falta de fundamentação.
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Sumário:

I. A demonstração fundada da possibilidade de existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão nos termos do n.º 1, do artigo 52.º, do Código do IRS é condição sine qua non para a determinação pela AT do valor de realização das acções alienadas com base na aplicação da presunção estabelecida na alínea b), do n.º 2, do artigo 52.º, do Código do IRS;

II. A AT não tem de demonstrar a concreta e efectiva divergência a que alude o n.º 1, do artigo 52.º, do Código do IRS mas tão só a possibilidade de esta divergência se verificar, conquanto a mesma seja fundada;

III. A AT não cumpre com o ónus de fundamentação que lhe é imposto se no relatório de inspecção tributária não alega nem demonstra quais os indícios ou dúvidas fundadas que sustentam a possibilidade da referida divergência existir.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

Os Árbitros José Pedro Carvalho, Fernando Rocha Andrade e Carla Castelo Trindade, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral colectivo, decidem no seguinte:

 

I. RELATÓRIO

 

1. A..., residente na Rua ..., ..., ...-..., Braga, titular do número de identificação fiscal..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à declaração de ilegalidade e consequente anulação da demonstração da liquidação de IRS n.º 2019..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2019... e n.º 2019... e da demonstração e acerto de contas n.º 2019..., todas referentes ao período de tributação de 2016.

                2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 30 de Junho de 2020 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) e automaticamente notificado à Requerida.

 

                3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

                Em 12 de Agosto de 2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

                4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 11 de Setembro de 2020.

 

                5. O Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido, em síntese, tendo em conta os seguintes argumentos:

                No período de tributação de 2016 o Requerente apurou uma menos-valia de € 291.600,00 em sede de IRS resultante da alienação de participações sociais que detinha nas sociedades B..., S.A. e a C..., S.A.

                Referiu o Requerente que a venda das acções e o consequente apuramento da menos valia esteve associado à sua incapacidade para continuar a investir nas sociedades que tinham necessidades financeiras que careciam de ser supridas, bem como ao facto de o Requerente não ter tempo para se dedicar às duas empresas, que tinham objectos sociais diferentes.

                A Direcção de Finanças de Braga instaurou uma acção de inspecção tributária interna, de âmbito parcial, sobre o IRS de 2016, da qual resultaram correcções ao IRS do referido período, designadamente no que respeita às menos-valias apuradas. Para o efeito, procedeu a AT à determinação do valor de realização ao abrigo do artigo 52.º, do Código do IRS por entender que existia uma divergência entre o valor declarado e o valor real na venda de valores mobiliários. Sucede que, no entender do Requerente, o relatório de inspecção é totalmente omisso quanto à fundamentação de facto e de direito que justificaria a aplicabilidade daquela norma. Isto na medida em que do relatório de inspecção não consta um único facto que permitisse concluir que o valor declarado nos contratos de compra e venda não era real. Prossegue o Requerente a sua argumentação referindo que durante a inspecção não foram ouvidas testemunhas, recolhidos documentos ou feitas quaisquer diligências instrutórias nem nas empresas cujas acções foram vendidas nem junto dos compradores, não tendo o Requerente ou a sua esposa sido ouvidos, sem contar que do relatório de inspecção não consta nenhum anexo que traduzisse um qualquer indício da falta de veracidade do preço declarado. Por conseguinte, concluiu o Requerente que é manifesto o défice instrutório subjacente às correcções operadas pela AT, não sendo possível conhecer o itinerário cognoscitivo de facto e de direito que lhes está subjacente, de tal forma que os actos de liquidação são ilegais por vício de forma, já que não cumprem com a necessária fundamentação que é exigida nos termos dos artigos 268.º, da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e 77.º, da LGT.

                Continua o Requerente a sua argumentação defendendo que a interpretação do artigo 52.º, do Código do IRS sufragada pela AT é inconstitucional por violação dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, já que esta última legitimou a aplicação daquele artigo com base no silêncio do Requerente quanto às notificações da AT e com base no facto de este ter posteriormente submetido declarações de substituição. Isto apesar de tais factos não constituírem indícios da falta de correspondência entre o valor declarado e o valor real para efeitos do artigo 52.º, do Código do IRS. Além disso, entende o Requerente que esta é uma norma de incidência, sujeita ao princípio da reserva de lei, não tendo o legislador determinado que a existência de divergências entre o valor declarado e o valor dos capitais próprios constantes do último balanço corresponde a um indício de simulação de preço. Indício esse que sempre teria de ser demonstrado com razoável certeza e segurança pela AT pelo que, na opinião do Requerente, não se pode considerar que a AT tenha afastado a presunção de veracidade da declaração e cumprido com o ónus da prova que lhe incumbia, respectivamente, nos termos dos artigos 75.º e 74.º, ambos da LGT. Tudo isto é agravado, de acordo com o Requerente, se for tido em conta que a tributação que lhe foi imposta quando este não obteve quaisquer rendimentos com a alienação das acções consiste numa violação manifesta dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva constantes do artigo 104.º, n.º 1, da CRP que inquina de ilegalidade os actos de liquidação impugnados.

