Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 335/2015-T
Data da decisão: 2016-02-19  IRS  
Valor do pedido: € 481.005,67
Tema: IRS – Venda de participações sociais. Retenção na fonte. Cláusula Geral Antiabuso.
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DECISÃO ARBITRAL

            Os árbitros José Poças Falcão (árbitro presidente), Ricardo Rodrigues Pereira e Henrique Fernando Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

            I. RELATÓRIO

            1. No dia 3 de junho de 2015, A…, S. A., NIPC…, com sede na…, …/…, …-…Porto (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo art. 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação de retenção na fonte de IRS 2010 n.º 2014…, no montante de € 321.533,56 e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2015…, no montante de € 50.353,03, assim como da liquidação de retenção na fonte de IRS 2012 n.º 2015…, no montante de € 99.961,98 e das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015 … e 2015…, no montante global de € 9.157,10, bem como a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a proceder ao reembolso da quantia de € 109.119,08 que foi paga relativamente às indicadas liquidações de 2012, acrescida de juros indemnizatórios, por vício de violação de lei.

1.1. A Requerente juntou 5 (cinco) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova. 

            1.2. É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).   

            1.3. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte:

            A Requerente peticiona a anulação das sobreditas liquidações de retenção na fonte de IRS, com os seguintes fundamentos:

a) Ilegitimidade do sujeito passivo em relação a todas as liquidações;

b) Caducidade da liquidação referente ao exercício de 2010;

c) Aplicação indevida da cláusula geral antiabuso e consequente violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito em relação a ambas as liquidações.

            Relativamente ao primeiro dos invocados fundamentos – ilegitimidade do sujeito passivo em relação a todas as liquidações –, importa considerar os seguintes argumentos aduzidos pela Requerente:

- como substituta tributária, é-lhe inoponível a desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso aos atos em questão, tendo ocorrido uma violação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT;

- o artigo 38.°, n.º 2, da LGT não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias – mormente de retenção na fonte – existentes apenas em face da reconfiguração jurídico-fiscal operada no contexto da aplicação da cláusula geral antiabuso;

- a sua elevação à condição de obrigada tributária no caso em apreço traduz uma errada interpretação pela Administração Tributária do alcance da aplicação do artigo 38.°, n.º 2, da LGT – nessa medida inquinando de ilegalidade a liquidação impugnada –, já que a cláusula geral antiabuso não opera para fazer nascer obrigações fiscais acessórias – ou seja, para impor a terceiros obrigações instrumentais como a de reter e entregar imposto que por via dessa disposição passa a ser devido por um contribuinte determinado;

- o propósito do artigo 38.º, n.º 2, da LGT traduz-se na imposição de uma obrigação tributária a título principal, incidente sobre o autor e beneficiário do alegado “abuso” de figuras jurídicas;

- a existir validade na imposição tributária em causa (no que não se concede), sempre a liquidação adicional correspondente teria que incidir sobre a obrigada tributária principal correspondente, ou seja, a contribuinte B…;

- da maneira como a liquidação foi imposta – sobre a Requerente – a vantagem fiscal obtida permanece na titularidade de quem beneficiou de tal vantagem (o beneficiário dos dividendos), sendo a Requerente que fica prejudicada, como fica também pervertido o verdeiro, o essencial, escopo da cláusula geral antiabuso: a eliminação da vantagem fiscal obtida;

- a isto acresce o facto de inexistir qualquer disposição legal que permita à Contribuinte a possibilidade de reaver do real beneficiário a quantia de imposto que tiver que pagar;

- a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, se interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia face ao ato efetivamente praticado, associada à inviabilidade de reaver as quantias não retidas, seria materialmente inconstitucional à face dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do direito a propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP);

- os atos impugnados são ilegais por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, por vício de violação de lei e por erro sobre os pressupostos de direito e, por isso, devem ser anulados.

No tocante ao segundo dos preditos fundamentos – caducidade da liquidação referente ao exercício de 2010 –, a Requerente alinha os seguintes argumentos que importa respigar: 

- a notificação referente às liquidações (de imposto e de juros compensatórios) relativas ao ano de 2010 (liquidações n.º 2014 … e n.º 2015…) foi recebida mediante o acesso da Contribuinte à caixa postal eletrónica em 04/05/2015 (nos termos do n.º 9 do artigo 39.º do CPPT);

- o n.º 13 do artigo 39.º do CPPT determina que as suas disposições não prejudicam a aplicação do disposto no n.º 6 do artigo 45.º da LGT;

- uma vez que as notificações efetuadas por transmissão eletrónica de dados equivalem à correspondência postal registada (artigo 38.º, n.º 9, do CPPT), então a notificação da liquidação, para efeitos de contagem do prazo da sua caducidade, considera-se validamente efetuada em 07/05/2015;

- nessa data já tinha decorrido o prazo de caducidade do direito à liquidação de imposto, atento o disposto no n.º 1 do artigo 45.º da LGT, de cuja aplicação ao caso concreto resulta que aquele prazo terminaria em 31/12/2014;

- os atos de inspeção externa subjacentes às liquidações impugnadas iniciaram-se em 29/08/2014 e foram concluídos em 22/09/2014;

- mesmo considerando uma suspensão do prazo de caducidade pelo período de duração dos atos de inspeção externa (24 dias), impõe-se concluir que a notificação das liquidações referentes ao imposto e juros compensatórios de 2010 foi efetuada para além do período de caducidade, o que determina a anulação de tais liquidações.     

            No tangente ao terceiro e últimos dos sobreditos fundamentos – aplicação indevida da cláusula geral antiabuso e consequente violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito em relação a ambas as liquidações –, importa sublinhar os seguintes argumentos expendidos pela Requerente:

- em 22/12/2009, a C…, SGPS, S.A. adquiriu à sua acionista B… 325.954 ações representativas de cerca de 93% do capital social da Requerente, pelo preço de € 32.595.400,00, tendo sido convencionado que tal preço seria pago a prazo;

- a C…, SGPS, S.A. pagou à B… as seguintes quantias, a título de amortização da dívida resultante da compra das ações: € 495.504,93 em 03/12/2010; € 500.000,00 em 06/12/2010; € 525.000,00 em 10/12/2010; € 250.000,00 em 01/06/2012; e € 149.847,90 em 09/10/2012;

- a C…, SGPS, S.A. pagou à B… um total de € 1.520.504,93, em 2010 e de € 399.847,90, em 2012;

- a AT impôs à Requerente uma liquidação de IRS (imposto a reter) de 21,5% sobre os montantes pagos em 2010 e de 25% sobre os montantes pagos em 2012;

- as ações representativas do capital social da Requerente foram transacionadas ao preço unitário de € 100,00, por ação, valor este que foi objeto de parecer favorável do Revisor Oficial de Contas e Fiscal Único da C…, SGPS, S.A.;

            - a C…, SGPS, S.A. foi constituída para ser a empresa-mãe e dirigir a concentração de um Grupo empresarial com diversas empresas – o Grupo D… – , detidas por vários sócios, e com sede e atividade em vários países, numa lógica de gestão de participações noutras sociedades como forma indireta do exercício de atividades económicas;

            - a operação de aquisição a B… das ações da Requerente e o pagamento do respetivo preço financiado parcialmente com dividendos recebidos pela C…, SGPS, S.A. não configura o recurso a qualquer meio artificioso ou fraudulento, e muito menos com abuso de formas jurídicas;

            - mesmo que a motivação da venda das ações representativas do capital da Requerente à C… SGPS visasse, em exclusivo, a não sujeição a tributação de dividendos (no que não se concede), nem assim seria legítima a aplicação das normas antiabuso, mormente do n.º 2 do artigo 38.º da LGT;

- quando os contribuintes utilizam lacunas conscientes de tributação, criadas pelo legislador, não estamos perante qualquer utilização abusiva de formas jurídicas;

- é manifesta a falta de fundamento do Despacho que autorizou a aplicação da norma antiabuso, bem como as conclusões do RIT que fundamenta as liquidações impugnadas, impondo-se a sua revogação;

- as operações realizadas não tiveram como fim único, principal, ou mesmo determinante, a evicção à tributação de dividendos por B…, pelo que falta um dos pressupostos essenciais da previsão normativa do n.º 2 do artigo 38.º da LGT.  

A Requerente alega, ainda, que em 02/03/2015 efetuou o pagamento voluntário tempestivo das liquidações referentes ao ano de 2012, no que desembolsou a quantia total de € 109.119,08. Assim, caso essas liquidações venham a ser anuladas, ela terá direito ao recebimento de juros indemnizatórios desde a data de pagamento indevido até à data da efetiva restituição, nos termos do disposto no artigo 43.º da LGT.

A Requerente termina peticionando o seguinte:

«a) Devem ser anuladas as liquidações de IRS e dos respectivos juros compensatórios, nos termos impugnados, com fundamento, sucessivamente:

- Na inoponibilidade da aplicação da cláusula geral anti-abuso ao substituto tributário, tendo as liquidações impugnadas incorrido em manifesto erro nos pressupostos de direito;

- Na caducidade das liquidações referentes a 2010;

- na insusceptibilidade de subsumir as operações apreciadas a meios fraudulentos ou artificiosos e com abuso de formas, nem a operações realizadas com objectivo, único, principal ou determinante de evitar tributação de imposto sobre dividendos.

b) Deve a AT ser condenada a restituir à Contribuinte o imposto pago referente às liquidações de 2012 no montante de € 109.119,08, acrescido de juros indemnizatórios a favor da Contribuinte, calculados nos termos legais desde a data de pagamento (02/Março/2015) até à data da efectiva restituição.»   

            2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 15 de junho de 2015.

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 28 de julho de 2015, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral coletivo foi constituído em 12 de agosto de 2015.

6. No dia 1 de outubro de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual, para além de deduzir matéria de exceção, impugna, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente, concluindo pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

6.1. A Requerida juntou 3 (três) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova. 

6.2. Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).   

