Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 81/2016-T
Data da decisão: 2016-09-28  IMT  
Valor do pedido: € 65.000,45
Tema: IMT - Isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE / Competência do Tribunal Arbitral / acto tributário
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Acordam os Árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Árbitro Presidente), João Ricardo Catarino e Carla Castelo Trindade, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

Em 15 de Fevereiro de 2016, a sociedade “A…, S.A.”, titular do número de identificação fiscal …, com sede na Rua …, …-… ... (doravante Requerente) apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria tributária, aprovado pelo Decreto-Lei 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, a Requerente pretende a anulação do acto de liquidação oficiosa de IMT, relativo ao ano de 2010, no valor global de € 65.000,45 (sessenta e cinco mil euros e quarenta e cinco cêntimos), por violação do disposto no artigo 270.º, n.º 2, do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE).

Com efeito, não se conformando com a liquidação oficiosa de IMT acima referida, a Requerente solicitou a constituição deste tribunal arbitral formulando os seguintes pedidos:

a)             Declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação oficiosa de IMT com fundamento em:

                    i.               Vício de violação de lei por violação do disposto no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE; e

                  ii.               Vício de fundamentação do acto por não indicação do número da liquidação subjacente.

b)             Condenação da Administração tributária ao pagamento de indemnização por garantia indevidamente prestada em processo de execução fiscal entretanto instaurado, nos termos do artigo 53.º da LGT.

Com a petição juntou 7 documentos.

Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo a Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maçãs, o Prof. Doutor João Ricardo Catarino e a Dra. Carla Castelo Trindade que comunicaram a aceitação do encargo em prazo aplicável.

As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro dos que compõem este tribunal.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 29 de Abril de 2016.

Em 1 de Junho de 2016, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) apresentou resposta na qual alegou, por um lado, o erro na forma do processo e a incompetência material do Tribunal Arbitral e, por outro, a improcedência total do pedido de pronúncia arbitral, defendendo a manutenção do acto de liquidação oficiosa de IMT por a sua aplicação consubstanciar uma correcta interpretação do disposto no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE.

Em 14 de Junho de 2016, a Requerente respondeu às excepções invocadas propugnando pela improcedência das mesmas.

Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c) e 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, dispensou-se a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentar alegações. O Tribunal fixou o dia 29 de Outubro de 2016 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral. 

Ambas as partes apresentaram alegações escritas.

A Requerente concluiu a sua alegação peticionando a improcedência das excepções invocadas pela Requerida e a procedência total do pedido de pronúncia arbitral.

A Requerida contra-alegou, reiterando as excepções invocadas e a total improcedência do pedido de pronúncia arbitral, com as demais consequências legais.

As alegações apresentadas foram tidas em consideração na apreciação da matéria de facto e de direito.

II. SANEAMENTO

A Requerida invocou, em sede de resposta, a excepção dilatória de erro na forma do processo e a excepção dilatória de incompetência material do tribunal arbitral.

A eventual procedência das excepções invocadas obsta ao conhecimento do mérito da causa, razão pela qual cumpre, desde já, decidir sobre as mesmas.

Uma vez que as excepções invocadas têm fundamento comum, serão apreciadas concomitantemente.

II. Excepção de erro na forma do processo e incompetência material do tribunal arbitral

Defende a Requerida que o thema decidendu se prende com a concessão de um benefício fiscal, em concreto, do previsto no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, e que, no fundo, a Requerente pretende que o tribunal arbitral profira uma decisão no sentido do reconhecimento da isenção de IMT. Deste modo, segundo entende a Requerida, o meio processual adequado à pretensão da Requerente seria a Acção Administrativa Especial – pois que aquela constitui o meio de reacção destinado a apreciar actos em matéria tributária, nos termos do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT – e não o pedido de pronúncia arbitral – pois que este constitui um dos meios de reacção destinado a apreciar actos tributários, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT.

Mais defende a Requerida que está fora da jurisdição arbitral tributária a apreciação de quaisquer questões referentes ao reconhecimento de isenções fiscais, sendo esta uma matéria reservada à jurisdição dos tribunais (judiciais) administrativos e fiscais.

Acresce que, assim defende a Requerida, o tribunal arbitral tributário é também incompetente para a apreciação do reconhecimento de isenção fiscal relacionada com a transmissão de imóveis integrada em processo de insolvência, por a isenção fiscal prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE assentar na verificação de dois pressupostos: (i) que a transmissão dos imóveis opere por venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta; e (ii) que a transmissão dos imóveis esteja integrada num plano de insolvência ou num plano de pagamentos ou que a transmissão seja praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente. Deste modo, alega a Requerida, a verificação daqueles pressupostos legais recai exclusivamente sobre o órgão judicial onde correu o processo de insolvência, pelo que apenas o juiz titular do processo de insolvência está em condições de proceder à verificação dos pressupostos legais exigidos no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE.

