Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 108/2022-T
Data da decisão: 2022-11-04  IRC  
Valor do pedido: € 12.054,00
Tema: IRC – determinação do lucro tributável no âmbito da compra e venda de imóveis; artigo 64.º do Código do IRC; artigo 12.º, n.º 1 do Código do IMT.
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DECISÃO ARBITRAL

I. Relatório

1. A... Unipessoal, Lda., pessoa coletiva e contribuinte fiscal n.º ... (doravante designada por “Requerente”), com sede na Rua ... n.º ..., da União de freguesias da ..., concelho de Vila Verde, apresentou, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, i.e., Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), o pedido de constituição de Tribunal Arbitral com vista à declaração de ilegalidade da demonstração de acerto da liquidação n.º 2018 ... de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), no valor de € 11.419,52 e demonstração de liquidação de juros n.º 2021 ... no valor de € 634,48, e, bem assim, do ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa do processo n.º ...2021..., apresentado sobre a referida liquidação de IRC sendo demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira (“Requerida” ou “AT”).

A) Constituição do Tribunal Arbitral

2. Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, e notificou as partes essa designação no dia 13 de abril de 2022.

3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, e mediante a comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral Singular ficou constituído no dia 04 de maio de 2022.

B) História Processual

4. A Requerente formulou o presente pedido de pronúncia arbitral, requerendo a declaração de ilegalidade da liquidação de IRC n.º 20218... no valor de € 11.419,52 e demonstração de liquidação de juros n.º 2021... no valor de € 634,48, no total de € 12.054,00 (doze mil e cinquenta e quatro euros), e, bem assim, contra o ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2021..., apresentado sobre as referidas liquidações de IRC e juros.

5. As liquidações resultam de correções efetuadas pela Requerida ao abrigo do artigo 64.º, n.º 3, a), do Código do IRC, à matéria coletável da Requerente do ano de 2018, sustentadas pela não concordância do valor de realização declarado por esta para efeitos de determinação do lucro tributável obtido com a transmissão onerosa do direito real sobre o imóvel descrito pelo artigo urbano ... da freguesia da União de freguesias de ... e ... .

6. Em concreto, como causa do pedido, a Requerente alega a ilegalidade das referidas correções, por a AT ter considerado (e corrigido para tal), como valor de realização na determinação do lucro tributável da venda do referido imóvel, o Valor Patrimonial Tributário (“VPT”) do mesmo (de € 72.575,98), ao invés do valor do contrato (de € 20.750,00), como havia sido declarado pela Requerente ao abrigo do artigo 12º, n.º 4, regra 16ª, do Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”).

7. Adicionalmente, a Requerente considera ainda existir violação do princípio da proporcionalidade, falta de fundamentação das correções efetuadas e inconstitucionalidade da interpretação conjugada do art.º 64 do Código do IRC e do artigo 12.º do Código do IMT.

8. A Requerida foi notificada por despacho arbitral de 04 de maio de 2022, nos termos do artigo 17.º, n.º 1 do RJAT, para, no prazo de 30 dias, apresentar a resposta e solicitar a produção de prova.

9. Em 08 de junho de 2022, a Requerida apresentou o seu articulado de resposta, no qual essencialmente defendeu-se por impugnação, pugnando pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral e manutenção na ordem jurídica dos atos tributários de liquidação impugnados, com a sua consequente absolvição do pedido.

10. A Requerida considera que as correções foram corretamente aplicadas face ao estatuído no artigo 64.º do Código do IRC, salientando que a Requerente não fez uso do procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, para fazer prova de que o preço praticado na venda do imóvel foi inferior ao VPT do mesmo.

11. Por despacho de 18 de outubro de 2022, o Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 16.º do RJAT, decidiu, sem oposição das partes, que não se mostrava necessário promover a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, em resultado da simplicidade das questões em apreço, bem como por considerar que tinha em seu poder todos os elementos necessários para tomar uma decisão clara e imparcial.

12. Decidiu o presente Tribunal Arbitral Singular convidar as partes, querendo, a produzir alegações finais, no prazo de 5 dias, e em conformidade com o n.º 2 do artigo 18.º do RJAT, fixou como prazo limite para a decisão arbitral 4 de novembro de 2022.

13. Na sequência do aludido despacho, a Requerente optou por não produzir alegações orais ou escritas, mantendo-se os argumentos já mobilizados no processo.

14. A Requerida, por sua vez, apresentou alegações finais, mas mantendo-se integralmente o já aduzido na resposta.

15. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente para apreciar as questões indicadas (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade plena (artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

II. Questão a decidir

16. A principal questão a apreciar e a decidir, prende-se com saber se, para efeitos da determinação do lucro tributável no âmbito da compra e venda de imóveis regulada pelo artigo 64.º do Código do IRC, o valor da venda/realização do imóvel que deve ser considerado é o preço praticado no contrato ou é o VPT atual do imóvel.

