Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 330/2019-T
Data da decisão: 2020-02-10  IVA  
Valor do pedido: € 4.405.002,57
Tema: IVA – Regularização relativa a créditos incobráveis. Efeitos do incumprimento de Processo Especial de Revitalização prévio à regularização. Arts. 78.º-A, n.º 4 e 78.º-B, n.º 9 CIVA.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam os Árbitros Fernanda Maçãs (árbitro Presidente), Alexandra Coelho Martins e António de Barros Lima Guerreiro (árbitros vogais), o seguinte:

 

1.            RELATÓRIO

 

A sociedade “A..., S.A.”, com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, com o número único de matrícula e de pessoa coletiva ..., representada por B..., na qualidade de Administrador Judicial, com domicílio profissional na Rua ..., ..., ..., ..., ...-... ... (Requerente ou A...), apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), artigo 6.º, n.º 2, alínea b), e artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

Com o pedido de constituição do Tribunal Arbitral e de pronúncia arbitral, a Requerente pretende:

 

i)             A anulação da liquidação adicional de IVA n.º 2018..., relativa ao período 2017/11, no valor de € 4.228.156,28;

ii)            O estorno da liquidação n.º 2018..., relativa ao mesmo período, que apurou um crédito de IVA a favor da Requerente no valor de € 25.791,07, perfazendo o montante agregado de € 4.253.947,35, reflectido na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., com data limite de pagamento em 6 de Fevereiro de 2019; e

iii)           A anulação da consequente liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor de € 151.055,22, conforme reflectido na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., igualmente com data limite de pagamento de 6 de Fevereiro de 2019,

actos tributários esses que totalizam o valor de € 4.405.002,57 (Liquidações Adicionais).

 

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral, no qual se identificava a árbitro designada pela Requerente (Dra. Alexandra Coelho Martins), foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), que indicou como árbitro o Dr. António de Barros Lima Guerreiro.

 

Os árbitros designados pelas partes designaram, por acordo, a Exma. Senhora Conselheira Fernanda Maçãs como árbitro presidente, tendo comunicado a aceitação do encargo dentro do prazo.

 

Notificadas as partes dessa designação, não foi apresentada qualquer reserva pelo que, em conformidade com o preceituado no artigo 13.º, n.º 1 do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Coletivo foi declarado constituído em 29 de julho de 2019.

                Em resumo, a Requerente, que foi declarada insolvente em 26 de julho de 2017, sustenta o seguinte:

 

A.           Que o seu fornecedor, a sociedade C..., S.A. (C...), não cumpriu os requisitos legais da regularização do IVA a seu favor, e isto porque:

i.             “[A] regularização de imposto a favor da C... vertida na declaração periódica respeitante ao período 2017/11 teve por base a incobrabilidade de créditos sobre a Requerente, em função das medidas previstas no plano de recuperação aprovado no âmbito do processo especial de revitalização n.º .../14...TYLSB, que veio a ser homologado em 15 de janeiro de 2015”;

ii.            Acontece que “a Requerente incumpriu o plano de recuperação aprovado no âmbito do mencionado processo especial de revitalização n.º .../14...TYLSB, tendo sido […] declarada insolvente por sentença datada de 26 de julho de 2017 […], i. e., em data anterior à regularização do IVA pela  C...”;

iii.           De forma que, à data em que “a C... procurou exercer o putativo direito de regularização do imposto a seu favor, o plano de recuperação da Requerente homologado em 15 de janeiro de 2015 já não produzia quaisquer efeitos jurídicos quanto ao seu crédito.”;

iv.           E tanto assim “que a C... voltou a reclamar integralmente, já no âmbito do processo de insolvência, a totalidade dos créditos cujo suposto perdão parcial a habilitariam a recuperar o IVA em ca[u]sa.”;

v.            Como “na base da pretensão de regularização de IVA a favor da C... se encontra a incobrabilidade de € 22.749.370,26, correspondentes a 52,343% de um crédito de € 43.462.050,00, que assim se teria reduzido para apenas € 20.712.679,74 (i.e., € 43.462.050,00 - € 22.749.370,26)” e “no âmbito do processo de insolvência da Requerente, a C... voltou a reclamar a totalidade desse crédito (rectius, excecionando uma parte entretanto paga) e não apenas a parcela de € 20.712.679,74 que seria ainda “cobrável” após a verificação da incobrabilidade na proporção de 52,343% no dito plano de recuperação homologado em 15 de janeiro de 2015”, segue-se que o fundamento da pretensão de regularização de IVA a favor da C... deixou de existir antes mesmo de ser reivindicada;

vi.           “Pelo que, e em suma, não havia, afinal, nenhum perdão parcial do crédito da C... sobre a Requerente, nem nenhuma incobrabilidade parcial do mesmo – nem de 52,343%, nem de qualquer outra percentagem –, quando a C... regularizou a seu favor o imposto em causa na sua declaração periódica de 2017/11.”;

vii.          Como, aliás, fora reconhecido no Relatório de Inspeção Tributária (pp. 5-6): “Já no âmbito do processo de insolvência, os créditos considerados incobráveis só serão suscetíveis de regularização após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, conforme artigo 78.º-A n.º 4 alínea b) do CIVA, podendo a C... a partir dessa data, na sua qualidade de credora, proceder à regularização do IVA incluído nas faturas correspondentes apenas à parte não perdoada, isto desde que as faturas estejam em mora até 24 meses (contados da data do respectivo vencimento até à data do facto relevante - o trânsito em julgado), por força da conjugação da parte final do n.º 4 com o n.º 2 alínea a), ambos do artigo 78°-A do CIVA.”;

viii.         Razão pela qual “a regularização de imposto a favor da C... só poderá ocorrer após se concluir pela incobrabilidade do crédito reclamado no âmbito do processo de insolvência da A...”;

ix.           “Pelo que não estavam em novembro de 2017 nem em janeiro de 2018 – nem estão à data de hoje –, reunidas as condições que permitam concluir pela incobrabilidade do crédito da C... e consequente regularização do IVA a favor do sujeito passivo, nos termos e para os efeitos a que se refere o artigo 78.º-A do Código do IVA.”;

x.            “Pelo que não incidia sobre a Requerente em novembro de 2017 nem em janeiro de 2018 – e, em bom rigor, continua a não incidir hoje – qualquer obrigação de «rectificação da dedução inicialmente efetuada»”;

 

B.            Que – ainda que assim não se entendesse – a C... não cumpriu o prazo de comunicação da regularização à Requerente (quer na aceção de “termo do prazo de regularização”, quer na aceção de “data anterior à certificação pelo ROC”), e isto porque:

 

B.1.        Quanto ao termo do prazo de regularização:

 

i.             “[E]m cumprimento do disposto no artigo 78.º-B, n.º 9, do Código do IVA, para efeitos de regularização dos créditos considerados incobráveis nos termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 4, do Código do IVA: «(…) é comunicado ao adquirente do bem ou serviço, que seja um sujeito passivo do imposto, a anulação total ou parcial do imposto, para efeitos de rectificação da dedução inicialmente efectuada, devendo esta comunicação identificar as faturas, o montante do crédito e do imposto a ser regularizado, o processo ou acordo em causa, bem como o período em que a regularização é efectuada.»”

ii.            E “o prazo para regularização é de dois anos a contar do primeiro dia do ano civil seguinte ao facto que a determine.”;

iii.           Pelo que, como “a C... regularizou imposto a seu favor com fundamento na homologação do plano de recuperação da Requerente pelo juiz do processo em 15 de janeiro de 2015”, “acaso o direito ainda existisse no final de 2017 – o que já se demonstrou não ser o caso –, o prazo para o efeito terminaria em 1 de janeiro de 2018.”

iv.           Sendo “a própria AT que interpreta o normativo vigente no sentido de, em termos práticos, ser possível ao sujeito passivo credor enviar a comunicação em causa ao sujeito passivo devedor apenas um dia antes do termo da data da entrega da declaração periódica relevante ou, mais grave ainda, da efectiva entrega se posterior, mesmo que fora de prazo.”;

v.            Pois que “decorre do Ofício Circulado n.º 30161/2014, de 8 de julho (“Ofício Circulado”), que tal comunicação «deve ocorrer em data anterior à certificação pelo ROC» (…), sendo precisamente tal interpretação a invocada pela AT no Relatório, a pág. 6, para responder ao argumentado pela ora Requerente no Direito de Audição a este respeito.”;

vi.           “[A]firma-se taxativamente no Relatório ser suficiente que a comunicação ocorra em data anterior à certificação pelo ROC, «não sendo, pois, exigido que aquela comunicação seja efectuada exclusivamente no período da regularização, no caso concreto, até 30/11/2017».”;

vii.          “Ora, como nos termos do n.º 2 do artigo 78.º-D a certificação pelo ROC pode ocorrer «até ao termo do prazo estabelecido para a entrega da declaração periódica ou até à data de entrega da mesma, quando esta ocorra fora do prazo», a AT está, em termos práticos, a permitir que a comunicação ocorra a qualquer tempo, enquanto for possível entregar a declaração periódica, mesmo que fora de prazo...”;

viii.         “Ou seja, o sujeito passivo credor pode comunicar, obter a certificação do ROC e entregar a declaração periódica «fora de prazo», mas o sujeito passivo devedor surpreendido tem até de entregar uma declaração de substituição… dentro do prazo da declaração original.”;

ix.           “Trata-se (…) de uma violação flagrante do princípio da legalidade tributária, consignado no artigo 103.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“a Constituição”), porquanto, de forma direta, a AT, por via “circulatória”, vem sustentar uma interpretação normativa que altera as circunstâncias e condições de que depende a obrigação de rectificação da dedução de imposto prevista no n.º 9 do artigo 78.º-B do Código do IVA.”;

x.            “Assim sendo, é manifesto que, quer se considere o respectivo conteúdo, quer se contemplem os efeitos que a AT dele pretende extrair imputando à ora Requerente uma infracção do artigo 78.º-B, n.º 9, do Código do IVA, por legitimar uma comunicação para lá do termo do prazo de regularização do imposto a favor do sujeito passivo credor, não pode senão considerar-se ilegal a interpretação normativo consignada no Ofício Circulado citado,”;

xi.           “Sob pena de inconstitucionalidade do próprio n.º 9 do artigo 78.º-B do Código do IVA.”;

xii.          “[S]endo intempestiva a comunicação ao adquirente, que configura uma formalidade essencial do exercício do direito à regularização do IVA pela C... – caso o mesmo existisse (…) –, caducara tal direito no dia 1  de janeiro de 2018,”;

             