Vejamos se assiste razão à Requerida.

A competência dos tribunais arbitrais tributários que funcionam no CAAD é recortada, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, nos termos do qual:

1.        A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a)        A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)        A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;

No entanto, o artigo 4.º, n.º 1, do RJAT determinou que a vinculação da administração tributária à jurisdição dos tribunais arbitrais tributários depende de portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça. Assim, a vinculação da Administração à jurisdição arbitral tributária veio a concretizar-se na Portaria n.º 112-A/2011, de 12 de Março (Portaria de Vinculação), cujo artigo 2.º estabelece o seguinte:

Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com excepção das seguintes:

a)      Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b)      Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c)      Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e

d)      Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.

O recorte da competência atribuída à jurisdição arbitral tributária efectuado pela Portaria de Vinculação é, como se pode ver, de conteúdo negativo, ou seja, a Administração excluiu da jurisdição arbitral tributária a apreciação de determinadas pretensões que, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, seriam, em abstracto, arbitráveis.

No caso em concreto, a Requerente pretende a declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação oficiosa de IMT, referente ao exercício fiscal de 2010. Dito de outro modo, a Requerente pretende a declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação oficiosa de IMT. Naturalmente que a apreciação desta questão depende de uma prévia, ou prejudicial se se quiser, que é a de saber se há ou não fundamento à isenção. Não deixa, porém, ou por tal facto o objecto da acção arbitral de ser um acto tributário – o de liquidação oficiosa de IMT. Deste modo, não restam dúvidas que a apreciação daquele acto poderá ser sujeita à jurisdição arbitral tributária por via do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

Acresce que o artigo 2.º da Portaria de Vinculação acima transcrito não exclui a apreciação de matérias relativas a isenções fiscais ou quaisquer outras questões de legalidade relativas aos actos referidos no artigo 2.º do RJAT.

Com efeito, e em bom rigor, uma liquidação de imposto, ainda que parta da desconsideração de uma isenção, não deixa de ser, para todos os efeitos, um acto tributário de liquidação.

Assim, deverá clarificar-se, desde já, que o acto cuja (i)legalidade a Requerente pretende ver apreciada por este tribunal não é um acto em matéria tributária, mas um verdadeiro acto tributário de liquidação.

Com efeito “a liquidação é a operação através da qual se aplica a taxa de imposto à matéria tributável, apurando-se então o valor devido pelo contribuinte, sendo o acto de liquidação o acto através do qual esta é concretizada pela Administração Tributária”. Sendo a liquidação oficiosa “aquela que é efectuada pela Administração Tributária na falta de impulso ou de liquidação pelo sujeito passivo” (cf. Carla Castelo Trindade (2016) Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, pp. 60 e 61). Ora, no caso concreto a Requerida, Administração Tributária, aplicou uma taxa de imposto a uma determinada matéria tributável, daí apurando o valor devido pelo contribuinte a título de IMT, tendo-o feito, precisamente, pela falta de liquidação desse mesmo imposto pelo contribuinte. Não restam, pois, dúvidas que se trata de um acto tributário de liquidação oficiosa.

O legislador foi claro quando estabeleceu, no RJAT, a arbitrabilidade dos actos tributários, excluindo, porém, da jurisdição dos tribunais arbitrais tributários, a apreciação da (i)legalidade de actos em matéria tributária.

“Os actos de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte, de pagamento por conta, de fixação de valores patrimoniais e de determinação da matéria colectável ou tributável são actos tributários. Destes actos distinguem-se os actos administrativos em matéria tributária.

Como ensina CASALTA NABAIS, actos em matéria tributária são aqueles actos que integram a categoria dos actos administrativos, incluídos no conceito constante do artigo 148.º do CPA, praticados em sede de relações jurídicas tributárias através dos quais se concluem procedimentos diversos e autónomos do procedimento que termina no acto tributário ou acto de liquidação do imposto.

(…)

Os actos tributários stricto sensu, aqueles de que se tem vindo a falar, podem ser objecto de impugnação judicial ou, como se viu dos pontos anteriores, de processo arbitral.

Já os actos administrativos em matéria tributária, nos termos do artigo 97.º, n.º 2, do CPPT, só serão sindicáveis por via de acção administrativa especial, regulado nos artigos 50.º e seguintes do CPTA, tratando-se, em rigor, de verdadeiros actos administrativos.” (cf. Carla Castelo Trindade (2016) Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, p. 114).