6.3. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta:

A Requerida começa por invocar a exceção dilatória de caso julgado, o que faz essencialmente nos seguintes termos:

- a factualidade que esteve na base da emissão das liquidações ora em causa já foi objeto de pedido de pronúncia arbitral, então formulado pela sociedade “C… SGPS S.A.”, que correu termos sob o n.º 258/2013-T;

- no âmbito dessa pronúncia, entendeu o Tribunal dar como provada a essencialidade da factualidade invocada pela AT como fundamentadora do ato de liquidação (então) em discussão, tendo considerado que tal factualidade consubstanciava uma situação abusiva que preenchia os pressupostos legais habilitadores da aplicação da clausula geral antiabuso prevista no artigo 38º, n.º 2, da LGT;

            - contudo, o Tribunal entendeu que não obstante estarem verificados os pressupostos que determinaram a atuação da AT e o teor da liquidação empreendida, a mesma havia sido levada a cabo a entidade que, no juízo do Tribunal – considerando o conjunto de atos e negócios empreendidos – não seria a responsável, determinando, em consonância, a anulação da liquidação então em juízo;

            - aquela decisão arbitral transitou em julgado e, consequentemente, a AT ficou vinculada a “praticar o ato de liquidação devido em substituição do ato objecto da decisão arbitral” e a “liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral” – cf. artigo 24, n.º 1, alíneas a) e d), do RJAT;

            - circunstância que determinou a emissão das liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral que são, apenas e só, a concretização ou a execução da anterior pronúncia arbitral;

            - por isso, a este Tribunal está vedada a possibilidade de apreciar, de novo, a questão da verificação da existência ou não dos pressupostos de aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, bem como da factualidade que, julgada assente, esteve subjacente a essa consideração, acrescendo igual limitação no que respeita ao sujeito passivo de imposto que foi determinado pelo Tribunal, na medida em que tais questões já foram objeto de pronúncia arbitral transitada em julgado.

            Seguidamente, a Requerida argui a exceção perentória de abuso de direito (na dimensão de venire contra factum proprium) e a má-fé da Requerente, com a seguinte fundamentação:

            - num primeiro momento, entendeu a AT que a tributação a encetar deveria ser levada a cabo pelo mecanismo da retenção da fonte e na esfera da C…, SGPS, S.A.;

            - confrontada com essa liquidação, veio essa sociedade – representada em juízo pelo ilustre causídico subscritor do presente pedido de pronúncia arbitral –, no âmbito daquele outro citado processo arbitral, defender que a AT havia errado e preconizando que as liquidações impugnadas deveriam ter sido emitidas contra a aqui Requerente e não contra a C… SGPS;

            - no presente pedido de pronúncia arbitral - apresentado pela A…, S.A. na sequência da notificação de atos de liquidação em tudo consonantes com a posição anteriormente defendida pela C…, SGPS - constatamos que a posição defendida - subscrita pelo mesmo ilustre causídico – aponta em sentido diverso, ou seja, a responsabilidade pelo pagamento do imposto não deve, agora, afinal, recair sobre a A…, S.A. mas, ao invés, sobre a Sra. B…;

            - existe, por isso, - para além de manifesta má-fé - uma conduta suscetível de ser qualificada como abuso e direito – na dimensão de venire contra factum proprium –, entendendo a AT que o Tribunal deverá proceder a essa qualificação e daí extrair os consequentes efeitos legais.

            Prosseguindo o seu articulado, a Requerida avança para a defesa por impugnação, alegando a seguinte argumentação que importa destacar:

            - foi a vontade de B… que determinou, designadamente, a celebração do contrato de venda de ações e os termos desse contrato, pelo qual apenas se procedeu à mera alteração de uma titularidade jurídica direta por uma titularidade jurídica indireta;

- em 2010, a Requerente pagou à C…SGPS, a título de adiantamento de dividendos de 2010, € 1.495.504,93, tendo-lhe ainda pago, já em 2011, a título de acerto de dividendos de 2010, € 3.924,68;

- em 2012, a Requerente pagou à C… SGPS dividendos de 2011, no montante de € 399.847,90;          

- nas mesmas datas em que recebe dividendos da Requerente, a C… SGPS reencaminha-os para a B…, fazendo-o a título de pagamento da dívida que tinha para com esta, sendo que, dada a (re)qualificação dos rendimentos, não é efetuada qualquer retenção na fonte de IRS quando são disponibilizados à B…; 

            - não se conseguiu apurar qualquer atividade ou ato de gestão da C… SGPS que não seja o recebimento de dividendos da sua única participação – a participação na Requerente – e o reencaminhamento destes para a B… (detentora da quase totalidade do seu capital social – 98,40%);

            - improcede também o invocado pela Requerente para tentar justificar a venda das ações da A… SA à SGPS pelo valor unitário de €100,00, sendo que do parecer do Fiscal Único da C… SGPS não decorre justificado aquele valor de € 100,00;

            - falecem os argumentos esgrimidos pela Requerente em defesa da propalada caducidade do direito à liquidação do imposto relativo ao ano de 2010, pois a AT gozava da faculdade de “exigir” o imposto em falta até ao dia 5 de maio do ano de 2015, desde que notificasse o contribuinte da liquidação correspondente, o que fez tempestivamente;

            - a operação de constituição da SGPS, seguida da aquisição da participação de Ana Paula Silva na Requerente, bem como a distribuição de dividendos que imediatamente foram utilizados para pagar a dívida criada com a aquisição daquela participação, visou a atribuição àquela acionista de dividendos não tributados;

            - ou seja, tais atos permitiram à acionista B… transferir a sua participação na A… SA para a C… SGPS, a qual foi constituída unicamente para esse efeito, e incorporar na sua esfera os rendimentos originados pelos dividendos gerados e distribuídos pela participada e isso sem que comportasse o IRS que era devido por retenção na fonte;

            - a estrutura montada permitiu, assim, a obtenção de um resultado que se revela fraudulento, por se encontrar em fraude com alínea h) do n.º 2 do artigo 5,º do Código do IRS e que, por assim ser, não pode ser admitido; 

            - deste modo, é de concluir estarem reunidos todos os pressupostos legais, estabelecidos no n.º 2 do artigo 38.º da LGT para aplicação da cláusula geral antiabuso à operação sub judice, não colhendo os argumentos aduzidos pela Requerente quanto às supostas razões económicas justificativas;

            - a incidência do imposto recai sobre quem ilegitimamente obteve as vantagens fiscais, in casu, a B…, considerando-se que é esta o beneficiário efetivo dos dividendos distribuídos pela Requerente, sendo que, como igualmente decorre do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, a tributação dos rendimentos de que B…é o efetivo beneficiário, tem de ser efetuada «de acordo com as normas aplicáveis», pelo que, por força das disposições previstas no Código do IRS, estes são tributados sob a forma de retenção na fonte assumindo a taxa de retenção na fonte a natureza de taxa liberatória – consequentemente, pelo facto de se estar perante uma situação de substituição tributária, compete ao substituto, A… SA, efetuar a retenção de imposto;

            - assim, é por força do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que a AT se encontra obrigada, numa situação de tributação de rendimentos de dividendos auferidos por uma pessoa singular, a liquidar o imposto em falta ao substituto tributário, porquanto, de outro modo, não se estaria a efetivar a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência dos meios artificiosos e fraudulentos e com abuso das formas jurídicas;

            - impõe-se reconhecer que, quando isso esteja em causa nos termos da tributação que deve ser efetuada segundo as normas aplicáveis, conforme determina o n.º 2 do art. 38.º da LGT, o funcionamento da cláusula antiabuso é inteiramente oponível ao substituto tributário, que não pode deixar de ser abrangido pela sua estatuição;

            - não se vislumbra como é que a aplicação do mecanismo de substituição tributária, previsto para aquele tipo de rendimentos de acordo com as regras aplicáveis no Código do IRS, impede que se deixem de produzir as vantagens fiscais referidas (artigo 38.º, n.º 2 da LGT, in fine) e nem se diga que tal decorre da alegada inexistência de direito de regresso das quantias que lhe foram adicionalmente liquidadas na qualidade de substituto tributário, com a consequente violação do seu direito constitucional de propriedade;

            - encontra-se assegurado, no âmbito da figura da substituição tributária, o princípio da capacidade contributiva, já que resultam do ordenamento tributário os meios necessários (a saber, a retenção na fonte prévia ou o direito de regresso posterior) para que o encargo definitivo do imposto recaia, não sobre o substituto (no caso a Requerente), mas sobre o substituído;

            - não ocorre violação do direito da propriedade privada com a incidência da CGAA sobre o substituto pela simples razão de que não são atingidos, em termos efetivos e finais, bens da própria Requerente – o mecanismo da substituição, mediante retenção na fonte ou, em caso de incumprimento desta obrigação, mediante direito de regresso, afasta a consideração de uma ingerência no direito de propriedade da Requerente;

- não existindo assim, por estas mesmas razões, qualquer violação do princípio da proporcionalidade;

- será materialmente inconstitucional a interpretação normativa do artigo 38.º, n.º 2 da LGT que exclua, na sequência de planeamento fiscal abusivo, a possibilidade de a sociedade que tem o papel de substituto na relação jurídica tributária ser responsável pelo pagamento das quantias que se entendam devidas nos termos das normas legais aplicáveis (in casu artigos 5.º, n.º 2, al. h), 71.º, n.º 1, al. c), 71.º, n.º 6, 101.º, n.º 2, al. a) e 103.º do Código do IRS), quando da mesma não resulta que a tributação de acordo com as normas aplicáveis na ausência de tal planeamento é distinta da aplicável às demais situações de tributação previstas na legislação fiscal, pois que tal viola os princípios da legalidade tributária, da igualdade na repartição da carga tributária, da prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, nos termos do disposto nos artigos 13.º e 103.º, n.ºs 1 e 2 e 104.º da CRP;

            - porquanto se está a criar, na interpretação que se promove do 38.º, n.º 2, da LGT, uma norma de incidência autónoma, a qual constituiria, então, norma especial desaplicante das normas específicas de cada Código, determinando, sempre, a inoponibilidade ao substituto tributário, mesmo em casos de retenção na fonte a título definitivo de rendimentos de dividendos de pessoas singulares, da respetiva liquidação adicional, maxime nas situações em que o beneficiário das vantagens fiscais controlava, direta ou indiretamente, o substituto tributário no momento da prática dos atos abusivos.

7. O Tribunal dispensou a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.

8. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações escritas em que, no essencial, mantiveram as posições e argumentos aduzidos nos respetivos articulados.    

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

II.1. Da exceção de caso julgado

Dispõe o art. 580º do Código de Processo Civil:

“1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado. 

2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. 3 – (…)”

Por sua vez o artigo 581.º do mesmo diploma tem a seguinte redação: 

“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

Preliminarmente, assinale-se que o caso julgado se forma sobre a decisão e não sobre os fundamentos da mesma.

