Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 85/2020-T
Data da decisão: 2021-10-08  Selo  
Valor do pedido: € 114.694,86
Tema: IS - Cash pooling; Artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do Código do Imposto do Selo.
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Sumário:

Ao contribuinte que pretenda beneficiar de uma isenção de imposto, cabe provar a existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito, ou seja, os pressupostos legais da pretendida isenção.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 11 de Fevereiro de 2020, A... SGPS, S.A., NIPC..., com sede na ..., n.º..., ...-... Lisboa, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de imposto do selo n.º 2019... e das respectivas liquidações de juros compensatórios n.º 2019..., n.º 2019..., n.º 2019..., n.º 2019..., n.º 2019... e n.º 2019..., no valor global de €114.694,86.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             os fundos de curto prazo que concedeu à sua subsidiária B..., no âmbito do Contrato de Gestão de Operações de Tesouraria, destinaram-se exclusivamente à cobertura de carência de tesouraria, motivo pelo qual beneficiam da isenção prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo;

ii.            a interpretação do conceito de “carências de tesouraria” adoptada pela AT é violadora do princípio da tipicidade e da capacidade contributiva.

 

3.            No dia 12-02-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 22-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 10-11-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

9.            No dia 25-11-2020 foi realizada reunião para produção de alegações orais, que foram apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente detém em 100% a sociedade B..., S.A.

2-            Em 11-04-2014, a Requerente celebrou com a sua participada B..., S.A. um Contrato de Gestão de Operações de Tesouraria, no qual as partes acordaram na adopção de um mecanismo de gestão de tesouraria, designado Cash Pooling.

3-            Embora a Cláusula Décima Terceira do Contrato previsse a sua vigência até 31-12-2014, as partes usaram a faculdade prevista nessa cláusula de renovação sucessiva do contrato, encontrando-se o mesmo em vigor no ano de 2016.

4-            Com a celebração do contrato, as partes estabeleceram “(…) as condições de funcionamento de um sistema de gestão de operações de tesouraria de algumas das sociedades que integram o Grupo C..., cuja implementação tem por objetivo otimizar a gestão dos excedentes e das carências de tesouraria, minimizando os custos com o financiamento e aumentando a rentabilidade e a segurança dos investimentos realizados, ao centralizar os pagamentos e os meios monetários resultantes de cobrança a terceiros” (cf. Considerando n.º 3 do contrato).

5-            Ficou consagrado que “As partes pretendem que, com a periodicidade definida no Contrato, e com efeitos à data da celebração do mesmo, o saldo das Contas da Subsidiária seja igual a Zero, mediante a realização das operações de tesouraria adiante descritas”.

6-            Da alínea b) da Cláusula Terceira do contrato, resulta para a Requerente a obrigação de “Receber das Contas da Subsidiária os montantes correspondentes aos respectivos saldos credores diários, bem como realizar as operações de tesouraria necessárias para liquidar os saldos devedores diários que se verifiquem nessas contas”.

7-            Nos termos da Cláusula Quinta, n.º 1 do Contrato, “A A... compromete-se a realizar o pagamento de dívidas da Subsidiária perante terceiros sempre que a Subsidiária o solicite”.

8-            O apuramento do saldo de Cash Pooling é diário, sendo que, apenas nos dias em que se verifique um saldo devedor é que nasce a obrigação da Requerente de liquidar, em nome da B..., esse saldo diário.

9-            Nos termos da Cláusula Sétima, n.º 3 do Contrato, “todas as operações de tesouraria a débito e operações de tesouraria a crédito da titularidade da A... no âmbito do Contrato deverão ser sempre objeto de liquidação em prazo inferior a 365 dias de calendário, contados desde a data da respectiva constituição”.

10-         Nos termos da Cláusula Oitava do Contrato, sobre os saldos de cada dia dos movimentos realizados durante a sua vigência vencem juros, quer nas operações activas, quer nas operações passivas.

