Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 123/2012-T
Data da decisão: 2013-05-09  IRS  
Valor do pedido: € 755.348,77
Tema: Cláusula geral anti-abuso
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Decisão Arbitral

 

 

Processo 123/2012

Acordam os Árbitros Conselheiro Jorge Lopes de Sousa (Árbitro Presidente), Dr. Tiago Caiado Guerreiro e Dr. Manuel Carlos Rodrigues, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral:

1. Relatório

…, NIF n.º e , NIF n.º , casados, formularam pedido pronúncia arbitral tendo em vista a anulação da liquidação adicional de IRS n.º 2012 , referente ao exercício de 2008, no montante global de € 755.348,77, havendo para tal requerido a constituição de tribunal arbitral.

Os Requerentes apresentaram três pedidos em regime de subsidiariedade, invocando o artigo 101.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT):

i) a caducidade do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso;

ii) a inexistência dos requisitos legais para aplicação da cláusula geral antiabuso;

iii) a inexistência dos factos, objectivos e subjectivos, invocados pela Administração Tributária para aplicação da cláusula geral antiabuso.


 

Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente tribunal arbitral colectivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.

Em 4-12-2012 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 24-1-2013.

Por acórdão inserido no sistema informático do CAAD em 14-2-2013 foi indeferida a apensação ao presente processo do processo n.º 124/2012-T.

Em 27-2-2013, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta em que defende que os pedidos devem ser julgados improcedentes, com a sua absolvição dos pedidos.

No dia 11-3-2013, realizou-se a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, em que se decidiu haver lugar a produção de prova testemunhal e alegações orais.

A inquirição das testemunhas veio a ter lugar em 12-4-2013 e nela decidiu-se a notificação às Partes para alegações escritas.

As Partes apresentaram as alegações em 3-5-2013.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do RJAT (DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro).

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são legítimas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades e não foram suscitadas questões que possam obstar à apreciação do mérito da causa.


 

2. Matéria de facto


 

2.1. Factos provados


 

A matéria de facto relevante para apreciar as questões suscitadas é a seguinte:

  1. Em 15-4-1982 foi constituída, por escritura pública, a sociedade comercial por quotas com a denominação “B... – Sociedade de Construções e Urbanizações, Limitada”, doravante abreviada para “B... SQ”, com os sócios … e … (Requerentes), cada um com quotas de 1.000.000 de escudos, fixando-se o capital social em 2.000.000 de escudos (fls. 84-90 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  2. Em 30-10-1986 foi efectuado um aumento de capital da sociedade B... SQ no montante de 5.500.000 escudos, em partes iguais, fixando-se o capital social em 7.500.000 escudos (fls. 92-95 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  3. Em 28-12-1989 foi efectuado um novo aumento de capital da sociedade B... SQ no montante de 6.250.000 escudos, em partes iguais, fixando-se o capital social em 20.000.000 de escudos (fls. 97-100 do P.A. , cujo teor se dá como reproduzido);

  4. Em 16-09-1997 foi efectuado um último aumento de capital da sociedade B... SQ no montante de 80.000.000 escudos, em partes iguais, fixando-se o capital social em 100.000.000 de escudos (fls. 102-104 do P.A. , cujo teor se dá como reproduzido);

  5. Em Março de 2008 a “C... –, Lda” elaborou memória descritiva e justificativa do projecto “D...” (fls. 221-223 do P.A. , cujo teor se dá como reproduzido);

  6. Em 31-3-2008 foi apresentado um requerimento à Câmara Municipal de..., por parte da B... SQ, relativo à viabilidade de realizar obras de edificação nos prédios rústicos inscritos na matriz predial da freguesia de …, sob o artigo 15-G e 14-G e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º … e … (doc. 8 da P.I. e fls. 219 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  7. Em 31-3-2008 foi efectuado um requerimento à Câmara Municipal de ..., por parte da B... SQ, relativo à viabilidade de realizar obras de edificação no prédio rústico sito na freguesia de …, a que corresponde a inscrição n.º … (doc. 9 da P.I. e fls. 220 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  8. Em 12-6-2008 a gerência da B... SQ apresentou aos sócios um relatório justificativo da transformação dessa sociedade por quotas em sociedade anónima (fls. 106-107 do P.A.), cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, destacando-se o seguinte trecho, com particular relevo para a decisão: “Para fazer face aos desafios que nos vão ser colocados, e perante a previsível necessidade de criação de outras estruturas físicas, humanas e financeiras, a gerência considera ser necessária a transformação desta sociedade por quotas em sociedade anónima, a qual poderá mais facilmente reforçar a sua estrutura financeira através da emissão de acções, ou de outro tipo de operações”;

  9. Em 20-6-2008 reuniu a assembleia-geral da sociedade B... SQ, tendo sido deliberado por unanimidade (fls. 117-118 do P.A.), cujo teor se dá como reproduzido):

  10. sobre o consentimento da sociedade e dos sócios para a divisão e cessão de quotas;

  11. sobre a alteração do objecto social;

  12. sobre a transformação da sociedade em sociedade anónima e sobre o modo de conversão das participações sociais, aprovação do relatório da gerência justificativo da transformação e do balanço social, reportado à data de 31-5-2008;

  13. sobre a aprovação do contrato social através do qual a sociedade, na sua nova forma jurídica, se passará a reger.