                Mas para o Requerente, mesmo que se entendesse que a AT corrigiu fundadamente os rendimentos que havia declarado à luz do artigo 52.º, do Código do IRS sempre se deveria considerar que esta incorreu em erro na quantificação do valor de realização com base no último balanço. Isto porque, no entender do Requerente, a AT utilizou como base do balanço o valor do capital próprio sem qualquer ponderação, não tendo assim tido em conta o real valor das sociedades. Esta posição do Requerente deveu-se ao facto de este entender que existiam activos não realizados e passivos potencialmente exigíveis inscritos na contabilidade que influenciavam o capital próprio, mas que tinham de ser desconsiderados numa óptica de avaliação virada para o já realizado, baseada no balanço, sob pena de se estar a tributar ganhos não realizados e que aquele não teria capacidade de pagar, já que nem todos os componentes do capital próprio pertencem aos sócios e podem ser por estes recebidos ou alienados. Neste sentido, deu o Requerente enquanto exemplo a desconsideração pela AT do valor de subsídios ao investimento que figuravam no balanço da B..., S.A. e que apesar de já reconhecidos na contabilidade, eram uma mera expectativa de realização, tendo associada a possibilidade de serem devolvidos se as metas fixadas nos projectos não forem cumpridas. Ainda a título de exemplo, referiu o Requerente a desconsideração na esfera da C..., S.A. das prestações suplementares/acessórias, dos activos por impostos diferidos não realizados e susceptíveis de não poderem ser dedutíveis e dos subsídios ao investimento não realizados. Para aquele, tudo isto implicou o apuramento pela AT de um valor de realização presumido manifestamente superior ao que resulta dos últimos balanços da B..., S.A. e da C..., S.A., sendo assim necessário concretizar os ajustes técnicos que se afiguravam necessários e que constam do parecer junto pelo Requerente aos autos.

                Mas para o Requerente, ainda que se considerasse que era legítima a aplicação do artigo 52.º, do Código do IRS, a verdade é que a AT não teve em consideração que as acções alienadas respeitavam a sociedades qualificadas enquanto PME nos termos do artigo 2.º, do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro na redacção vigente à data dos factos. Nestes termos, os actos de liquidação proferidos pela AT sempre seriam parcialmente ilegais, porquanto o artigo 43.º, n.º 3, do Código do IRS determina que o saldo das mais-valias apenas é considerado em 50% do seu valor para efeitos de tributação no caso de as acções alienadas corresponderem a PME.

                Por fim, sustentou o Requerente que caso o tribunal não desse provimento a nenhum dos argumentos anteriores, deveria ser-lhe reconhecido o direito de optar pela tributação à taxa autónoma, opção que este não teria exercido à data da entrega da última declaração por não ser a mais favorável à luz dos elementos disponíveis.

               

                6. A Requerida, tendo sido devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual se defendeu por impugnação, tendo concluído pela improcedência da presente acção e, consequentemente, pela sua absolvição do pedido. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

                O entendimento sufragado no relatório final de inspecção elaborado pela Direcção de Finanças de Braga quanto à aplicação do artigo 52.º, do Código do IRS está, no entender da Requerida, devidamente justificado e fundamentado de facto e de direito, pelo que não se verifica o alegado vício de falta de fundamentação alegado pelo Requerente. Por esta razão, defende a Requerida que é possível identificar todos os factos relevantes para a decisão tal como exigem o artigo 268.º, n.º 3, da CRP, o artigo 77.º, da LGT e o artigo 153.º, do Código de Procedimento Administrativo (“CPA”). E para a Requerida tanto assim é que o Requerente rebateu ponto por ponto o conteúdo do relatório de inspecção, o que demonstra que compreendeu o itinerário cognoscitivo e valorativo subjacente aos actos de liquidação contestados.

                Prossegue a Requerida defendendo que a decisão constante do relatório de inspecção não se baseou apenas no silêncio do Requerente, uma vez que as declarações deste último não gozavam da presunção de veracidade estabelecida pelo n.º 1, do artigo 75.º, da LGT na medida em que a mesma era afastada pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do referido artigo em virtude de as declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectiam ou impediam o conhecimento da matéria tributável real do Requerente e de este não ter cumprido com os deveres de esclarecimento da sua situação tributária que lhe competiam ao abrigo do dever recíproco de colaboração para a efectivação da justiça fiscal. Neste sentido, a Requerida salientou que o Requerente não juntou os documentos comprovativos da aquisição e da alienação das participações sociais mencionadas no quadro 9, do anexo G da sua declaração de rendimentos de IRS referente ao ano de 2016, nem tampouco os documentos comprovativos do efectivo recebimento do valor das operações, nem procedeu à entrega dos meios financeiros usados na transacção, factos importantes para a inspecção tributária sindicar a legalidade e a conformidade daquele valor com a legislação fiscal. Em suma, concluiu a Requerida a este respeito que tal como reflectido no relatório de inspecção tributária, existiam indícios de que as diferentes declarações entregues pelo Requerente não reflectiam a sua real situação, não tendo este optado por esclarecer os factos aí constantes de forma satisfatória, mesmo quando notificado para tal. Considerações estas que a Requerida considerou serem eram igualmente aplicáveis à presente instância arbitral, porquanto o Requerente não teria carreado aos autos todos elementos pedidos e integrantes destes factos tributários, nomeadamente a prova do efectivo recebimento do valor de transacção/alienação.