                B.2.        Quanto à data anterior à certificação pelo ROC:

 

i.             “[A]inda que (…) se considerasse cumulativamente que:

(i)           a C... tinha efectivamente direito à regularização a seu favor do IVA associado a parte do crédito sobre a Requerente (apesar de, como amplamente demonstrado, nenhuma parte se poder afinal considerar incobrável ao abrigo de um plano de recuperação vigente); e que

(ii)          o artigo 78.º-B, n.º 9, do Código do IVA deveria ser interpretado no sentido de ser suficiente comunicar tal regularização até data anterior à da certificação do ROC, ao passo que a Requerente se encontrava obrigada a regularizar o imposto a favor do Estado por referência ao mesmo período e não relativamente ao período em que efectivamente ocorreu a comunicação. […]

Sempre se imporia a anulação das Liquidações Adicionais em virtude do incumprimento factual, pela C..., do prazo “generoso” que lhe é concedido pela interpretação normativa sustentada pela AT quanto ao n.º 9 do artigo 78.º-B do Código do IVA.”;

ii.            “Efetivamente, tal como resulta da pág. 2 do Relatório:

i.             A regularização foi efetuada na declaração periódica do período de tributação de 2017/11, com data limite de entrega em 10 de janeiro de 2018;

ii.            A certificação do ROC data de 10 de janeiro de 2018; e

iii.           A comunicação à Requerente data de 8 de janeiro de 2018.”;

iii.           “[M]esmo que pudesse ser aceite a interpretação normativa propugnada pelo Ofício Circulado e adotada no Relatório segundo a qual «A comunicação deve ocorrer em data anterior à certificação pelo ROC», afigura-se, afinal, inegável que a mesma apenas ocorreu em 10 de janeiro de 2018, i.e., na data da certificação pelo ROC e não “em data anterior” à mesma.”;

iv.           “[S]eria inconcebível, à luz dos objetivos que presidem à estipulação de um prazo para a realização de tais formalidades, que o credor pudesse simplesmente, “à última hora”, registar uma comunicação por via postal, conformando-se em que a mesma chegasse quando o prazo de submissão da declaração periódica do devedor já tivesse decorrido.”;

v.            “Efetivamente, se fosse admissível que a comunicação em causa pudesse ter natureza não recetícia, ao mesmo tempo em que se exige que o devedor regularize o imposto a favor do Estado no mesmo período em que o credor o regulariza a seu favor, seria inevitável concluir que se teria instituído um sistema verdadeiramente absurdo, que obrigaria o devedor a depender da maior ou menos celeridade do credor para cumprir a lei,”;

vi.           “Não é suficiente, pois, que a comunicação seja expedida, enviada ou remetida em data anterior à certificação pelo ROC; como aliás, resulta da expressão literal do Ofício Circulado em exame, a comunicação «deve ocorrer» antes de tal data.”;

vii.          O que tem sido sublinhado pela jurisprudência em casos análogos. “Assim, num processo em que estava em causa o facto de o sujeito passivo credor não se ter assegurado da correção receção da comunicação intentada, sublinhou o STA o propósito de assegurar o conhecimento pelo adquirente da necessidade de proceder à regularização do imposto a favor do Estado, notando o seguinte:

«Já no que que respeita à comunicação ao adquirente do bem ou serviço da intenção de proceder à regularização do IVA por via da respectiva "anulação", para que aquele possa proceder à rectificação da dedução inicialmente efectuada (operação simétrica à efectuada pelo credor)…

Daí que, a comunicação efectuada pela recorrente, da qual dependia, nos termos da lei, a legalidade da "regularização" de IVA que pretendia efectuar, não tenha sido devidamente cumprida, não podendo tal irregularidade ser relevada porquanto a ora recorrente nada fez perante a devolução da carta, não permitindo assim que a comunicação chegasse ao administrador da insolvência e que este pudesse proceder ao "acerto simétrico" postulado pela anulação do IVA pelo credor.»

Assim, a formalidade indevidamente cumprida, que se afigura “ad substanciam”, impede a legalidade da regularização do IVA efectuada pelo credor…»3 Acórdão do STA de 25 de junho de 2015, proferido no âmbito do processo n.º 288/14.”;

viii.         “Por sua vez, quando recentemente se debruçou sobre o facto de a lei portuguesa fazer depender o exercício do direito à regularização do imposto associado a um crédito não pago da comunicação da mesma ao devedor, enfatizou o Tribunal de Justiça da União Europeia o seguinte:

«34        Importa, assim, que as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos perante as autoridades fiscais, para o exercício do direito a uma redução do valor tributável do IVA, se limitem às que permitem justificar que, depois de efectuada a transacção, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação. A este respeito, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar que é esse o caso das formalidades exigidas pelo EstadoMembro em causa (Acórdãos de 15 de maio de 2014, Almos Agrárkülkereskedelmi, C337/13, EU:C:2014:328, n.° 39, e de 12 de outubro de 2017, Lombard Ingatlan Lízing, C404/16, EU:C:2017:759, n.° 44).

35           No caso em apreço, um requisito como o que está em causa no processo principal, que sujeita a redução correspondente do valor tributável de um sujeito passivo, em caso de não pagamento, à comunicação prévia, por este, ao seu devedor, que seja sujeito passivo do imposto, da sua intenção de anular uma parte ou a totalidade do IVA, enquadrase, simultaneamente, no artigo 90.°, n.° 1, e no artigo 273.° da Diretiva IVA (v., por analogia, Acórdão de 26 de janeiro de 2012, Kraft Foods Polska, C588/10, EU:C:2012:40, n.os 24 e 25).

36           Quanto à observância dos princípios da neutralidade fiscal e da proporcionalidade, há que constatar que este requisito, que permite informar o devedor de que deve regularizar o valor do IVA que tenha eventualmente podido deduzir a montante, é suscetível de contribuir tanto para assegurar a cobrança exata do IVA e evitar a fraude como para eliminar o risco de perda de receitas fiscais (v., por analogia, Acórdão de 26 de janeiro de 2012, Kraft Foods Polska, C588/10, EU:C:2012:40, n.os 32 e 33).»4 Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 2018, processo C672/17, Tratave Tratamento de Águas Residuais do Ave, S.A.;

ix.           “[U]ma vez que, como documentalmente comprovado e jamais contestado pela AT, a comunicação em causa apenas chegou às mãos da Requerente às 12h31 do dia 10 de janeiro de 2018, é indesmentível que, afinal, «A comunicação [que] deve ocorrer em data anterior à certificação pelo ROC» apenas ocorreu na própria data da certificação pelo ROC (quiçá, até algumas horas mais tarde…).”;

x.            “Dessa forma «imped[indo] a legalidade da regularização do IVA efectuada pelo credor» (na formulação do STA) e, por conseguinte, a legalidade das próprias Liquidações Adicionais, cuja anulação também por este terceiro motivo se justificaria, se tal não resultasse já dos fundamentos anteriores.”;

 

C.            Que, em qualquer caso, sempre seria manifestamente ilegal a liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor de € 151.055,22, porquanto:

 

i.             “[O] STA tem vindo a pronunciar-se uniformemente no sentido de que a responsabilidade por juros compensatórios tem a natureza de uma reparação civil e que, por isso, depende do nexo de causalidade adequada entre o atraso na liquidação e a atuação do sujeito passivo e da possibilidade de formular um juízo de censura à sua atuação (a título de dolo ou negligência).”;

ii.            Ora, “nenhuma parcela do crédito sobre si de que a C... é titular foi  “perdoada” ou se revelou “incobrável” nos termos legalmente exigíveis para permitir a esta última exercer o direito à regularização do IVA correspondente”;

iii.           “[M]esmo que tal direito existisse, o mesmo não foi devida e atempadamente exercido.”;

iv.           Pelo que “entende a Requerente que não se verifica, no caso vertente, o pressuposto da culpa, o qual constitui um requisito essencial para efeitos da liquidação e cobrança de juros compensatórios”;

v.            Até porque “a AT não fundamentou, de modo algum, o aludido pressuposto”, o que, como se decidiu na decisão de 5 de agosto de 2018 do Tribunal Arbitral constituído no CAAD no Processo n.º 324/2017-T, teria de fazer.

                Notificada para o efeito, a Requerida juntou aos autos o processo administrativo (PA) e apresentou a sua Resposta, na qual, em suma, advoga o seguinte:

 

i.             “[N]os termos do disposto no artigo 78.º-A, n.º 4, al. c) do CIVA, Os sujeitos passivos podem, ainda, deduzir o imposto relativo a créditos considerados incobráveis nas seguintes situações, sempre que o facto relevante ocorra em momento anterior ao referido no n.º 2 (24 meses) em processo especial de revitalização, após homologação do plano de recuperação pelo juiz, previsto no artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”;

ii.            “A sociedade C..., ao ter procedido à regularização de imposto a seu favor na declaração periódica 2017/11, fê-lo dentro do prazo de 2 anos contados do primeiro dia do ano civil seguinte ao da constituição do direito àquela regularização (15-01-2015).”;

iii.           “Tanto a prova de certificação pelo Revisor Oficial de Contas, como a prova da devida comunicação ao adquirente foram exibidas quando solicitadas pelos Serviços de Inspecção e são datadas de 10-01-2018 e 08-01-2018, respectivamente.”;

iv.           “Ao ter recebido a comunicação da C... acerca da regularização de imposto no montante de € 4.253.947,35, a Requerente deveria ter regularizado o mesmo valor a favor do Estado no campo 41 da declaração periódica 2017/11, o que, no entanto, não se verificou.”;

v.            “Tal omissão violou o artigo 78°-B nº 9 do CIVA.”;

vi.           “[O] facto de a sociedade C... ter reclamado a totalidade dos créditos detidos sobre a ora Requerente - incluindo os perdoados no âmbito do processo de revitalização - em sede de processo de insolvência, não a impede – nem nada na lei a isso obsta, como vimos - de efectuar a regularização de imposto, desde que ocorra o facto do processo especial de revitalização, estejam verificados os respectivos pressupostos e desde que observado o prazo previsto para o efeito”;

vii.          “[N]o âmbito do processo de insolvência, os créditos considerados incobráveis só são susceptíveis de regularização após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, conforme artigo 78°-A nº 4 alínea b) do CIVA.”;

viii.         “A sociedade credora, in casu a C..., a partir da data do trânsito, pode proceder à regularização do IVA incluído nas facturas correspondentes apenas à parte não perdoada,”;

ix.           “Face ao que, tendo procedido à regularização do imposto a seu favor no período 2017/11, a C... deu estrito cumprimento ao estipulado no artigo 78º-B nº 3 do CIVA.”;

x.            “Quanto à legalidade do Ofício Circulado n.º 30161/2014 de 08/07/2014, apesar do artigo 78°-B nº 9 do CIVA não referir expressamente que a comunicação ao adquirente dos bens ou serviços pode ser efectuada até ao termo do prazo estabelecido para a entrega da declaração periódica – conforme, por exemplo, dispõe o artigo 78°-D nº 2 do CIVA para a feitura da certificação por revisor oficial de contas -, esse entendimento resulta do plasmado no ponto 111 B do dito Ofício.”;

xi.           “Aí se clarifica que:

«A comunicação deve ocorrer em data anterior à certificação pelo ROC», não sendo exigido que aquela comunicação seja efectuada exclusivamente no período da regularização, no caso concreto, até 30-11-2017.”;

xii.          “Assim, e apesar de já ter procedido em 29-12-2017 à entrega da declaração de IVA relativa ao período 2017/11, a ora Requerente, na sequência da comunicação recebida da C... acerca da regularização de imposto no montante de 4.253.947,35€ efetuada a seu favor no período 2017/11, deveria ter procedido à entrega de uma declaração periódica de substituição referente ao dito período, regularizando aquele mesmo valor a favor do Estado no respetivo campo 41, o que não se verificou.”