 

Ora, tal como decidido no Processo n.º 123/2015-T,

“Só não será assim, nos casos em que a lei preveja a impugnabilidade autónoma de actos administrativos que são pressuposto dos actos de liquidação, como pode suceder com os actos de reconhecimento de isenções fiscais, que, nos casos das isenções não automáticas, assumem a natureza de actos destacáveis, para efeitos de impugnação contenciosa. Mas, para haver esta limitação à impugnabilidade do acto de liquidação impugnado, teria de ser praticado, anteriormente, algum acto administrativo que fosse pressuposto do acto de liquidação, o que não sucedeu no caso em apreço.”

No entanto, a isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE é uma isenção de reconhecimento automático, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 8, alínea d) do Código do IMT, pelo que não há um qualquer acto administrativo em matéria tributária que, sendo autónomo, seja pressuposto do acto de liquidação emitido.

Deste modo, o acto de liquidação emitido é lesivo dos interesses da Requerente, pelo que a sua impugnabilidade contenciosa (quer pela via judicial quer pela via arbitral) tem de ser assegurada em prol do respeito pelo princípio do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado nos artigos 20.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

Acresce que, na jurisdição arbitral tributária, ao acto tributário em sindicância poderá ser imputada, por regra, qualquer ilegalidade, tal como decorre do disposto no artigo 99.º do CPPT, aplicável subsidiariamente ex vi artigo 29.º, n.º 1, do RJAT.

Assim, porque não há qualquer acto destacável ou autónomo prévio ao acto tributário de liquidação, a questão de saber se este último é, ou não, legal, ainda que a apreciação dessa (i)legalidade passe pelo reconhecimento, ou não, de uma isenção é uma questão subjacente à legalidade (ou ilegalidade) da liquidação que deverá ser apreciada pela jurisdição tributária, seja ela judicial ou arbitral. Pelo que não pode proceder a tese da Requerida de que o tribunal judicial onde correu termos o processo de insolvência é exclusivamente competente para conhecer da questão em apreço, encontrando-se desprovida de qualquer fundamento legal.

Aliás, o próprio Estatuto dos Benefícios Fiscais contraria manifestamente a tese da Recorrida. E aqui socorremo-nos novamente do decidido no Processo n.º 213/2015-T, onde se pode ler que:

Com efeito, o Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) aplica-se a todos os benefícios fiscais (seu artigo 1.º). Do artigo 5.º do EBF resulta que os benefícios fiscais, quando são automáticos, não são objecto de qualquer acto autónomo de reconhecimento, pelo que é no próprio momento adequado a decidir se deve ser praticado um acto de liquidação que se coloca a questão da verificação pela Autoridade Tributária e Aduaneira da ocorrência ou não dos pressupostos do benefício fiscal. No que concerne aos benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, este é feito através de acto administrativo, como resulta dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo 5.º, em consonância com os artigos 54.º, n.º 1, alínea d), da LGT e 65.º do CPPT.

No específico caso da isenção prevista no artigo 270.º do CIRE, está-se perante um benefício fiscal para o qual só se prevê, no artigo 16.º, n.º 2, do CIRE, a necessidade de reconhecimento prévio pela Autoridade Tributária e Aduaneira quando aplicado no âmbito de processo de reestruturação e revitalização de empresas, previsto no Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de Agosto. Nos outros casos enquadráveis no artigo 270.º do CIRE, não se prevendo expressamente a necessidade de reconhecimento prévio (nem no CIRE, nem no EBF, nem no artigo 10.º do CIMT), está-se perante isenção de reconhecimento automático, competindo a sua verificação e declaração ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no artigo 19.º, n.º 1, do CIMT, como resulta do disposto na alínea d) do n.º 8 daquele artigo 10.º.

Assim, a competência dos tribunais arbitrais tributários para conhecer da (i)legalidade do acto tributário de liquidação oficiosa de IMT resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, ainda que o fundamento de ilegalidade subjacente seja o não reconhecimento da isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, não se encontrando tal pretensão excluída por nenhuma das alíneas do artigo 2.º da Portaria de Vinculação.

De igual modo, a apreciação dos requisitos de que depende a isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, é também da competência exclusiva dos tribunais tributários (judiciais ou arbitrais), e não dos tribunais judiciais – maxime, do tribunal judicial onde correu termos o processo de insolvência – na medida em que, sendo de reconhecimento automático, a sua verificação e declaração compete, numa primeira linha, ao serviço de finanças onde for apresentada a declaração prevista no artigo 19.º do Código do IMT.

Deste modo, e por se tratar de um acto tributário de liquidação, o meio processual adequado é a impugnação judicial e não a Acção Administrativa Especial, a qual se destina, no âmbito do contencioso tributário, à apreciação exclusiva de actos em matéria tributária.