                Quanto à concreta determinação do valor de realização argumentou a Requerida que é o próprio artigo 52.º, do Código do IRS que estabelece na alínea b) do n.º 2 que o valor deve ser apurado com base no último balanço, tout court, sem que devam ser ponderadas as correcções que o Requerente entende que devem ser feitas. Assim, no entender daquela, o valor de realização foi calculado pelos serviços de inspecção tributária de acordo com a legislação aplicável, que determina no presente caso a consideração do balanço de 2015 para efeitos de determinação do valor de alienação presumido, ao qual foi aplicado o coeficiente de desvalorização da moeda em conformidade com o disposto no artigo 50.º, do Código do IRS e na Portaria n.º 316/2016, de 14 de Dezembro.

                Em face do exposto, entende a Requerida que foram efectuadas as diligências necessárias e recolhidos os meios de prova que legalmente se impunha quanto à aplicabilidade do artigo 52.º, do Código do IRS, tendo sido seguidos os procedimentos e observados os princípios da verdade material, do inquisitório e de participação impostos a toda a actividade da AT, bem como os princípios de capacidade contributiva, da confiança e da boa-fé invocados pelo Requerente. Por conseguinte, defendeu a Requerida que os serviços de inspecção tributária respeitaram na sua actuação todas as normas legais em vigor, razão pela qual os actos de liquidação impugnados não padeciam dos vícios invocados pelo Requerente.

                Defendeu ainda a Requerida que a classificação enquanto PME das sociedades cujas acções foram alienadas dependia do cumprimento dos requisitos constantes do anexo ao Decreto-Lei n.º 372/2007, de 6 de Novembro para o qual remetia o n.º 4, do artigo 43.º, do Código do IRS. Para o efeito, salientou a Requerida que nos termos da alínea a), do n.º 6 da Circular n.º 7/2014, de 29 de Julho, foi sancionado por despacho do Director-Geral da AT de 24 de Abril de 2014, o entendimento segundo a qual “A existência de Certificação emitida pelo IAPMEI, válida à data da alienação das partes sociais, faz presumir a verificação dos requisitos materiais constantes do anexo ao Decreto-Lei nº 372/2007, de 6 de novembro, pelo que releva como prova bastante do estatuto de micro ou pequena empresa para efeitos do regime previsto nos nºs 3 e 4 do artigo 43º do CIRS”. Tendo em conta este entendimento, e uma vez analisados os documentos juntos aos autos, registou a Requerida que a sociedade C..., S.A. havia sido certificada pelo IAPMEI como pequena empresa em 5 de Agosto de 2016, razão pela qual a mais-valia apurada apenas deveria ser considerada em 50% do respectivo valor. Pelo contrário, sublinhou a Requerida que a sociedade B..., S.A. havia sido certificada pelo IAPMEI como média empresa em 3 de Agosto de 2016, razão pela qual a mais-valia apurada não beneficiaria do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 43.º, do Código do IRS, devendo ser considerada na sua totalidade. Em face do exposto, concluiu a Requerida que a pretensão do Requerente deveria ser parcialmente acolhida relativamente às mais valias apuradas em virtude da alienação das acções da sociedade C..., S.A., cujo valor apenas deverá ser considerado em 50% do respectivo montante.

                Por fim, sublinhou a Requerida que apesar de o Requerente ter exercido a opção pelo englobamento dos rendimentos em análise, este mantém o direito de optar pela taxa especial de 28% prevista no artigo 72.º, n.º 2, alínea c), do Código do IRS, de tal forma que deverá ser acolhida a pretensão formulada a este respeito.

                Por tudo o exposto, concluiu a Requerida pela procedência parcial dos argumentos invocados pelo Requerente nos termos descritos.

                7. Por despacho proferido em 13 de Novembro de 2020, foi designado o dia 21 de Janeiro de 2021 para realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT. Posteriormente, em virtude da impossibilidade de realização da referida reunião na data indicada, foi proferido despacho no qual foi a mesma remarcada para o dia 23 de Fevereiro de 2021. No seguimento de requerimento da Requerida, foi proferido despacho no qual se reagendou a realização da referida reunião para o dia 24 de Fevereiro de 2021. Tendo em conta novo requerimento no qual a Requerida demonstrou a sua oposição a que as testemunhas arroladas pelo Requerente fossem inquiridas por videoconferência sem que o respectivo depoimento fosse realizado a partir das instalações físicas do CAAD, foi proferido despacho que determinou sem efeito a diligência em questão. Por fim, mediante despacho, foi remarcada para o dia 20 de Maio a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, cuja realização ocorreu na data aprazada, tendo sido produzida a prova testemunhal peticionada pelo Requerente. As partes foram igualmente notificadas para, querendo, apresentarem alegações escritas, faculdade que vieram a exercer, reforçando os argumentos efectuados nas peças processuais já anteriormente apresentadas. No âmbito da referida reunião foi ainda prorrogado por dois meses o prazo para prolação da decisão, determinando-se que a decisão final seria proferida até ao seu termo.