 

Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto na alínea c) do art.º 16.º e no art.º 19.º, ambos do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, por despacho de 12 de outubro de 2019, o Tribunal dispensou a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentar alegações, com carácter sucessivo. Foi ainda designado o dia 29 de janeiro de 2020 como data limite para prolação da decisão arbitral.

 

Nas suas alegações, a Requerente conclui da seguinte forma:

 

“A.         Apesar do silêncio da AT em relação ao que se crê ser à questão fulcral dos presentes autos, a boa decisão da causa não pode senão partir da factualidade demonstrada, sem margem para qualquer dúvida: a regularização do IVA foi efectuada pela C... ao abrigo de um PER que, no período de tributação de 2017/11, já tinha cessado todos os seus efeitos;

B.            A cessação de tais efeitos em virtude do incumprimento do PER, pela Requerente, decorre, indelevelmente, do disposto nos artigos 218.º e 17.º-A, n.º 3, do CIRE;

C.            Impondo-se, ao abrigo dessas normas, a conclusão de que as medidas referentes a moratória e a perdão de créditos previstas no plano de recuperação homologado em 15 de janeiro de 2015 ficaram sem quaisquer efeitos em consequência do incumprimento desse plano;

D.           Pelo que, em face do disposto no artigo 11.º, n.º 2, da LGT, não faria qualquer sentido reconhecer tal cessação total dos efeitos do PER para, a seguir, admitir que tais efeitos putativamente se mantivessem para efeito de regularização de IVA pela C...;

E.            Cumpre, aliás, sublinhar a este respeito que, contrariamente ao invocado pela AT, um sujeito passivo que exerce o seu direito à regularização do IVA ao abrigo de um PER em vigor e um sujeito passivo que o faz ao abrigo de um PER que sabe já ter cessado todo e qualquer dos seus efeitos, não se encontram em situações minimamente comparáveis;

F.            Por outro lado, crê a Requerente que é falso que, de outro modo, a C... viesse a “perder” o seu direito à regularização do IVA, porque a poderia lograr, legitimamente, na sequência da declaração de insolvência da Requerente;

G.           O que, aliás, é consentâneo com o facto de a C... ter voltado a reclamar a totalidade dos créditos no âmbito da insolvência;

H.           Não basta, pois, para efeitos de regularização do IVA, que o PER tenha, em algum momento, existido: é necessário que o mesmo tenha perdurado, tenha sido cumprido, e os seus efeitos se tenham mantido na ordem jurídica;

I.             Mas nada disso sucedia sequer no momento em que a regularização foi intentada, inviabilizando, necessariamente, tal regularização do IVA pela C..., com este fundamento;

J.             Já quanto ao procedimento, é de sublinhar que a extensão do prazo para a comunicação da regularização do IVA, tal como foi acolhida no Ofício-Circulado, não encontra qualquer correspondência pela Lei;

K.            O que torna a “interpretação analógica” pela qual a AT envereda absolutamente ilegítima, por violação do disposto no artigo 11.º, n.º 4, da LGT;

L.            Inquinando a Liquidação Adicional, também, pela inconstitucionalidade do artigo 78.º-b, n.º 9, do CIVA, na interpretação normativa sufragada pela AT;

M.          E impondo aos sujeitos passivos uma obrigação que é, na prática, impossível de cumprir, já que sempre ficarão sujeitos a receber comunicações pretensamente legítimas para efeitos de regularização do IVA, até ao dia do termo do prazo para entrega da declaração periódica de IVA e do correspondente imposto;

N.           O que, como é bom de ver, não só não encontra acolhimento na Lei, como colide frontalmente com a interpretação que dela tem sido feita, quer pelos tribunais nacionais, quer pelo TJUE.”

 

A Requerida optou por não apresentar alegações.

 

2.            SANEAMENTO

 

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.

 

O processo não enferma de nulidades.

 

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.

 

3.            MATÉRIA DE FACTO

 

3.1.        Factos provados

 

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme disposto nos artigos 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 607.º, n.ºs 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força das alíneas a) e e) do artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (artigo 596.º do CPC aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, consideram-se provados os seguintes factos:

A.           A A..., S.A., aqui Requerente, sociedade comercial, constituída em 29 de Setembro de 2006 sob a forma de sociedade anónima, com o CAE 20144 - FABR. OUTROS PROD. QUÍMICOS ORGÂNICOS BASE, N.E., estava enquadrada para efeitos de IVA no regime normal de periodicidade mensal, tendo cessado a sua actividade em 17 de Maio de 2018 – cf. RIT, junto como documento 6 com o pedido de pronúncia arbitral (ppa). Também provado por acordo.

B.            A Requerente adquiriu à sociedade C... o projecto, construção, instalação e operação de uma fábrica de produção de vapor, electricidade, água desmineralizada, gases industriais e tratamento de efluentes, no contexto do qual, conforme estabelecido no contrato celebrado, lhe foram debitadas, entre outras, prestações fixas de capital – “Fixed Capital Charges” – no valor de € 43.462.050,00, que continham IVA facturado pela C... que a Requerente deduziu – cf. RIT e documento 8 junto com o ppa.

C.            A Requerente não pagou no respectivo prazo de vencimento as referidas prestações fixas de capital relativas aos bens e serviços que lhe foram fornecidos pela C..., nem o IVA correspondente – cf. RIT.

D.           Por sentença judicial proferida no âmbito do processo especial de revitalização (PER) n.º .../14...TYLSB, foi homologado, em 15 de Janeiro de 2015, um plano de recuperação da Requerente, ao abrigo do previsto no artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) – cf. RIT.

E.            No âmbito deste PER n.º .../14...TYLSB, o plano de recuperação estabeleceu o perdão (parcial) dos créditos que a C... detinha sobre a Requerente relacionados com prestações fixas de capital ("Fixed Capital Charges"), na proporção de 52,34%, ao qual correspondia o valor de IVA de € 4.253.947,35. O plano de recuperação previa ainda um plano de pagamentos para os créditos não perdoados e foi objeto de homologação pelo juiz em 15 de Janeiro de 2015, nos termos do artigo 17.º-F do CIRE – cf. RIT.

F.            A Requerente incumpriu o plano de recuperação – cf. documento 7 junto com o ppa.

G.           Foi, na sequência deste incumprimento [do PER], requerida a insolvência da Requerente por um dos seus credores, a D..., S.A., dando origem ao processo de insolvência n.º .../17...T8LSB, que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 1 do Tribunal da Comarca de Lisboa – cf. documento 7 junto com o ppa. 

H.           Neste processo de insolvência, a C... reclamou a totalidade dos créditos detidos sobre a Requerente (incluindo juros de mora), no valor de € 80.290.448,62, que foi reconhecido. Este montante inclui a parcela de € 43.462.050,00 de “Fixed Capital Charges” (que foi depois deduzida do valor de € 8.005.148,83, relativo a pagamentos entretanto efectuados pela Requerente), relativamente à qual tinham sido perdoados no âmbito do plano de recuperação do PER (entretanto incumprido) créditos na proporção de 52,343% daquele no valor, na importância de € 22.749.370,26, a que corresponde IVA (incluído) de € 4.253.947,35 – cf. RIT e documentos 8 a 10 juntos com o ppa.

I.             Por sentença judicial de 26 de julho de 2017, proferida no âmbito do mencionado processo de insolvência n.º .../17...T8LSB, que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, a Requerente foi declarada insolvente – cf. documento 7 junto com o ppa.

J.             A C... regularizou a seu favor o valor de € 4.253.947,35 de IVA que havia faturado à Requerente, relativo a uma parte das prestações de “Fixed Capital Charges”  não pagas por esta e que tinham sido objecto de perdão parcial no plano de recuperação homologado no PER, no campo 40 da declaração periódica de IVA relativa ao período de Novembro de 2017, cujo prazo limite de entrega terminou em 10 de Janeiro de 2018 – cf. RIT.

K.            A declaração periódica de IVA da Requerente relativa ao período de Novembro de 2017 havia já sido submetida em 29 de Dezembro de 2017 – cf. RIT.

L.            A referida regularização de IVA foi comunicada pela C... à Requerente, por carta registada datada de 8 de Janeiro de 2018 e recepcionada por esta em 10 de Janeiro de 2018 – cf. RIT e documento 11 junto com o ppa.

M.          Os créditos a que respeita a regularização de IVA no valor de € 4.253.947,35 realizada pela C... foram certificados por Revisor Oficial de Contas em 10 de Janeiro de 2018 – cf. RIT.

N.           A Autoridade Tributária e Aduaneira realizou uma acção de inspeção levada a efeito pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de ..., ao abrigo da Ordem de Serviço interna OI2018..., de 2 de Novembro de 2018 – cf. RIT.

O.           A mencionada acção inspectiva teve por objectivo proceder à correcção em sede de IVA do valor de € 4.253.947,35, por ter sido detectado pela AT que este montante não tinha sido regularizado pela Requerente a favor do Estado, após a comunicação recebida do fornecedor C... de o citado valor de IVA ter sido regularizado a seu favor [da C...] no campo 40 da declaração periódica relativa ao período de Novembro de 2017 – cf. RIT.