  14. Em 24-6-2008, em cumprimento da deliberação de 20-6-2008 da assembleia-geral da sociedade B... SQ, através de uma operação de divisão e subsequente doação de quotas, as duas quotas originais foram divididas em três novas cada uma e a seguir doadas aos dois filhos dos Requerentes …, NIF n.º …, e …, NIF n.º … bem como aos dois filhos do outro sócio, …, …, NIF n.º … e …, NIF n.º …, que, assim, gratuitamente adquiriram uma quota no valor nominal de € 15.000, cada um, tomando-se sócios da sociedade B... SQ (fls. 125-138 do P.A.), cujo teor se dá como reproduzido);

  15. No mesmo acto, foi transformada a sociedade B... SQ em sociedade anónima, adoptando a designação “B... Imobiliária, S.A.”, doravante abreviada para B... SA (fls. 125-138 do P.A.);

  16. Ainda no mesmo acto, fixou-se que os sócios originais manteriam, na nova sociedade, participações no montante de € 220.000 cada um, através da detenção de 44.000 ações de valor nominativo unitário de € 5, sendo acionistas maioritários, cada um, com 44% do capital social, enquanto que os demais novos sócios deteriam, cada um, 3.000 acções, de valor nominativo unitário de € 5, correspondendo a participações no montante de € 15.000 e 3% do capital social da nova sociedade (fls. 125-138 do P.A.);

  17. Em 24-6-2008 os seis acionistas da B... SA, constituíram uma sociedade gestora de participações sociais que adotou a designação “E... SGPS, S.A.”, doravante abreviada para E... SGPS, titular do NIPC n.º …; (fls. 150-167 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  18. Em 17-7-2008, deliberou-se em assembleia-geral da E... SGPS: a realização, pelos accionistas, de prestações acessórias com carácter gratuito, no montante global de € 14.956.000 e a compra de 88.000 acções com o valor nominal de € 5 cada uma, representativas do capital social da B... SA. (fls. 169 do P.A. cujo teor se dá como reproduzido);

  19. Em 18-7-2008 o Requerente … emitiu cheque com o n.º …, sobre o Banco …, no valor de € 7.478.000, correspondente a 50% do valor global das prestações acessórias, à ordem da E... SGPS, que veio a obter boa cobrança em 22-7-2008 (fls. 171 do P.A. e documentos, n.ºs 1 e 2 , junto com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  20. Em 22-7-2008 os Requerentes, na qualidade de vendedores, celebraram um contrato de compra e venda de valores imobiliários com a E... SGPS, como adquirente, através do qual aqueles venderam a esta 44.000 ações de valor nominal unitário de €5, ainda não emitidas mas integralmente subscritas e realizadas em dinheiro, de que são titulares na B... SA, pelo preço de € 7.500.000 (fls. 173-186 do P.A.);

  21. Em 30-7-2008, foi celebrado contrato de compra e venda em que a B... Imobiliária Lda ( 1 ) compra um prédio rústico, denominado “D... ”, sito na freguesia de …, do concelho de ..., com a área de 27,550 hectares, pelo preço de € 315.250 (documento n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  22. Em Julho de 2008, a revista “…” publica na sua edição n.º …, desse mês, um artigo intitulado “O Boom dos Resorts e do Imobiliário Turístico”, cujo teor se dá por reproduzido, destacando-se o trecho de introdução do artigo: “O Grupo B..., sedeado no distrito de …, vai desenvolver no Alentejo, junto à albufeira da barragem do …, um Resrot denominado: D...Resort” (documento n.º 10 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  23. A 4-5-2009, foi entregue a declaração de rendimentos modelo 3 de IRS de 2008 (fls. 191-199 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  24. Em 15-7-2009 foi celebrado contrato de compra e venda em que a B... SA compra um prédio rústico, denominado “D...”, sito na freguesia …, do concelho de ..., com a área de 151,870 hectares, pelo preço de € 1.737.650 (doc documento n.º 6 junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  25. Em 24-7-2009, foi constituída a sociedade comercial por quotas com a denominação “F... –, Lda”, cujo objecto consiste “na exploração agrícola, pecuária, vinícola e actividades conexas, desenvolvimento rural e agro-turístico de quintas e D...s”, com o capital social de € 5.000, dividido em 7 quotas, 6 de valor nominal de € 150, pertencentes a cada um dos sócios …, e outra no valor nominal de € 4.100, pertencente à E... SGPS. (documento n.º 3, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  26. Em 30-7-2009 foi publicado no D.R., 2ª série, n.º 146, o Aviso n.º edital (extracto) n.º …/2009, do Município de ..., no qual se dá conta da aprovação do “procedimento de formação de um contrato que tem por objecto a elaboração de um plano de pormenor para a D... , bem como a respectiva proposta de contrato” (documentos n.ºs 11 e 12, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  27. Em 10-8-2009 foi publicado no D.R., 2ª série, n.º 153, o Aviso n.º …/2009, do Município de ..., relativo à “determinação de elaboração de plano de pormenor e proposta de contrato”, cujo teor se dá por reproduzido, destacando-se o seguinte trecho: “Preconiza-se que a "D... " venha a contemplar uma unidade hoteleira, aldeamentos turísticos, equipamentos de animação autónoma (campo de golfe, centro náutico, centro equestre, …), vinha, produção biológica agrícola e pecuária” (documentos n.ºs 11 e 12, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  28. Em 09-09-2009 foi publicado no D.R., 2ª série, n.º …, o edital (extracto) n.º …/2009, do Município de ..., a deliberação no sentido de proceder à elaboração de um plano de pormenor para a D... … (documentos n.ºs 11 e 12, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  29. Em 21-09-2009 foi publicado no sítio www.cm-...pt notícia intitulada “Cerimónia de Assinatura do Contrato de Elaboração do Plano de Pormenor da D... (Hotel)” (documentos n.ºs 15 e 16, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos)