Subsumindo:

A Requerente fundamenta a exceção do caso julgado alegando, no essencial:

- a factualidade que esteve na base da emissão das liquidações ora em causa já foi objeto de pedido de pronúncia arbitral, então formulado pela sociedade “C… SGPS S.A.”, que correu termos sob o n.º 258/2013-T;

- no âmbito dessa pronúncia, entendeu o Tribunal dar como provada a essencialidade da factualidade invocada pela AT como fundamentadora do ato de liquidação (então) em discussão, tendo considerado que tal factualidade consubstanciava uma situação abusiva que preenchia os pressupostos legais habilitadores da aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38º, n.º 2, da LGT;

            - contudo, o Tribunal entendeu que não obstante estarem verificados os pressupostos que determinaram a atuação da AT e o teor da liquidação empreendida, a mesma havia sido levada a cabo a entidade que, no juízo do Tribunal – considerando o conjunto de atos e negócios empreendidos – não seria a responsável, determinando, em consonância, a anulação da liquidação então em juízo;

            - aquela decisão arbitral transitou em julgado e, consequentemente, a AT ficou vinculada a “praticar o ato de liquidação devido em substituição do ato objecto da decisão arbitral” e a “liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral” – cf. artigo 24, n.º 1, alíneas a) e d), do RJAT;

            - circunstância que determinou a emissão das liquidações objeto do presente pedido de pronúncia arbitral que são, apenas e só, a concretização ou a execução da anterior pronúncia arbitral;

            - por isso, a este Tribunal está vedada a possibilidade de apreciar, de novo, a questão da verificação da existência ou não dos pressupostos de aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, bem como da factualidade que, julgada assente, esteve subjacente a essa consideração, acrescendo igual limitação no que respeita ao sujeito passivo de imposto que foi determinado pelo Tribunal, na medida em que tais questões já foram objeto de pronúncia arbitral transitada em julgado.

 

            Ora é patente a ausência de fundamento para a invocação da exceção do caso julgado.

            E é-o desde logo porque não há identidade de Requerentes na medida em que no sobredito litígio julgado anteriormente a Requerente era a sociedade C…, SGPS, SA enquanto no presente processo a Requerente é A…, SA.

            Por outro lado, a causa de pedir em ambas as ações é diversa: no primeiro caso eram atos de liquidação diversos dos que estão em análise neste processo.

            Ali pedia-se concretamente a anulação dos atos tributários de liquidação de retenções na fonte de IRS de 2010 n.º 2013 … no valor de 326.908,56€, da liquidação de juros compensatórios n.º 2013 … no valor de 32.063,90€, da liquidação de retenções na fonte de IRS de 2012 n.º 2013 … no valor de 99.961,98€, e das liquidações de juros compensatórios n.º 2013 … e n.º 2013 … no valor de 3.307,28€.

            E nos presentes autos pede-se a declaração de ilegalidade e a consequente anulação da liquidação de retenção na fonte de IRS 2010 n.º 2014…, no montante de € 321.533,56 e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2015…, no montante de € 50.353,03, assim como da liquidação de retenção na fonte de IRS 2012 n.º 2015…, no montante de € 99.961,98 e das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015 … e 2015…, no montante global de € 9.157,10, bem como a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira a proceder ao reembolso da quantia de € 109.119,08 que foi paga relativamente às indicadas liquidações de 2012, acrescida de juros indemnizatórios, por vício de violação de lei.

            A questão decidenda (e decidida) no processo arbitral nº 258/2013-T [Cfr. Doc 1, junto com a Resposta da AT] era, em síntese, a de saber se deveria ter ocorrido retenção na fonte em sede de IRS nos pagamentos efetuados pela ali Requerente (C…, SGPS, S.A.) à sua acionista B…, por aplicação da cláusula geral antiabuso.

            E, tal como transparece do acórdão que veio a ser proferido nesse processo e junto aos autos, para além de apreciar os pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso, o Tribunal Arbitral foi chamado a apreciar também a questão que denominou como “errónea notificação das liquidações impugnadas na pessoa da Requerente, C…SGPS”.

            Ponderou-se e concluiu-se então designadamente que  “(...) com a estrutura criada se evitou a tributação, na esfera jurídica de B… e em sede de IRS, do montante total de €426.870,54 correspondente respetivamente a 2010 e 2012 nos montantes de €326.908,56 e € 99.961,98, no total de €426.870,54, correspondentes a rendimentos tributáveis, com a natureza de dividendos relativos a 2010 e 2012 de € 1.520.504,93 e € 399.847,90, respetivamente (...)” e “(...)devido à desconsideração tributária da C… SGPS por força da ineficácia tributária, os rendimentos distribuídos pela A… SA devem assumir a natureza de dividendos e considerar-se que o beneficiário efetivo dos mesmos é Ana Paula Silva (...) estando sujeitos a tributação em sede IRS enquadrados na categoria E (...)”.

            E foi na base de pura especulação argumentativa inserida na fundamentação da decisão que se afirmou então que “(...) a Requerente (C…SGPS) tem razão quando afirma que, mesmo que por mera hipótese académica, se considerasse haver legitimidade para aplicação da cláusula geral anti-abuso, desse facto não resultaria que o negócio economicamente equivalente devesse ser considerado uma distribuição de dividendos por parte da C… SGPS a B…, mas sim, distribuição de dividendos da A… a B…(…)” e  daí a conclusão que transparece de toda a economia do sobredito acórdão, de que  a haver lugar a tributação por retenção na fonte (sublinhado nosso) para efeitos de IRS seria a A…SA e não a C… SGPS, como substituto tributário, quem deveria ser sujeito dessa eventual obrigação tributária[1].

            Ou seja: o que, segundo ainda o dito acórdão, a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)  “(...)não concretizou de forma plena e correta a estatuição do n.º 2 do artigo 38.º da LGT plasmado no seu elemento sancionatório pois devido às razões supra descritas, as liquidações em sede de IRS relativamente a retenções na fonte deveriam ter sido efetuadas na pessoa da A… SA e não na da C…, SGPS (...)”.

            A decisão proferida não foi, porém, no sentido de reconhecer qualquer direito da AT sobre a ora Requerente, designadamente  quanto ao dever jurídico de retenção na fonte decorrente da ineficácia tributária que foi reconhecida nem tão pouco o direito à liquidação de IRS à titular efetiva do rendimento, a sobredita B…, mas tão somente a de  “(...) julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IRS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral [liquidação de retenções na fonte de IRS 2010 n.ºs 2013 … de 22-7-2013 e n.º 2013 … – no montante de € 326.908,56 e juros compensatórios no montante de €32.063,90 respetivamente e liquidação de retenções na fonte de IRS 2012 nºs 2013… de 2013-07-22 e nºs 2013 … e 2013…, que fixou o IRS a pagar em 2012 no montante de € 99.961,98 e juros compensatórios no montante de € 3.307.28, respetivamente] no montante global de €462.241,72 (quatrocentos e sessenta e dois mil duzentos e quarenta e um euros e setenta dois cêntimos) (...).”

            Esta foi a decisão, sendo o mais fundamentação da mesma e que não constitui caso julgado.

            Concluindo nesta parte:

            Carece em absoluto de fundamento a exceção de caso julgado.

II.2. Do abuso de direito por parte da Requerente

            A Requerida argui a exceção perentória de abuso de direito (na dimensão de venire contra factum proprium) e a má-fé da Requerente, com a seguinte fundamentação:

            - num primeiro momento, entendeu a AT que a tributação a encetar deveria ser levada a cabo pelo mecanismo da retenção da fonte e na esfera da C…, SGPS, S.A.;

            - confrontada com essa liquidação, veio essa sociedade – representada em juízo pelo ilustre causídico subscritor do presente pedido de pronúncia arbitral –, no âmbito daquele outro citado processo arbitral, defender que a AT havia errado e preconizando que as liquidações impugnadas deveriam ter sido emitidas contra a aqui Requerente e não contra a C… SGPS;

            - no presente pedido de pronúncia arbitral - apresentado pela A…, S.A. na sequência da notificação de atos de liquidação em tudo consonantes com a posição anteriormente defendida pela C…, SGPS - constatamos que a posição defendida - subscrita pelo mesmo ilustre causídico – aponta em sentido diverso, ou seja, a responsabilidade pelo pagamento do imposto não deve, agora, afinal, recair sobre a A…, S.A. mas, ao invés, sobre a Sra. B…;

            - existe, por isso, - para além de manifesta má-fé - uma conduta suscetível de ser qualificada como abuso de direito – na dimensão de venire contra factum proprium –, entendendo a AT que o Tribunal deverá proceder a essa qualificação e daí extrair os consequentes efeitos legais.

            Vejamos:

            O abuso do direito é instituto que tem consagração geral no artigo 334º, do Código Civil.

            O abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe: i) uma primeira conduta (que se poderá traduzir numa declaração negocial), entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao futuro e, por essa razão, geradora de uma situação objetiva de confiança; ii) a boa-fé da contraparte, que justificadamente confiou nessa conduta; iii) uma segunda conduta, contraditória com a anterior, que frustra a confiança gerada (Cfr., v.g., Ac da Relação de Coimbra – Proc nº 2725/08.3TBLRA.C1, de 24-4-2012).

            O abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC).

            A proibição do comportamento contraditório configura atualmente um instituto jurídico autonomizado que se enquadra, justamente, na proibição do abuso do direito e, nessa medida, é mesmo de conhecimento oficioso. No entanto, não existe no nosso direito um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, “uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível”.

            Assim, a pessoa é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais. Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico. Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expetativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de proteção das expetativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expetativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que atue de forma correspondente à confiança que despertou, isto é, em que não pode venire contra factum proprium. A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. Importa evitar a todo o custo, como alguém escreveu já, a utilização da boa fé como um “nevoeiro” que serve para tudo” [2].

            E se as coisas assim se passam ao nível estrito do direito civil, não há, por maioria de razão, fundamento para uma perspetiva diferente nas relações jurídico-tributárias, ou seja, ao nível dos efeitos dos comportamentos contraditórios dos contribuintes e/ou dos seus mandatários, especialmente  quando, como no caso, não existe qualquer fundamento para a alegação de contradição uma vez que se trata aqui de entidades diferentes, cada uma assumindo, através de mandatário judicial [ainda que seja o mesmo em ambas as situações], a defesa dos direitos ou dos interesses dos seus mandantes [e ainda que o exercício desse indeclinável e legítimo dever possa impôr eventual contradição de pontos de vista jurídicos ou processuais em cada um dos casos].