 

8. Tendo em conta que o processo de elaboração da decisão final ainda não se encontrava terminado, tendo em conta a tramitação processual verificada, os períodos de férias judiciais decorridos na pendência do processo, o disposto no artigo 17.º-A, do RJAT, bem como a pública situação de pandemia que assola o país, foi determinada, por despacho arbitral datado de 21 de Julho de 2021 e, posteriormente, de 10 de Setembro de 2021, a prorrogação por dois meses do prazo para emissão e notificação da decisão final nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, do RJAT.

 

II. SANEAMENTO

 

                9. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Não foram alegadas pelas partes, nem existem quaisquer excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

10. Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

a)            Em 26 de Janeiro de 2016 o Requerente alienou a D... 874.900 acções da sociedade anónima B..., S.A., pelo valor de € 536.000,00 (cfr. documento 6 junto pelo Requerente aos autos e o depoimento da testemunha D...);

b)           Em 28 de Março de 2016 o Requerente alienou à sociedade E..., S.A., 100.000 acções da sociedade anónima C..., S.A., pelo valor de € 100.000,00 (cfr. documento 7 junto pelo Requerente aos autos);

c)            Em 27 de Junho de 2016 o Requerente alienou à sociedade E..., S.A., 46.668 acções da sociedade anónima C..., S.A., pelo valor de € 46.668,00;

d)           Em 31 de Maio de 2017 o Requerente entregou a declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS referente ao período de tributação de 2016, em regime de tributação conjunta, na qual declarou no anexo G menos-valias no valor de 291.600,00 € decorrentes da alienação onerosa das seguintes participações sociais:

- 874.900 acções da B..., S.A., cujo valor de aquisição foi de € 827.600,00 e o valor de realização de € 536.000,00;

- 100.000 acções da C..., S.A., cujo valor de aquisição foi de € 100.000,00 e o valor de realização de € 100.000,00;

- 46.668 acções da C..., S.A., cujo valor de aquisição foi de € 46.668,00 e valor de realização de € 46.668,00;

e)           O Requerente pretendia um valor mais elevado pela alienação das acções da sociedade B..., S.A., contudo, o adquirente não estava disposto a pagar mais em virtude do risco que a sociedade representava, já que esta ainda estava no início da sua actividade e encontrava-se a desenvolver projectos de investimento ao abrigo de vários programas apoiados pelo Estado de valor muito significativo embora condicionado à concretização futura de objectivos de vendas, rentabilidade, emprego e exportações (cfr. depoimento da testemunha D...);

f)            A sociedade B..., S.A., necessitava de financiamento para o desenvolvimento da sua actividade, contudo, o Requerente tinha dificuldades em obter financiamento bancário em virtude de entraves junto do Banco de Portugal resultantes de anteriores negócios por este efectuados (cfr. depoimento das testemunhas F...);

g)            O Requerente pretendia abandonar a estrutura societária da B..., S.A. e focar se mais na C..., S.A., já que não tinha tempo para se dedicar às duas sociedades, que tinham objectos sociais distintos (cfr. depoimento das testemunhas F...);

h)           A B..., S.A. e a C..., S.A., continham activos não realizados e passivos potencialmente exigíveis inscritos na contabilidade que influenciavam o capital próprio (cfr. depoimento das testemunhas F... e G...);

i)             Em 20 de Julho de 2018 foi instaurada acção de inspecção interna de âmbito parcial sob a ordem de serviço n.º OI2018..., com o intuito de sindicar as menos-valias mobiliárias declaradas pelo Requerente quanto ao IRS do período de tributação de 2016;

a)            O Requerente foi notificado do projecto de relatório de inspecção em 19 de Setembro de 2017;

b)           Em 4 de Dezembro de 2018 o Requerente exerceu o direito de audição no âmbito do procedimento inspectivo estabelecido sob a ordem de serviço n.º OI2018... (cfr. documento 4 junto pelo Requerente aos autos);

c)            Em 4 de Dezembro de 2018 o Requerente entregou declaração modelo 3 de IRS de substituição, em regime de tributação separada, na qual assinalou que as participações sociais alienadas correspondiam a acções de micro e pequenas empresas, tendo ainda optado pelo englobamento dos rendimentos de menos valias (cfr. documento 9 junto pelo Requerente aos autos);

d)           Em 14 de Março de 2019 o Requerente entregou nova declaração modelo 3 de IRS de substituição, em regime de tributação separada, na qual não assinalou que as participações sociais alienadas correspondiam a acções de micro e pequenas empresas, tendo ainda optado pelo englobamento dos rendimentos de menos valias (cfr. documento 10 junto pelo Requerente aos autos);

e)           Em virtude da apresentação de declaração de substituição de IRS em regime de tributação separada a AT encerrou a ordem de serviço n.º OI2018..., que não deu lugar a correcções, tendo instaurado em 26 de Março de 2019, sob a ordem de serviço n.º OI2019..., emitida apenas em nome do Requerente, nova acção de inspecção tributária interna de âmbito parcial, com o intuito de sindicar as menos-valias mobiliárias declaradas pelo Requerente quanto ao IRS do período de tributação de 2016;

f)            O Requerente foi notificado do projecto de relatório de inspecção em 11 de Setembro de 2019;