  30. Na mesma data foi publicado no sítio www …. .pt notícia sobre a D... e a B..., intitulada “Turismo: Complexo ME vai nascer nos concelhos de , cujo teor aqui se dá por reproduzido (documentos n.ºs 15 e 16, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  31. Na mesma data foi publicado no sítio … notícia do Diário Digital / Lusa sobre a D... da e a B..., intitulada “Complexo turístico de 150 M€ nos concelhos de , cujo teor aqui se dá por reproduzido (documento n.º 17, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  32. Em 15-3-2010 foi celebrado contrato de compra e venda em que a B... SA compra um prédio rústico, denominado “D... da”, dito no concelho de …, do concelho de …, com a área de 72,6750 hectares, pelo preço de € 775.000 (documento n.º 7, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  33. Em 13-10-2011, por despacho do Senhor Director de Finanças Adjunto de …, foi aberto o procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso sobre os Requerentes (fls. 54-64 do P.A.);

  34. Em Novembro de 2011 foi compilado um estudo pela , solicitado em 2008 pela B... SQ, intitulado “D...”, com a indicação de que “a vertente de estudo de mercado foi efectuada em 2008, tendo a viabilidade económico-financeira sido completada em Novembro de 2011” (documentos n.ºs 4-A e 4-B, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  35. Em 02-11-2011 foi emitido parecer favorável pela Câmara Municipal de … ao projecto do Plano de Pormenor Intermunicipal da D... (documento n.º 14, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  36. Em 04-11-2011 foi publicado no sítio www. … .pt uma notícia relativa à D..., cujo teor aqui se dá por reproduzido (documentos n.ºs 15 e 16, juntos com a petição inicial, cujos teores se dão como reproduzidos);

  37. Em 5-11-2011 os Requerentes exerceram o seu direito de audição após a notificação do projecto de decisão da aplicação da cláusula geral antiabuso (fls. 203-217 do P.A., cujo teor se dá como reproduzido);

  38. Em 21-12-2011 foi emitido parecer favorável ao projecto do Plano de Pormenor Intermunicipal da D... pelo Município de … (documento n.º 13, junto com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido);

  39. Em 30-3-2012, a Direcção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspecção Tributária elaborou a informação que consta de fls. 2 a 26 do P.A, cujo teor se dá como reproduzido;

  40. Em 17-4-2012, o Senhor Director-Geral dos Impostos, proferiu na primeira página da informação referida na alínea anterior o seguinte despacho: «Atentos os fundamentos invocados, autorizo a aplicação do procedimento proposto» (fls. 2 do P.A.).

  41. Em 23-6-2012, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação n.º 2012 …, em que são contribuintes os Requerentes, junta com a petição inicial, cujo teor se dá como reproduzido, como data limite de pagamento voluntário de 5-9-2012 (artigo 1.º da petição inicial, que não é impugnado).

  42. Em 6-11-2012, os Requerentes apresentaram o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.


 

2.2. Fundamentação da matéria de facto


 

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos ao processo e indicados relativamente a cada um dos pontos da matéria de facto e ainda, quanto à existência e estrutura geral do projecto urbanístico, turístico e agrícola da D..., com fundamento nos depoimentos das testemunhas …. Esta última testemunha, revelou profundos conhecimentos do funcionamento dos financiamentos bancários e assegurou que o financiamento necessário para um projecto da envergadura do que se projectava concretizar na D... …nunca seria concedido a uma empresa com a estrutura de uma sociedade por quotas, semelhante à que tinha a B... –, Limitada.

As duas testemunhas referidas aparentaram depor com isenção e não se vislumbra qualquer razão para duvidar da veracidade dos seus depoimentos.


 

2.3. Factos não provados


 

Foi considerada não provada, por ausência de documentação comprovativa, a alegação de que faz ainda parte do grupo da E... SGPS a sociedade “B... –, S.A.”, anteriormente denominada .


 

3. Matéria de direito


 

3.1. Da caducidade do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso


 

3.1.1. Da natureza procedimental do artigo 63.º do CPPT e do prazo estabelecido no n.º 3 como prazo de caducidade


 

Sob a epígrafe “aplicação das normas antiabuso”, o artigo 63.º do CPPT contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores da aplicação das normas antiabuso. Desde logo, esta norma insere-se, sistematicamente, no título II, do procedimento tributário, capítulo III, do procedimento de liquidação e secção IV, procedimentos próprios. Assim é por ser um procedimento, a final, tendente a uma liquidação (n.º 1). Apesar das alterações que o artigo sofreu desde a sua introdução ( 2 ), manteve sempre um conjunto de normas de natureza procedimental.

Neste quadro, nada sugere, bem pelo contrário, que estas disposições tenham uma natureza substantiva. Todas têm relevância para a forma como o procedimento se deverá desenvolver. Ao determinar até que momento é que o procedimento pode ser aberto pelo sujeito activo, o n.º 3, seja na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro ou pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (não releva, aqui, a subsequente alteração do artigo no sentido de remover tal prazo), não é diferente.

A única “garantia” que daqui decorre para o sujeito passivo é que o procedimento não poderá ser aberto decorrido aquele prazo. Porém, tal não significa a constituição de um direito na sua esfera jurídica, antes a extinção de um direito potestativo – de abertura do procedimento de aplicação de norma antiabuso – na esfera jurídica do sujeito activo (quando muito, pode afirmar-se a constituição de um “direito negativo” do sujeito passivo após a preclusão do direito potestativo do sujeito activo).

Deste modo, delimitando temporalmente o direito potestativo do sujeito activo, o prazo estabelecido no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT, naquelas redacções, é um prazo de caducidade: caducidade ou preclusão é um instituto por via do qual os direitos potestativos se extinguem pelo facto do seu não-exercício prolongado por certo tempo( 3 ); caducidade, também dita preclusão, é o instituto pelo qual os direitos, que, por força da lei ou de convenção se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante esse prazo” ( 4 ). O sujeito activo tem o direito potestativo – dir-se-á, noutra óptica, que tem um poder-dever – de abrir o procedimento até um certo momento. O prazo de caducidade em análise justifica-se por razões objectivas de segurança jurídica, tendo o propósito último de gerar a definição da situação do obrigado tributário num prazo razoável, cujo decurso conduz à preclusão do direito do Estado relativo ao exercício do direito sujeito ao prazo de caducidade.