P.            Em 13 de Novembro de 2018, os serviços da AT notificaram o Administrador Judicial da Requerente do Projeto de Relatório de Inspecção Tributária, datado de 6 de Novembro de 2018, que preconizava uma correcção de IVA na importância de € 4.253.947,35, para, querendo, se pronunciar sobre o mesmo, ao abrigo do direito de audição consagrado no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT), o que este veio a fazer no dia 30 de Novembro, aduzindo argumentos idênticos aos alegados na presente acção arbital – cf. RIT e documento 5 junto com o ppa.

Q.           A AT considerou inatendíveis todos os argumentos vertidos no Direito de Audição, concluindo no Relatório de Inspeção Tributária, datado de 26 de Dezembro de 2018 e notificado em 28 de Dezembro de 2018, ser “de manter a correção proposta no Projeto de Relatório de 6 de novembro de 2018, a qual se tornará definitiva”, com base nos fundamentos que parcialmente se transcrevem – cf. RIT:

“III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS

                […]

Verificou-se que C... SA, ao ter procedido à regularização de imposto a seu favor na declaração periódica 2017/11, fê-lo dentro do prazo de 2 anos contados a partir do primeiro dia do ano civil seguinte ao da constituição do direito àquela regularização (15/01/2015, data de homologação do plano de recuperação pelo juiz), conforme disposto no artigo 78º-B nº 3 do CIVA.

Foram solicitados à C... SA os requisitos constantes dos artigos 78º-B nº 9 e 78º-D nºs 2 e 3 do CIVA, os quais estabelecem que aquelas regularizações deverão ter como base a certificação de ROC, ou seja, o ROC deve verificar o cumprimento dos requisitos legais para a dedução do IVA até ao termo do prazo estabelecido para a entrega da declaração periódica (78º-D nºs 2 e 3 do CIVA), e que deve ser comunicado ao adquirente, sujeito passivo de imposto, que foi feita a anulação total ou parcial do imposto para que este efetue também a retificação da dedução anteriormente efetuada (78.-B nº 9 do CIVA).

Na sequência da referida solicitação, foi-nos apresentada a respetiva certificação pelo ROC, bem como a devida comunicação ao adquirente […], as quais são datadas de 10/01/2018 e 08/01/2018, respetivamente, dentro dos prazos estabelecidos para o efeito.

Ao ter recebido a comunicação da C... SA acerca da regularização de imposto no montante de 4.253.947,35€ efetuada a seu favor no período 2017/11, o sujeito passivo deveria ter regularizado o mesmo valor a favor do Estado no campo 41 da declaração periódica 2017/11, o que não se verificou […], situação que infringe o artigo 78º-B nº 9 do CIVA.

Face ao exposto, propõe-se uma correção no valor de 4.253.947,35€, imputável à declaração de IVA entregue pela A... SA relativamente ao período 2017/11.

[…]

IX – DIREITO DE AUDIÇÃO - FUNDAMENTAÇÃO

                […]

                Face ao exposto no exercício do direito de audição, cabe-nos referir o seguinte:

                Para efeitos das regularizações de IVA efetuadas / a efetuar pela C... a seu favor relativamente aos créditos considerados incobráveis detidos sobre a A..., há que distinguir duas situações.

                Por um lado, os créditos perdoados no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER), com base no artigo 78º-A nº 4 alínea c) do CIVA, e por outro, os créditos que reclamou posteriormente no processo de insolvência, nos termos do artigo 78º-A nº 4 alínea b) do CIVA, mas cuja regularização respeita apenas aos créditos não perdoados.

Com efeito, o facto da C... ter reclamado a totalidade dos créditos detidos sobre a A... (incluindo os perdoados no âmbito do PER) em sede de processo de insolvência, não a impede de efetuar a regularização de imposto referente ao montante perdoado no âmbito do PER, desde que verificados os respetivos pressupostos e observado o prazo previsto para o efeito (dois anos a contar do 1.º dia do ano civil seguinte, conforme previsto no artigo 78º-B nº 3 do CIVA).

Outro entendimento poderia originar tratamento diferenciado de sujeitos passivos em idênticas condições, apenas distinguido pelo momento que, dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito, tenha sido escolhido para a realização da regularização.

Já no âmbito do processo de insolvência, os créditos considerados incobráveis só serão suscetíveis de regularização após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, conforme artigo 78º-A nº 4 alínea b) do CIVA, podendo a C... a partir dessa data, na sua qualidade de credora, proceder à regularização do IVA incluído nas faturas correspondentes apenas à parte não perdoada, isto desde que as faturas estejam em mora até 24 meses (contados da data do respetivo vencimento até à data do facto relevante – o trânsito em julgado), por força da conjugação da parte final do nº 4 com o nº 2 alínea a) ambos do artigo 78º-A do CIVA.

No que respeita ao prazo para regularizar o imposto referente ao montante perdoado no âmbito do PER, o mesmo é de dois anos a contar do 1.º dia do ano civil seguinte ao da constituição do direito àquela regularização (15/01/2015, data de homologação do plano de recuperação pelo juiz), conforme previsto no artigo 78º-B nº 3 do CIVA, o que significa que, estando a C... enquadrada, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade mensal, poderia proceder àquela regularização entre os períodos de imposto 2016/01 e 2017/12.

Ao ter procedido à regularização do imposto a seu favor no período de 2017/11, a C... deu cumprimento ao estipulado no artigo 78º-B nº 3 do CIVA.

Por outro lado, e apesar do 78º-B nº 9 do CIVA não referir expressamente que a comunicação ao adquirente pode ser efetuada até ao termo do prazo estabelecido para a entrega da declaração periódica, conforme dispõe o artigo 78º-D nº 2 do CIVA no que se refere à certificação pelo revisor oficial de contas, esse entendimento resulta do plasmado no ponto III B do Ofício Circulado nº 30161/2014 de 08/07/2014, onde na parte relacionada com a «Comunicação ao adquirente – Artigo 78º-B, nº 9», se clarifica que «A comunicação deve ocorrer em data anterior à certificação pelo ROC», não sendo pois exigido que aquela comunicação seja efetuada exclusivamente no período da regularização, no caso concreto, até 30/11/2017.

Desta forma, sendo o prazo limite para a entrega da declaração de IVA do período 2017/11, de 10/01/2018, a C..., por forma a cumprir o requisito constante do artigo 78º-B nº 9 do CIVA, teria que proceder até àquela data à comunicação à A... da anulação parcial do imposto, o que se veio a verificar, uma vez que conforme Anexo IV – Folhas 1 a 8, a comunicação foi efetuada em 08/01/2018. Foi ainda dado cumprimento ao disposto no Ofício Circulado nº 30161/2014 de 08/07/2014, uma vez que a certificação pelo ROC ocorreu em 10/01/2018, data posterior à referida comunicação.

Assim, e apesar de já ter procedido EM 29/12/2017 à entrega da declaração de IVA relativa ao período 2017/11, a A..., na sequência da comunicação recebida da C... acerca da regularização de imposto no montante de 4.253.947,35€ efetuada a seu favor no período 2017/11, deveria ter procedido à entrega de uma declaração periódica de substituição referente a 2017/11, regularizando aquele mesmo valor a favor do Estado no respetivo campo 41, o que não se verificou, pelo que desta forma infringiu o artigo 78º-B nº 9 do CIVA.

Quanto ao argumento invocado de que a A..., já em contexto de insolvência declarada por sentença transitada em julgado, não teria meios para regularizar, a favor do Estado, aquela verba, importa referir que não é a circunstância da A... possuir ou não meios financeiros para efetuar aquela regularização a favor do Estado que a torna indevida. 

No que se refere às considerações efetuadas acerca dos procedimentos a realizar tendentes à cobrança da dívida, não nos cabe pronunciar, já que os mesmos não são da competência dos Serviços de Inspeção Tributária.

Nos termos expostos, é de manter a correção proposta do Projeto de Relatório de 6 de Novembro de 2018, a qual se tornará definitiva.”

R.            Na sequência da acção inspetiva acima assinalada, a Requerente foi notificada dos seguintes actos tributários relativos a IVA e juros compensatórios que totalizam o valor de € 4.405.002,57:

(a)          Liquidação adicional de IVA n.º 2018..., datada de 26 de Dezembro de 2018, relativa ao período 2017/11, no valor de € 4.228.156,28 – cf. Documento 1 junto com o ppa;

(b)          Estorno da Liquidação de IVA n.º 2018..., relativa ao mesmo período, que apurou um crédito de IVA a favor da Requerente no valor de € 25.791,07, perfazendo o valor agregado de € 4.253.947,35, reflectido na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., datada de 28 de Dezembro de 2018, com data limite de pagamento em 6 de Fevereiro de 2019 – cf. Documento 2 junto com o ppa; e

(c)          Liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., de 26 de Dezembro de 2018, no valor de € 151.055,22, reflectido na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., igualmente com data limite de pagamento de 6 de Fevereiro de 2019 – cf. Documentos 3 e 4 juntos com o ppa.

S.            A Requerente não procedeu ao pagamento do IVA e juros compensatórios liquidados adicionalmente – provado por acordo.

T.            Inconformada com os actos tributários ora identificados de liquidação de IVA e juros compensatórios, a Requerente apresentou, em 7 de Maio de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.

 

3.2.        Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação do mérito da causa que hajam sido dados como não provados.

 

3.3.        Fundamentação

 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos aos autos pelas Partes e nas posições por elas assumidas nos articulados apresentados, apreciados segundo a livre convicção do Tribunal, sendo as questões suscitadas exclusivamente de direito.

 

4.            MATÉRIA DE DIREITO

 

4.1.        Questões a decidir

 

A primeira questão que importa decidir é a da subsistência do direito à regularização do IVA por parte da sociedade C... na data do seu exercício. 

 

Caso tal questão tenha resposta positiva, importará apurar se a notificação da regularização por parte da  C... à Requerente foi efectuada dentro do prazo legal previsto para o efeito, consubstanciando a comunicação requisito legal do qual depende a legalidade dessa regularização, de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo – cf. Acórdãos de 25 de Junho de 2015, processo n.º 288/2014, e de 5 de Junho de 2019, processo n.º 0939/12.0BEBRG.

 

Finalmente, caso se conclua pela subsistência do direito à regularização e pela tempestividade da sua comunicação à Requerente, importará ainda decidir sobre a aplicação de juros compensatórios.

 

4.2.        Introdução. Quadro legal aplicável

 

A Requerente vem opor-se a uma liquidação de IVA que teve por fundamento a obrigação de rectificação a favor do Estado, prevista no artigo 78.º-B, n.º 9 do Código do IVA, da dedução de imposto inicialmente efectuada pela aquisição de bens e serviços, no caso concreto, ao fornecedor/prestador C... .