11-         O apuramento dos juros é feito mensalmente e o seu cálculo é diário, em linha com o apuramento, igualmente diário, dos saldos de in house cash da B..., o qual resulta da subtração, ao saldo inicial do dia, do total de pagamentos diários efectuados, acrescido do total de recebimentos diários.

12-         No âmbito do Contrato, e no decorrer do período de tributação de 2016, a Requerente concedeu fundos de curto prazo à sua subsidiária B..., não tendo liquidado Imposto do Selo nessas operações, por ter considerado que as mesmas se encontrariam isentas, ao abrigo do disposto na alínea g), do n.º 1, do artigo 7.º do Código do Imposto do Selo.

13-         No segundo semestre de 2015 e primeiro semestre de 2016 a D..., S.A. obteve financiamentos de curto prazo junto da B..., no montante total de 536 milhões de euros, nos seguintes termos:

 

14-         As concessões de crédito foram reembolsadas no segundo semestre de 2016, num acordo de compensação de créditos entre a D... e a E..., envolvendo a B... .

15-         A Unidade dos Grandes Contribuintes procedeu a uma acção inspectiva externa aos elementos contabilísticos e fiscais da Requerente, com referência ao período de tributação de 2016.

16-         A Requerente foi notificada, através do Ofício n.º..., de 27-11-2018 do Projecto de Relatório de Inspecção Tributária, onde se propunham correcções, em sede de imposto do selo, no montante de € 415.013,71.

17-         Em 12-12-2018, a Requerente exerceu direito de audição.

18-         Na sequência disso, a Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária, tendo os serviços de inspecção mantido as correções propostas em sede de projecto de relatório de inspecção.

19-         Do relatório de inspecção consta, além do mais, o seguinte:

 

20-         A Requerente foi notificada do acto de liquidação de imposto do selo n.º 2019 ... e das respectivas liquidações de juros compensatórios n.º 2019..., n.º 2019..., n.º 2019 ..., n.º 2019..., n.º 2019 ... e n.º 2019..., das quais resultou valor a pagar de € 458.170,87.

21-         A Requerente recolheu a informação diária dos movimentos de Cash Pooling e conseguiu apurar que, em determinados dias nos quais a B... concedeu financiamentos à D..., o fez, efectivamente, com base no saldo de Cash pooling, pelo que a Requerente expurgou do saldo do Cash Pooling aqueles valores referentes aos financiamentos concedidos à D..., tendo procedido à correcção voluntária do imposto do selo respectivo, no montante de €311.195,44.

22-         Por aceitar parcialmente as correcções que deram origem à referida liquidação de imposto do selo e respectivas liquidações de juros compensatórios, em 25-02-2019, a Requerente efectuou o seu pagamento parcial, no valor total de €343.476,01, sendo €311.195,44 referentes a imposto do selo e €32.280,57 referentes a juros compensatórios.

23-         A Requerente optou por não pagar o remanescente do imposto e respectivos juros, no valor de €114.694,86.

24-         A Requerente foi citada no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...2019..., tendo prestado garantia bancária para a suspensão do mesmo.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

 

A questão de fundo, em causa nos autos, é a de saber se as transferências de fundos levadas a cabo pela Requerente, a favor da B..., S.A., deverão ou não, face à lei, beneficiar de uma isenção de Imposto de Selo, nos termos do respectivo Código.

O sistema de “Cash Pooling” consubstancia-se num serviço financeiro que poderá ser utilizado entre contas bancárias de uma só empresa, ou entre contas bancárias de várias empresas do mesmo grupo, tratando-se da gestão conjunta desses capitais na vertente da rendibilidade do capital. Ou seja, mediante excedentes de tesouraria que existam de forma dispersa em várias contas, e/ou carências de tesouraria noutras contas, ou outras necessidades de financiamento, poderá proceder-se à sua gestão conjunta e possibilitar a concessão de créditos entre empresas do grupo.