 

3.1.2. Da lei aplicável para a determinação do prazo de abertura do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso


 

O artigo 63.º, n.º 3 do CPPT, originariamente, dispunha que este apenas podia ser aberto “no prazo de três anos após a realização do acto ou da celebração do negócio jurídico objecto da aplicação das disposições antiabuso”.

Na redacção introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor em 1-1-2009, aquele artigo 63.º, n.º 3, passou a estabelecer que o procedimento de aplicação de normas antiabuso “pode ser aberto no prazo de três anos a contar do início do ano civil seguinte ao da realização do negócio jurídico objecto das disposições antiabuso”. Com a excepção da entrega da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, os demais actos ou negócios jurídicos praticados pelos sujeitos passivos ocorreram antes (o último a 22-7-2008) da entrada em vigor da nova lei que difere temporalmente o início da contagem do prazo.

Alegam os Requerentes que a lei aplicável deve ser apurada de acordo com o previsto no artigo 5.º do Decreto-Lei que aprovou a LGT – DL 398/98, de 17 Dezembro.

O artigo 5.º do DL 398/98 perfila-se como uma norma de aplicação da lei no tempo especial e exclusivamente dirigida à determinação dos prazos aplicáveis aos factos tributários em função da entrada em vigor da LGT. Assim se compreende a referência “ao novo prazo de prescrição” (n.º 1) e ao “ao novo prazo de caducidade do direito de liquidação dos tributos” (n.º 5).

Aos factos posteriores à entrada em vigor da LGT é aplicável a norma de aplicação da lei no tempo prevista no artigo 12.º da LGT. Dispõe o seu n.º 1 que “as normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor” ( 5 ) e, no que concerne às normas sobre procedimento e processo, dispõe o n.º 3 que estas “são de aplicação imediata, sem prejuízo das garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes”. A lei refere-se, amplamente, a todas as normas de procedimento e de processo, salvo o disposto no n.º 4, pelo que, tratando-se duma norma de procedimento ou de processo, é indiferente a consideração de um prazo como de prescrição ou de caducidade para determinar a aplicabilidade imediata da norma.

A abertura do procedimento de aplicação da disposição antiabuso ocorreu após a entrada em vigor da nova lei, pelo que o prazo previsto no artigo 63.º, n.º 3, do CPPT, tendo natureza procedimental, é imediatamente aplicável, independentemente dos factos que visa serem anteriores à entrada em vigor dessa lei.

A fixação deste prazo não implica a constituição de um direito na esfera jurídica do sujeito passivo, antes a extinção de um direito potestativo – de abertura do procedimento de aplicação de norma antiabuso – na esfera jurídica do sujeito activo. A certeza e a segurança jurídica conferida com a caducidade do direito apenas se constituí se o prazo transcorrer sem que o direito potestativo seja exercido, pelo que só se este já tivesse decorrido na totalidade é que se poderia considerar que existiam “garantias, direitos e interesses legítimos anteriormente constituídos dos contribuintes”. Assim sendo, não existe qualquer restrição à aplicação imediata da norma.

Deste modo, a lei aplicável é a introduzida pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, que entrou em vigor em 1-1-2009. Esta norma adia o início da contagem do prazo para o início do ano civil seguinte à prática do acto ou negócio jurídico objecto da disposição antiabuso, em vez de se iniciar a contagem com a sua prática.

Entendemos, invocando o AcSTA de 26-11-2008, proc. n.º 0598/08, que “a procrastinação do início de contagem do prazo traduz a fixação de um “prazo mais longo”, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 297.º do Código Civil, pelo que se aplica ao prazo em curso o prazo mais longo, a contar pelo modo novo «desde o seu momento inicial»”. No mesmo sentido decidiu-se nos seguintes acórdãos: AcSTA de 20-5-2009, proc. n.º 0293/09, AcSTA de 26-6-2009, proc. n.º 01109/08 ( 6 ), AcSTA de 08/02/2012, proc. n.º 0931/11 ( 7 ).

Nestes termos e atendendo aos factos apurados, concluímos que o prazo para a abertura do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso, contado nos termos dos arts. 20.º, n.º 1 e 63.º, n.º 3, este na redacção dada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, ambos do CPPT e artigo 279.º do CC (ex vi artigo 20.º, n.º 1 do CPPT), tendo por referência para início da contagem o dia 22-7-2008, correspondente à venda das acções da sociedade B... SA, assim se iniciando a contagem do prazo no dia 1-1-2009, se fixou no dia 1-1-2012.

Deste modo, tendo a abertura do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso ocorrido a 13-10-2011, esta tem-se por tempestiva, assim se indeferindo o pedido de caducidade da aplicação da cláusula geral antiabuso formulado pelos Requerentes.

Face ao exposto, verificada a tempestividade da abertura do procedimento de aplicação da disposição antiabuso, fica prejudicada apreciação das questões suscitadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, que teriam uma consequência dilatória do prazo, i) da suspensão do prazo de caducidade com a notificação da abertura do procedimento de inspecção tributária e ii) do momento relevante para o início da contagem do prazo ser o da entrega da declaração de rendimentos modelo 3 de IRS.


 

3.2. Da existência ou não dos requisitos legais e dos factos objectivos e subjectivos para aplicação da cláusula geral antiabuso

Não obstante estes pedidos terem sido apresentados numa lógica de subsidiariedade, a apreciação do preenchimento dos requisitos legais não prescinde, nem é absolutamente indissociável, da apreciação dos factos objectivos e subjectivos relevantes para a aplicação da cláusula geral antiabuso, pelo que serão apreciados de modo unitário.