Pelo exposto, improcedem as excepções invocadas pela Requerida, de (i) erro na forma do processo; e de (ii) incompetência material dos tribunais arbitrais tributários.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.

Tudo visto, cumpre decidir.

III. DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e o artigo 607.º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Ora, atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental e ao Processo Administrativo juntos aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. No dia 31.03.2010, na 2.ª Conservatória do Registo Predial de…, a Requerente, na qualidade de compradora, e a sociedade insolvente “B…, S.A.”, na qualidade de vendedora, representada pelo Administrador de Insolvência Dr. C…, celebraram um contrato de compra e venda e de mútuo com hipoteca, com vista à aquisição de 54 fracções do prédio urbano sito na Avenida …, …-…, freguesia de…, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, e inscrito sob o artigo matricial n.º…, pelo preço global de € 1.005.000 (um milhão e cinco mil euros) – conforme Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  2. A alienação do prédio supra descrito ocorreu no âmbito do processo de liquidação da massa insolvente da sociedade “B…, S.A.”, titular do NIPC…, sob o número …/07… …, que correu termos no … da Secção de Comércio da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca de ... – conforme Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  3. O prédio em questão constituiu a totalidade da empresa insolvente, nem está integrado na transmissão global e completa de um dos estabelecimentos da empresa insolvente.
  4. A Requerente não procedeu, no momento da aquisição do imóvel, a qualquer pagamento de IMT;
  5. Em 15.09.2015, por via do Ofício n.º…, de 14 de Setembro de 2015, foi a Requerente notificada do projecto de decisão de liquidação oficiosa de IMT para, querendo, exercer o direito de audição, ao abrigo do disposto no artigo 60.º da LGT, ou solicitar a regularização voluntária da situação tributária identificada – conforme Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  6. De acordo com o projecto de decisão, a Requerente beneficiou indevidamente de isenção de IMT prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE o qual estipula, segundo a Autoridade Tributária e Aduaneira, que apenas se encontram isentas deste imposto “(…) as transmissões de bens imóveis integradas no todo da empresa (ou seja, em caso de transmissão do todo daquela) ou, pelo menos, integradas na transmissão global e completa de um dos seus estabelecimentos”;
  7. A Requerente não exerceu o seu direito de audição prévia;
  8. Em 20.10.2015 a Requerente foi notificada, por via do Oficio …, de 16 de Outubro de 2015, da liquidação oficiosa de IMT, no valor total de € 65.000,45 (sessenta e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescido de juros compensatórios – conforme Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  9.  A Requerente não procedeu ao pagamento do IMT oficiosamente liquidado, dentro do prazo para pagamento voluntário do imposto;
  10. Em 15.12.2015 a Requerente foi citada, no âmbito do processo de execução fiscal n.º …2015…, para proceder ao pagamento do montante total de € 80.056,95 (oitenta mil e cinquenta e seis euros e noventa e cinco cêntimos), sendo o montante de € 79.667,40 (setenta e nove mil, seiscentos e sessenta e sete euros e quarenta cêntimos) a título de quantia exequenda, e o montante de € 59,76 (cinquenta e nove euros e setenta e seis cêntimos) a título de juros de mora vencidos, e o montante de € 329,79 (trezentos e vinte e nove euros e setenta e nove cêntimos) a título de custas com o processo – conforme Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  11. Para suspensão do processo de execução fiscal contra si instaurado, a Requerente prestou uma garantia bancária no valor de € 101.110,01 (cento e um mil e cento e dez euros e um cêntimo) – conforme Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral;
  12. A 15.02.2016, os encargos suportados pela Requerente para manutenção da garantia bancária prestada para suspensão do processo de execução fiscal ascendiam a € 1.269,71 (mil, duzentos e sessenta nove euros e setenta e um cêntimos).

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Como referido, relativamente à matéria de facto dada como assente, o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada tal como dispões o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram, como acima se referiu, escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, não existindo outra factualidade alegada que seja relevante para a correcta composição da lide processual.

IV. DA MATÉRIA DE DIREITO

Atendendo às posições das partes assumidas nos articulados apresentados, a questão central a dirimir pelo presente tribunal arbitral consiste em apreciar a legalidade do acto de liquidação oficiosa de IMT referente ao exercício fiscal de 2010.

Tendo a Requerente imputado diversos vícios aos actos tributários impugnados há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada a ordem do artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º, nº 1, alínea a) do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária[1].