            Em conclusão:

            Não se antolham no caso os pressupostos exigíveis para uma conclusão de que a Requerente invoque o direito de oposição à liquidação objeto dos autos em termos que excedam manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

            Que será equivalente a dizer que improcede a exceção de abuso de direito nos termos invocados.

*

            Não há outras exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

Nesta parametria, consideram-se provados os seguintes factos:

a) A Requerente foi constituída em 13/07/1977. (cf. PA junto aos autos)

            b) Em 22/12/2003, foi celebrada escritura de transformação dessa sociedade, até aí por quotas, em sociedade anónima, bem como de aumento do respetivo capital. (cf. PA junto aos autos)

c) Eram, então, sócios E… e F…(mulher daquele), B…(de ora em diante B…) e G…(filhos do casal primeiramente referido) e, ainda, H… (marido deB…). (cf. PA junto aos autos)

d) A sócia B… ficou detentora de 34.916 ações, com um valor nominal de € 5,00 e um valor total de € 174.580,00, representativas de 9,9% do capital social. (cf. PA junto aos autos)

e) Os pais doaram-lhe 139.644 ações, a que foi atribuído um valor de € 698.220,00 (valor unitário de € 5,00), ficando B…, nessa data, a deter 49,98 % do capital social. (cf. PA junto aos autos)

f) Em 29/11/2006, B… adquiriu (por permuta) ao irmão (o referido G…) 46.278 ações, a que foi atribuído um valor de € 231.311,84 (valor unitário de € 4,998), passando a deter 63,24 % do capital social. (cf. PA junto aos autos)

g) Em 12/04/2007, B… comprou ao irmão (o referido G…) 105.200 ações, por um valor unitário de € 24,08, num valor total de € 2.533.216,00, ficando nessa data titular de 326.038 ações, com um valor nominal de € 5,00, representativas de 93,36% do capital social da Requerente. (cf. PA junto aos autos)

h) Em 12/04/2007, B… vendeu a I…, seu filho, 10 ações, por um valor unitário de € 30,00, num total de € 300,00, ficando detentora de 326.028 ações, representativas de 93,36% do capital social da Requerente. (cf. PA junto aos autos)

i) A B… era administradora da Requerente desde 1986. (cf. PA junto aos autos)

j) A Requerente, em 2008, procedeu à distribuição de dividendos aos seus acionistas. (cf. PA junto aos autos)

k) A Requerente teve, então, de reter na fonte o IRS devido, no valor de € 200.000,00. (cf. PA junto aos autos)

l) Em 14/10/2009, B…, o marido, os filhos, I…(acima referido) e J…, e o pai, constituíram a C…, SGPS, S.A. (doravante designada C… SGPS), com o capital social de € 50.000,00, representado por 2.500 ações, com o valor nominal de € 10,00 cada. (cf. PA junto aos autos)

m) A B… ficou a deter 2.460 ações da C… SGPS, representativas de 98,40% do respetivo capital social. (cf. PA junto aos autos)

n) O pai, o marido e os dois filhos de B… ficaram com 10 ações cada. (cf. PA junto aos autos)

o) Nos anos a que respeitam as liquidações, nenhuma entidade (singular ou coletiva) alheia à sua família detinha ações nessa sociedade (bem como na Requerente). (cf. PA junto aos autos)

p) No ato de constituição da C… SGPS, foram eleitos administradores, para o triénio 2009/2011, o marido e os filhos da B…. (cf. PA junto aos autos)

q) No mesmo ato, foi eleito presidente da assembleia-geral da C… SGPS o pai de B… (E…). (cf. PA junto aos autos)

r) Em 22/12/2009, B… alienou 325.954 das ações da Requerente, à recém-constituída C…  SGPS. (cf. PA junto aos autos)

s) As ações foram vendidas pelo preço unitário acordado entre as partes do contrato de € 100,00, por ação, a que corresponde o preço global de € 32.595.400,00, tendo sido convencionado que tal preço seria pago a prazo. (cf. PA junto aos autos)

t) O Fiscal Único da  C… SGPS (K…, ROC) emitiu o seguinte parecer «a pedido do Conselho de Administração da sociedade (…) e de acordo com o estipulado no n.º 2 do artigo 397.º do Código das Sociedades Comerciais» relativamente à referida operação de compra e venda de ações: «a elaboração da minuta do contrato acima referido, assim como as condições e o preço estabelecido, são da única responsabilidade do Conselho de Administração da Empresa, sendo a nossa responsabilidade a sua análise de modo a emitirmos o presente parecer» (ponto 2) e «desta forma dou parecer favorável à minuta do contrato (…) que foi submetido para minha apreciação, pelo nominal de 100,00 euros, o que totaliza 32.595.400,00 euros, sendo o plano de pagamentos de 16 prestações anuais, vencendo-se a primeira em 10 de Junho de 2011» (ponto 4). (cf. PA junto aos autos)

u) A C… SGPS ficou devedora a B… da quantia correspondente ao preço de aquisição das ações, ou seja, € 32.595.400,00, tendo, por isso, registado um crédito a favor desta no referido montante. (cf. PA junto aos autos)

v) No contrato de compra e venda de ações não foi estipulado o pagamento de qualquer juro pela C… SGPS. (cf. PA junto aos autos)

w) A C… SGPS passou, então, a deter um – e único – ativo, constituído por essa participação na Requerente. (cf. PA junto aos autos)

x) Ainda na referida data de 22/12/2009, B… alienou à filha 10 ações da Requerente. (cf. PA junto aos autos)

 y) A B… ficou, consequentemente, a deter, apenas, 64 ações da Requerente, que representam uma participação (direta) de 0,018 % do respetivo capital social. (cf. PA junto aos autos)

y’) A B… manteve a qualidade de administradora da Requerente. (cf. PA junto aos autos)

z) Na sua declaração de IRS de 2009, em razão da mencionada alienação de ações da Requerente, B… declarou uma mais-valia de € 29.888.363,20, que considerou estar excluída de tributação. (cf. PA junto aos autos)

aa) Em 2010, a Requerente pagou à C… SGPS, a título de adiantamento de dividendos de 2010, € 1.495.504,93. (cf. PA junto aos autos)

ab) Ainda a título de dividendos de 2010, e como acerto, a Requerente pagou à C… SGPS, já em 2011, € 3.924,68. (cf. PA junto aos autos)

ac) Em 2012, a Requerente pagou à C… SGPS dividendos de 2011 no montante de € 399.847,90. (cf. PA junto aos autos) 

ad) A Requerente não procedeu a qualquer retenção de imposto em nenhuma das referidas distribuições de dividendos. (cf. PA junto aos autos)

ae) Nas mesmas datas em que recebe os dividendos, a C… SGPS reencaminha-os para a B…; concretizando (cf. PA junto aos autos):

Data

Descritivo no Doc. Bancário

Valor

Quem paga

Conta Bancária Origem

Quem recebe

Conta Bancária Destino

Tipo Doc.

03-12-2010

pagamento dividendos antecipados

€495.504,93

A…SA

C…SGPS

Transf. Bancária

03-12-2010

pagamento dívida à B…

€495.504,93

C…SGPS

B…

Transf. Bancária

06-12-2010

adiantamento de dividendos

€500.000,00

A… S.A

C…SGPS

Transf. Bancária

06-12-2010

pagamento dívida à B…

€500.000,00

C…SGPS

B…

Transf. Bancária

10-12-2010

pagamento dividendos antecipados

€500.000,00

A… SA

C…SGPS

Transf. Bancária

10-12-2010

amortização de dívida à B…

€525.000,00

C…SGPS

B…

Transf. Bancária

31-10-2011

pagamento dividendos 2010 - ACERTO

€3.924,68

A…SA

C…SGPS

Transf. Bancária

01-06-2012

pagamento dividendos 2011

€250.000,00

A…SA

C…SGPS

Transf. Bancária

01-06-2012

amortização de dívida à B…

€250.000,00

C…SGPS

B…

Transf. Bancária

09-10-2012

pagamento dividendos 2011

€149.847,90

A…SA

C…SGPS

Transf. Bancária

09-10-2012

amortização de dívida à B…

€149.847,90

C…SGPS

B…

Transf. Bancária

 

 

 

af) Desde o início da sua existência, em 2009, a C… SGPS não incorreu em despesas, designadamente relacionadas com custos com pessoal, consultadoria, trabalhos especializados ou ao pagamento de quaisquer rendas relativas à sua sede social. (cf. PA junto aos autos)

ag) A sede social da C… SGPS situa-se numa sala da sede da Requerente. (cf. PA junto aos autos)

            ah) Os administradores da C… SGPS não eram remunerados. (cf. PA junto aos autos)

            ai) A referida operação de compra e venda de ações realizada entre a B…e a C… SGPS começou por ser analisada no processo inspetivo aberto à C… SGPS pela OI2012… e iniciado em 26/10/2012, no âmbito do qual foi aplicada a cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º da LGT. (cf. PA junto aos autos)

            aj) Em consequência do que foram emitidas à C… SGPS as liquidações de retenção na fonte de IRS de 2010 (n.º 2013…, no valor de € 326.908,56) e de 2012 (n.º 2013…, no valor de € 99.961,98), bem como as liquidações de juros compensatórios com aquelas conexas. (cf. PA junto aos autos)

            al) A C… SGPS intentou, então, impugnação arbitral, solicitando a anulação daquelas liquidações, que foi apreciada no âmbito do processo arbitral n.º 258/2013-T que correu termos no CAAD. (cf. Doc. 1 com a Resposta)

            am) No acórdão proferido em 14-6-2014 nesse processo arbitral e que transitou em julgado, foi decidido “(...)julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade das liquidações de IRS objeto do presente pedido de pronúncia arbitral [liquidação de retenções na fonte de IRS 2010 n.ºs 2013 … de 22-7-2013 e n.º 2013 … – no montante de € 326.908,56 e juros compensatórios no montante de €32.063,90 respetivamente e liquidação de retenções na fonte de IRS 2012 nºs 2013…de 2013-07-22 e nºs 2013 … e 2013…, que fixou o IRS a pagar em 2012 no montante de € 99.961,98 e juros compensatórios no montante de € 3.307.28, respetivamente] no montante global de €462.241,72 (quatrocentos e sessenta e dois mil duzentos e quarenta e um euros e setenta dois cêntimos) (...)”].

            an) No acórdão arbitral proferido no processo n.º 258/2013-T foram considerados provados os seguintes factos:

“(...)