 

3.2.1. Planeamento fiscal legítimo e ilegítimo


 

Nas definições elaboradas por Saldanha Sanches ( 8 ): o planeamento fiscal legítimo “consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais”; enquanto que o planeamento fiscal ilegítimo “consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo”.

Dentro do quadro do planeamento fiscal podemos, assim, distinguir as situações em que o sujeito passivo actua contra legem, extra legem e intra legem.

Quando este actua contra legem, a sua actuação é frontal e inequivocamente ilícita, pois infringe directamente a lei fiscal, e configura uma fraude fiscal ( 9 ) passível, inclusive, de ser objecto de censura contra-ordenacional ou criminal.

A actuação extra legem ocorre quando o sujeito passivo aproveita de forma abusiva a lei para chegar a um resultado fiscal mais favorável, pese embora este não a violar directamente. Este adopta “um comportamento que tem como finalidade exclusiva ou principal contornar uma ou várias normas jurídico-fiscais, de modo a conseguir a redução ou a supressão do encargo fiscal” ( 10 ). Sendo que dessa ou dessas normas jurídico-fiscais se deve detectar uma tentativa de contornar “uma clara intenção de tributar afirmada pelos princípios estruturantes do sistema” ( 11 ). Este tipo de actuação é comummente designada de “fraude à lei fiscal” mas, conforme alerta Saldanha Sanches, pretendendo melhor ilustrar e distinguir estas situações das de fraude fiscal, também designada de “evitação abusiva de encargos fiscais”, “evitação fiscal abusiva” ou ainda “elisão fiscal”( 12 ).

Só se afigura legítima – e, assim, planeamento fiscal legítimo ou não abusivo – a actuação intra legem. Com efeito, a obtenção de uma poupança fiscal não constitui um comportamento proibido pela lei, desde que a actuação não se enquadre na supra referida actuação extra legem ( 13 )

Sub iudice, sucintamente, os Requerentes contestam que configure planeamento fiscal abusivo a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima, por considerarem que o negócio jurídico se insere numa estrutura de actos e negócios jurídicos tendentes à expansão da sua actividade, bem como à criação de um grupo de empresas, materializado através da constituição de uma sociedade anónima sob a denominação “E... SGPS, SA”, que dominará totalmente ( 14 ) a transformada sociedade anónima “B... – Imobiliária, SA” [artigo 489.º, n.º 1 do CSC ( 15 )]; comportamento que a Autoridade Tributária e Aduaneira entende constituir um planeamento fiscal abusivo, na medida em que, através daquela transformação em sociedade anónima, que considera desnecessária e fiscalmente motivada, mais considerando que os demais actos e negócios jurídicos foram “encenados” (p. 8 do P.A.), e subsequente venda de acções (em vez de quotas), os Requerentes evitam a tributação de mais-valias em sede de IRS.

Assim sendo, a questão colocada a este tribunal, na sequência do procedimento de aplicação da cláusula geral antiabuso – um dos mecanismos legais a que o legislador recorre para dar resposta aos comportamentos de planeamento fiscal abusivo –, reside em saber se a actuação do sujeito passivo se situa intra ou extra legem, ou seja, se o planeamento fiscal que adoptou é legítimo ou ilegítimo, se é não abusivo ou abusivo.

3.2.2. Elementos da cláusula geral antiabuso


 

Sob a epígrafe Ineficácia de actos e negócios jurídicos”, dispõe o artigo 38.º, n.º 2 da LGT em relação à denominada cláusula geral antiabuso (CGAA) no direito tributário.

A letra plasmada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, passou a ser a seguinte:

São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Esta norma é complementada pelo extenso artigo 63.º do CPPT, que, conforme já se referiu, contém um conjunto disposições que concretizam os parâmetros conformadores do procedimento de aplicação das disposições antiabuso.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a desconstruir a letra da norma apontando cinco elementos nela patentes. Correspondendo um dos elementos à estatuição da norma, os restantes quatro afiguram-se requisitos cumulativos que permitem aferir – como se de um teste se tratasse – quanto à verificação de uma actividade caracterizável como um planeamento fiscal abusivo ( 16 ).

Estes elementos, em torno dos quais ambas as partes aliás constroem a sua argumentação, consistem:

– no elemento meio, que diz respeito à via livremente escolhida – acto ou negócio jurídico, isolado ou parte de uma estrutura de actos ou negócios jurídicos sequenciais, lógicos e planeados, organizados de modo unitário – pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal ( 17 );

– no elemento resultado, que contende com a obtenção de uma vantagem fiscal, em virtude da escolha daquele meio, quando comparada com a carga tributária que resultaria da prática dos actos ou negócios jurídicos “normais” e de efeito económico equivalente ( 18 );

– no elemento intelectual, que exige que a escolha daquele meio seja “essencial ou principalmente dirigid[a] [...] à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos” (artigo 38.º, n.º 2 da LGT), ou seja, que exige não a mera verificação de uma vantagem fiscal, mas antes que se afira, objectivamente, se o contribuinte “pretende um acto, um negócio ou uma dada estrutura, apenas ou essencialmente, pelas prevalecentes vantagens fiscais que lhe proporcionam” ( 19 );

– no elemento normativo, que “tem por sua função primordial distinguir os casos de elisão fiscal dos casos de poupança fiscal legítima, em consideração dos princípios de Direito Fiscal, sendo que só nos casos em que se demonstre uma intenção legal contrária ou não legitimadora do resultado obtido se pode falar naquela” ( 20 );

– e, por fim, no elemento sancionatório, que, pressupondo a verificação cumulativa dos restantes elementos, conduz à sanção de ineficácia, no exclusivo âmbito tributário, dos actos ou negócios jurídicos tidos por abusivos, “efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas” (parte final do artigo 38.º, n.º 2, da LGT).