A procedência de qualquer dos vícios invocados pela Requerente conduzirá à anulação dos actos tributários. Assim, analisar-se-á em primeiro lugar o vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito de que depende a liquidação, na medida em que é aquele que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” e em que a sua eventual procedência impedirá a renovação do acto, o que não sucede com a anulação decorrente dos demais vícios.

Em conformidade, o tribunal irá apreciar em primeiro lugar o vício de violação de lei.

Vício de violação de lei

A questão aqui em causa consiste em determinar se se verificou um vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito de que depende a liquidação, pela não aplicação do disposto no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE à aquisição das 54 fracções autónomas do prédio supra descrito, no âmbito do processo de insolvência da sociedade “B…, S.A.”.

Vejamos então o disposto no artigo 270.º do CIRE:

1.        Estão isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência, de pagamentos ou de recuperação:

a)        As que se destinem à constituição de nova sociedade ou sociedades e à realização do seu capital;

b)        As que se destinem à realização do aumento do capital da sociedade devedora;

c)        As que decorram da dação em cumprimento de bens da empresa e da cessão de bens aos credores.

2.        Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência, de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

Ora, da matéria de facto fixada resulta que a Requerente adquiriu 54 fracções autónomas do prédio supra descrito no âmbito da liquidação da massa insolvente da sociedade “B…, S.A.”, pelo que a situação será potencialmente enquadrável no n.º 2 do artigo supra transcrito.

A redacção supra transcrita é a que se encontra actualmente em vigor, tendo sido introduzida pelo artigo 234.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2013).

À data da transmissão dos bens em causa, em 2010, a redacção do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE era a seguinte:

Estão igualmente isentos de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis os actos de venda, permuta ou cessão da empresa ou de estabelecimentos desta integrados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente.

A alteração introduzida em 2013 limitou-se, como se vê, a alargar o âmbito da previsão do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE permitido a sua aplicação às transmissões operadas nos actos de recuperação da empresa.

No entender da Requerente o n.º 2 do artigo 270.º do CIRE estabelece uma isenção de IMT nos casos em que ocorram “actos de venda, permuta ou cessão de empresa ou de estabelecimento desta” bastando que tais actos sejam efectuados no âmbito de um plano de insolvência ou da liquidação da massa insolvente.

Pelo contrário, a Requerida entende que a disposição acima transcrita é única e exclusivamente aplicável às transmissões onerosas de bens imóveis integradas no todo da empresa ou integradas na transmissão global e completa de um dos seus estabelecimentos.

A questão aqui subjacente advém, portanto, de uma dúvida interpretativa relacionada com o texto do n.º 2 do artigo 270.º. Em concreto, a questão subjacente é a de saber se a referência a “actos de venda” deverá ser entendida como referindo-se a qualquer “acto de venda”, desde que inserido no âmbito de um plano de insolvência, de recuperação ou da liquidação da massa insolvente, ou se, pelo contrário, se deverá reportar apenas à “venda da empresa” ou à “venda dos estabelecimentos” nela integrados.

Tal como refere a Requerente, a questão tem vindo a ser amplamente discutida em sede judicial, tendo o Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciado sobre a mesma por diversas vezes, nomeadamente no Acórdão de 30.05.2012, processo
n.º 0949/11, no Acórdão de 17.12.2014, processo n.º 01085/13 e no Acórdão de 18.11.2015, processo n.º 01067/15 (todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/), onde se decidiu que “estão isentas de IMT não apenas as vendas da empresa ou estabelecimentos desta, enquanto universalidades de bens, mas também as vendas de elementos do seu activo, desde que integradas no âmbito de plano de insolvência ou de pagamentos ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente”.

E mais decidiu o STA, no identificado processo:

Os bens que integram a massa insolvente são os bens do património da empresa declarada insolvente e nenhuns outros pertencentes a outra pessoa singular ou colectiva. Por definição, os bens que são vendidos em processo de insolvência são bens do insolvente ou que, pelo menos, que foram tidos como tal. Não há qualquer venda de bens diversos dos que integravam o património do insolvente.

O legislador para garantir que assim é prevê mesmo um procedimento de reclamação para a restituição e separação de bens destinado a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos, ou aqueles de que o insolvente não seja pleno e exclusivo proprietário, ou sejam estranhos à massa ou insusceptíveis de apreensão para a massa – artº 141º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Além disso no capítulo da liquidação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas encontram-se indicações claras e precisas dos bens que podem ser vendidos nessa liquidação e daqueles que deverão ser temporária ou definitivamente excluídos da venda, só se liquidando no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre bens de que é contitular – artº 159º -, não se procedendo à venda dos bens de titularidade controversa até ao transito em julgado da sentença que defina a titularidade do direito de propriedade relativamente a esses bens – artº 160º.

