Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 327/2014-T
Data da decisão: 2015-06-18  Selo  
Valor do pedido: € 40.066,84
Tema: IS – Incidência subjetiva; locação financeira
*Decisão arbitral anulada por acórdão do TCA Sul de 07 de maio de 2020, recurso n.º 8894/15.9BCLSB.
Versão em PDF

 

 

Processo n.º 327/2014-T

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Guilherme W. d’Oliveira Martins, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o presente Tribunal Arbitral, constituído em 20 de junho de 2014, decide nos termos que se seguem: 

 

I. RELATÓRIO

1. A sociedade A… –, Lda., NIPC …, apresentou um pedido de constituição de tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), com vista à anulação de atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) no montante global de € 40.066,84.

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 14-04-2014 e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 16-04-2014. 

3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do correspondente encargo no prazo aplicável.

4. Em 30.12.2013 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.ºe 7.º do Código Deontológico.

5. Assim, nos termos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral foi constituído em 20.06.2014.

6. No dia 29.10.2014 teve lugar a primeira reunião do Tribunal, nos termos e para os efeitos do artigo 18.º do RJAT, tendo sido lavrada ata da mesma, que igualmente se encontra junta aos autos. 

7. Iniciada a reunião, foi dada a palavra à Representante da Requerida para se pronunciar sobre a manutenção do ato, que a mesma declarou manter.

8. De seguida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 18.º do RJAT, foi dada a palavra às representantes da Requerente e da Requerida para, por esta ordem, se pronunciarem sobre a necessidade de marcação de uma nova reunião para a realização de alegações orais.

9. No uso da palavra, os representantes da Requerente e da Requerida declararam prescindir das alegações orais.

11. O Tribunal designou o dia 20.12.2014 para a prolação da decisão arbitral.

12. Foram proferidos despachos de prorrogação de decisão em 23/12/2014, 24/02/2015, 23/03/2015, 11/04/2015, 20/04/2015, 28/04/2015, 12/05/2015.

13. Em 22/05/2015 foi admitida a junção de requerimento da requerida AT e notificou-se a Requerente para contraditório, sem prejuízo do disposto no artigo 19.º do RJAT.

14. No mesmo dia, prorrogou-se por mais 10 dias a emissão da decisão, ao abrigo do n.º 2 do artigo 21.º do RJAT, sendo essa prorrogação estendida até 20/06/2015, por via dos despachos de 05/06/2015 e 16/06/2015.

 

15. Os fundamentos do pedido da Requerente são os seguintes:

- No âmbito da atividade de compra e venda e aluguer de máquinas e de veículos automóveis que realiza, a Requerente concede soluções para a aquisição de viaturas automóveis, no âmbito do aluguer de longa duração e venda de veículos automóveis.

- A AT liquidou oficiosamente IUC à Requerente e notificou diversas notas de liquidação oficiosa de IUC e respetivos juros compensatórios, bem como de coimas relativas às viaturas indicadas e referentes aos anos de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013.

- A Requerente foi notificada no dia 31 de janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas (relativas aos IUC, juros compensatórios e respetivas coimas):

a) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 2, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

b) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 3, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

c) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 4, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

-A Requerente invoca e requer a cumulação de pedidos, uma vez que no caso em apreço estão em análise atos de liquidação de IUC em relação aos anos de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013 relativas à ora requerente e que estão em apreciação os mesmos princípios ou regras de direito, nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT.

- A requerente para evitar futuras execuções fiscais e os custos inerentes à prestação de garantias para a suspensão dos referidos processos, optou por liquidar os IUC’s em causa, juros compensatórios e respetivas coimas, tendo pago o montante total de 45.066,84 Euros, valor este que vem peticionar nos presentes autos.