Apesar desta desconstrução, a análise dos elementos não pode ser estanque, pois, como realça Courinha, “a fixação de um elemento pode, na prática, depender de um outro”, pelo que estes “não deixarão com frequência [...] de auxiliar-se mutuamente” ( 21 ).

Apreciemos, tendo este aspecto em consideração, os elementos da cláusula geral antiabuso tendo em atenção os factos provados e a argumentação jurídica das partes.

A Autoridade Tributária e Aduaneira fundamenta a sua decisão defendendo que, em torno dos negócios jurídicos ditos centrais – a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções, que assim configuram, na sua óptica, o meio artificiosamente utilizado – “foram encenados vários actos jurídicos, mais ou menos complexos e dispendiosos”. Actos “que, face à realidade e dimensão económica, estrutural e societária em concreto, se revelam manifestamente desnecessários e denunciam claramente a intenção artificiosa da sua utilização, ou seja, evitar a tribulação que seria devida”. Assim considerando que aqueles negócios jurídicos visaram, “em primeira instância, a exclusão da tributação das mais-valias em sede de IRS” (p. 8 do P.A.).


 


 

3.2.2.1. Elemento resultado


 

Comparando de uma forma isolada e objectiva os negócios jurídicos da transformação da sociedade em sociedade anónima e a subsequente venda das acções (actos ou negócios jurídicos realizados) e da eventual manutenção da sociedade como sociedade por quotas e a subsequente venda das quotas (actos ou negócios jurídicos equivalentes ou de idêntico fim económico), é inequívoco que a primeira situação beneficia de um regime legal de tributação mais vantajoso do que a segunda, pois, enquanto a primeira não é objecto de tributação, nos termos do artigo 10.º, n.º 2 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 228/2002, de 31 de Outubro, a segunda é considerada uma mais-valia, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, al. b) do CIRS, rendimento tributado a uma taxa de 10%, nos termos do artigo 72.º, n.º 4 do CIRS, na redacção do Decreto-Lei n.º 192/2005, de 7 de Novembro.


 

3.2.2.2. Elementos meio e intelectual


 

Embora tal constatação baste para preencher aquele requisito, o seu preenchimento é, por si só, irrelevante para a aplicação da cláusula geral antiabuso, em função da estrutura de actos e negócios jurídicos realizados: “em caso algum, uma vantagem ou um benefício fiscal indiciarão por si só qualquer ideia de abuso jurídico” ( 22 ).

A denominada “step transaction doctrine”, teoria construída nos ordenamentos anglo-saxónicos e em que a Autoridade Tributária e Aduaneira alicerça a sua argumentação, consiste na consideração do conjunto complexo de actos ou negócios jurídicos que surgem numa arquitectura global, planeada, composta por actos ou negócios jurídicos preparatórios e complementares, para além do acto ou negócio jurídico que é objectivamente censurado, na medida em que somente através da sua visão completa se detecta o desenho elisivo ( 23 ).

Conforme decorre da matéria de facto provada, esta transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima é um negócio jurídico inserido num vasto conjunto de actos e negócios jurídicos executados no âmbito de uma reorganização empresarial.

Esta intenção surge expressa logo no relatório justificativo da transformação da sociedade: “Para fazer face aos desafios que nos vão ser colocados, e perante a previsível necessidade de criação de outras estruturas físicas, humanas e financeiras, a gerência considera ser necessária a transformação desta sociedade por quotas em sociedade anónima, a qual poderá mais facilmente reforçar a sua estrutura financeira através da emissão de acções, ou de outro tipo de operações”.

Demonstrou-se que esta intenção já se tinha manifestado através de outros actos, designadamente contratos promessa de compra e venda de um conjunto de prédios rústicos (que vieram, efectivamente, a ser comprados), requerimentos junto das Câmaras Municipais de … (que vieram a culminar com a aprovação do projecto do Plano de Pormenor Intermunicipal da D... ), contratação de prestação de serviços arquitectura e de consultoria (um denso estudo de mercado e de viabilidade económico-financeira contratado em 2008 e cuja versão final data de 2011) sobre o projecto que viria a ser denominado “D... ”).

Da mesma forma que se demonstrou que este projecto foi noticiado em vários momentos (entre 2008 e 2011) e em diferentes publicações e que este projecto envolvia um investimento avultado, na ordem dos € 150.000.000 e que viria, efectivamente, se concretizado, a criar centenas de postos de trabalho.

Neste contexto decidiram operar a referida reorganização empresarial, criando um grupo de empresas encabeçado pelo E... SGPS, tendo, para tal, executado um conjunto de actos e negócios jurídicos que envolveram, designadamente, a transformação da sociedade B... SQ em sociedade anónima, da criação da sociedade B... –, Lda”, que têm como sócio a E... SGPS. Essas operações tornaram-se possíveis e foram executadas através de prestações acessórias de carácter gratuito, tendo o Requerente … efectuado uma prestação de € 7.478.000, que viriam a servir para a compra, por parte da B... SGPS, de acções da B... SA, tendo o Requerente …recebido o montante de € 7.500.000 pela sua venda.

Neste quadro, é manifesto que a transformação da sociedade B... SQ em sociedade anónima e a subsequente venda de acções (em vez de quotas) não se afigura como o alegado epicentro de um puzzle elisivo.

Verifica-se, sub iudice, um planeamento e uma estrutura de actos e negócios jurídicos, tanto relacionados com a reorganização empresarial como com o investimento que a motiva, que têm uma evidente justificação económica. Por conseguinte, aquela transformação e venda não se assumem como actos e negócios “centrais” de um estrutura de actos e negócios jurídicos “essencial ou principalmente dirigidos” à obtenção de uma vantagem fiscal.