O processo de insolvência é – artº 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – um processo de execução universal cujo fim é a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência destinado a promover a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não for possível, a liquidar o património do devedor insolvente com a subsequente repartição do produto obtido pelos credores. A massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo e ainda aqueles cuja impenhorabilidade não seja absoluta e sejam voluntariamente apresentados pelo devedor – artº 46º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - pelo que se não consegue conceber que haja bens que integrando a massa insolvente de uma empresa declarada insolvente possam ser integrados numa categoria de bens sem qualquer relação com essa empresa ou estabelecimento.”

Tratando-se de uma questão interpretativa, vejamos, numa primeira análise, aquilo que resulta exclusivamente da letra da lei.

Ora, a expressão que consta do n.º 2 do artigo 270.º do CIRE “da empresa ou estabelecimentos desta” aparece apenas após a referência que na mesma norma se faz a “actos de… cessão”. Como consequência, de uma análise puramente literal, poder-se-á facilmente defender que a expressão “da empresa ou estabelecimentos desta” surge como complemento directo não só dos actos de cessão, mas também dos actos de venda e de permuta, assim determinando que só os actos de venda da empresa ou de estabelecimentos desta estariam abrangidos pela isenção.

No entanto, tal como refere o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão atrás citado de 30.05.2012, Proc. 0949/11:

“(…) embora a redacção do preceito seja ambígua, propiciando a interpretação de que tanto a “venda” como a “permuta”, conjuntamente com a “cessão”, estejam  reportadas à empresa ou a estabelecimentos desta, tal interpretação deve ser postergada sob pena de se concluir que a ser assim, haveria uma tautologia inexplicável, pois a “cessão” da empresa (ou do estabelecimento) mais não é do que a sua “venda”, julgando-se, pois, que a única interpretação plausível do referido preceito é a que o entende como reportando a isenção aos actos de venda e permuta dos próprios imóveis, incluindo os actos abrangidos pela cessão da empresa ou de estabelecimento desta.”

Com efeito, e fazendo uso do elemento histórico e teleológico da interpretação do preceito, a interpretação que é dada ao preceito pelo STA parece ser a interpretação que melhor se compagina com a finalidade pretendida pelo legislador, por ser aquela pela qual a norma em causa exterioriza o seu sentido mais profícuo, mais salutar e mais benéfico para os interesses que se destina a tutelar. (neste sentido, MANUEL DE ANDRADE, Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, Arménio amado, editores, Coimbra, 1978).

Senão vejamos:

Tal como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17-12-2014, Proc.º 01085/13, que se passa a citar, na parte relevante:

“Tendo em conta o fim que o legislador pretende alcançar com a concessão de tal isenção, - fomentar e apoiar a venda rápida dos bens que integram a massa insolvente por óbvias razões de interesse dos credores, mas, também do interesse público de retoma do normal funcionamento do mundo empresarial em que cada processo de insolvência se apresenta como elemento perturbador, dando «um bónus» a quem adquirir os bens imóveis que integram a massa insolvente – compre estes bens que compra mais barato porque não tem de pagar o IMT que seria devido na aquisição de um imóvel similar fora do processo de insolvência – e que serão vendidos em fase de liquidação, o ambíguo texto do n.º 2 do artº 270º pode ser objecto de uma leitura mais clara e inequívoca sem recurso a qualquer interpretação extensiva. Basta que nos interroguemos se para alcançar o fim antes definido faz qualquer diferença que se esteja a vender globalmente a empresa com todo o seu activo e o seu passivo, que se esteja a vender um ou mais dos estabelecimentos comerciais que a integravam, que se esteja a vender bens que integravam o seu património mas não eram utilizados no seu giro comercial – por exemplo um imóvel recebido em pagamento de uma dívida de que a empresa insolvente era credora – para que se esteja perante uma venda que é praticada no âmbito da liquidação da massa insolvente? E, se nas mesmas situações se tratar não de vendas mas de permutas ou cessões – sendo que esta palavra há-de ter sido utilizada em sentido impróprio na medida em que associada ao mundo empresarial se costuma reportar a cessão de exploração, cessão do estabelecimento comercial, próximos da locação e não da alienação, e no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas se mostra utilizada também quanto à aquisição de bens pelos credores -?. Cremos que a resposta não pode deixar de ser negativa.”

Com efeito, a ratio legis do preceito afigura-se ser o incentivo à aquisição de imóveis pertencentes a sociedades em situação de insolvência, de maneira a acelerar a liquidação do activo. Esta permite aos credores a satisfação dos seus créditos em tempo útil e a resolução da situação incerta da sociedade insolvente, cuja definição é do interesse de todos os envolvidos, mas também beneficia a ordem e a paz públicas, incentivando ao mesmo tempo a atividade económica, razão pela qual são concedidos benefícios fiscais à transmissão dos imóveis do seu activo.