g)            Em 28 de Setembro de 2019 o Requerente requereu, por e-mail dirigido à Direcção de Finanças de Braga, o alargamento em dez dias do prazo para o exercício do direito de audição (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);

h)           Em 30 de Setembro de 2019 a AT procedeu à notificação do Requerente do deferimento do alargamento do prazo para exercício do direito de audição até 25 dias (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);

i)             Em 22 de Setembro de 2019 o Requerente remeteu, por e-mail dirigido à Direcção de Finanças de Braga, a pronúncia relativa ao projecto de relatório de inspecção (cfr. PA junto pela Requerida aos autos);

j)             Através do ofício n.º..., proferido pela Direcção de Finanças de Braga em 5 de Novembro de 2019, foi o Requerente notificado do relatório final de inspecção tributária, do qual consta a seguinte fundamentação (cfr. documento 5 e PA juntos, respectivamente, pelo Requerente e pela Requerida aos autos):

 

k)            Na sequência deste relatório de inspecção a AT emitiu em 22 de Novembro de 2019 o acto de liquidação n.º 2019..., os actos de liquidação de juros compensatórios n.º 2019 ... e n.º 2019 ... e a demonstração de acerto de contas n.º 2019..., todos referentes ao IRS do período de tributação de 2016;

l)             Em 29 de Junho de 2020 o Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

III.1.2. Factos não provados

 

11. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

12. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (“CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram assim seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre do artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Considerando as posições assumidas pelas partes nas respectivas peças processuais, o disposto nos artigos 110.º, n.º 7 e 115.º, n.º 1, ambos do CPPT, a prova documental, o PA junto aos autos, bem como a convicção formada durante a inquirição das testemunhas apresentadas pelas partes em sede da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT que apresentaram depor com isenção e conhecimento dos factos sobre os quais incidiram os seus depoimentos, com particular relevo para a determinação do valor das acções transaccionadas e para as condições que estiveram na base da respectiva venda pelo Requerente, consideraram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se consideraram provadas nem não provadas as alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

 

III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados

 

                13. Quanto à ordem de conhecimento dos vícios dispõe o artigo 124.º, do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT que o Tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação. Quanto a estes últimos, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pelo Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público. Na falta da referida relação, deverão ser conhecidos prioritariamente os vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, uma tutela dos interesses ofendidos mais estável ou eficaz.

                No seu pedido de pronúncia arbitral o Requerente estabelece uma relação de subsidiariedade entre os vícios invocados, relação essa que é melhor perceptível se for tida em conta a sua relação com os pedidos deduzidos a final. Assim sendo, caberá apreciar em primeiro lugar o vício de falta de fundamentação do recurso à presunção estabelecida pelo artigo 52.º, do Código do IRS e a errónea interpretação e aplicação do mesmo. Em segundo lugar analisar se-á a invocada inconstitucionalidade do artigo 52.º, do Código do IRS quando interpretado no sentido de que a sua aplicação pode ser efectuada com base no silêncio do contribuinte e na entrega de declarações de substituição. Em terceiro lugar caberá analisar o vício subjacente à quantificação do valor de realização com base no último balanço. Em quarto lugar caberá analisar o vício invocado quanto à falta de consideração do regime aplicável às PME na determinação das mais-valias realizadas e, por fim, o direito invocado pelo Requerente quanto à opção pela taxa de tributação autónoma se mais favorável.

                Ainda que o vício de falta de fundamentação seja um vício de natureza formal cuja anulação não obsta necessariamente à renovação do acto anulado, na medida da supressão do referido vício, a verdade é que o seu conhecimento em primeiro lugar é determinante para que sejam aferidos os pressupostos de facto e de direito subjacentes à emissão dos actos impugnados, pressupostos esses que estão conexionados com a legalidade da aplicação pela AT do artigo 52.º, do Código do IRS. Dito de outro modo, a falta de conhecimento suficiente da motivação da decisão da AT poderá implicar o incumprimento das exigências legais relativas à determinação do valor de realização das acções alienadas pelo Requerente, de tal forma que sempre seria conveniente apreciar este vício de natureza procedimental em primeiro lugar.

 

III.2.2. Falta de fundamentação do recurso à presunção estabelecida pelo artigo 52.º, do Código do IRS

 

                14. Enquanto ponto de partida, cumpre determinar o âmbito de aplicação do artigo 52.º, do Código do IRS, já que o cumprimento do dever de fundamentação pela AT terá de ser aferido em função das particulares exigências que dele decorrem.

                À data dos factos, dispunha o n.º 1 do referido artigo que:

“Artigo 52.º

Divergência de valores

1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.”.

                Decorre desta norma que a AT tem a faculdade de proceder à determinação do valor de realização quanto à generalidade das alienações realizadas pelos contribuintes que gerem mais valias e menos-valias na medida em que considere provável a existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão. Para o efeito, a AT não terá de demonstrar a concreta e efectiva divergência entre os valores em questão, mas tão só a possibilidade fundada da sua existência.