Como se explica no Acórdão do STA de 03-12-2015, proferido no processo 06974/13:

“Os centros de gestão de tesouraria ou a gestão centralizada de tesouraria têm como objectivo a gestão consolidada da tesouraria de diversas empresas de um grupo de sociedades através de uma dessas empresas ou através de uma empresa especificamente constituída ou destinada para o efeito. Tal acordo visa permitir relacionar saldos devedores e saldos credores junto de uma instituição financeira. Este tipo de operações permite a compensação do saldo devedor de algumas das empresas pelo saldo credor das restantes, além de que o centro de gestão de tesouraria pode recorrer aos fundos gerados para financiar as empresas do grupo.

Uma convenção de gestão de tesouraria é normalmente firmada entre empresas do mesmo grupo económico, locais (residentes) e no estrangeiro (não residentes), e a partir do qual a gestão da tesouraria é efectuado de maneira e lógica centralizada. Assim, tal convenção é caracterizada, entre outros, pelos seguintes aspectos:

1-Definição de uma entidade centralizadora e dos participantes (aderentes);

2-Definição de regras e procedimentos de gestão de tesouraria a acordar com as instituições financeiras, segundo os quais os excedentes de tesouraria (a) são mantidos nas contas de cada empresa, ainda que com fusão para cálculos dos juros (notional cash pooling) ou (b) transferidos para a entidade centralizadora (zero balancing);

3-Pelo mecanismo inverso, e em contrapartida, as necessidades financeiras de cada participante serão cobertas pela transferência de fundos da entidade centralizadora;

4-Por princípio, será da responsabilidade da entidade centralizadora, a negociação de recursos globais e das aplicações dos excedentes globais;

5-Os saldos dos fluxos são susceptíveis de gerar juros (a favor ou contra) para cada participante.

Três alternativas de abordagem se colocam, pelo que a constituição dos referidos centros depende da celebração de uma de três das seguintes convenções de “cash-pool”:

1-Notional cash-pooling;

2-Cash concentration “Zero-balancing”;

3-Adiantamentos de tesouraria.

Na modalidade de Cash concentration, a centralização de tesouraria é operada em conta da entidade centralizadora constituída junto do Banco, sendo titular uma das sociedades do grupo (a entidade centralizadora). Tendo por base o enquadramento do contrato de centralização de tesouraria, realizam-se efectivas transferências de capital para a conta global, ou seja, os fundos são fisicamente direccionados para uma única conta bancária agregada. Nesta modalidade a denominada opção "zero balancing" é a mais comum, pois todas as contas bancárias são colocadas a zero no movimento de transferência para a conta global, consequentemente os saldos devedores são cobertos por um movimento de transferência inverso da conta global a favor da conta bancária devedora (cfr.José Fernando Abreu Rebouta, Contextualização fiscal da gestão centralizada de tesouraria - cash pooling - em ambiente internacional, Pós-Graduação em Direito Fiscal, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Outubro de 2005, pág.3 e seg.).”.

Ora, as operações financeiras, nas quais se inclui a concessão e utilização de crédito a qualquer título, estão sujeitas a Imposto do Selo.

De facto, de acordo com o princípio da territorialidade estabelecido pelo n.º 1 do art.º 4.º do Código do Imposto do Selo (CIS) “o imposto do selo incide sobre todos os factos referidos no artigo 1º ocorridos em território nacional”.

Por sua vez o n.º 1 do art.º 1 do CIS (incidência objectiva) refere que “O imposto do selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis, e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”.

O Código do Imposto do Selo tributa a “utilização de crédito, sob a forma de fundos, mercadorias e outros valores, em virtude da concessão de crédito a qualquer título, incluindo a cessão de créditos, o factoring e as operações de tesouraria quando envolvam qualquer tipo de financiamento ao cessionário, aderente ou devedor”, de acordo com as taxas referidas no ponto 17.1 da Tabela Geral, anexa ao Código do Imposto do Selo “sobre o respectivo valor em função do prazo”.