De tal modo que, e em concordância com o que nos parece ser a finalidade do regime, também o Supremo Tribunal Administrativo, no seu Acórdão de 18.11.2015, proferido no âmbito do processo n.º 01067/15 nele descortina que “(…) o objectivo que preside à teleologia da norma será igualmente prosseguido quando a aquisição tem por objecto elementos do activo da empresa, não se tornando necessário que o objecto seja a empresa ou estabelecimentos desta integrados no plano de insolvência”.

Idêntica interpretação parece resultar do sentido e extensão da autorização legislativa concedida ao Governo, constante da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, que corrobora este entendimento, ao abrigo da qual foi aprovado o CIRE. Com efeito, dispõe o seu artigo 9.º, n.º 3, que “Fica, finalmente, o Governo autorizado a isentar de imposto municipal de sisa as seguintes transmissões de bens imóveis, integradas em qualquer plano de insolvência ou de pagamentos ou realizadas no âmbito da liquidação da massa insolvente: (…) c) (…) da venda, permuta ou cessão da empresa, estabelecimento ou elementos dos seus activos (…)”.

Este foi, de resto, o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, propugnado no Acórdão de 30.05.2012, Proc. 0949/11, onde se refere que:

“o n.º 2 do art.º 270.º do CIRE, cuja redacção não é clara no que respeita ao âmbito da isenção de IMT aí consignada, deve ser interpretado em conformidade com a al. c) do n.º 3 do art.º 9.º da Lei n.º 39/2003, de 22 de Agosto, pois que entre dois sentidos da lei, ambos com apoio – pelo menos mínimo – na respectiva letra, deve o intérprete optar por aquele que o compatibilize com o texto constitucional (interpretação conforme à Constituição), em detrimento da interpretação que o vicie de inconstitucionalidade.”

Apelando ainda ao elemento histórico, é ainda de referir que o legislador, no ponto 49 do preâmbulo do CIRE, referiu ainda que se mantinham, no essencial, os regimes existentes no Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (CPEREF) quanto à isenção de emolumentos e benefícios fiscais.

Ora, o artigo 121.º, n.º 2, alínea c) do CPEREF isentava de imposto municipal de sisa “as transmissões de bens imóveis integradas em qualquer das providências de recuperação da empresa que decorram, designadamente, da venda, permuta ou cessão de elementos do activo da empresa” (sublinhado nosso).

Deste modo, e tendo por base o próprio preâmbulo do CIRE, o preceito actualmente constante do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE deverá também seguir a mesma linha interpretativa do seu antecessor.

O entendimento deste tribunal é, assim, totalmente consonante com jurisprudência recorrente do Supremo Tribunal Administrativo, sendo também aquele que vem sendo sufragado pela mais recente jurisprudência arbitral tributária, designadamente a decorrente dos processos n.ºs 95/2015-T, 99/2015-T e 123/2015-T (cujas decisões se encontram disponíveis em http://www.caad.org.pt/).

Assim, sem necessidade de ulteriores considerandos, numa situação onde existe pacífica e firmada jurisprudência, sufraga-se aqui o entendimento segundo o qual não estão sujeitos a IMT os actos de venda de imóveis realizados no âmbito de planos de insolvência ou de pagamentos ou de recuperação ou praticados no âmbito da liquidação da massa insolvente, ainda que se tratem de “meros” elementos do activo da empresa e não de bens imóveis integrados no todo da empresa ou na transmissão global e completa de um dos seus estabelecimentos.

Pelo exposto, conclui-se, pois, que o acto tributário de liquidação oficiosa de IMT, referente ao ano de 2010, é ilegal, por vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito de que depende a liquidação, consubstanciado em violação do artigo 270.º, n.º 2, do CIRE, o que justifica a sua anulação nos termos do artigo 135.º do Código de Procedimento Administrativo, aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT e artigo 2.º, alínea c) da LGT.

Procede, assim, o pedido de pronúncia arbitral.

Vício de fundamentação

Tal como já anteriormente decidido em sede arbitral em sede do Processo n.º 91/2012-T: “A procedência integral dos vícios de violação de lei prejudica o conhecimento dos vícios de forma e procedimentais, como decorre da ordem do conhecimento de vícios prevista no n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”.

Na verdade, o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pela eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritários tornar desnecessário o conhecimento dos restantes, pois, se fosse sempre necessário conhecer todos os vícios seria irrelevante a ordem do seu conhecimento.

Pelo exposto, procedendo os vícios de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito fica prejudicado o conhecimento do vício de insuficiência de fundamentação do acto tributário.