                Em todo o caso, esta faculdade conferida à AT, não é de utilização livre ou desvinculada, porquanto se exige que seja devidamente fundamentada a possibilidade de existir a referida divergência. Quer isto dizer que sobre a AT recai o ónus de demonstrar e justificar, designadamente através dos elementos probatórios reunidos no procedimento de inspecção tributária, a existência de fundados indícios ou dúvidas sérias sobre a falta de correspondência com a realidade do valor de realização declarado pelo Requerente não bastando, portanto, que o valor em questão seja considerado inverosímil, improvável ou pouco usual.

                Tal como se referiu no acórdão arbitral de 19 de Janeiro de 2021, proferido no âmbito do processo arbitral n.º 812/2019-T, o artigo ora em análise faz recair sobre a AT o ónus de realizar as diligências que entenda adequadas à confirmação da possibilidade de existir uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, designadamente através da “junção ao processo dos documentos comprovativos dos fluxos financeiros associados à operação entre comprador e vendedores, ainda que, para o efeito, a AT necessitasse de se socorrer do procedimento de abertura do sigilo bancário; a audição, por escrito, do adquirente, sobre os termos e condições em que realizou o negócio; a análise das contas da sociedade cujo capital as ações alienadas representavam, visando a verificação da existência de créditos ou de débitos dos vendedores sobre a sociedade e que, por via da alienação das ações, estivessem a ser transferidos para o adquirentes, sem que o respetivo valor se refletisse no preço”.

                Uma vez cumprido este ónus, poderá então a AT fixar o valor de realização das transmissões efectuadas pelo contribuinte, tendo em consideração para o efeito as presunções estabelecidas pelo legislador sempre que esteja em causa a alienação de acções, quotas ou outros valores mobiliários. A este respeito, dispõe-se nos n.ºs 2 e 3 do artigo 52.º, do Código do IRS que:

“2 - Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;

b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.”.

                Uma vez que no caso em apreço estava em causa a alienação de acções não cotadas em bolsa, após a demonstração da possibilidade de existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, caberia à AT determinar o valor de realização, presumindo para o efeito que o mesmo correspondia ao valor apurado com base no último balanço.

                Assente que está o sentido e o alcance do artigo 52.º, do Código do IRS cumpre então aferir se a fundamentação da AT constante do relatório de inspecção tributária – que constitui a fundamentação dos actos de liquidação – cumpriu ou não com o desiderato exigido para a aplicação daquela norma.

                A este respeito, recorde-se, defendeu o Requerente que “[n]o relatório de inspeção não é indicado um único facto índice que pudesse indicar à AT, fundadamente, que existiu simulação do preço, ou dito de outra forma, que o valor real do negócio diverge do valor do contrato. (…) Com efeito, a AT não prova de forma séria, os fundamentos que lhe permitiriam

lançar mão do disposto no artigo 52º do Código do IRS para praticar o ato tributário ora impugnado”. Acrescentou ainda o Requerente que “[d]urante a inspeção não foram ouvidas testemunhas, recolhidos documentos ou feitas quaisquer diligências instrutórias nem nas empresas cujas acções foram vendidas, nem junto dos compradores, nem foi ouvido o Requerente ou a sua esposa (…) [n]ão tendo sido recolhido nenhum indício da falta de veracidade do preço declarado pelo contribuinte (…) não tendo o relatório de inspeção nenhum anexo (…) [s]endo manifesto o défice instrutório desta inspeção”.

                É certo que na prossecução das suas atribuições a AT não se encontra obrigada a realizar todas as diligências requeridas pelos contribuintes, recaindo sobre o órgão instrutor do procedimento o prudente juízo de determinar quais as diligências e os meios de prova que se afiguram indispensáveis e necessários à realização do interesse público e à descoberta da verdade material, conforme sustentou a Requerida na sua resposta com base no artigo 6.º, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”) e nos artigos 58.º, 60.º e 72.º da LGT. Contudo, o cumprimento do princípio do inquisitório comina para a AT a obrigação de reunir os elementos que permitam o cabal apuramento da verdade material e, bem assim, o cumprimento do ónus da prova dos factos constitutivos dos seus direitos.

                Ora, não se pode considerar que a AT tenha cumprido com o ónus de fundamentação que sobre si recaía nos termos conjugados dos artigos 74.º, n.º 1, da LGT e 52.º, n.º 1, do Código do IRS. De facto, da fundamentação constante do relatório de inspecção tributária não resulta uma demonstração fundada da possibilidade de o valor de alienação declarado não corresponder ao valor efectivamente praticado. Na verdade, e tal como referiu o Requerente, no relatório de inspecção não consta qualquer menção ou indicação das dúvidas ou indícios que firmaram na esfera da Requerida a convicção da possível existência daquela divergência.

                Ao invés, a AT limitou-se a efectuar afirmações estritamente conclusivas, reproduzindo os valores constantes da declaração Modelo 3 de IRS entregue pelo Requerente e a referir que este não remeteu os seguintes elementos/documentos comprovativos solicitados pelos serviços de inspecção tributária:

“- documentos comprovativos da aquisição e da alienação das participações sociais mencionadas no quadro 9 – ALIENAÇÃO ONEROSA DE PARTES SOCIAIS E OUTROS VALORES MOBILIÁRIOS, do anexo G da declaração de rendimentos de IRS, referente ao ano de 2016;

- documentos comprovativos do efetivo recebimento do valor das operações de alienação das participações sociais acima referidas”.