 

Com efeito, na sequência do não pagamento pela Requerente de fornecimentos de bens e serviços realizados pela C..., foi-lhe instaurado [à Requerente] um Processo Especial de Revitalização, cujo plano de recuperação, homologado judicialmente, estabeleceu um perdão de dívida de 52,343% dos créditos relativos a prestações fixas de capital “Fixed Capital Charges”. O IVA correspondente, de € 4.253.947,35, foi regularizado pela C... (a seu favor) e está em discussão a repercussão da obrigação simétrica (de reposição a favor do Estado) na esfera do devedor, aqui Requerente, tendo em conta que este imposto foi originariamente deduzido por esta, sem que todavia o houvesse pago à C... .

 

Assim, a rectificação que a AT entende ser devida pela Requerente decorre, e é indissociável, da regularização de IVA que o sujeito passivo prestador [C...] realizou, nos moldes previstos nos artigos 78.º-A, n.º 4, alínea c) e 78.º-B, n.º 9 do Código do IVA, reportando-se exactamente às mesmas operações, pelo que a situação deve ser analisada globalmente.

 

Dada a apontada conexão entre o dever de rectificação do IVA (a favor do Estado), que a AT entende impender sobre a Requerente, e o direito a regularizar (a seu favor) esse mesmo IVA, por banda do prestador C..., interessa aferir, antes de mais, da existência deste direito e do seu exercício nas condições legalmente previstas.

 

O ponto suscitado pela Requerente é o de que o pressuposto que suportou a regularização do IVA pela C... inexistia no momento em que esta a efectivou, por assentar num plano de recuperação que, em virtude do incumprimento da Requerente, ficou sem efeito e, bem assim, o perdão (parcial) de dívidas nele consagrado. Os créditos perdoados foram-no na condição de ser cumprido o plano de recuperação do PER, com a tempestiva satisfação dos pagamentos aí contemplados em relação aos demais créditos, o que não veio a suceder.

 

Deste modo, para a Requerente, na ausência de um plano de recuperação vigente e eficaz que alicerçasse o perdão (parcial) dos créditos, i.e., que preenchesse o pressuposto da norma constante do artigo 78.º-A, n.º 4, alínea c) do Código do IVA, a regularização de imposto pela C... com base nesta disposição não pode deixar de ser considerada indevida, atenta a falta de enquadramento na sua previsão.

 

Tal regularização poderá ser realizada pela C... de acordo com a previsão de outra alínea (a alínea b)) do mesmo preceito, respeitante a créditos abrangidos por processo de insolvência, mas apenas quando se verificar o “trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos”, surgindo de igual modo nesse momento, e não antes, a concomitante obrigação na esfera da Requerente, de regularização do IVA a favor do Estado, dependente naturalmente da prévia comunicação por parte do credor.

 

Em síntese, a Requerente alega que a regularização de IVA efetuada pela C... reportada ao período de Novembro de 2017 e materializada na Declaração Periódica de IVA apresentada até 10 de Janeiro de 2018, não tem fundamento legal, por ser inaplicável in casu o disposto no 78.º-A, n.º 4, alínea c) do Código do IVA, de onde deriva a inexistência do correspectivo dever, referido no artigo 78.º-B, n.º 9 daquele Código, de rectificação do IVA (inicialmente deduzido) por parte da Requerente, o que inquina de invalidade, por vício material, o acto de liquidação deste imposto e inerentes juros compensatórios. 

 

                Com relevância para as questões suscitadas interessa compulsar a disciplina de regularizações contida no Código do IVA e na Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, publicada no JO L347, de 11 de dezembro de 2006, que estabelece a disciplina do “sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado” na União Europeia (Diretiva IVA), de que o Código que constitui transposição, bem como o disposto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), sobre o incumprimento do plano de recuperação.

 

                Dispunha o Código do IVA, na redacção em vigor à data dos factos, o seguinte:

 

“Artigo 78.º do Código do IVA

Regularizações

1 - As disposições dos artigos 36.º e seguintes devem ser observadas sempre que, emitida a fatura, o valor tributável de uma operação ou o respetivo imposto venham a sofrer retificação por qualquer motivo.

2 - Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.

3 - […].

4 - O adquirente do bem ou destinatário do serviço que seja um sujeito passivo do imposto, se tiver efectuado já o registo de uma operação relativamente à qual o seu fornecedor ou prestador de serviço procedeu a anulação, redução do seu valor tributável ou rectificação para menos do valor facturado, corrige, até ao fim do período de imposto seguinte ao da recepção do documento rectificativo, a dedução efectuada.

5 - Quando o valor tributável de uma operação ou o respectivo imposto sofrerem rectificação para menos, a regularização a favor do sujeito passivo só pode ser efectuada quando este tiver na sua posse prova de que o adquirente tomou conhecimento da rectificação ou de que foi reembolsado do imposto, sem o que se considera indevida a respectiva dedução. […]

Artigo 78.º -A

Créditos de cobrança duvidosa ou incobráveis

Regularização a favor do sujeito passivo

1 - Os sujeitos passivos podem deduzir o imposto respeitante a créditos considerados de cobrança duvidosa, evidenciados como tal na contabilidade, sem prejuízo do disposto no artigo 78.º-D, bem como o respeitante a créditos considerados incobráveis.

2 - Para efeitos do disposto no número anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles que apresentem um risco de incobrabilidade devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

[…]

4 - Os sujeitos passivos podem, ainda, deduzir o imposto relativo a créditos considerados incobráveis nas seguintes situações, sempre que o facto relevante ocorra em momento anterior ao referido no n.º 2:

a) Em processo de execução, após o registo a que se refere a alínea b) do n.º 2 do artigo 717.º do Código do Processo Civil;

b) Em processo de insolvência, quando a mesma for decretada de caráter limitado, após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas ou, quando exista, a homologação do plano objeto da deliberação prevista no artigo 156.º do mesmo Código;

c) Em processo especial de revitalização, após homologação do plano de recuperação pelo juiz, previsto no artigo 17.º-F do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

[…]

Artigo 78.º -B

Procedimento de regularização

[…]

3 - No caso de créditos abrangidos pela alínea b) do n.º 2 e pelo n.º 4 do artigo anterior, a dedução é efetuada pelo sujeito passivo sem necessidade de pedido de autorização prévia, no prazo de dois anos a contar do 1.º dia do ano civil seguinte, reservando-se à Autoridade Tributária e Aduaneira a faculdade de controlar posteriormente a legalidade da pretensão do sujeito passivo.

[…]

9 - No caso previsto no n.º 4 do artigo anterior, é comunicado ao adquirente do bem ou serviço, que seja um sujeito passivo do imposto, a anulação total ou parcial do imposto, para efeitos de retificação da dedução inicialmente efetuada, devendo esta comunicação identificar as faturas, o montante do crédito e do imposto a ser regularizado, o processo ou acordo em causa, bem como o período em que a regularização é efetuada.

[…]

Artigo 78.º -D

Documentação de suporte

1 - A identificação da fatura relativa a cada crédito de cobrança duvidosa, a identificação do adquirente, o valor da fatura e o imposto liquidado, a realização de diligências de cobrança por parte do credor e o insucesso, total ou parcial, de tais diligências, bem como outros elementos que evidenciem a realização das operações em causa, devem encontrar-se documentalmente comprovados e ser certificados por revisor oficial de contas.

2 - A certificação por revisor oficial de contas prevista no número anterior é efetuada para cada um dos documentos e períodos a que se refere a regularização e até à entrega do correspondente pedido, sob pena de o pedido de autorização prévia não se considerar apresentado, devendo a certificação ser feita, no caso da regularização dos créditos não depender de pedido de autorização prévia, até ao termo do prazo estabelecido para a entrega da declaração periódica ou até à data de entrega da mesma, quando esta ocorra fora do prazo.

3 - O revisor oficial de contas deverá, ainda, certificar que se encontram verificados os requisitos legais para a dedução do imposto respeitante a créditos considerados incobráveis, atento o disposto no n.º 4 do artigo 78.º-A.”

 

Sobre esta matéria, a Directiva IVA determina o seguinte enquadramento:

 

“CAPÍTULO 5

Disposições diversas

Artigo 90.º

1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efectuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.

2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.º 1.

CAPÍTULO 5

Regularização das deduções

Artigo 184. º

A dedução inicialmente efectuada é objecto de regularização quando for superior ou inferior à dedução a que o sujeito passivo tinha direito.

 

Artigo 185.º

1. A regularização é efectuada nomeadamente quando se verificarem, após a declaração de IVA, alterações dos elementos tomados em consideração para a determinação do montante das deduções, por exemplo no caso de anulação de compras ou de obtenção de abatimentos nos preços.

2. Em derrogação do disposto no n.º 1, não é efectuada qualquer regularização no caso de operações total ou parcialmente por pagar, no caso de destruição, perda ou roubo devidamente comprovados ou justificados, bem como no caso das afectações de bens a ofertas de pequeno valor e a amostras referidas no artigo 16.º.

No caso de operações total ou parcialmente por pagar e nos casos de roubo, os Estados-Membros podem, todavia, exigir a regularização.

 

Artigo 186.º

Os Estados-Membros determinam as normas de aplicação dos artigos 184.º e 185.º.”

 

Por fim, interessa de igual modo atender ao que dispõe o CIRE acerca do plano de recuperação e dos efeitos do seu incumprimento:

 

“Artigo 17.º-A

 Finalidade e natureza do processo especial de revitalização

1 - O processo especial de revitalização destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com este acordo conducente à sua revitalização.

[…]

3 - O processo especial de revitalização tem caráter urgente, aplicando-se-lhe todas as regras previstas no presente código que não sejam incompatíveis com a sua natureza.

Artigo 17.º-F

 Conclusão das negociações com a aprovação de plano de recuperação conducente à revitalização da empresa

 

1 - Até ao último dia do prazo de negociações a empresa deposita no tribunal a versão final do plano de revitalização, acompanhada de todos os elementos previstos no artigo 195.º, aplicável com as devidas adaptações, sendo de imediato publicada no portal Citius a indicação do depósito.

[…]

7 - O juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.

[…]

10 - A decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 4 do artigo 17.º-C, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal.

[…]

12 - É aplicável ao plano de recuperação o disposto no n.º 1 do artigo 218.º

[…]

Artigo 218.º

Incumprimento

1 - Salvo disposição expressa do plano de insolvência em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito:

 a) Quanto a crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor;

 b) Quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.

 2 - A mora do devedor apenas tem os efeitos previstos na alínea a) do número anterior se disser respeito a créditos reconhecidos pela sentença de verificação de créditos ou por outra decisão judicial, ainda que não transitadas em julgado.