A taxa a aplicar ao referido crédito é a referida na Tabela Geral do Imposto do Selo no ponto 17.1.4 ou seja 0,04% “sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em divida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30”.

Por força da amplitude da norma estarão assim necessariamente sujeitas a este imposto, quer os excedentes de fundos disponibilizados pela entidade centralizadora às aderentes, aquando do seu saque por parte destas, quer em sentido inverso, os excedentes por estas colocados à disposição da entidade centralizadora de tesouraria, no momento em que sejam objecto de levantamento.

Com interesse para a discussão da causa, dispõe, ainda, o artigo 7.º/1/g) do CIS:

“1 - São também isentos do imposto: (...)

g) As operações financeiras, incluindo os respectivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efectuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efectuadas por sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de Dezembro, e, bem assim, efectuadas em benefício da sociedade gestora de participações sociais que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo.”.

Tal como referido, a discussão em causa nos autos centra-se na aplicação ou não da isenção consagrada no supra transcrito normativo, sustentando a Requerente que, por força dessa norma se deverão ter por isentas as operações tributadas pela liquidação impugnada.

Antes de prosseguir, contudo, e por ser questão fulcral nos presentes autos, é necessário esclarecer a quem está legalmente atribuído o ónus da prova dos pressupostos da norma em questão.

A este respeito, dispõe o artigo 74.º, n.º 1 da LGT que:

“O ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.”.

No caso, o direito que a AT pretende fazer valer nos autos é o direito a tributar as operações financeiras em causa.

A Requerente, por seu lado, pretende fazer valer o seu direito à isenção de tal tributação.

Daí que, no seguimento da norma da LGT atrás transcrita, a AT incumbirá a prova da existência de uma operação de utilização de crédito tributável em sede de Imposto do Selo, o que ocorre no caso, já que, sem prejuízo do que adiante se evidenciará no caso concreto, se pode ter por pacífico, hoje, que: “As operações de cash pooling estão sujeitas à tributação em imposto de selo nos termos do disposto no artigo 4º, n.º 1 do CIS e verba 17.1.4 da TGIS.” .

Efectivamente, “A verba 17.1.4 da T.G.I.S., tributa a utilização de crédito sob a forma de conta corrente, descoberto bancário ou outra, de duração de utilização indeterminado ou indeterminável, é sujeito à taxa de 0,04% sobre a média mensal obtida através da soma dos saldos em dívida apurados diariamente, durante o mês, divididos por 30. (...). Nesta verba, a incidência de imposto deriva do sujeito favorecido com a operação de crédito beneficiar de um aumento de liquidez financeira num momento actual, sendo que a situação passiva colateral - o encargo ou dívida - se encontra disseminada num médio ou longo prazo (variando a taxa de tributação precisamente nessa função "pro rata temporis"), considerando o legislador suficiente para efeitos de tributação esse “súbito enriquecimento aparente” resultante de uma disponibilidade monetária instantânea. Por força da amplitude da referida norma de incidência estarão, assim e necessariamente, sujeitos a este imposto, quer os excedentes de fundos disponibilizados pela entidade centralizadora às aderentes, quando do seu saque por parte destas, quer em sentido inverso, os excedentes por estas colocadas à disposição da entidade centralizadora de tesouraria, no momento em que sejam objecto de levantamento.” .

Por sua vez, à Requerente incumbirá a prova dos pressupostos de uma causa de isenção de tal tributação, maxime, por ser isso que nos autos está em causa e resulta da norma do artigo 7.º/1/g) do Código do Imposto do Selo.