  1. A Requerente adquiriu, em 22-12-2009, à sua acionista B… 325.954 ações representativas de cerca de 93% do capital social da A…, SA, pessoa coletiva n.º …[Cfr contrato junto com o processo administrativo instrutor].
  2. A compra das ações foi feita ao preço unitário de 100 € por ação, que corresponde ao preço total de 32.595.400 € [Cfr contrato junto com o processo administrativo instrutor].
  3. A Requerente ficou devedora a B… da quantia correspondente ao preço de aquisição.
  4. À minuta do contrato promessa de venda, pelo valor nominal de €100,00 e com plano de pagamento do preço em 16 prestações anuais sucessivas, com início em 10 de junho de 2011, foi dado parecer favorável do fiscal único e Revisor Oficial de Contas, K… [artigo 397º-2, do Código das Sociedades Comerciais], com declaração de que as ações se destinavam a “(…)integrar a conta de participações financeiras de acordo com o objeto da sociedade  (…)”  e que aquela minuta “(…) assim como as condições e preço estabelecido são da única responsabilidade do conselho de administração da empresa (…)”  [Cfr processo administrativo instrutor – anexo 6, fls 148].
  5. A A… Lda iniciou atividade em 1977.
  6. Em 22-12-2003, foi celebrada escritura de transformação dessa sociedade, até aí por quotas, em sociedade anónima bem como de aumento do respetivo capital, [Cfr cópia da escritura junta com o processo administrativo instrutor].
  7. Eram, então, sócios E… e F… (mulher daquele), B…(de ora em diante B…) e G…(filhos do casal primeiramente referido) e, ainda, H… (marido de B…).
  8. A sócia B… ficou detentora de 34.916 ações, com um valor nominal de €5,00 e um valor total de €174.580,00, representativas de 9,9% do capital social
  9. Os pais de B… doaram-lhe 139.644 ações, a que foi atribuído um valor de €698.220,00 (valor unitário de € 5,00), ficando ela, nessa data, a deter 49,98 % do capital social
  10. Em 2006-11-29, B… adquiriu (por permuta) ao irmão (o referido G…) 46.278 ações, a que foi atribuído um valor de € 231.311,84 (valor unitário de € 4,998), passando a deter 63,24 % do capital social.
  11. Em 2007-04-12, B… comprou ao irmão 105.200 ações, por um valor unitário de €24,08, num valor total de €2.533.216,00, ficando nessa data titular de 326.038 ações, com um valor nominal de €5,00, representativas de 93,36% do capital social da A…SA [Cfr contrato junto com o processo administrativo instrutor].
  12. Em 2007-04-12, B… vendeu a I… a, seu filho, 10 ações, por um valor unitário de €30,00, num total de €300,00, ficando detentora de 326.028 ações, representativas de 93,36% do capital social da A… SA [Cfr contrato junto com o processo administrativo instrutor].
  13. B… era administradora da A…SA desde 1986.
  14. A Requerida, em 2008, procedeu à distribuição de dividendos aos seus accionistas.
  15. E reteve na fonte IRS no valor de €200.000,00.
  16. Em 2009-10-14, B…, o marido (doravante designado H…), os filhos, I… (acima referido) e J…, e o pai (o já mencionado E…), constituíram a sociedade ora Requerente, C…, SGPS, S.A. (doravante designada C…SGPS), com o capital social de €50.000,00, representado por 2.500 ações, com o valor nominal de € 10,00 cada [Cfr contrato de sociedade junto com o processo administrativo instrutor].
  17. Ana Paula Silva ficou a deter 2.460 ações da C…SGPS, representativas de 98,40% do respetivo capital social, [Cfr contrato de sociedade junto com o processo administrativo instrutor].
  18. O pai, o marido e os dois filhos de B… ficaram com 10 ações cada.
  19. Nos anos a que respeitam as liquidações, nenhuma entidade (singular ou colectiva) alheia à sua família detém ações na Requerente bem como na A… SA.
  20. No ato de constituição da requerente [cfr supra, 16.], foram eleitos administradores, para o triénio 2009/2011, o marido e os filhos da sobredita acionista B… [Cfr anexo 8, fls 151, do processo administrativo].
  21.  E nesse mesmo ato foi eleito presidente da assembleia-geral da C… SGPS também para o triénio 2009/2011, o pai de B… (E…).
  22. Em 2009-12-22, B… alienou 325.954 das ações da A… SA, à recém-constituída C… SGPS, conforme contrato junto com o processo administrativo.
  23. A C…SGPS não pagou o preço de compra das ações  à B… .
  24. A C… SGPS registou um crédito a favor de B… no referido montante de €32.595.400,00.
  25. Não estipulando o contrato o pagamento de qualquer juro pela empresa.
  26. A C… SGPS passou, então, a deter um - e único - activo, constituído por essa participação na A… SA.
  27. Ainda na referida data de 2009-12-22, B… alienou à filha 10 ações da A… SA, conforme contrato junto com o processo administrativo.
  28. ficando, consequentemente, a deter, apenas, 64 ações dessa sociedade, que representam uma participação (directa) de 0,018 % do respectivo capital social
  29. E manteve a qualidade de administradora da A… SA.
  30. Na sua declaração de IRS de 2009, B… declarou uma mais-valia de €29.888.363,20, que considerou estar excluída de tributação.
  31. Em 2010 a A… SA pagou à C… SGPS, a título de adiantamento de dividendos de 2010, €1.495.504,93.
  32. A A… SA não procedeu à retenção aquando dessa distribuição de dividendos.
  33. Ainda a título de dividendos de 2010, e como acerto, pagou-lhe, já em 2011, €3.924,68.
  34. Em 2012, a A… SA pagou à C… SGPS dividendos de 2011 no montante de €399.847,90.
  35. Nas mesmas datas em que recebe os dividendos, a C… SGPS reencaminha-os para a B… .
  36. À data dos factos a C…SGPS não dispõe de qualquer património, meios humanos ou estruturais próprios.
  37. Desde o início da sua existência, em 2009, a  C… SGPS não incorreu em despesas, designadamente relacionadas com custos com pessoal, consultadoria, trabalhos especializados ou ao pagamento de quaisquer rendas relativas à sua sede social.
  38. Sendo que a referida sede social se situa numa sala da sede da A…, SA.
  39. Os administradores da Requerente não eram remunerados.
  40. A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR de 2010 n.º 2013 … e da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2013…, no valor total de 358.972,46 €, conforme liquidação junta aos autos com o pedido arbitral pela Requerente.
  41. A Requerente foi também notificada demonstração de liquidação de retenções na fonte de IR de 2012 n.º 2013 … e da demonstração de liquidação de juros compensatórios n.º 2013…, no valor total de 103.269,26 €, conforme liquidação junta aos autos com o pedido arbitral pela Requerente (...)”

 

            ao) Tendo o Tribunal Arbitral nesse processo considerado como factos não provados:

            “(...)- Não se considera provado que a  C… SGPS, S.A., tenha sido constituída com o propósito de gerir as participações sociais das empresas do Grupo D… (entre as quais a A…, S.A.), nem com a intenção de, no momento oportuno, adquirir um conjunto alargado de participações sociais, nomeadamente nas seguintes empresas:

i.                   L…, Lda, com sede em Angola e com o contribuinte nº…,

ii.                 M…, Lda, com sede em Moçambique e com o contribuinte n9…, detida pelos sócios B…, que detém 50% do capital social e o sócio H…, que detém 50%;

iii.               N…, Lda, sociedade de direito português, com o contribuinte nº…,

iv.                O…, S.A., sociedade de direito português, 

v.                  P…, S.A., sociedade de direito português, com o contribuinte n9…,

- Não ficou provado que a requerente tenha sido constituída para ser a empresa-mãe e dirigir a concentração de um grupo empresarial com diversas empresas, detidas por vários sócios, e com sede e atividade em vários países

- Não ficou provado que dividendos tenham sido utilizados na atividade económica da Requerente.

- Não se considera provado que a Requerente tenha sido notificada do despacho decisório que autoriza a aplicação da cláusula anti-abuso (...)”.

 

            ap) Em consequência e após o acórdão arbitral proferido no processo n.º 258/2013-T, a AT determinou a abertura das Ordens de Serviço n.ºs OI2014… e OI2014… à Requerente, tendo o procedimento inspetivo sido iniciado em 29/08/2014. (cf. Docs. 1 e 2 juntos com a Petição Inicial e PA junto aos autos).

            aq) Na sequência daquela ação inspetiva, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do … elaboraram o Relatório da Inspeção Tributária, cujo teor aqui se dá como inteiramente reproduzido, do qual importa aqui respigar o seguinte (cf. PA junto aos autos):

            «III.1.5.2 – Aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT e artigo 63.º do CPPT

            Em resumo do que vem sendo exposto no presente documento:

             A. Quanto à descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e dos negócios ou atos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam:

            Consubstancia-se no recebimento, em 2010 e 2012, por B…, após a distribuição de dividendos pela A… SA, antecedida pela alienação da participação que detinha de 93,34% no capital social da referida sociedade A… SA em 2009-12-22, pelo valor global de € 32.595.400,00, à sociedade C… SGPS, que havia sido constituída em 2009-10-14 e na qual detém participação de 98,40%, que teve como objetivo fundamental a distribuição de dividendos, colocados à disposição nos exercícios de 2010 a 2012. Mostra-se evidente que, sem a utilização desses meios, o SP beneficiário (B…) não evitaria a tributação, resultante da transformação dos dividendos em recebimento da dívida, ficando assim sujeito a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria E de IRS.

            Para remunerar o capital da acionista a forma normal seria a distribuição de dividendos pagando o respetivo imposto e não a criação de uma estrutura que permitiu retirar os dividendos sem qualquer tributação, através da sua transformação em recebimento da dívida gerada por uma operação efetuada entre entidades juridicamente distintas, mas economicamente controladas pela mesma acionista. Ao utilizar esta estrutura, resulta claro que a acionista decidiu artificiosamente evitar a tributação em IRS, através da utilização de um conjunto de negócios anómalos, atingindo assim idêntico fim económico, evitando o imposto de € 421.495,54, devido nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º, subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º e n.º 1 do artigo 98.º, todos os artigos do CIRS.

            B. Quanto à demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do ato foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou ato com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais:  

            O pagamento da dívida pela sociedade C… SGPS à sua acionista, com os meios financeiros provenientes da distribuição de dividendos da sociedade A… SA, após a aquisição da participação que esta detinha na sociedade A… SA, visou a retirada de dividendos desta sociedade sem qualquer tributação.