 3 - Os efeitos previstos no n.º 1 podem ser associados pelo plano a acontecimentos de outro tipo desde que ocorridos dentro do período máximo de três anos contados da data da sentença homologatória.”

 

4.3.        A Regularização de IVA relativa a créditos abrangidos por processo especial de revitalização – Arts. 78.º-A, n.º 4, alínea c) e 78.º-B, n.º 9 do Código do IVA

 

                Como resulta da análise dos artigos 17.º-A e seguintes do CIRE, o processo especial de revitalização destina-se a empresas que ainda são susceptíveis de recuperação e visa evitar a insolvência, pelo que os créditos sobre as mesmas não se caracterizam por uma incobrabilidade definitiva. No âmbito deste processo, se for bem sucedido e obtido o acordo da maioria dos credores, é estabelecido um plano de recuperação, submetido a homologação judicial, que geralmente prevê a moratória e/ou o perdão parcial das dívidas, como forma de promover e viabilizar o restabelecimento financeiro da empresa.

 

A moratória e o perdão dos créditos são concedidos pelos credores na perspectiva (e na condição) de serem satisfeitos os créditos subsistentes [não perdoados] em conformidade com o plano de pagamentos acordado. Existe, portanto, quando da celebração do acordo subjacente ao plano de recuperação, uma expectativa, ainda que contingente, de recebimento dos créditos por parte dos credores, excepto quanto aos perdoados que, juridicamente, deixam de ser exigíveis, pelo que nem se coloca, quanto a estes, a questão da respectiva cobrança.

 

Como assinalam CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, constitui “pressuposto substantivo do processo de revitalização […] a recuperabilidade do devedor”, erigida em “vector matricial do processo de revitalização”, devendo o acesso a tal processo excluir-se quando já se verifica alguma das situações que caracterizam a insolvência do devedor – cf. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª Edição, Quid Juris, 2013, pp. 142-144.

 

Assim, não se afigura que os créditos abrangidos pelo plano de recuperação ao abrigo de um PER, com a ressalva dos perdoados, passem o crivo do disposto no artigo 78.º-A, n.ºs 1 e 4, que define como parâmetro orientador da regularização de IVA estarmos perante créditos “considerados incobráveis”, pois, como se referiu, é a expectativa da sua possível cobrança que motiva os credores a criarem condições favoráveis para que a empresa se reequilibre do ponto de vista económico-financeiro, concedendo moratórias e perdões de dívidas. A expectativa de cobrança dos créditos é dificilmente inconciliável com a sua simultânea consideração como “créditos incobráveis”.

 

Neste sentido, a hipótese normativa do artigo 78.º-A, n.º 4, alínea c), ao referir-se a créditos considerados incobráveis “em processo especial de revitalização, após homologação do plano de recuperação”, dirige-se especificamente aos créditos que no âmbito desse plano foram objecto de um perdão e que, por essa razão, deixam de poder ser cobrados. Assim o parece entender AFONSO ARNALDO, sem prejuízo de colocar a este propósito diversas dúvidas sobre os créditos não perdoados – cf. “O Regime de Recuperação de IVA de Créditos de Cobrança Duvidosa ou Incobráveis: Balanço Crítico”, Cadernos IVA 2017, Almedina, p. 33 .

 

Interpretação também confirmada pela actual redacção da norma  que passou a explicitar que se reporta (apenas) a créditos cujo não pagamento definitivo esteja previsto no plano, embora tal conclusão já se retirasse da versão em vigor à data dos factos, pelo raciocínio supra exposto, dado que, como se salientou, é a expectativa de cobrabilidade dos créditos subsistentes que motiva os credores (ou, melhor dito, a maioria dos credores) a subscrever o plano de recuperação, pelo que a sua simultânea consideração como incobráveis enfermaria de contradição.

 

Termos em que, referindo-se a alínea em causa [c)] a créditos que foram “perdoados” no contexto do PER e do plano de recuperação nele gizado, e disso não temos dúvidas nem as Partes o contestam, não estamos verdadeiramente perante créditos incobráveis em sentido próprio, na acepção de créditos juridicamente exigíveis que não foram satisfeitos, mas de prestações que juridicamente, na parte aplicável, se extinguiram.

 

Sem prejuízo da opção da inserção sistemática da alínea c) em apreço no regime dos créditos incobráveis, o que pode justificar-se, dado que o referido perdão ocorre no quadro específico de um processo originado por atrasos nos pagamentos por parte do devedor, cuja capacidade para solver as suas dívidas está diminuída, certo é que, à luz da Directiva IVA, em rigor, a situação deve ser enquadrada como “redução do preço depois de efectuada a operação”, nos termos do artigo 90.º, n.º 1 da mencionada Directiva, transposto para o artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA,  que respeita à redução do “valor tributável” em consequência de diversas vicissitudes, como a redução do contrato ou a concessão de abatimentos ou descontos, após o registo das operações na contabilidade.

 

Esta distinção tem implicações no carácter obrigatório ou facultativo do regime de regularizações de IVA para os Estados-Membros. Com efeito, nas situações enquadradas como de “cobrança duvidosa” ou de “incobráveis”, às quais a Directiva IVA se reporta como de “não pagamento total ou parcial” das operações (artigo 90.º, n.º 2 da Directiva IVA), ou como “operações total ou parcialmente por pagar” (artigo 185.º, n.º 2 da Directiva IVA), é concedida aos Estados-Membros a faculdade de não preverem uma disciplina de regularizações do imposto, diferentemente do que sucede com as reduções de preço, como as que resultam de um perdão parcial da dívida, relativamente às quais o legislador nacional deve transpor o regime obrigatório de ajustamentos a posteriori (artigos 90.º, n.º 1, 184.º e 185.º, n.º 1 da Directiva IVA), que não são, desta forma, facultativos, nem passíveis de margem de opção legislativa.

 

No caso português, o legislador nacional transpôs, sob o enquadramento de créditos incobráveis, o ajustamento (obrigatório de acordo com a Directiva IVA, em concretização do previsto para os casos de redução a posteriori do valor tributável das operações, nos termos dos seus artigos 90.º, n.º 1, 184.º e 185.º, n.º 1), quer do IVA liquidado, quer da dedução do imposto, em relação ao perdão de dívidas ocorrido sob a égide do PER, nos moldes do preceituado nos artigos 78.º-A, n.º 4, alínea c) e 78.º-B, n.º 9 do Código do IVA. Sendo que se afigura que esse(s) ajustamento(s) já decorrem do disposto no artigo 78.º, n.ºs 2, 4 e 5 do diploma nacional.

 

Acresce assinalar que a rectificação obrigatória a que o procedimento do artigo 78.º-B, n.º 9 do Código do IVA alude, que constitui o fundamento legal da liquidação controvertida, recai sobre o destinatário dos bens e/ou serviços (adquirente) e não pode deixar de, no que estiver omisso, reger-se pelo que, em moldes gerais, preceitua o artigo 78.º, n.º 4 do Código do IVA para as situações de redução do valor tributável das operações (em conjugação com o seu n.º 2 e em transposição dos citados artigos 90.º, n.º 1, 184.º e 185.º da Directiva IVA), pois, como se referiu, estamos perante uma redução a posteriori do valor tributável – de extinção da dívida por perdão (e não propriamente por incobrabilidade) – não se constatando especificidade que suscite o seu afastamento ou tratamento diferenciado. Assim, o momento a que deve reportar-se a rectificação do IVA (a favor do Estado) por parte do devedor, aqui Requerente, sempre seria o fim do período de imposto seguinte ao da recepção do documento rectificativo remetido pelo fornecedor ou prestador  e não, como preconizado no RIT, o período em relação ao qual o prestador regularizou a seu favor o IVA.

 

A jurisprudência do Tribunal de Justiça, faz eco desta distinção (entre reduções do valor tributável e operações por pagar), nomeadamente no Acórdão de 22 de Fevereiro de 2018, proferido no processo C-396/16, T-2, que examinou uma situação similar de homologação judicial de uma “concordata preventiva” (equivalente, no caso em apreço, ao plano de recuperação), nos termos da qual o sujeito passivo devedor, a sociedade T2, apenas ficou obrigado ao pagamento das suas dívidas até ao montante de 44% das mesmas no prazo alargado de nove anos. Assumindo o carácter definitivo dessa decisão de homologação, impeditivo de os credores reclamarem, do ponto de vista jurídico, o pagamento total dos seus créditos, o Tribunal de Justiça concluiu que essa concordata conduz a uma redução das dívidas e não apenas ao seu não pagamento, no sentido de incobrabilidade.

 

Preconiza, neste âmbito, o Tribunal de Justiça que, embora “o artigo 90.º desta diretiva regule o direito do fornecedor de reduzir o valor tributário quando, depois de efetuada a transação, não receba a contrapartida prevista ou receba apenas uma parte da mesma, o artigo 185.º da mesma diretiva diz respeito à regularização das deduções inicialmente efetuadas pela outra parte dessa mesma transação. Por conseguinte, estes dois artigos representam as duas faces de uma mesma operação económica e importa interpretálos coerentemente. (ponto 35 do Acórdão T-2).

 

Prossegue aquele Tribunal afirmando que:

 

“36  O Tribunal de Justiça já declarou que a situação de não pagamento do preço de compra, na aceção do 90.º da Diretiva IVA, não coloca as partes na situação inicial. Com efeito, se o não pagamento total ou parcial do preço de compra ocorrer sem que tenha havido resolução ou anulação do contrato, o comprador permanece responsável pelo pagamento do preço acordado e o vendedor, apesar de já não ser proprietário do bem, ainda dispõe, em princípio, do seu direito de crédito, que poderá ser exercido nos tribunais. No entanto, uma vez que não se pode excluir que esse crédito se torne efetivamente incobrável, o legislador da União decidiu deixar a cada EstadoMembro a escolha de determinar se o não pagamento do preço de compra dá direito à redução correspondente do valor tributável nas condições fixadas pelo EstadoMembro, ou se, nesse caso, não é admitida qualquer redução (Acórdão de 12 de outubro de 2017, Lombard Ingatlan Lízing, C404/16, EU:C:2017:759, n.º 29).

[…]

41  Vistas as considerações enunciadas nos n.ºs 32 a 35 do presente acórdão, esta interpretação do conceito de «não pagamento», na aceção do artigo 90.º da Diretiva IVA, é igualmente aplicável ao conceito de «operação total ou parcialmente por pagar», na aceção do artigo 185.º, n.º 2, desta diretiva.