Este tem sido, de resto, o entendimento uniforme da jurisprudência do STA em matérias análogas, podendo consultar-se, a tal respeito, o Ac. de 24-04-1991, proferido no processo 013143, o Ac. de 14-01-2005, proferido no processo 01480/03, bem como o Ac. de 29/04/2004, proferido no processo 01680/03, em cujo sumário se pode ler:

“I - Na falta de regras especiais, compete à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais da sua actuação, sobretudo a prova da existência dos factos tributários em que assentou a liquidação adicional impugnada.

II - Assim sendo, tendo a Administração verificado, através do exame à escrita, a existência de inexactidões ou omissões na declaração do impugnante, tem que ter-se por fundada a liquidação adicional, já que àquela apenas cumpria fazer a prova da verificação dos respectivos indícios ou pressupostos da tributação, isto é, dos pressupostos legais da sua actuação.

III - Tendo efectuado uma transacção intracomunitária que beneficia de isenção, cabia à impugnante provar a existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito, ou seja, a existência da alegada transmissão intracomunitária”

Também ao nível dos Tribunais Centrais se pode encontrar jurisprudência no mesmo sentido, citando-se, a título de exemplo, os Acs. do TCA-Sul de 24-01-2012, proferido no processo 05079/11, onde se pode ler que “Mesmo em data anterior à da entrada em vigor da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos de um direito à isenção do tributo ou de um outro direito pretendido exercer perante a AT, radicava-se no sujeito passivo do imposto que não nesta, tendo a causa de ser julgada contra a parte onerada com tal ónus quando a realidade dos factos, por outra via, também se não logra obter”, bem como o Acórdão do mesmo Tribunal de 02-07-2013, proferido no processo 06629/13, onde se referiu que “Atento o disposto no artº. 74, nº.1, da L.G.T., é ao sujeito passivo de imposto que compete fazer prova dos pressupostos de sujeição ao regime de determinado benefício fiscal, enquanto facto impeditivo da tributação-regra.”.

Motivo pelo qual, desde já se adianta, que não colhe a argumentação da Requerente no sentido de que caberia à AT “determinar, em cada data em que correram concessões de fundos, se existiam, na esfera da B..., as necessárias carências de tesouraria” .

Posto isto, e assente então que é à Requerente que assiste o ónus de demonstrar os pressupostos da isenção de Imposto do Selo, e concretamente da prevista no artigo 7.º/1/g) do CIS, às operações em causa nos autos, cumpre então verificar se tal ónus foi ou não devidamente cumprido.

 

*

A norma acima referida estatui como relevantes três pressupostos para a respectiva intervenção, isentando a concessão de crédito, pressupostos esses que são:

a) Prazo não superior a um ano;

b) Finalidade exclusiva de cobertura de carência de tesouraria;

c) Realização por determinadas entidades ali discriminadas.

No caso dos autos, questiona-se, unicamente a verificação do pressuposto que se

acaba de elencar sob a alínea b), ou seja, que as operações se sejam “exclusivamente

destinadas à cobertura de carência de tesouraria”.

Cumpre, pois, verificar se as operações financeiras realizadas pela Requerente a favor B..., S.A., visaram, com carácter de exclusividade, cobrir carências de tesouraria desta.

A fim de sustentar a sua posição no sentido de que as operações financeiras em causa são, exclusivamente, destinadas à cobertura de carências de tesouraria da B..., S.A., a Requerente alinha, essencialmente, o argumento de que “A cedência de fundos efectuada pela Requerente à B..., apenas ocorre nos dias em que os pagamentos inscritos nas rubricas “Fornecedores e outros”, “Salários”, “AT” e “SS” são superiores à soma dos recebimentos desse mesmo dia e do saldo da conta do dia anterior”, sustentando a sua argumentação na ideia de que todas as concessões de fundos ao abrigo do contrato de gestão de operações de tesouraria se destinam a suprir carências de tesouraria.