- Está assim em causa IUC dos anos de 2008 a 2013, referentes as veículos, identificados no processo administrativo:

a) que foram objeto de venda a terceiros (clientes da requerente) em momento anterior ao período da tributação – conforme resultam das faturas de venda juntas nas reclamações graciosas (constantes do processo administrativo);

b) que foram dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respetivas matrículas, em momento anterior ao período de tributação - conforme resultam das faturas de venda juntas nas reclamações graciosas (constantes do processo administrativo);

- Nos termos do artigo 3.º do CIUC: “1- São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.” e “2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.” O legislador presume, portanto, que os proprietários são as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados.

- Segundo a Requerente, o sujeito passivo é o proprietário ou equiparado, considerando-se como tal a entidade que figura no registo automóvel como proprietário, mas admitindo-se prova em contrário, invocando para tal a presunção constante do artigo 7.º do Código do Registo Predial, aplicável ao registo automóvel, firmada por jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra, de 3 de junho de 2008 e 

- A Requerente apresentou, durante o decurso do processo administrativo, prova em contrário, a qual consiste, relativamente aos veículo vendidos, as faturas de venda e relativamente aos veículos perdidos, as faturas dos salvados.

- Acrescenta ainda que os adquirentes dos veículos não vieram oportunamente efetuar os respetivos registos dos veículos, na Conservatória de Registo Automóvel, pelo que na base de dados a requerente continua a figurar como proprietária dos mesmos.

- Finalmente invoca que, nos termos do disposto do artigo 73.º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, sendo que por outras palavras, são proibidas as presunções ilidíveis – invocando nesse sentido o Acórdão n.º 211/2003, de 28 de abril do Tribunal Constitucional, que conclui que uma presunção inilidível violaria o princípio constitucional da igualdade conexionado com o da capacidade contributiva.

- Face ao exposto, requerem a procedência do pedido de anulação das decisões da AT de indeferimento das reclamações graciosas, em virtude de tais decisões se fundarem em errada interpretação da lei, nomeadamente o disposto no artigo 3.º, n.º 1 do CIUC e, consequentemente dos atos tributários de liquidação dos IUC constantes dos Documentos de cobrança identificados e que foram objeto das reclamações graciosas ... 2014..., ... 2014..., ... 2014... invocadas que foram integralmente indeferidas,  com fundamento em erro sobre os pressupostos de facto, nos termos do artigo 99.º, alínea a) do CPPT, conjugado com o artigo 3.º, n.º 1, do CIUC.

16. Em resposta ao pedido da Requerente, a AT:

A AT mantém os atos objeto do requerimento inicial com os seguintes fundamentos:

·      O artigo 3.º do CIUC não contém uma presunção, mas sim uma previsão expressa e intencional de quem se considera ser sujeito passivo do CIUC;

·      O sujeito passivo é o proprietário do veículo, sendo a propriedade atestada pela matrícula ou registo em território nacional (art. 6.º, n.º 1 do CIUC).

·      Em relação aos atos tributários que continuam em discussão, os veículos a que os mesmos respeitam estavam registados a favor do sujeito passivo no período em causa, pelo que deve ser esse o sujeito passivo a tributar.

- Fundamenta amplamente na resposta que o entendimento propugnado pela requerente decorre de uma enviesada leitura da letra da lei:

·      Como a adoção de uma interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC, e,

·      Mais amplamente em todo o sistema jurídico-fiscal;

·      Mas também de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.

- Para tal a requerida socorre-se de exemplos do ordenamento, bem como atas das sessões parlamentares de 2008-03-12, na qual se consagra que “a entrada em vigor no imposto único de circulação (…) passa a tributar o proprietário do veículo e não a circulação.

- A AT mais alega que do confronto das faturas juntas pela Requerente resulta somente que as mesmas foram emitidas a diversas entidades – pessoas singulares ou coletivas – sendo o descritivo “venda do bem”, “valor residual”, e pontualmente “venda de viatura usada”, concluindo assim que a Requerente falha em demonstrar quais os veículos que foram objeto de venda a terceiro e quais os veículos que foram dados como perda total e que afirma já terem as respetivas matrículas canceladas (em data anterior ao período de tributação).

- Nestes termos, requer a AT que o pedido de pronúncia arbitral seja considerado improcedente quanto aos atos de liquidação do IUC que se mantêm.