42  Por conseguinte, a fim de saber se o litígio apresentado ao órgão jurisdicional de reenvio diz respeito a uma operação total ou parcialmente por pagar [ou, diversamente, a uma redução do valor tributável], incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, em aplicação dos critérios expostos nos n.ºs 36 a 40 do presente acórdão, nomeadamente se, após a concordata preventiva ter sido homologada por decisão transitada em julgado, segundo o direito nacional aplicável, o comprador permanece responsável pelo pagamento do preço acordado e o vendedor ou fornecedor ainda são titulares do seu direito de crédito, que poderá ser exercido nos tribunais. Em contrapartida, se esse órgão jurisdicional dever considerar que as obrigações do devedor foram de tal modo reduzidas que a parte correspondente aos créditos dos seus fornecedores se tornou definitivamente irrecuperável, as derrogações previstas ao artigo 185.º, n.º 2, da Diretiva IVA, em caso de operações total ou parcialmente por pagar, não têm aplicação.

[…]

44  A este respeito, resulta da decisão de reenvio que a decisão de homologação da concordata preventiva em causa no processo principal impede os credores de pedirem o pagamento total dos seus créditos, e que, do ponto de vista económico, essa decisão conduz a uma redução das obrigações do devedor relativamente aos seus credores e não apenas a uma falta de pagamento. Por conseguinte, não se afigura que a redução das obrigações do devedor que resulta de uma concordata preventiva homologada por decisão judicial transitada em julgado constitui um caso de operação total ou parcialmente por pagar, o que, todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.”

 

A interpretação do Tribunal de Justiça foi reiterada no Acórdão de 3 de julho de 2019, no processo C-242/18, Unicredit Leasing, em que volta a enfatizar que “o não pagamento do preço de compra não coloca as partes no seu estado anterior à celebração do contrato. Por um lado, o comprador continua, no mínimo, a estar obrigado a pagar a totalidade do preço inicialmente acordado em caso de não pagamento total ou da parte do preço que restava pagar em caso de não pagamento parcial. Por outro lado, o vendedor ainda dispõe, em princípio, do seu crédito e pode invocá-lo em juízo (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2017, Lombard Ingatlan Lízing, C-404/16, EU:C:2017:759, n.° 29).” e “Por conseguinte, embora os termos «anulação», «rescisão» e «resolução» se re[]firam a situações em que a obrigação do devedor de pagar a sua dívida ou fica totalmente extinta ou é fixada a um nível definitivamente determinado, o não pagamento caracteriza-se pela incerteza inerente ao seu caráter não definitivo (v., neste sentido, Acórdão de 12 de outubro de 2017, Lombard Ingatlan Lízing, C-404/16, EU:C:2017:759, n.ºs 30 e 31). (ponto 55 e 56 do Acórdão Unicredit Leasing). 

 

Retomando o caso concreto, e apesar de o perdão de dívida da C... dever ser qualificado como uma verdadeira redução do valor tributável para efeitos de IVA (e não apenas como um “incobrável”), ficou patente esta redução acabou por não se verificar, pois, derivado do incumprimento do plano de recuperação, o perdão de dívida ficou sem efeito, nos termos do disposto no artigo 218.º, n.º 1 do CIRE.

 

                Efectivamente, na situação sub iudice, o credor C... procedeu, com referência a Novembro de 2017, à regularização a seu favor de IVA relativo a créditos perdoados ao abrigo do plano de recuperação aprovado e homologado em 15 de Janeiro de 2015, no âmbito do PER que teve por objecto a Requerente. Porém, tal plano havia sido incumprido, dando azo ao subsequente processo de insolvência, impulsionado por um dos credores, tendo a insolvência sido decretada em 26 de julho de 2017, i.e., antes da referida regularização.

 

Do descrito resulta que, à data a que se refere a regularização de IVA pela C... (Novembro de 2017), o estatuto da Requerente era o de devedor insolvente e não o de entidade em processo de revitalização (artigos 3.º, n.º 1 e 17.º-A, n.º 1 do CIRE). E com referência a essa mesma data não existiam quaisquer créditos perdoados, sendo juridicamente exigíveis na totalidade do seu valor.

 

Embora o artigo 78.º, n.º 4, alínea c) do Código do IVA referisse singelamente a regularização a favor do credor “após a homologação do plano de recuperação pelo Juiz”, certo é que, como acima sustentado, esta regra visava (e visa) créditos “incobráveis”, no sentido de créditos que tivessem sido “perdoados”. Ora, de acordo com o quadro factológico fixado, é inegável que em Novembro de 2017, momento a que respeita a regularização de IVA por parte da C..., da qual deriva a alegada obrigação simétrica da Requerente, não existiam créditos perdoados, em virtude de o plano de recuperação ter sido incumprido e dado sem efeito e a Requerente declarada insolvente.

 

Daí que, como hoje previsto no artigo 17.º-F, n.º 12 do CIRE e à data se concluía por via interpretativa , com amparo na remissão do artigo 17.º-A, n.º 3, in fine, para as regras previstas no Código (CIRE), fosse aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 218.º do CIRE, segundo o qual, quer o incumprimento das prestações por parte do devedor, quer a sua declaração de insolvência antes de finda a execução do plano recuperação, ditavam a cessação de efeitos da moratória ou do perdão de dívidas nele previstos.

 

Nestes termos, o incumprimento do plano de recuperação por parte da Requerente determinou que o perdão de dívida da C... ficasse sem efeito, inexistindo juridicamente, com referência a Novembro de 2017, créditos perdoados que pudessem ser considerados incobráveis sob a alçada da norma ínsita na alínea c) do n.º 4 do artigo 78.º-A do Código do IVA.

 

Tanto assim é e dessa forma o percepcionou a C... que esta entidade veio a reclamar esses créditos – outrora “perdoados”, mas entretanto repristinados em virtude do incumprimento do plano –, no processo de insolvência subsequente movido contra a Requerente. Ou seja, a C... considerou esses créditos exigíveis na sua totalidade, pois reclamou-os formalmente no processo de insolvência, actuação incompatível com a sua simultânea consideração créditos perdoados e definitivamente extintos.

 

À face do exposto, assiste razão à Requerente quando afirma que o direito à regularização do IVA por parte da C... apenas se pode alicerçar no disposto no artigo 78.º-A, n.º 4, alínea b) do Código do IVA, que regula os créditos de devedores insolventes, e que previa, na redacção em vigor à data, que o mesmo fosse exercido após o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, o que, em Novembro de 2017, ainda não se tinha verificado (não tendo sido adquirida nos autos qualquer evidência de que, até à data de hoje, o tenha sido) .

 

Deste modo, a regularização do IVA (a seu favor) pela C..., é desprovida de suporte legal, por não preencher os requisitos do artigo 78.º-A, n.º 4, alínea c), no qual se fundou, nem (ainda) os da alínea b) do mesmo n.º 4, por não se ter arguido, nem demonstrado, o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos.

 

Razão pela qual a rectificação simétrica a favor do Estado, por banda da Requerente, em virtude da redução do valor tributável das operações, também não é devida, dada a relação causal com a regularização do IVA por parte do credor, pois é nesta originada e dela depende, conforme se conclui do cotejo dos artigos 78.º, n.ºs 2 e 4, 78.º-B, n.º 9 e 78.º-A, n.º 4, todos do Código deste imposto, numa interpretação conforme à Directiva IVA.

 

Sobre a possibilidade invocada pela Requerida de o entendimento supra descrito dar origem a tratamento diferenciado de sujeitos passivos em idênticas condições, afigura-se que não é equiparável um plano de recuperação em execução e eficaz àquele que ficou sem efeito (e bem assim qualquer perdão de dívida nele contido). Afigura-se, pelo contrário, que a desigualdade surge se o tratamento dos credores dos sujeitos passivos insolventes for distinto, em função da precedência, algures no tempo, de um plano de recuperação que ficou sem efeito, pois a não produção de efeitos jurídicos cominada pela lei para a eventualidade do seu incumprimento por parte do devedor postula que tal plano seja, nessa sequência, havido como inexistente.

 

Em face do exposto, julga-se procedente o vício material de erro nos pressupostos invocado pela Requerente, sendo a liquidação de IVA impugnada anulável, em conformidade com o disposto no artigo 163.º, n.º 1 do novo CPA, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d) do RJAT.

 

4.4.        Juros compensatórios

 

                A ilegalidade da liquidação de IVA implica, de igual modo, a anulação dos juros compensatórios correspondentes. Com efeito, na situação vertente, o ato tributário é inválido por vício substantivo, por erro nos pressupostos, gerador de anulabilidade, pelo que não se verifica o requisito constitutivo previsto no artigo 35.º, n.º 1 da LGT, segundo o qual os juros compensatórios são devidos “quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”, porquanto não foi retardada a liquidação de imposto que fosse devido. 

 

4.5.        Outras questões: conhecimento prejudicado

 

À face do exposto, concluindo-se pela verificação de vício material, por erro nos pressupostos, que inquina as liquidações de IVA e de juros compensatórios objecto da presente acção arbitral, fica prejudicado ou revela-se inútil o conhecimento das demais questões, seja em relação à alegada extemporaneidade da comunicação da regularização de IVA por parte da C... à Requerente, seja ao invocado vício de fundamentação dos juros compensatórios e de falta de imputação a título de culpa (artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).

 

Acresce notar que os regulamentos administrativos emanados da AT (Ofícios-Circulados) não são fonte de direito, nem se revelam passíveis de afastar validamente uma disciplina legalmente estabelecida ou de estabelecer uma disciplina fiscal inovadora, sob pena de violação do princípio da legalidade, quando se trate de matéria de incidência ou de garantias dos contribuintes, pelo que os sujeitos passivos de IVA não têm de se conformar com os mesmos, sem prejuízo de vincularem a AT.

 

 

5.            DECISÃO

 

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido de anulação dos seguintes actos tributários:

a)            Liquidação de IVA n.º 2018... e estorno da liquidação n.º 2018..., conforme reflectidos na Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018..., perfazendo o valor agregado de € 4.253.947,35;

b)           Liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., no valor de € 151.055,22, conforme Demonstração de Acerto de Contas n.º 2018...,

tudo com as legais consequências.

 

6.            VALOR DO PROCESSO

 

                Quando seja impugnado um acto de liquidação, o valor da causa é o da importância cuja anulação se pretende, que corresponde à utilidade económica do pedido. Assim, de harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º do CPC, no artigo 97.º-A do CPPT e ainda do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.405.002,57.