Indemnização por garantia indevidamente prestada

A Requerente pede ainda que lhe seja restituída a garantia bancária prestada para suspensão do processo de execução fiscal entretanto instaurado, bem como uma indemnização pelos prejuízos resultantes dessa prestação.

Conforme consta da factualidade assente, a Requerente foi citada para o processo de execução fiscal n.º …2015…, tendo prestado garantia bancária, no valor de € 101.110,01 (cento e um mil, cento e dez euros e um cêntimo), com vista à sua suspensão.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária[2].

Determina ainda o artigo 24.º, n.º 2 do RJAT que à decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação são atribuídos, além dos especialmente previstos no artigo 24.º do RJAT, os demais efeitos previstos no CPPT.

A doutrina e jurisprudência têm defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto à condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida (Cf. Carla Castelo Trindade (2016), “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, 121 e Jorge Lopes de Sousa (2013), “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, 116).

Com efeito, na autorização legislativa concedida ao Governo para aprovação do RJAT, constante do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril proclama-se, indubitavelmente, a intenção de uma verdadeira alternatividade entre o processo judicial e o processo arbitral tributários, ali se lendo que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

Assim, pese embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais tributários, não fazendo referência expressa a decisões constitutivas (anulatórias) e decisões condenatórias, deverá entender-se, de harmonia com a autorização legislativa supra transcrita e, bem assim, com os efeitos assacados às decisões arbitrais previstos no artigo 24.º do RJAT, que se compreendem nas competências dos tribunais arbitrais tributários os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais judiciais tributários em relação aos actos cuja apreciação de (i)legalidade se insere nas suas competências.

Deste modo, se apesar de o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação – conforme o disposto nos artigos 99.º e 124.º do CPPT – pode nele ser proferida condenação da administração tributária no pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, idêntica conclusão deverá resultar no âmbito do processo arbitral tributário.

Foi também esse o entendimento do tribunal arbitral constituído no âmbito do processo n.º 48/2013-T, onde estavam também em causa pedidos de reembolso e condenação no pagamento de juros indemnizatórios. Concluiu aquele tribunal que:

“O pedido de constituição de tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a legalidade da dívida exequenda, pelo que, como resulta do teor expresso no n.º 1 do referido artigo 117.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.”

Em conclusão, no caso em apreço, é manifesto que, na sequência da declaração de ilegalidade do acto de liquidação oficiosa de IMT, há lugar à restituição da garantia bancária prestada em processo de execução fiscal e, a preencherem-se os pressupostos patentes no artigo 53.º da LGT, à indemnização por garantia indevidamente prestada.

Ora, relativamente ao pedido de condenação no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, estabelece o artigo 171.º do CPPT que “a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente, no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”.

O pedido de pronúncia arbitral é, pois, o meio processual adequado para formular o pedido de indemnização por garantia indevida, na medida em que é neste que se vai passar a discutir a “legalidade da dívida exequenda”.

Olhemos agora ao regime do direito a indemnização por garantia indevida constante do artigo 53.º da LGT:

1.        O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2.        O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3.        A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4.        A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.

No caso sub judice, é manifesto que o erro subjacente à liquidação de IMT e juros compensatórios – o de não aplicação da isenção prevista no artigo 270.º, n.º 2, do CIRE – é imputável à Requerida, uma vez que as liquidações foram da sua iniciativa, não tendo a Requerente contribuído para que tal erro ocorresse.

Deste modo, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 53.º da LGT, a Requerente tem direito a indemnização pela garantia prestada indevidamente.

V. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)   Julgar improcedentes as excepções de incompetência material do Tribunal Arbitral e de erro na forma de processo suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira;

b)Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

c)    Declarar a ilegalidade do acto tributário de liquidação oficiosa de IMT e juros compensatórios referente ao ano de 2010 e, nesta sequência,

d)     Anular a liquidação oficiosa de IMT acima referida;

e)    Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente uma indemnização por garantia indevida, nos termos do artigo 53.º da LGT.

 

VI. VALOR DO PROCESSO

Fixa-se o valor do processo em € 65.000,45, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

VII. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

 

 

Lisboa 28 de Setembro de 2016.

 

O Árbitro Presidente

 

 

(Fernanda Maçãs)

 

 

O Árbitro Vogal

 

(João Ricardo Catarino)

 

 

O Árbitro Vogal (relator)

 

 

(Carla Castelo Trindade)

 

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 138.º, número 5 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária.

 

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.

 

 



[1] Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in Guia da Arbitragem Tributária, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2013, Almedina, pág. 202.

.

[2] Que estabelece, que “a Administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.