                Posteriormente, refere que o Requerente entregou duas declarações de substituição e refere, uma vez mais, a falta de entrega dos elementos solicitados, mencionando nesta sequência que “A Autoridade Tributária tem a possibilidade de proceder à determinação do valor da alienação dos valores mobiliários em causa, nas situações de fundada divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão”. Consequentemente, procedeu à correcção do valor de realização das acções alienadas com base na presunção do da alínea b), do n.º 2, do artigo 52.º, do Código do IRS.

                Conforme se verifica, AT funda os seus “indícios” na entrega de declarações de substituição pelo Requerente e na falta de entrega dos elementos solicitados.

                Quanto ao primeiro “indício”, basta referir que os valores de realização declarados não foram em momento algum alterados, apenas se verificando uma alteração da conformação jurídica relativamente à opção pela tributação conjunta, à consideração das empresas cujas acções foram alienadas como respeitando a PME e ao englobamento do resultado da alienação das acções. Neste sentido, as referidas alterações em nada alteraram o apuramento da menos valia que o Requerente havia inicialmente declarado, mas tão só os efeitos que consequentemente se repercutem na determinação do rendimento líquido global e no modo de determinação da colecta. Acresce que a apresentação de declarações de substituição consiste num direito do contribuinte nos termos do artigo 59.º, do CPPT, não se tendo verificado o reconhecimento pelo Requerente de um qualquer erro de facto ou de direito no que em concreto respeita às operações de alienação de acções por si realizadas, de tal modo que não se percebe como poderá a apresentação daquelas declarações fundar um indício de falta de correspondência à realidade do valor de realização praticado.

                Quanto ao segundo “indício”, a AT acaba por inverter o ónus da prova, impondo ao Requerente a prova negativa da inexistência de divergência, quando o n.º 1 do artigo 52.º, do Código do IRS é cristalino no sentido de impor à AT a sua demonstração nos termos já referidos. E se a AT pretendia sindicar o efectivo recebimento do valor das operações de alienação das participações sociais ora em questão, ao invés de adoptar uma postura passiva e inactiva, sempre poderia ter encetado diligências para o efeito, designadamente através do acesso às informações ou documentos bancários do Requerente por via do procedimento de abertura do sigilo bancário previsto no artigo 63.º-B, da LGT.

                Acresce que, ao contrário do sufragado pela Requerida, o dever de colaboração imposto ao Requerente pelo artigo 59.º, da LGT foi cumprido, já que este remeteu por e-mail dirigido à Direcção de Finanças de Braga os elementos que entendeu relevantes para o efeito, conforme resulta da matéria de facto dada como provada nos presentes autos. Ainda que esses elementos constem do PA – não sendo, portanto, desconhecidos pela Requerida – a verdade é que esta não se pronunciou quanto à sua admissibilidade, quanto à sua correspondência com os elementos que haviam sido solicitados, nem tampouco quanto ao respectivo impacto na confirmação ou no afastamento dos indícios de falta de correspondência à verdade que entendia estarem verificados quanto ao valor de realização declarado pelo Requerente. Neste sentido, não assiste razão à Requerida quando sustenta a ilisão da presunção de veracidade da declaração do contribuinte com base no não esclarecimento da sua situação tributária (alínea b), do n.º 2, do artigo 75.º, da LGT) e, muito menos, com base na existência de omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados nas declarações do Requerente e que não reflectem ou impedem o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo (alínea a), do n.º 2, do artigo 75.º, da LGT).

                Em todo o caso, e mesmo que assim não fosse, o certo é que a ilisão da presunção de veracidade da declaração do contribuinte, de per si, não preenche os pressupostos do art.º 52.º, n.º 1 do CIRS, pelo que, independentemente daquela, sempre estaria a AT onerada com a prova de tais pressupostos.

                Por fim, cumpre referir que a falta de coincidência entre o valor de alienação e o valor que resultaria da consideração do último balanço não permite justificar a existência de uma divergência para efeitos de aplicação do n.º 1, do artigo 52.º, do Código do IRS. Isto na medida em que a aplicação da alínea b), do n.º 2 daquele artigo depende da prévia e necessária aplicação do seu n.º 1. Dito de outro modo, a prévia demonstração da fundada possibilidade de existir uma divergência entre o valor real e o valor declarado é condição sine qua non para a aplicação das presunções que o legislador estabelece quanto ao preço que deverá ser considerado enquanto valor de realização e já não o seu contrário, isto é, que a aplicabilidade das presunções permite fundar a possibilidade de existir a mencionada divergência. Convém recordar a este respeito que a tributação segundo presunções constitui a excepção no âmbito do Direito Tributário, na medida em que estas impõem uma tributação que, com elevado grau de probabilidade, não incidirá sobre a efectiva capacidade contributiva demonstrada pelo sujeito passivo. E ainda que a consagração de presunções que afectem a incidência a imposto possam ser justificáveis por razões de praticabilidade e de prevenção da fraude e evasão fiscal, não se poderá descurar que o princípio da capacidade contributiva constitui “o pressuposto, o limite e o critério da tributação”, conforme evidencia SÉRGIO VASQUES, em Manual de Direito Fiscal, reimpressão, Almedina, 2015, p. 296. Neste sentido, a determinação e quantificação pela AT de uma matéria tributável diversa daquela que resulta da declaração do contribuinte terá de ser devidamente fundamentada em função das exigências constantes do artigo 52.º, n.º 1, do Código do IRS.