            Para obter os resultados pretendidos, foram executados artificiosamente vários atos jurídicos, mais complexos e dispendiosos, que se revelam manifestamente desnecessários e denunciam claramente a intenção artificiosa da sua utilização, ou seja, evitar a tributação que seria devida.(…)

            III.1.5.3 – Conclusão

            Em conclusão, apesar da qualificação dada pelos sujeitos passivos intervenientes aos negócios jurídicos efetuados, a mesma não vincula a Administração Tributária, tal como determina o n.º 4 do artigo 36.º da LGT, estando reunidas as condições para aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, para a desconsideração da forma dada ao pagamento de dividendos pela A… SA à C… SGPS, imediatamente seguida do pagamento da dívida pela C… SGPS à acionista B…, dando-lhe o enquadramento de pagamento de lucros (dividendos) da A… SA a B…, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5.º do CIRS, tributando-os em retenção na fonte de IRS, de acordo com a alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º, da subalínea 2) da alínea a) do n.º 3 do artigo 7.º e do n.º 1 do artigo 98.º do mesmo diploma legal, no momento da colocação á disposição a B….        Por assim ser, face ao disposto nos artigos indicados, incumbe à Administração Tributária considerar ineficaz no âmbito tributário, a transformação dos dividendos, uma vez que tais atos/negócios foram praticados com abuso das formas jurídicas e tiveram como objetivo essencial a eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

            Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38.º da LGT, ou seja, pela tributação dos montantes pagos pela sociedade A… SA no momento em que foram colocados à disposição de B…, que corresponde ao seguinte imposto em falta (retenção na fonte de IRS), devido pela A… SA:     

            Quadro 6

Data de Pagamento

Imposto a Reter (em dívida)

Data da Entrega do Imposto

2010-12-03

€ 106.533,56

20-01-2011

2010-12-06

€ 107.500,00

20-01-2011

2010-12-10

€ 107.500,00

20-01-2011

2012-06-01

€ 62.500,00

20-07-2012

2012-10-09

€ 37.461,98

20-11-2012

TOTAL

€ 421.495,54

 

 

»

ar) Em 12/12/2014, o Diretor-Geral da AT proferiu Despacho de Autorização de Liquidação com base na aplicação de disposição antiabuso. (cf. PA junto aos autos) 

as) A Requerente, na pessoa do Sr. Dr. Q…, na qualidade de mandatário constituído, foi notificada do Relatório da Inspeção Tributária, bem como do mencionado Despacho de Autorização de Liquidação, através do ofício n.º …/…, de 29/12/2014, da Direção de Finanças do…, o qual foi recebido em 02/01/2015. (cf. PA junto aos autos e Doc. 2 junto à Resposta)

at) A Requerente recebeu a notificação referente às liquidações (de imposto e de juros compensatórios) relativas ao ano de 2010 (liquidações n.º 2014 … e n.º 2015…), em 05/05/2015, mediante o acesso à sua caixa postal eletrónica do ViaCTT. (cf. Doc. 3 com a Resposta)

au) Em 02/03/2015, a Requerente efetuou o pagamento voluntário das liquidações (de imposto e de juros compensatórios) relativas ao ano de 2012, no montante total de € 109.119,08. (cf. Doc. 5 junto à Petição Inicial)

av) Em 03/06/2015, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. (cf. sistema informático de gestão processual do CAAD)

*

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

            Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que a  C…, SGPS, S.A. tenha sido constituída com o propósito de gerir as participações sociais das empresas do Grupo D… (entre as quais a Requerente), nem com a intenção de, no momento oportuno, adquirir um conjunto alargado de participações sociais, o que passaria pela concentração na detenção pela C…, SGPS, S.A. das seguintes empresas:

-L…, Lda, com sede em Angola e com o contribuinte nº…, detida pelos sócios B…, que detém 95% do capital social e o sócio I…, que detém 5%;

-M…, Lda, com sede em Moçambique e com o contribuinte nº…, detida pelos sócios B…, que detém 50% do capital social e o sócio H…, que detém 50%;

-N… , Lda, sociedade de direito português, com o contribuinte nº…, detida pelos seguintes sócios:B…, com uma quota de 40% do capital social; A…, S.A., com uma quota de 49% do capital social; H…, com uma quota de 11% do capital social.

-O…, S.A., sociedade de direito português, com o contribuinte nº…, detida pelos seguintes acionistas: B…, com 50,120% do capital social; H…, com 49,48% do capital social; E…, com 0,133 % do capital social; I…, com – 0,133% do capital social; J…, com 0,133% do capital social.

-P…, S.A., sociedade de direito português, com o contribuinte nº…, detida pelos seguintes acionistas: B…, com 88,784% do capital social; H…, com 6,537% do capital social; E…, com 1,559 % do capital social; I…, com 1,559% do capital social; J…, com 1,559% do capital social.

b) Que a C…, SGPS, S.A. tenha sido constituída para ser a empresa-mãe e para dirigir a concentração de um Grupo empresarial com diversas empresas, detidas por vários sócios, e com sede e atividade em vários países.

c) Que os dividendos que a Requerente pagou à C… SGPS tenham sido por esta utilizados no âmbito da sua atividade económica.

*

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, nos documentos juntos aos autos e no processo administrativo.

Relativamente à factualidade não provada, esta foi assim considerada em resultado da ausência de quaisquer elementos probatórios suscetíveis de, inequivocamente, a comprovarem.

*

III.2. DE DIREITO

Os atos tributários e vícios que lhes são imputados

Para além das exceções suscitadas pela AT e anteriormente decididas, está em causa no presente processo apreciar a legalidade da liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2014…, no montante de € 321.533,56, relativa ao ano de 2010, e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2015…, no montante de € 50.353,03, assim como da liquidação de retenção na fonte de IRS n.º 2015…, no montante de € 99.961,98, relativa ao ano de 2012, e das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015 … e 2015…, no montante global de € 9.157,10.

A Requerente imputou às referidas liquidações de IRS os seguintes vícios:

a)          Ilegitimidade procedimental: inoponibilidade à Requerente, enquanto substituta tributária, da desconsideração de efeitos fiscais resultante da aplicação da cláusula geral antiabuso aos atos e negócios jurídicos em apreço, com a sequente arguição da violação do art. 38.º, n.º 2, da LGT e, ainda, da inconstitucionalidade dessa norma, se interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário, em face dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do direito à propriedade (arts. 18.º, n.º 2 e 62.º, n.º 1, da CRP);

b)          Caducidade da liquidação referente ao ano de 2010;

c)          Falta de preenchimento dos pressupostos de aplicação da cláusula geral antiabuso, resultando assim violado o disposto no art. 38.º, n.º 2, da LGT, nomeadamente por:

i.    As operações realizadas não consubstanciarem o recurso a meios fraudulentos ou artificiosos e com abuso de formas jurídicas;

ii.  As operações não terem sido realizadas com objetivo único, principal ou determinante de natureza fiscal, mas sim visando a criação de um grupo empresarial alavancado e coordenado por uma SGPS. 

            Apreciação do mérito do pedido

            A questão fulcral é aqui determinar se a aplicação da cláusula geral antiabuso (CGAA) pode produzir ou não efeitos fiscais sobre terceiros que não o contribuinte que obteve a vantagem fiscal (por ex., impondo a obrigação de retenção na fonte), pois a Autoridade Tributária tem vindo a emitir, tanto quanto nos apercebemos, as liquidações adicionais sobre os substitutos tributários e não sobre os sujeitos passivos.

            Ora, atentos os desenvolvimentos nesta matéria, seria importante clarificar por via legislativa ou, pelo menos, de forma a assegurar uniformidade na jurisprudência, alguns aspetos associados à aplicação da norma antiabuso (nomeadamente no que se refere às consequências da ineficácia e sobre quem incidem essas consequências).

            Feitas estas considerações preliminares, passemos à análise do caso concreto.

            Trata-se, no essencial e preliminarmente, de saber da (i)legalidade da liquidação ao substituto tributário (a Requerente, A…, SA) do IRS e juros compensatórios devidos pela acionista Ana Paula Silva em resultado das liquidações de IRS operadas pela AT decorrentes da não retenção na fonte de IRS por aquela entidade na sequência e em consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso (artigo 38.º da LGT).

            Mais concretamente: em decisão arbitral anterior em que foi Requerente C… , SGPS, S.A, o Tribunal reconheceu o bem fundado da aplicação da CGAA (cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º da LGT) mas considerou ilegais as liquidações de IRS à Requerente, como substituta tributária, considerando-a não detentora desse estatuto (de substituta tributária).

            Ulteriormente, na sequência e em consequência da sobredita decisão arbitral, entendeu a AT promover as liquidações ora objeto destes autos que, relativamente às anteriormente sindicadas no citado processo arbitral, tinham agora como substituta tributária a ora Requerente, A…, SA.

            A questão da execução de julgado (artigo 24.º do RJAT)

            Invoca a AT, sobre esta questão e no essencial, que ficou vinculada a “praticar os atos de liquidação devidos em substituição dos atos objeto da decisão arbitral” proferida no processo n.º 258/2013-T e a “liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral” transitada em julgado sendo, nessa medida, que foram praticados os atos de liquidação ora impugnados – cf. artigo 24, nº 1, alíneas a) e d), do RJAT (cf. artigos 13.º a 28.º da Resposta).

            Ou seja e se bem entendemos (em síntese e sem prejuízo de ulterior melhor desenvolvimento), pelo facto de no acórdão arbitral proferido no processo n.º 258/2013-T se ter decidido serem ilegais os atos tributários aí sindicados por visarem entidade que não estava obrigada ao pagamento na medida em que não era, no caso, substituto tributário, decidiu a AT praticar novos atos de liquidação, agora contra a entidade que considerou ser a real substituta tributária e devedora dos tributos liquidados.

            Invoca a AT, se bem entendemos, o cumprimento de dever de dar execução à decisão arbitral anulatória nos termos previstos no artigo 24.º do RJAT, ou seja e mais concretamente, a prática dos atos tributários legalmente devidos e/ou liquidações das prestações tributárias em substituição dos atos ou liquidações objeto da citada decisão arbitral, tudo em conformidade com aquela mesma decisão (cf. alíneas a) e d) do citado artigo 24.º).

            Por outras palavras, decidida a questão pelo tribunal, nos termos em que o foi, cabia à AT proceder, como procedeu, à (nova) liquidação dos tributos em falta, adotando a posição sufragada pelo tribunal.