 

II. SANEAMENTO

 

1. O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.

 

2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.

 

3. O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões prévias que importe analisar.

 

4. Estão, pois, reunidas as condições para se apreciar o mérito do pedido.

 

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.A FACTOS PROVADOS

Antes de entrar na apreciação das questões de mérito, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental e o processo administrativo tributário junto aos autos e tendo ainda em conta os factos alegados, se fixa como segue:

 

- No âmbito da atividade de compra e venda e aluguer de máquinas e de veículos automóveis que realiza, a Requerente concede soluções para a aquisição de viaturas automóveis, no âmbito do aluguer de longa duração e venda de veículos automóveis.

- A AT liquidou oficiosamente IUC à Requerente e notificou diversas notas de liquidação oficiosa de IUC e respetivos juros compensatórios, bem como de coimas relativas às viaturas indicadas e referentes aos anos de 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013.

- A Requerente foi notificada no dia 31 de janeiro de 2014, do indeferimento das seguintes reclamações graciosas (relativas aos IUC, juros compensatóriosn e respetivas coimas):

a) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 2, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

b) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 3, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

c) Reclamação graciosa n.º ... 2014..., relativa às liquidações oficiosas de IUC dos anos de 2009, 2010, 2011, 2012 e de 2013, referente aos DUC identificados no requerimento inicial e reproduzido no documento n.º 4, referente à cópia da notificação do indeferimento da reclamação;

- Está assim em causa IUC dos anos de 2008 a 2013, referentes as veículos, identificados no processo administrativo:

a) que foram objeto de venda a terceiros (clientes da requerente) em momento anterior ao período da tributação – conforme resultam das faturas de venda juntas nas reclamações graciosas (constantes do processo administrativo);

b) que foram dados como perda total e em relação aos quais já foram canceladas as respetivas matrículas, em momento anterior ao período de tributação - conforme resultam das faturas de venda juntas nas reclamações graciosas (constantes do processo administrativo);

- Das faturas juntas pela Requerente resulta que foram emitidas a diversas entidades antes dos períodos de tributação em causa, facto que a AT não contesta – pessoas singulares ou coletivas 

·      Sendo o descritivo geral “venda do bem”, “valor residual”, e pontualmente “venda de viatura usada”, 

·      Sendo o descritivo especial “venda de salvado” (fatura 99.09090, de 10/08/2012 referente ao veículo …-…-…), “indemnização por perda total” (nota de transferência n.º 22.00405, de 14/05/2013, referente ao veículo …-…-… e fatura 72.11591, de 26/11/2012, referente ao veículo …-…-…).

 

III.B FACTOS NÃO PROVADOS

Não há, alegados ou de conhecimento oficioso, factos relevantes para a decisão que não tenham sido dados como provados. 

 

III. C MOTIVAÇÃO

A fixação da matéria de facto baseou-se no processo administrativo, nos documentos juntos à petição inicial ou no decurso do presente processo e em afirmações da Requerente que não são impugnadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

III.D DA CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

Considerada a identidade dos factos tributários, do tribunal competente para a decisão e dos fundamentos de facto e de direito invocados, nada obsta, face ao disposto nos arts. 104.º do CPPT e 3.º do RJAT, à cumulação de pedidos verificada in casu.

 

III.E DO DIREITO

 

a)    Quanto à ilisão da presunção de titularidade do direito de propriedade que recai sobre a Requerente

 

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente invoca duas circunstâncias que, no seu entender, a desqualificam da posição de sujeito passivo do IUC relativamente aos veículos e períodos de tributação em causa circunstância de, à data a que se reporta o facto tributário que originou a liquidação, não ser a proprietária do veículo.

Entende, assim, a Requerente não ser sujeito passivo do IUC em virtude de não estarem satisfeitos os requisitos de incidência subjetiva do imposto previstos no artigo 3.º do CIUC, conjugado com os artigos 4.º e 6.º do mesmo Código.