No entanto, a mera invocação de que as transferências de valores são efectuadas no âmbito de um acordo de cash pooling não constitui prova suficiente de que os créditos concedidos se destinam a suprir carências de tesouraria da beneficiária, pois, tal pode ter ou não adesão à realidade; aliás, bem se compreende que assim seja pois o cash pooling não se esgota, como parece entender a Requerente, exclusivamente, na supressão de carências de tesouraria da sociedade beneficiária.

                De resto, e conforme resulta da matéria de facto provada, a Requerente efectuou empréstimos à B..., S.A. em dias em que esta, alegadamente, tinha carências de tesouraria, tendo a B..., S.A.  destinado esses fundos à concessão de empréstimos à D... . Saliente-se que a Requerente reconheceu expressamente que a concessão de fundos à B..., S.A. não se destinaram a suprir carências de tesouraria, tendo procedido a correcções voluntárias, aceitando a sujeição a Imposto do Selo nestas operações. Ou seja, desde logo, claudica a tese da Requerente de que todas as concessões de fundos no âmbito do contrato de gestão de operações de tesouraria se destinaram a suprir carências de tesouraria.

                Face a este circunstancialismo, nada obsta a que os fundos concedidos pela Requerente à B..., S.A. ao abrigo do contrato de gestão de operações de tesouraria tenham sido usados para outros fins, que não fazer face a necessidades de tesouraria.

                Efectivamente, sendo o dinheiro fungível, não é possível, mesmo constatando que certos débitos que se vencem no curto prazo foram saldados em determinado dia, concluir, com base em tal constatação, e ainda que conjugada com a existência de um contrato de cash pooling, que a movimentação de fundos teve subjacente, total ou parcialmente, uma carência de tesouraria, já que sempre poderão existir outras movimentações de fundos contemporâneas, e não é possível – dada a referida fungibilidade do dinheiro – imputar as quantias mutuadas, a um ou outra aplicação.

                Acresce que, conforme se teve já oportunidade de referir, encontrando-nos no âmbito de uma isenção, que decorre do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do Código do Imposto do Selo, cabe à Requerente o ónus da prova dos pressupostos necessários para que possa beneficiar da mesma, nomeadamente, a demonstração de que a concessão de fundos se destinou a suprir carências de tesouraria.

                Como referem Jorge Belchior Laires e Rui Pedro Martins “as operações de tesouraria não constituem um contrato típico, em termos de se poder dizer que a simples menção do nome dispensa a caracterização” . A afectação de fundos a despesas emergentes, imprescindíveis e inadiáveis, de cuja não realização atempada possa resultar prejuízo ou dano para a organização empresarial da entidade carente corresponde a um conteúdo mínimo do conceito de carências de tesouraria. Será o caso dos pagamentos a trabalhadores, a fornecedores, à Autoridade Tributária ou à Segurança Social, bem como outras que se revistam das mesmas características de emergência, como a aquisição ou reparação de um equipamento necessário ao regular funcionamento da empresa, ou o pagamento pontual de uma prestação de um crédito. Isto, sem prejuízo de a falta de uma definição legal implicar que a determinação dos exatos contornos do conceito não seja isenta de dúvidas.

Certo é que nem todas as transferências financeiras entre entidades relacionadas se destinam a fazer face a carências de tesouraria. De resto, a aceitação parcial do acto tributário pela Requerente parece evidenciar este entendimento. Ou seja, não será, portanto, de acolher a argumentação da Requerente no sentido de que “o efectivo destino dos fundos nunca poderia relevar para efeitos da demonstração da existência de uma situação de carência de tesouraria na esfera da B...”.

                É que, como se apontou previamente, caberia à Requerente demonstrar, para cada uma das concessões de fundos em relação às quais pretendia beneficiar da isenção ínsita no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do CIS, que os fundos foram empregues para fazer face a necessidade de tesouraria, demonstrando, não só, as concretas despesas a que foram afectos os fundos concedidos pela Requerente, mas também que, na mesma altura, não procedeu a outros gastos ou aplicações de capital, já que apenas assim será possível concluir, com a necessária segurança, que os montantes mutuados se destinaram a cobrir carências de tesouraria.