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2020

 

A Árbitro Presidente

(Fernanda Maçãs)

 

A Árbitro Adjunta

(Alexandra Coelho Martins)

 

O Árbitro Adjunto

(António de Barros Lima Guerreiro)

Vencido conforme declaração

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do art.º 131.º do CPC, aplicável por remissão da al. e) do n.º 1 do art.º 29.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e com a grafia anterior ao dito Acordo Ortográfico de 1990.

 

 

 

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

A posição que fez vencimento não suscita a minha adesão   pela razão que passo sinteticamente a expor.

A  posição maioritária baseia-se  a inaplicabilidade  ao Processo de Revitalização (PEV), no caso concreto,  da dedução prevista na alínea c) do nº 4 do art. 78º- A do CIVA, que prevê a dedução do imposto relativo a créditos considerados incobráveis  em   processo de insolvência ou em Processo Especial de Revitalização, quando seja proferida sentença de homologação do plano de insolvência ou do plano de recuperação que preveja o não pagamento definitivo do crédito. Essa redação seria introduzida pelo art. 236º da Lei nº 114/2017, de 29/12, dispondo a redação substituída, em vigor a quando a constituição dos pressupostos do exercício do  direito à dedução,  esta  poder efetuar-se  em Processo Especial de Revitalização, após homologação do plano de recuperação pelo juiz, previsto art. 17º-F do CIRE,   sem qualquer menção  o plano de insolvência ou plano de recuperação prever o  não pagamento definitivo do crédito .

Na presente causa, a inexistência de previsão do não pagamento definitivo do crédito resultaria do    nº 1 do  218.º do CIRE , aplicável “ex vi” do nº 12º do art. 17º-F, do  CIRE, , introduzido pelo art. 3º do  Decreto-lei nº 79/2017, de 30/06,  nos termos do qual,    salvo disposição expressa do plano de revitalização  em sentido diverso, a moratória ou o perdão previstos no plano ficam sem efeito quanto ao crédito relativamente ao qual o devedor se constitua em mora, se a prestação, acrescida dos juros moratórios, não for cumprida no prazo de 15 dias após interpelação escrita pelo credor  e quanto a todos os créditos se, antes de finda a execução do plano, o devedor for declarado em situação de insolvência em novo processo.

Tal dedução apenas poderia ter lugar, seguindo a lógica da posição maioritária, se as partes tivessem expressamente convencionado, o que não fizeram, que o incumprimento do plano de revitalização não afetaria a eficácia da moratória ou perdão.

A dedução do IVA efetuada pelo credor da Requerente apenas poderia ter fundamento no nº 2 do art. 78º , aplicável à redução do  valor tributável das operações em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato.

É  de referir , no entanto,  que  Lei nº 114/2017, segundo o seu art. 333º, apenas entrou em vigor a 1/1/2018, pelo que a nova redação que deu à alínea b) do nº 4 do art. 78º do CIVA não tem aplicação ao caso, mas antes a redação anterior , que não impunha essa condição , mas apenas a homologação pelo juiz do plano de revitalização contendo o perdão total ou parcial do crédito.

Refira-se,  ainda assim , que a exigência de o plano de recuperação prever o  não pagamento definitivo do crédito não é incompatível com a aplicação do nº 1 do art. 218º,mas apenas com a cláusula “salvo regresso de melhor fortuna” ou o  condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor, previstos  exemplificadamente para o plano de insolvência nas alíneas  a) e b) do nº 1 do   art. 196º do CIRE.

De outro modo, o direito à dedução   dependeria de, no plano de insolvência, o credor perdoar incondicionalmente todos os créditos, independentemente de qualquer incumprimento posterior, interpretação que não consta do Ofício- circulado 20.197, de 12/01/2018, da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Valor Acrescentado (DIIVA), que enquadra as alterações feitas ao CIVA pela Lei nº 114/2017.

Esse perdão incondicional, ainda que formalmente previsto no plano de revitalização, não tem materialmente a natureza de providência de revitalização, constituindo fiscalmente uma mera liberalidade.

O legislador limitou-se, assim, a condicionar o exercício do direito à dedução aos casos em que do cumprimento do plano de insolvência resulta o não pagamento definitivo do crédito, o que é a emanação de um princípio geral aflorado no nº 3 do art. 268º do CIRE.

A posição maioritária esvazia, assim, todo o sentido e alcance, não apenas da alínea c), como da b) e ) do nº 4 do art. 78º- A.

É, assim, artificiosa a aplicação do regime de resolução, por invalidade, dos créditos previsto no nº 2 do art. 78º do CIVA, em detrimento dos arts. 78º- A a 78º- D desse Código.

É de referir a resolução do processo especial de revitalização, como o incumprimento do plano de insolvência, não implica automaticamente a reversão da dedução com fundamento na incobrabilidade do crédito.

Segundo o nº 3 do art. 78º:º- C, apenas  no  caso de recuperação, total ou parcial, dos créditos, os sujeitos passivos que hajam procedido anteriormente à dedução do imposto associado a créditos de cobrança duvidosa ou incobráveis devem entregar o imposto correspondente ao montante recuperado com a declaração periódica a apresentar no período do recebimento, sem observância do prazo previsto no n.º 1 do art.  94.º, ficando a dedução do imposto pelo adquirente dependente da apresentação de pedido de autorização prévia, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art.  anterior.

Admite, assim, o legislador a possibilidade de recuperação dos créditos incobráveis, caso em que o imposto associado deve ser entregue pelo sujeito passivo nos cofres do Estado, com a consequente retificação a favor do Estado de dedução efetuada, que apenas não é possível quando tiver irreversivelmente expirado o direito contratual ao fluxo financeiro resultante do crédito. Nesse caso, é inaplicável, o prazo de caducidade previsto no nº 1 do art. 45º da Lei Geral Tributária (LGT), para o qual remete o nº 1 do art. 94º do CIVA, podendo o imposto ser liquidado a todo o todo o tempo, sem prejuízo do prazo de prescrição.

Para o efeito, no entanto, recuperação é o recebimento efetivo do crédito incobrável.

Antes desse recebimento efetivo, inexiste qualquer dever de o sujeito passivo retificar a favor do Estado a dedução anteriormente efetuada e consequentemente qualquer direito da AT liquidar adicionalmente o IVA em virtude da omissão da retificação, ainda que vierem a ser conhecidos novos bens do devedor ou, em virtude da declaração de insolvência do devedor, se tenham tornado ineficazes a moratória ou perdão contidos no plano de insolvência ou recuperação  ou no RERE.

Tal dedução só é corrigida se, através do processo de execução ou insolvência, o sujeito passivo vier a receber efetivamente a totalidade ou parte dos créditos anteriormente declarados de cobrança duvidosa ou incobráveis. Na verdade, até essa recuperação, mantém-se a situação de insolvência ou pré-insolvência que justificou a incobrabilidade.

A posição maioritária encerra a consequência, a meu ver absurda, de o incumprimento do plano de insolvência ou recuperação imputável ao devedor sujeitar o credor que tiver acordado o perdão ou moratória   a uma liquidação adicional e à consequente obrigação de pagamento do imposto deduzido, libertando o devedor da obrigação de retificar o imposto deduzido pelo credor.

Não se imaginaria, aliás, maior desincentivo, que seria extensivo ao IRC por força do art. 41ºdo Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas(CIRC),  a   os credores do devedor aderirem   às providências de recuperação das empresas pré- insolventes, tendo em conta a forte probabilidade de, na sequência do  processo especial de revitalização , vir a ser decretada a insolvência do devedor.

Além disso, a aceitação da posição da Requerente implicaria violação do princípio da igualdade, na medida em que este impõe uma justa repartição dos encargos públicos.

Nos termos do nº 1 do art. 180º do CPPT, proferido o despacho judicial de prosseguimento da ação ou declarada a insolvência, são sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e os que de novo vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração.

Segundo o nº 2, o tribunal judicial competente avocará os processos de execução fiscal pendentes, os quais são apensados ao processo de insolvência onde o Ministério Público reclamará os créditos pelos meios aí previstos, salvo se não tiver sido constituído mandatário especial.

Nos termos do nº 6, o art.  só não é aplicável aos créditos vencidos após a declaração de insolvência, o que não é o caso.

A liquidação adicional efetuada à Requerente visa a criação de um título executivo visando habilitar o Ministério Público a reclamar o crédito em causa no processo de insolvência.

Anulada a liquidação, ficaria o Ministério Público impedido de reclamar os créditos da Fazenda Nacional, ainda que estes pudessem aproveitar de privilégio mobiliário geral.

O fato de a Requerente não ter meios financeiros para o pagamento do IVA, , o que é teoricamente concebível,  não  prejudica o cumprimento do nº 9 do art. 78º- B e da liquidação adicional resultante da omissão desse dever, sob pena de ficar inviabilizado o direito da Fazenda Nacional reclamar os seus créditos, com a consequente concessão aos restantes credores de um benefício ilegítimo.

Tal título executivo também não pode ser obtido através de uma liquidação adicional ao titular do crédito antes de este o ter efetivamente recuperado, de onde a consequência de o devedor manter uma dedução de imposto que efetivamente não suportou e eventualmente não vai posteriormente suportar.

A aplicação desse nº 3 do art. 78º- C apenas poderia ser evitada, assim, se se julgasse inaplicável a dedução da alínea c) do nº 4 do art. 78º- - A, o que, a meu ver, contraria a unidade da ordem jurídico-tributária.

A doutrina, entre outros, do Acórdão do TJUE C- 404/96 não é aplicável ao presente caso. Limita-se a esclarecer os conceitos de anulação, rescisão ou invalidade para efeitos do nº 1 do art. 90 º da Diretiva nº 2006/112/CE, ou seja, para definir os casos em que o legislador nacional está obrigado, nas condições que fixar, a reconhecer a dedutibilidade dos créditos com esse fundamento.

A posição maioritária   parece considerar que esse Acórdão assimila à anulação, rescisão ou invalidade a falta de pagamento, com a consequente aplicabilidade a esta do nº 2 do art. 78º   e consequente esvaziamento do regime de créditos incobráveis, que deixaria de ter campo de aplicação.

Tal assimilação apenas   seria abstratamente possível pressupondo os conceitos de anulação, rescisão ou invalidade desse Acórdão do TJUE, por terem natureza geral, se sobreporem aos do direito interno.

Essa definição, no entanto, tem efeitos meramente instrumentais, já que visa apenas a clarificação das obrigações impostas pela Diretiva nº 2006/112/CE,

Garantida a dedutibilidade do crédito incobrável, cabe aos Estados membros utilizar, para os efeitos da sua regulamentação, os conceitos que entender adequados.

 

António de Barros Lima Guerreiro