O cerne da discussão que subjaz aos presentes autos prende-se com a definição da incidência subjetiva do IUC: de acordo com a tese da AT, o sujeito passivo deste imposto é a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado; para a Requerente, a norma de incidência prevista no n.º 1 do artigo 3.º do IUC estabelece uma presunção, derivada do registo, ilidível por força do disposto no artigo 73.º da LGT. 

Assim, sobre a qualidade de sujeito passivo da obrigação de imposto que lhe é imputada, alega a Requerente que, à data da ocorrência dos factos tributários, já tinha vendido ou declarado perdidos os veículos. Como prova do alegado, junta ao pedido de decisão arbitral cópias das faturas de venda ou que documentam a perda total em que são identificados os veículos bem como os respetivos adquirentes.

Sucede, porém, que, de acordo com as diligências efetuadas pela AT, no caso dos veículos relativamente aos quais se mantêm os atos tributários, os respetivos adquirentes não tinham, à data dos factos tributários, efetuado os registos de aquisição ou cancelamento de matrículas junto da Conservatória do Registo Automóvel, pelo que, na base de dados desta, a Requerente continuava a figurar como proprietária dos mesmos. 

O artigo 3.º do CIUC, sob a epígrafe “incidência subjetiva”, prevê o seguinte:

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

Com relevância para a decisão a proferir no presente processo, a questão a analisar centra-se, portanto, na interpretação da norma do n.º 1 daquele art. 3.º do CIUC, no sentido de determinar se a norma de incidência subjetiva nela inscrita admite, ou não, que a pessoa em nome da qual o veículo se encontra registado na Conservatória possa demonstrar, através dos meios de prova admitidos em direito, que não obstante tal facto, não é proprietário[1] do veículo no período a que o imposto respeita e, assim, afastar a obrigação de imposto que sobre ela recai. Trata-se, por conseguinte, da questão de saber se tal norma consagra uma presunção legal de incidência tributária, suscetível de ilisão, nos termos gerais, como pretende a Requerente ou se, como entende a AT, “o legislador tributário, ao estabelcer no artigo 3.º, n.º 1, quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados”.

 

Ora, sendo verdade que o legislador do CIUC elegeu o registo automóvel como elemento estruturante deste imposto (o que resulta, desde logo, do artigo 6.º do Código, relativo à definição do facto gerador da obrigação de imposto, cujo n.º 1 prevê ser constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional), sendo, além disso, dos elementos do registo automóvel que se extrai o momento do início do período de tributação (artigo 4.º, n.º 2, do CIUC), bem como o momento até ao qual o imposto é devido (artigo 4.º, n.º 3, do CIUC) e a respetiva base tributável (artigo 7.º do CIUC), outra questão é a da interpretação que deve ser dada à norma de incidência subjetiva prevista no artigo 3.º do CIUC, a qual deve obedecer a princípios gerais da interpretação das normas tributárias, não se cingindo apenas ao ambiente normativo criado pelas restantes normas do CIUC.

 

Nos termos do disposto no artigo 73.º da LGT, as presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário. Porém, para ser detetada a consagração de uma presunção numa norma de incidência tributária, será que esta tem sempre que a prever expressamente, ou poderá, pelo contrário, extrair-se de uma norma de incidência tributária uma presunção que nela não esteja expressamente enunciada?

 

Por exemplo, no âmbito do regulamento do Imposto Municipal de Veículos[2], que o atual IUC substituiu, estabelecia-se uma presunção de forma expressa, dizendo a lei que “o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais, até prova em contrário, as pessoas em nome de quem os mesmos se encontrem matriculados ou registados”.  Ora, no âmbito do CIUC, o legislador entendeu substituir a palavra “presumindo-se” pela palavra “considerando-se”. Será que esse facto deve ser relevado da forma defendida pela AT, ao ponto de se dizer que a norma não prevê uma presunção, mas antes estabelece que os proprietários dos veículos como tal constantes do registo automóvel são sempre os sujeitos passivos do imposto?