            Não parece, porém, que haja lugar à convocação do preceito em causa porquanto e desde logo, a posição sufragada pelo Tribunal foi tão só e apenas a de considerar a ilegalidade dos atos de liquidação praticados na pessoa da impugnante no processo n.º 258/2013-T – a sociedade comercial C…, SGPS, SA.

            Na verdade, essa decisão arbitral não reconheceu (nem tão pouco o poderia fazer) o direito da AT à liquidação dos tributos a entidade que nem tão pouco havia sido chamada ao processo – a ora Requerente, A…, S. A.

            Certo que na sequência da anulação de ato tributário, tem a AT o poder/dever de praticar novo ato, no respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso julgado (cf. artigo 173.º, n.º 1, do CPTA), não tendo para o efeito outros limites que não sejam os derivados da autoridade da decisão anulatória e previstos no procedimento de execução de julgados (cf., a este propósito, Jorge Lopes de Sousa, Guia de Arbitragem Tributária, Ed. Almedina/2013, pp. 217 e segs.).

            E será portanto a legalidade desses novos e ora impugnados atos tributários que cumpre agora apreciar e decidir, na certeza de que, ao contrário do que alega a AT, não foram praticados em execução da decisão anulatória anterior embora o tenham sido em consequência da mesma.

            Não se trata, por conseguinte, de dar execução ao julgado nos termos invocados pela AT.

 

            A questão da “ilegitimidade procedimental”[3]

            No cerne desta questão está, como se referiu já, saber como se operam ou quais são, na realidade, as consequências da desconsideração pela AT, para efeitos fiscais, da cadeia de operações e atos que serviriam de “fachada” para ocultar ou esconder a real substância dos mesmos e que seria, no caso, a distribuição de dividendos a acionista, sendo que é indiscutível e ficou já assente que houve, por trás duma outra aparência de atos não tributáveis, uma realidade sujeita a tributação em IRS e de que foi beneficiária direta a acionista B… .

            As vantagens fiscais indevidas na situação em apreço, designadamente por as quantias recebidas deverem ser tributadas a título de dividendos, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira e foi já objeto de apreciação e decisão no processo arbitral n.º 258/2013-T, do CAAD, é manifesto que quem as obteve foi a própria acionista, B…, que recebeu as quantias sem qualquer dedução ou pagamento de imposto (IRS), e não a Requerente, que pagou integralmente as quantias em causa.

            Na verdade, a criação da SGPS e a sua interposição entre a A… SA ora Requerente e a acionista, B…, permitiu converter dividendos em pagamento de dívida e assim evitar a tributação na esfera jurídica de B… durante um período significativo de tempo (16 anos).

            Assim é que, conforme resulta do acórdão arbitral proferido no sobredito processo n.º 258/2013-T, a dívida de € 32.595.400,00 contraída pela C… SGPS correspondente à alienação à C… SGPS da participação de 93,3% que B… detinha na A… SA, seria paga pela C… SGPS àquela (B…) ”… em 16 prestações  de € 2.037.212,50, vencendo-se a primeira no dia 10 de junho de 2011 e as seguintes em igual dia dos anos subsequentes…”, o que permitiria à B… receber indiretamente através da C… SGPS dividendos provenientes da A… SA sem qualquer tributação. Após a interposição da C… SGPS, B… detinha indiretamente (sublinhado nosso) 91,85%[4] do capital social da A… SA tendo ficado administradora da A… SA enquanto o seu marido H… era administrador da C…SGPS, juntamente com os filhos. Assim, estamos perante entidades em situação de relações especiais tal como vem definido no artigo 63.º do CIRC e da Portaria n.º 1446-C/2001 de 21 de dezembro, quer a nível da relação inter-societária (C… SGPS/A… SA), quer a nível dos acionistas. No entanto B… quer como acionista da C… SGPS, quer como administradora da A… SA tinha uma preponderância significativa no seio deste grupo económico de âmbito familiar (Grupo D…).

            E foi essa preponderância e posição de acionista e administradora da Requerente que terá permitido a organização duma cadeia de operações e atos que deram aparência de dívida da C…, SGPS a B… do que verdadeiramente constituía pagamento (distribuição) de dividendos pela ora Requerente com a consequente obrigação de retenção na fonte à taxa liberatória devida (artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do CIRS).

            Ou seja e tal como havia já ficado demonstrado no acórdão proferido no processo n.º 258/2013-T, a criação da SGPS serviu como instrumento ou veículo para converter dividendos, que antes eram tributados em sede de IRS quando colocados à disposição e pagos[5] à acionista B… por parte da A… SA, em pagamento de uma dívida da SGPS para com a sua acionista maioritária B…, considerando-se designadamente a prova de que em 2010, a A… SA pagou à C… SGPS, a título de adiantamento de dividendos, o montante de € 1.495.504,93, não tendo procedido a retenção na fonte para efeitos de IRS, aquando dessa distribuição de dividendos. Ainda a título de dividendos de 2010, e como acerto, a A… pagou, já em 2011, à C… SGPS, o montante de €3.924,68. Ficou igualmente provado que em 2012, a A… SA pagou à C… SGPS dividendos de 2011 no montante de €399.847,90, não tendo procedido a retenção na fonte para efeitos de IRC, tendo a C… SGPS nas mesmas datas em que recebe os dividendos, reencaminhado os mesmos para a B… sob a forma de pagamento de dívida resultante da cessão da participação que a mesma detinha na A… SA à C… SGPS, sem qualquer tributação na esfera da B… .

            Do exposto resulta desde já inequívoco, reafirma-se, ser a acionista B… a beneficiária direta exclusiva da sobredita estrutura criada, sendo ela quem unicamente beneficiou do enquadramento tributário e, concretamente, do pagamento de dividendos sem que tivesse havido lugar à inerente tributação.

            Ora sendo os acionistas os reais beneficiários das vantagens referidas, a aplicação da cláusula geral antiabuso, nos termos em que foi efetuada, não permite afastar essas vantagens, pois, impondo à Requerente o pagamento das quantias equivalentes a essas vantagens, é apenas a ela que é imposto estes ónus, permanecendo os acionistas na titularidade intacta das quantias recebidas.

            É certo que se pode aventar que, mais cedo ou mais tarde, o prejuízo patrimonial com a tributação que é imposta à sociedade se repercutirá sobre os acionistas, mas é também evidente que isso pode não suceder em relação aos acionistas que beneficiaram das vantagens indevidas, pois podem deixar de ser acionistas antes de o prejuízo imposto à sociedade ter uma efetiva repercussão no valor das suas ações.

            A interpretação da parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, como norma jurídica tributária de que resulta a imposição de tributação, não pode deixar de ter em conta a característica da generalidade, indispensável nas normas de tributação por força do disposto no artigo 5.º, n.º 2, da LGT, que é corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos.

            Por isso, a interpretação correta do artigo 38.º, n.º 2, terá de valer generalizadamente, em relação a qualquer tipo de sociedades anónimas, inclusivamente as cotadas em bolsa em que a estrutura acionista se altera constantemente, relativamente às quais é evidente que a imposição da tributação à sociedade por com a sua intermediação os acionistas terem criado para si próprios vantagens fiscais indevidas não ter qualquer efeito sobre quem usufruiu dessas vantagens e deixou, depois, de ser acionista.

            Ora, a esta luz, é evidente que o alcance daquele artigo 38.º, n.º 2, ao estabelecer como efeito necessário da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais, pressupõe o entendimento legislativo de que a «tributação de acordo com as normas aplicáveis» incida sobre quem obteve as vantagens e não sobre quem meramente teve intervenção nos atos de que elas resultam sem beneficiar daquelas, pois só assim, é possível garantir o efeito pretendido de não se produzirem as vantagens fiscais especialmente ou genericamente referidas.

            Na verdade, conclui-se da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redação da Lei n.º 30-G/2000, que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por atos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens.

Refira-se, aliás, que não era idêntica, neste aspeto, a redação inicial desta norma, em que se estatuía que, como consequência da aplicação da cláusula geral antiabuso, a tributação recairia sobre os atos ou negócios jurídicos de resultado económico equivalente, sem qualquer alusão à eliminação das vantagens fiscais, mas a referência expressa que se faz na nova redação à não produção dessas vantagens como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso veio tornar indispensável que as consequências da sua aplicação atinjam quem as obteve.

Por outro lado, sendo esta eliminação das vantagens fiscais o objetivo expresso da cláusula geral antiabuso, o destinatário da aplicação desta cláusula, aquele em cujo património se irão produzir os efeitos da aplicação, não pode deixar de ser quem usufruiu dessas vantagens fiscais.

            De resto é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio constitucional da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT).

            Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente violado quando, numa situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou diretamente dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram.

            Na verdade, a existir dever de retenção na fonte a título definitivo nos pagamentos a efetuar pelo substituto tributário, não há qualquer disposição legal que lhe assegure a possibilidade de reaver a quantia que tiver de pagar, mesmo que não tenha efetuado a retenção, pois a responsabilidade do substituído é meramente subsidiária, por força do disposto no n.º 3 do artigo 103.º do CIRS, e não existe qualquer disposição legal que assegure direito de regresso do responsável originário em relação ao subsidiário.

            Nestas situações, vale plenamente a regra do artigo 21.º do mesmo Código, em que se estabelece que «quando, através de substituição tributária, este Código exigir o pagamento total ou parcial do IRS a pessoa diversa daquela em relação à qual se verificam os respectivos pressupostos, considera-se a substituta, para todos os efeitos legais, como devedor principal do imposto, ressalvado o disposto no artigo 103.º».

            Sendo assim, é, na verdade, em nosso entender, seguro que a redação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, ao determinar como efeito da aplicação da cláusula geral antiabuso a não produção das vantagens fiscais indevidas, pressupõe que o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui, pois os efeitos da aplicação não são transmissíveis do substituto para o substituído.

 

            No caso sub juditio, não tendo a Requerente, uma sociedade comercial anónima, usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas ocorridas apenas na esfera de terceiros.

            De todo o modo, o tratamento fiscal, como se fossem dividendos, das quantias pagas pela Requerente de forma a tais pagamentos não ficarem sujeitos a tributação pela acionista B…, não podia ser decidido pela própria Requerente nos momentos em que fez os pagamentos, pois, independentemente do que a Requerente pudesse entender sobre a verificação dos requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, esta aplicação e a consequente ineficácia fiscal dos negócios efetivamente praticados tinham de ser precedidas obrigatoriamente de autorização do dirigente máximo do serviço (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT), autorização que, obviamente, não podia existir no momento em que a Requerente fez os pagamentos.