 

3.2.2.3. Elemento normativo


 

Acresce que, na pena de Saldanha Sanches, é “necess[ário] encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula antiabuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar [...], primeiro, porque a evitação fiscal abusiva não pode confundir-se com a permanente tentativa do contribuinte para reduzir a sua tributação ou para ponderar cuidadosamente – planeamento fiscal não abusivo – as consequências da lei fiscal na sua actividade empresarial ou pessoal [...], segundo, porque nesse esforço permanente para reduzir a carga fiscal podemos encontrar o aproveitamento pelo contribuinte do que podemos qualificar como omissões deliberadas – justas, ou não, é uma outra coisa – do legislador fiscal e, se isso aconteceu, não pode atribuir-se ao aplicador da lei a tarefa que cabe primariamente ao legislador” ( 24 ). Com efeito, sublinha, deve ser possível extrair-se uma “intenção inequívoca de tributação” ( 25 ).

Este autor dá, inclusive, como exemplo de “lacuna consciente de tributação” a situação que aqui é objecto de aplicação da cláusula geral antiabuso (a transformação de uma sociedade por quotas em sociedade anónima e a subsequente venda das acções), sublinhando que “se o legislador, ao mesmo tempo que tributa as mais-valias das alienações das quotas, deixa por tributar as mais-valias das acções ou as tributava com uma taxa mais reduzida, não pode deixar de se aceitar fiscalmente a transformação de uma sociedade comercial em sociedade por acções mesmo que a transformação seja motivada por razões exclusivamente fiscais” ( 26 ).

Efectivamente, “mesmo que a transformação [fosse] motivada por razões exclusivamente fiscais”, é o legislador que opta, expressamente, por tributar a venda das quotas e por não tributar a venda das acções naquele contexto, conforme decorre dos artigos supra citados.


 

3.2.2.4. Elemento sancionatório


 

Não se tendo demonstrado a verificação cumulativa de todos os requisitos exigidos para aplicação da cláusula geral antiabuso, particularmente dos elementos meio, intelectual e normativo, não há lugar à aplicação da estatuição da norma, conducente à ineficácia dos negócios jurídicos no âmbito tributário, contrariamente à pretensão da Autoridade Tributária e Aduaneira


 

3.3. Conclusão


 

Conclui-se, assim, que não se verificam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação da cláusula geral antiabuso.

Consequentemente, é ilegal o acto de liquidação cuja declaração de ilegalidade é pedida, que tem como pressupostos a verificação dos requisitos de aplicação da cláusula geral antiabuso, por violação do preceituado no artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

Por isso, tem de ser julgado procedente o pedido de declaração de ilegalidade do acto de liquidação n.º 2012 … ( 27 ), por enfermar de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que justifica a sua anulação (artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo),

Assim, o pedido formulado pelos Requerentes tem de ser julgado totalmente procedente.


 

4. Valor do processo


 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 755.348,77 (setecentos e cinquenta e cinco mil trezentos e quarenta e oito euros e setenta e sete cêntimos).


 

5. Custas


 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em 11.016,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária ( 28 ), a cargo da requerida Autoridade Tributária e Aduaneira.


 

6. Decisão


 

Neste termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

– julgar procedente o pedido de declaração da ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2012 …, referente ao ano de 2008;

– anular a referida da liquidação n.º 2012 …;

– condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar as custas do presente processo.


 

Lisboa, 9 de maio de 2013

Os Árbitros


 

(Jorge Lopes de Sousa)


 

(Tiago Caiado Guerreiro)


 

(Manuel Carlos Rodrigues)

 

1(  ) Nesta ocasião, a “ … Lda” já tinha sido transformada em sociedade anónima, adoptando a designação “, S.A.” mas é a designação daquela que aparece na escritura.

2(  ) Introduzido com o Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro, alterado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro e, finalmente, pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.

3(  ) Cfr. ANDRADE, MANUEL DE, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, p. 463.

4(  ) Cfr. FERNANDES, CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, p. 699.

5(  ) Neste sentido, cfr. LEITE DE CAMPOS, DIOGO, SILVA RODRIGUES, BENJAMIM E LOPES DE SOUSA, JORGE, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4.ª edição artigo 45.º, anotação 14 e artigo 48.º, anotação 5.

6(  ) “A alteração do início de contagem do prazo traduz a fixação de um “prazo mais longo”, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 297.º do CC, pelo que se aplica ao prazo em curso o prazo mais longo, a contar pelo modo novo desde o seu momento inicial”.

7(  ) ”A lei que retarda o momento inicial da caducidade deve ser tratada como uma lei que alonga o respectivo prazo, pelo que, com base na analogia com a solução contida no nº 2 do artigo 297º do Código Civil, o dito prazo se deverá contar do ponto de partida estabelecido na nova lei”.

8(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 21.

9(  ) Cfr. AcTCAS de 12/02/2011, proc. n.º 04255/10

10(  ) Cfr. JÓNATAS MACHADO e NOGUEIRA DA COSTA, Curso de Direito Tributário, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 340-341.

11(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 181.

12(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., pp. 21-23; ainda AcTCAS de 12/02/2011, proc. n.º 04255/10.