 

Não é esta a nossa interpretação do texto legal. Com efeito, não existindo razões substantivas que permitam detetar uma razão para a alteração de postura do legislador relativamente a este ponto – ou seja, não havendo razões para crer que o legislador quis efetivamente afastar a possibilidade de outras pessoas, além do proprietário do veículo, serem sujeitos passivos do IUC, parece-nos que se deve ler a referida alteração semântica como isso mesmo – uma mera alteração semântica, sem impacto na norma que decorre do texto legal. Assim, entendemos que a norma que decorre do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC continua a ser uma presunção de incidência subjetiva relativamente ao proprietário do veículo como tal registado junto da Conservatória do Registo Automóvel, que não afasta a possibilidade de prova em contrário. Com efeito, parece-nos que a norma consagrada no n.º 1 do artigo 3.º do CIUC tem a estrutura de uma norma de presunção tal como esta é descrita no artigo 349.º do Código Civil, ou seja, como uma ilação que a lei, ou o julgador, tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido. No caso concreto, a lei retira do facto conhecido (a propriedade do veículo nos termos do registo automóvel), a presunção acerca do sujeito que deve suportar o encargo tributário relativo ao veículo em causa. No entanto, será sempre possível ao proprietário constante do registo afastar a aplicação a si próprio da norma de incidência, posto que faça prova de que a capacidade contributiva que justifica a imposição tributária pertence a outrem, por exemplo, em função da venda do veículo em momento prévio ao da ocorrência do facto tributário, ou da celebração de contrato de locação financeira do qual o mesmo seja objeto.

 

As presunções de incidência tributária podem ser ilididas através do procedimento contraditório próprio previsto no art. 64.º do CPPT ou, em alternativa, pela via de reclamação graciosa ou de impugnação judicial dos atos tributários que nelas se baseiem. No presente caso, a Requerente não utilizou aquele procedimento próprio, pelo que o presente pedido de decisão arbitral é meio próprio para ilidir a presunção de incidência subjetiva do IUC que suporta as liquidações tributárias cuja anulação constitui objeto do pedido, pois que se trata de matéria que se situa no âmbito da competência matéria deste tribunal arbitral nos termos do disposto nos artigos 2.º e 4.º do RJAT.

 

b)    Quanto à prova da transmissão da propriedade dos veículos

 

Admitindo-se a ilisão da presunção, cumpre agora analisar se no caso sub judice é suficiente para afastar a presunção constante do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC. 

 

Para ilidir a presunção derivada da inscrição do registo automóvel, a Requerente oferece os seguintes elementos relativos aos veículos que estão agora em apreciação:

a) cópias das faturas dos veículos que foram objeto de venda a terceiros (clientes da requerente) em momento anterior ao período da tributação;

b) cópias das faturas dos veículos que foram dados como perda total, em momento anterior ao período de tributação.

Torna-se, assim, necessário analisar que valor deve ser reconhecido a estes elementos para provar a transmissão da propriedade dos veículos por parte da Requerente.

Para isso deverá começar por se aflorar a questão da força probatória do registo automóvel.

O registo automóvel é um registo público, que tem a finalidade de “dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respetivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico” (art.º 1º do Cód. do Registo Automóvel (CRA)). Na noção de segurança do comércio jurídico cabe, evidentemente, o exercício de direitos por parte de terceiros com base nos factos registados.

Como se afirma no acórdão do TRL de 24-3-2011 (processo n.º 195/09.8TBPTS.L1-2), “o registo predial prossegue, a um tempo, fins de natureza privada e fins de natureza caracteristicamente pública. Prossegue fins de natureza privada, dado que garante a segurança no domínio dos direitos privados, especificamente no plano dos direitos com eficácia real – segurança do comércio jurídico (…), globalmente considerado – facilita o tráfico e o intercâmbio de bens, e assegura o cumprimento da função social dos direitos reais; prossegue finalidades de interesse público, enquanto instrumento da certeza do direito, da tutela de terceiros e da segurança do comércio jurídico, e de garante da atualização do registo face ao facto publicitado”.