            Isso significa que, mesmo que entendesse que se verificavam os requisitos da aplicação da cláusula geral antiabuso, nos momentos em que a Requerente fez os pagamentos não tinha qualquer fundamento legal para efetuar a retenção na fonte sobre pagamentos que eram e são reembolsos de créditos em termos de direito civil.

            O que conduz necessariamente à conclusão de que não existia dever legal de retenção na fonte.

            Isto é, o próprio regime legal da aplicação da cláusula geral antiabuso, que depende de uma autorização prévia obrigatória do dirigente máximo do serviço, é incompatível com a sua aplicação retroativa a normas de conduta («regula agendi») impostas aos sujeitos passivos dos tributos, como é o caso das normas que obrigam a retenção na fonte, pois a própria natureza destas normas impõe que a sua aplicação só se faça depois de estarem reunidos os requisitos legais da sua aplicação.

            As normas de direito fiscal que vão dirigidas à vontade dos sujeitos das relações jurídicas tributárias, visando determinar os seus comportamentos, não podem ter a pretensão inviável de influenciar condutas que são anteriores à verificação dos pressupostos da sua aplicação.

            Por isso, tendo de ser o cumprimento de deveres de retenção na fonte de tributos contemporâneo dos atos de pagamento previstos na lei, esses deveres só podem ser impostos por regula agendi, normas eficazes no momento em que se devem materializar esses deveres, nunca podendo ser determinados a posteriori, depois de ultrapassado o momento em que os atos de pagamento se concretizaram, por efeito de uma decisão casuística do dirigente máximo do serviço, proferida ao abrigo de uma regula decidendi, dirigida ao aplicador do direito, como é a do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, que, pela sua natureza, não pode influenciar condutas ocorridas anteriormente.

            O que se reconduz a que, pela própria natureza do dever de retenção na fonte[6], a aplicação da cláusula geral antiabuso, dependente de uma verificação a posteriori dos requisitos da sua aplicação, não pode originar deveres de retenção na fonte que não existiam no momento em que foram praticados os atos ou negócios considerados abusivos de que emergiu uma vantagem fiscal indevida, à face do circunstancialismo factual e jurídico existente nesse momento.

            De qualquer modo, é esta a única interpretação constitucionalmente admissível pois, se a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT fosse interpretada como admitindo a oponibilidade dos efeitos da aplicação da cláusula geral antiabuso ao substituto tributário (designadamente a imposição dos efeitos do incumprimento de um dever de retenção na fonte que não existia à face do negócio efetivamente celebrado), num contexto em que não está legalmente assegurada a viabilidade de reaver as quantias não retidas cujo dever de retenção é determinado a posteriori, seria materialmente inconstitucional, à face dos princípios da proporcionalidade e do direito à propriedade (artigos 18.º, n.º 2, e 62.º, n.º 1, da CRP).

            Com efeito, estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efetuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência, o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efetuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efetuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroativo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar, nos casos de retenção a título definitivo em que o substituo é o devedor originário.

            Nestes termos, tem de se concluir, também por esta via, pela ilegalidade dos atos impugnados por violação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

            Nem se diga que estas conclusões contradizem as considerações produzidas no acórdão proferido no processo n.º 258/2013-T (e que, de todo o modo, não formam, por si próprias e como se viu, caso julgado) porquanto em parte alguma desse acórdão e com caráter perentório se afirma ou defende a legalidade da tributação do substituto tributário em consequência da aplicação, com fundamento, da CGAA.

            Por outro lado, sempre não se deixará de assinalar que diferentemente do que acontece relativamente a normas com intuito idêntico às da CGAA e que encontramos em outros ramos do ordenamento jurídico, como sejam o instituto do abuso do direito ou o princípio da boa-fé, a CGAA não é uma cláusula geral aberta que permita ao intérprete afastar a solução legal (a tributação) que decorre da norma que resultaria aplicável (da norma de incidência cuja hipótese os factos preenchem) invocando considerações de justiça material ou de coerência substantiva do sistema jurídico fiscal.

            Na verdade, a CGAA é, também ela, uma norma típica – como não poderia deixar de ser, tratando-se de uma norma que releva diretamente nas regras de incidência tributária – que só pode ser aplicada quando, indubitavelmente, se encontrem verificados todos e cada um dos pressupostos nela previstos.

            Significa isto que o intérprete se tem de abster de quaisquer juízos sobre, nomeadamente, se a economia fiscal lograda é ou não “justificada” ou “aceitável”, se, por exemplo, a concreta situação fere ou não uma suposta igualdade horizontal entre os contribuintes.

            O intérprete, o julgador, tem apenas o dever de verificar se, no caso concreto, estão ou não, indubitavelmente, presentes todos e cada um dos pressupostos de aplicação da CGAA. E tal análise, tal interpretação, tem que ser feita de forma restritiva, como impõem as regras da hermenêutica jurídica relativamente às normas excecionais.

            Ao intérprete é completamente vedado dar à CGAA um âmbito de aplicação mais vasto (fazer uma interpretação extensiva) que aquele que decorre do próprio texto legal, mesmo que sob o pretexto de realização da justiça material no caso concreto.

            Dir-se-á que, assim sendo, fica, em muito, reduzida a eficácia da CGAA no combate a formas de elisão fiscal que se poderão, razoavelmente, considerar abusivas.

            Poderá ser e até será essa a realidade, mas tal decorre, inquestionavelmente, da natureza excecional da norma e do que tal natureza impõe ao intérprete, ao julgador.

            Tributar, no caso, na decorrência da aplicação da CGAA, a Requerente ao invés de procurar tributar a acionista beneficiária do rendimento, tem o seu quê, digamos deste modo, de circulus in demonstrando e fere o sistema que para a CGAA resulta do artigo 38.º, n.º 2, da LGT e do artigo 63.º do CPPT.

            À luz do exposto, terão de considerar-se os atos de liquidação controvertidos feridos de ilegalidade por violação dos princípios e normas supra indicadas.

 

            Juros indemnizatórios

            A Requerente pede o reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de € 109.119,08, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal.

            A Requerente pagou esta quantia que lhe havia sido liquidada pela AT em 2-3-2015.

            De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

            Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza ou harmoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

            O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redação dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redação inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

            Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

            No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, há lugar a reembolso do imposto, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”, na parte correspondente à correção que foi considerada ilegal.

            No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro que a ilegalidade dos atos é imputável à Administração Tributária e Aduaneira que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal.

            Está-se perante um vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Administração Tributária.

            Consequentemente, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente.

            Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução ao presente acórdão, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, restituindo à Requerente a sobredita importância de € 109.119,08, com juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT, 61.º, do CPPT e 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).

            Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento (2-3-2015), até à do processamento da nota de crédito, em que forem incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

            Vícios de conhecimento prejudicado

            Pelo que se disse, os atos impugnados enfermam de vício de erro sobre os pressupostos de direito e de facto, que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo), devendo o pedido ser julgado – como irá ser – totalmente procedente.

            Trata-se de anulação com fundamento em vício que atribui estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, já que dela (anulação) decorre manifestamente a inviabilidade da renovação dos atos cuja declaração de ilegalidade foi pedida.

            Sendo assim, em conformidade com o preceituado no artigo 124.º, n.º 2, do CPPT, aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios imputados aos atos que são objeto do presente processo, pois o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pelo entendimento legislativo de que, procedendo a impugnação com fundamento num vício que proporcione eficaz e estável tutela dos interesses do impugnante, deixa de se conhecer dos restantes.

 

            III – Decisão

            De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

            a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral por, nos termos expostos supra, não se verificarem em relação à Requerente alguns dos pressupostos, legais e de facto, de aplicação da cláusula geral antiabuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT;

            b) Declarar a ilegalidade dos atos de liquidação de retenção na fonte de IRS 2010 n.º 2014…, no montante de € 321.533,56 e da correspondente liquidação de juros compensatórios n.º 2015…, no montante de € 50.353,03, assim como da liquidação de retenção na fonte de IRS 2012 n.º 2015…, no montante de € 99.961,98 e das correspondentes liquidações de juros compensatórios n.ºs 2015… e 2015…, no montante global de € 9.157,10;

c) Anular todas as referidas liquidações de imposto e de juros compensatórios;

 

d) Considerar prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas neste processo;

 

e) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a proceder ao reembolso da quantia de € 109.119,08 que foi paga pela Requerente relativamente às indicadas liquidações de 2012, acrescida de juros indemnizatórios, desde 2-3-2015 (data do pagamento), às taxas legais aplicáveis, até à data do processamento da nota de crédito; e

 

f) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do processo.

*

Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC, no artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 481.005,67.

 

Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 7.650,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

            Lisboa, 19-2-2016.

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

Ricardo Rodrigues Pereira

(Vogal)

 

 

 

 

Henrique Fernando Rodrigues

(Vogal)

 



[1] Poderá mesmo acontecer que entre duas decisões, especialmente quando separadas por um intervalo de tempo relativamente longo, se surpreenda, na fundamentação, uma alteração de entendimento do mesmo Juiz quanto à forma de interpretar a Lei: v.g., e considerando o caso dos autos, numa primeira decisão, entender admissível ou legal, em consequência da aplicação da CGAA,  a tributação do substituto tributário e ulteriormente, revendo a posição anterior, alterar a sua posição. Na Jurisprudência, mesmo dos Tribunais Superiores (e sobretudo aí), encontram-se várias situações dessas.

[2] Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), págs 276 a 302).

[3] Segue-se muito de perto a decisão proferida no processo n.º 200/2014-T, do CAAD (in www.caad.org.pt), atento o paralelismo das situações e a total adesão aos argumentos aí desenvolvidos.

[4] 91,85% = 98,4% (participação da C… SGPS detida por B…) x 93,349% (participação da A… detida por B… alienada à C…SGPS).

[5] Cf. n.º 1 do artigo 98.º do CIRS.

[6]  “(...)O dever de retenção é um dever autónomo vinculado, sujeito indiscutivelmente ao princípio da legalidade e, para parte da doutrina, sujeito também aos princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva, medida pelo rendimento disponível. E, por decorrência, é ainda um dever indisponível, no sentido em que, sendo categoricamente imperativo, não pode ser afastado ou, em regra, modificado, por vontade das partes (...)” (Manuel Faustino, O Dever de Retenção na Fonte e Outros Deveres de Cooperação em IRS, Áreas Editora, Lisboa/2003, pp. 20/21).