                No caso, o documento 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, não permite aferir quais as concretas despesas em que se consubstanciaria a invocada carência de tesouraria.  Por detrás das necessidades de tesouraria da B..., S.A. poderão estar um sem número de despesas ou gastos que não integram o conceito de necessidades de tesouraria.

Assim, aquele documento 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral e o contrato de gestão de operações de tesouraria apenas são aptos a demonstrar que a concessão de fundos serviu para pagar despesas, mas não é possível, daí extrair quais as concretas despesas em causa e se estas estão relacionadas com despesas de tesouraria. A referida demonstração não foi, igualmente, feita através da prova testemunhal.

                Além disso, o Contrato de Gestão de Operações de Tesouraria é expresso em assumir que visa permitir uma “maior eficiência e redução de custos na atividade das partes” (considerando 2), e não meras carências de tesouraria, tendo por “objetivo otimizar a gestão dos excedentes e das carências de tesouraria, minimizando os custos com o financiamento e aumentando a rentabilidade e a segurança dos investimentos realizados” (considerando 3).

                A própria obrigação da Requerente “realizar o pagamento de dívidas da Subsidiária perante Terceiros sempre que a Subsidiária o solicite” (Cláusula Quinta n.º 1), não está condicionada à carência de tesouraria da subsidiária, devendo antes contratualmente ocorrer “sempre que a Subsidiária o solicite”.

Deste modo, e em suma, o que a Requerente acaba por fazer é reconhecer que, como de resto decorre da jurisprudência do STA atrás citada, a movimentação de fundos que ocorre no quadro do contrato de cash pooling, não se restringe, necessariamente e por natureza, à cobertura de carências de tesouraria (se assim fosse, e em coerência, a Requerente insurgir-se-ia contra a totalidade do imposto liquidado), aceitando uma parte do acto tributário que – assumidamente – entendeu assentar na demonstração, lograda pela AT, da não verificação dos pressupostos da isenção, e pretendendo que a ausência de tal prova negativa seja valorada em seu favor.

                Todavia, e tendo em conta antes o exposto, pretendendo a Requerente valer-se da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g) do Código do Imposto do Selo, cabendo-lhe, portanto, o ónus da prova e, não tendo logrado demonstrar que a concessão de fundos se destinou exclusivamente a suprir carências de tesouraria da B..., S.A., como se viu, e decorre de resto dos factos provados, haverá que concluir pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral.

 

*

                Invoca, ainda a Requerente a inconstitucionalidade da interpretação do conceito de carências de tesouraria adoptada pela AT, por violação do princípio da tipicidade e do princípio da capacidade contributiva.

                Sustenta a Requerente que “a AT ultrapassou, como lhe seria exigível, uma «função de interpretação», passando a exercer uma verdadeira «função de criação»” ultrapassando, portanto, os princípios traçados pelo princípio da tipicidade, criando uma incidência de imposto onde o legislador não pretendeu que existisse.

                Mais refere que “com a interpretação oferecida, a AT não fez outra coisa senão presumir uma capacidade contributiva na esfera da sociedade beneficiária dos fundos que o legislador, de forma muito concreta, pretendeu não relevar.”

                A Requerente alega, porém, não demonstra em concreto as circunstâncias que materializam a violação dos princípios da tipicidade e da capacidade contributiva, pelo que sempre será de improceder o alegado vício de inconstitucionalidade.

                Face a tudo quanto se expôs, haverá que concluir pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo o pedido acessório formulado.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Absolver a Requerida do pedido;

b)           Condenar a Requerente nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €114.694,86, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 08 de Outubro de 2021.

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(José Joaquim Monteiro Sampaio e Nora)

 

O Árbitro Vogal

(Leonardo Marques dos Santos)