Ora, o que a Requerente pretende nestes autos não é meramente ilidir uma presunção fiscal. É ilidir a presunção de veracidade dos factos que se encontram registados publicamente, e que se encontram registados para finalidades de interesse público, presunção esta da qual qualquer pessoa deve poder valer-se, sob pena de inutilidade do registo.

Em condições de cumprimento da lei, a ilisão da presunção de veracidade do registo é muito simples. Quando ocorre a compra e venda de um veículo, é preenchido um documento destinado ao registo automóvel – preenchimento que não constitui formalidade essencial do negócio – e que contém uma declaração de ambas as partes quanto à celebração do contrato (conforme o artigo 25º, n.º 1, alíneas a) e b) do DL n.º 55/75).

Este documento é um instrumento particular bilateral, porque assinado por ambas as partes do contrato. E precisamente porque a compra e venda de uma coisa móvel é um negócio não formal, aos serviços do Registo Automóvel basta este instrumento particular como prova para se proceder à alteração do registo. O vendedor pode então promover o registo em nome do adquirente, munido de uma simples cópia dessa declaração.

Mas já referimos também que, se o vendedor é uma entidade que se dedica ao comércio de veículos automóveis, este pode promover o registo, em nome do adquirente, através de um simples requerimento, conforme previsto no art.º 25, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel.

O que a Requerente apresenta como prova, porém – faturas não assinadas pelo comprador/adquirente/transmissão – que são unicamente documentos particulares, de caráter comercial, e unilaterais, i.e., para emissão dos quais não se verificou qualquer intervenção do comprador. O que significa que o comprador pode negar que a fatura corresponda a qualquer negócio efetivamente celebrado, invalidando com isso qualquer valor probatório da fatura e não lhe sendo exigido, sequer, produzir qualquer contraprova nesse sentido (TRL, Acórdão de 4-2-2010, Proc. n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8).

A estes documentos particulares, por serem unilaterais, não pode reconhecer-se senão um valor probatório muito limitado[3].

Se é assim no plano das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio, que valor pode ser atribuído a este tipo de documentos no âmbito de relações com terceiros não comerciantes?

Sobre esta matéria, também se têm pronunciado os tribunais superiores. Assim, num acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-11-2009 (TRL, Acórdão de 26-11-2009, Proc. n.º 29158/03.5YXLSB.L1-2), afirma-se que “a força probatória do documento particular se limita às declarações do respetivo subscritor”.

Entendemos assim neste caso, como já ficou dito acima, o que a Requerente teria de provar, a fim de ilidir a presunção que decorre, quer do artigo 3º, n.º 1 do CIUC quer do próprio Registo Automóvel, é que ela, Requerente, não era proprietária dos veículos em causa no período a que dizem respeito as liquidações impugnadas, pois é este o facto que resulta da presunção registal. 

Para isso não bastaria provar que, um dia, há vários anos, havia celebrado um contrato de compra e venda de um veículo, pois ainda que esse contrato tivesse sido celebrado, a propriedade de algum veículo poderia ter retornado à titularidade da Requerente. Ou seja, provar que A, no ano 2001, alienou o bem X, não implica deixar provado que A, no ano 2011, não é proprietário do bem X.

Assim, a Requerente teria de provar que não era proprietária dos veículos à data a que dizem respeito as liquidações, o que implicaria, no caso concreto, provar quem era o atual proprietário.

Esta prova seria fácil de fazer, bastando à Requerente atualizar o registo, para o que tem a legitimidade como vendedor – e não só a legitimidade como a obrigação, desde 2001, à luz do Código da Estrada – promovendo o registo dos veículos em nome do comprador, através de um simples requerimento, nos termos do artigo 25º, n.º 1, alíneas c) e d) do Regulamento do Registo Automóvel (preceitos que estabelecem um regime especial de promoção do registo para entidades que comercializam veículos automóveis).