13(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L. Reestruturação de empresas e limites do planeamento fiscal, As duas constituições – nos dez anos da cláusula geral antiabuso, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 49-50, que afirma, a este respeito: “a consagração da cláusula geral antiabuso implica [...] que a partir da sua introdução está claramente delimitado aquilo que o sujeito passivo pode e não pode fazer. As habilidades fiscais, a destreza fiscal deixam de ser possíveis (as operações artificiosas e fraudelentas que têm como fim principal ou exclusivo a obtenção de uma poupança fiscal mediante a fraude à lei) e o sujeito passivo passa a ter o seu comportamento julgado de acordo com este critério. [...] a evolução da lei é clara no sentido de proporcionar fundamento legal para o planeamento fiscal, desde que seja praticado sem o abuso de formas jurídicas, sem negócios jurídicos artificiosos e fraudelentos mas limitando-se a escolher a via que se encontra aberta e que lhe permite realizar economias fiscais”. Cfr., também, MARQUES, PAULO, Elogio do Imposto, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 360-364.

14(  ) Cfr. AcTCAS de 0514/09, de 11-8-2010: “Do ponto de vista do direito comercial a figura do grupo por domínio total representa um dos três instrumentos jurídicos taxativamente previstos no ordenamento jurídico objectivo em ordem à criação de uma empresa plurissocietária ou empresa de grupo, previsto nos artºs. 488º a 491º do CSC. Entende-se por empresa de grupo ou plurissocietária (..) todo o conjunto de sociedades comerciais que, conservando embora as respectivas personalidades jurídicas próprias e distintas, se encontram subordinadas a uma direcção económica unitária e comum, exercida por uma dessas sociedades (dita sociedade-mãe) sobre as restantes (ditas sociedades-filhas). (..)”, estrutura societária que comporta diversas vantagens económicas, organizativas, financeiras “(..) e até mesmo jurídicas (v.g. segmentação da responsabilidade empresarial e sua externalização para o mercado de crédito, de trabalho e para a sociedade em geral, aproveitamento da estrutura jurídica policêntrica ou caleidoscópica do grupo como mecanismo de ilusão das normas legais reguladoras da actividade empresarial, maxime, normas fiscais, laboras, concorrenciais, etc.) (..)”, pelo que o grupo constitui “(..) uma nova forma de organização da empresa moderna que explora assim as vantagens resultantes da combinação entre a manutenção da individualidade jurídico-formal e a dissolução da autonomia económico-material das sociedades comerciais componentes, (..)” (citando ENGRÁCIA ANTUNES, JOSÉ, Os poderes nos grupos de sociedades, Problemas do Direito das Sociedades – Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho (IDET), Almedina, 2002, pp.154, 155, 158).

15(  ) “A sociedade que, directamente ou por outras sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, domine totalmente uma outra sociedade, por não haver outros sócios, forma um grupo com esta última, por força da lei [...]”.

16(  ) Ou seja, a uma “actuação planeada do contribuinte que se traduz num comportamento aparentemente lícito, geradora de uma vantagem fiscal não admitida pelo ordenamento tributário” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., pp.15-17 e 163-165; bem como AcTCA de 15/02/2011, proc. n.º 04255/10, conclusões XIII e XIV).

17(  ) Como decorre da seguinte parte do artigo 38.º, n.º 2 da LGT: “actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”.

18(  ) Tal decorre do seguinte segmento do artigo 38.º, n.º 2 da LGT: “redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios”. Decorre ainda do artigo 63.º, n.º 3, als. a) e b) do CPPT, na redacção dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que exigem que a Administração Tributária inclua na sua fundamentação, respectivamente, “a descrição do negócio jurídico celebrado ou do acto jurídico realizado e dos negócios ou actos de idêntico fim económico, bem como a indicação das normas de incidência que se lhes aplicam” e “a demonstração de que a celebração do negócio jurídico ou prática do acto jurídico foi essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em caso de negócio ou acto com idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais”.

19(  ) Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 180.

20(  ) Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 211.

21(  ) Cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula..., p. 165. Identicamente, SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 170, que aponta uma “relação de conexão e interdependência em relação aos requisitos exigidos pela lei”.

22(  ) Cfr. LEITE DE CAMPOS, DIOGO, e COSTA ANDRADE, JOÃO, Autonomia Contratual e Direito Tributário, A norma geral anti-elisão, Coimbra, Almedina, 2008, p. 82.

23(  ) “Quer os actos jurídicos, quer os negócios jurídicos, podem surgir isolados (adaptados à obtenção da utilidade económica e da vantagem fiscal), ou, na qual que é a hipótese porventura mais comum, formar um conjunto – conjunto de actos ou conjunto de negócios. Para tal, deverão formar uma unidade lógica, sequencial e indivisível a tal dirigida – uma estrutura [...]. A doutrina e a jurisprudência britânica [...] apurou a verificação dessa unidade quando – step-by-step doctrine – no momento da reaização do primeiro acto, será pouco razoável admitir que outros não se lhe serguirão forçosamente, de modo a completá-lo, e assim obtendo a vantagem fiscal visada e o fim económico acautelado (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, Cláusula Geral Antiabuso no Direito Tributário: Contributos para a sua compreensão, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 166-167).

Estas considerações, ressalve-se, são tecidas no contexto do estudo dos elementos (particularmente o elemento meio) da cláusula geral antiabuso, não visando a questão do início da contagem do prazo para a abertura do procedimento de aplicação da disposição antiabuso.

24(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 180.

25(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., pp. 180-181.

26(  ) Cfr. SALDANHA SANCHES, J.L., Os Limites..., p. 182.

27(  ) Na parte final do pedido de pronúncia arbitral os Requerentes referem a liquidação n.º…, mas, como se vê pela cópia da liquidação que foi junta com o pedido e pela sua parte inicial, a liquidação cuja ilegalidade está em causa tem o n.º 5004490194.

28(  ) O valor foi calculado com base em € 4.896,00, correspondentes ao último escalão tabelado (até € 275.000,00), acrescidos de € 6.120,00, correspondentes ao produto de € 306 por cada 20 fracções de € 25.000,00 acima de € 275.000,00.