                De resto, a falta de coincidência entre o valor de alienação e o valor que resultaria da consideração do último balanço não implica por si só que o valor pelo qual as acções foram alienadas não corresponde ao valor realmente praticado. Por um lado, porque haverá que determinar o concreto valor do balanço que servirá de base ao apuramento do valor das acções. Por outro lado, porque poderão existir diversos motivos subjacentes à alienação das acções por um valor inferior ao constante do último balanço, sem que em causa esteja um qualquer indício da existência de um intuito elisivo, de tal forma que a divergência que se possa verificar poderá ser perfeitamente justificável.

                Ora, no presente caso existiram motivos concretos e atendíveis que justificaram a necessidade de o Requerente alienar as acções por um valor que resultou no apuramento de menos valias, tendo sido tais motivos certificados pela prova testemunhal produzida e que se encontram devidamente mencionados na matéria de facto dada como provada, para a qual se remete.

                Aqui chegados, e tendo em conta a ausência de indicação e demonstração fundada da possível existência de uma divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão não se poderá considerar que a AT tenha cumprido com o dever de fundamentação que lhe era exigido. Veja-se que o direito à fundamentação é um direito fundamental dos administrados nos termos dos artigos 268.º, da CRP e 77.º, da LGT, que visa conferir aos sujeitos passivos a possibilidade de atestarem a legalidade dos actos praticados pela AT, tomando a opção consciente entre a sua aceitação ou a sua impugnação pela via administrativa ou judicial, tal como registam DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, em Lei Geral Tributária - Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 2012, páginas 675 e seguintes. Para o efeito, pode considerar-se que o acto tributário estará suficientemente fundamentado e que está consequentemente cumprido o desiderato de conferir ao contribuinte a sindicância da sua legalidade “quando o administrado, colocado na posição de destinatário normal - o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do C.Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo do seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual. Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma sucinta, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos de facto e de direito que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração na determinação do acto”, conforme salientou o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 12 de Março de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 01674/13.

                Em face de tudo o exposto, não se pode considerar que a AT tenha fundamentado devidamente os actos de liquidação emitidos, porquanto não é sequer possível aferir o “itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração” para a aplicação do artigo 52.º, do Código do IRS, já que o relatório de inspecção é completamente omisso quanto à demonstração dos indícios fundados que justificaram o recurso àquela norma. Neste sentido, a AT efectuou uma interpretação e aplicação ilegal do artigo 52.º, do Código do IRS, sendo procedente o vício de falta de fundamentação dos actos de liquidação ora impugnados que deverão, consequentemente, ser anulados nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPA subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

III.2.3. Juros Compensatórios

 

                15. Os juros compensatórios “constituem uma reparação de natureza civil que se destina a indemnizar a Administração Tributária pela perda de disponibilidade de uma quantia que não foi liquidada atempadamente”, conforme referiu a decisão arbitral, datada de 29 de Abril de 2019, proferida no âmbito do processo n.º 405/2018-T. A liquidação destes juros tem enquanto pressuposto o acto de liquidação de IRS emitido pela AT, de tal forma que os vícios imputados ao acto de liquidação irão repercutir-se em idêntico sentido nos actos de liquidação de juros, razão pela qual deverão ser igualmente anulados.

 

 III.2.4. Questões de conhecimento prejudicado

 

                16. Uma vez declarada procedente a ilegalidade dos actos de liquidação objecto do presente processo em virtude da verificação de um vício de falta de fundamentação, que constitui causa da anulabilidade daqueles actos e que impede a sua renovação com a mesma fundamentação, não se justifica a apreciação dos demais vícios imputados pelo Requerente aos actos em questão, já que parte do juízo efectuado quanto à falta de fundamentação assenta na não verificação dos pressupostos de facto e de direito de que dependia a aplicabilidade do artigo 52.º, do Código do IRS. Nesta medida, a apreciação dos restantes vícios sempre consubstanciaria no presente caso a realização da prática de actos inúteis proibida pelo artigo 130.º, do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

                Em face do exposto, não se toma conhecimento dos demais vícios.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

a)            Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pelo Requerente e, em consequência, anular os actos tributários impugnados nos autos;

b)           Condenar a Requerida nas custas do processo, no valor de € 12.852,00.

 

V. VALOR DO PROCESSO

               

                Atendendo ao disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixando-se ao processo o valor de € 900.682,08.  

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 12.852,00, a cargo da Requerida, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de Novembro de 2021.

 

Os Árbitros

 

José Pedro Carvalho

 

Fernando Rocha Andrade

 

Nos termos e para os efeitos do art.º 153.º/1 do CPC e do art.º 15.º-A do DL 10-A/2020, de 13-03, alterado pelo art.º 3.º do DL 20/2020, de 01-05, atesto o voto de conformidade do Sr. Prof. Doutor Fernando Rocha Andrade.

 

Carla Castelo Trindade

(relatora)