A tese da Requerente, no que diz respeito à parte probatória, pretendendo neutralizar a prova legal que constitui o registo mediante a apresentação de documentos unilaterais, que têm valor probatório diminuto no âmbito do direito probatório material, implicaria tornar impossível à administração fiscal administrar o Imposto Único de Circulação.

E o certo é que, da valência em contencioso tributário dos princípios do inquisitório ou da investigação e da livre apreciação das provas, e ainda do princípio da aquisição processual, decorre que, inexistindo embora um ónus da prova formal, a cargo, especial ou exclusivamente, de algum dos participantes processuais, releva sobremodo neste campo um ónus da prova substancial, objetivo, ou material, no sentido de que a decisão tem de desfavorecer naturalmente quem não consiga ver materialmente provados os factos em que assenta a sua posição (cf. a este respeito Vieira de Andrade, J. C., “Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º ano do Curso de 1995/96”, Coimbra, 1996, p. 186; e Saldanha Sanches, J. L., “O Ónus da Prova no Processo Fiscal”, Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal n.º 151, pp. 122 e ss.).

Resumindo, a prova apresentada pela Requerente é constituída, exclusivamente, por documentos particulares, unilaterais e internos, com um valor insuficiente para, à luz do direito probatório material, negar a validade de factos – a propriedade de veículos – sobre os quais existe uma prova legal – uma presunção legal – que isenta a Requerida de qualquer ónus probatório, e que não é contrariável através de mera contraprova, que lance dúvida sobre os factos provados pela presunção.

De todo o exposto[4] resulta que a Requerente não ilide a presunção que sobre si recai quanto à titularidade da propriedade dos veículos sobre os quais incidem as liquidações de IUC impugnadas e que, por conseguinte, as liquidações impugnadas não enfermam de qualquer ilegalidade.

Improcede portanto, a pretensão da Requerente quanto à ilegalidade das liquidações impugnadas com base em erro nos pressupostos de Direito, por falta dos pressupostos da incidência subjetiva do Imposto quanto à Requerente.

O entendimento sufragado na presente decisão é, no entender do Tribunal, o que melhor concilia a legalidade da tributação, os direitos dos contribuintes, os deveres dos contribuintes e o princípio da eficiência na tributação.

Tal entendimento, baseado, por um lado, na aceitação da tese de que o artigo 3º, n.º 1 do CIUC contém uma presunção ilidível, e, por outro, na convicção de que a presunção de propriedade derivada do registo automóvel não pode ser ilidida com o mero recurso a documentos unilaterais, não deixa sem defesa o titular do registo que, eventualmente, não tivesse a efetiva posse dos veículos à data dos factos tributários, uma vez que sempre lhe assistirá o direito de deduzir oposição à execução, nos termos da al. b) do n.º1 do art.º 204º do CPPT, alegando e provando não ter sido, durante o período a que diz respeito a dívida exequenda, o possuidor dos veículos.

 

IV. DECISÃO

Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide julgar totalmente improcedente o pedido de pronúncia arbitral.

Fixa-se o valor do processo em € 40.066,84, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2 142.00, nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar totalmente pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Lisboa, 18 de junho de 2015

 

O árbitro,

 

Guilherme W. d’Oliveira Martins

 



[1] O que, para este efeito, sucede também quando foi celebrado um contrato de locação financeira nos termos do qual é outra pessoa a locatária do veículo.

[2] Cfr. o artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento do Imposto Municipal sobre Veículos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 143/78, de 12 de junho. 

 

[3] Veja ainda, que mesmo no âmbito das relações entre comerciantes quanto a factos do seu comércio – campo que é, como se sabe, aquele em que os documentos comerciais e a escrita comercial têm maior valor probatório – a faturação comercial e a escrita comercial não fazem prova plena, podendo até mesmo o comerciante proprietário dos livros produzir prova em contrário dos seus próprios lançamentos (STJ, Acórdão de 18-10-2007, Proc. n.º 06B3818).

 

[4] E seguindo de perto a jurisprudência deste Centro constante dos processos 63/2014-T, 130/2014-T, 150/2014-T e 220/2014-T.