17. Por outro lado, e uma vez que a Requerente alega, ainda, vícios da liquidação por violação de princípios constitucionais e procedimentais, cumpre apreciar se houve violação do princípio da proporcionalidade, do dever de fundamentação das correções efetuadas, do princípio da tributação do rendimento real e da inconstitucionalidade de uma interpretação conjugada do artigo 64.º do Código do IRC e do artigo 12.º do Código do IMT.

III. Decisão da matéria de facto e sua motivação

18. No que concerne à matéria de facto, importa salientar que, segundo o artigo 607.º números 3 e 4, do Código de Processo Civil (“CPC”) e o artigo 123.º n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”) aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT, o tribunal não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os factos alegados pelas partes, antes, cabe-lhe selecionar os factos que considera relevantes para a causa, distinguindo os que estão provados dos que não estão.

A) Factos provados

19. Com efeito, examinada a prova documental produzida pelas partes, o presente tribunal julga como provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

a. A Requerente é uma sociedade comercial, constituída sob a forma de sociedade unipessoal por quotas, que exerce a sua atividade no setor da construção civil de edifícios residenciais e não residenciais.

b. Através de escritura pública celebrada em 16-03-2018, a Requerente procedeu à transmissão onerosa do direito real sobre o bem imóvel inscrito sob o artigo urbano ... da freguesia da União de freguesias de ... e ..., pelo preço de € 20.750,00.

c. Nesta data, o VPT do Imóvel, estava fixado em € 72.575,98.

d. A Requerente não recorreu ao procedimento destinado a fazer prova do preço efetivamente pago, previsto no artigo 139.º do Código do IRC.

e. O referido imóvel havia sido adquirido pela Requerente em 18-03-2015, ao Município de ..., por arrematação administrativa, levada a efeito por aquela entidade, tendo sido celebrada a correspondente escritura pública de compra e venda, na qual ficou estipulado o preço a pagar pela Requerente de € 20.727,51.

f. Este valor que esteve na base da liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), nos termos do art.º 12º, n.º 4, 16º do CIMT.

g. Em 26-07-2019, a Requerente procedeu à apresentação da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC com referência ao ano de 2018, no âmbito da qual, declarou os rendimentos auferidos pela venda do mencionado imóvel, tendo por base o preço estipulado na escritura pública celebrada em 16-03-2018.

h. Em concreto, a Requerente declarou um valor de realização resultante da aplicação do artigo 12º n.º 4 regra 16ª do CIMT que determina que o valor dos bens adquiridos ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, bem como o dos adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa, é o preço constante do ato ou do contrato.

i. A Requerida instaurou uma ação inspetiva incidente sobre o IRC de 2018 da Requerente por Despacho DI2020..., no âmbito da qual verificou que o VPT do imóvel alienado em 2018 pela Requerente, situava-se acima do valor declarado pela mesma na Declaração de Rendimentos Modelo 22 de 2018, sem que a Requerente acrescesse no campo 745 (C745), do quadro 07 (Q07), dessa declaração, a diferença positiva imposta pelo artigo 64.º, n.º 3, a), do Código do IRC.

j. Consequentemente, a AT proferiu as seguintes conclusões no relatório de inspeção:

 

l. Posteriormente, a AT emitiu correções ao declarado pela Requerente por forma a que o lucro tributável resultante da venda do imóvel fosse determinado tendo em conta o VPT do imóvel à data da venda e não tendo em conta os valores registados na contabilidade da Requerente.

m. A Requerente apresentou a Reclamação Graciosa n.º ...2021... com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação da demonstração de acerto da liquidação de IRC n.º 2021... e demonstração de liquidação de juros n.º 2021... .

n. Contra a referida Reclamação foi proferido despacho de indeferimento pela Requerida.

o. Em face do exposto, veio a Requerente peticionar a constituição do presente tribunal arbitral, pedindo a condenação da Requerida com a declaração de ilegalidade do ato de liquidação e o correspondente reconhecimento ao direito à restituição dos valores já pagos e ao pagamento de juros indemnizatórios.

B) Factos não provados

20. Não existe factualidade relevante para a decisão da causa dada como não provada.

IV. Do Direito

21. Fixada a matéria de facto, cumpre analisar as questões de direito colocadas pela Requerente e Requerida.

  1. Quadro jurídico

22. No que respeita ao enquadramento jurídico da questão principal, importa realçar que a matéria de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis está regulada no Código do IRC, o qual, prevê, no seu artigo 64.º, com a epígrafe “Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis”, uma cláusula específica anti-abuso.

23. Esta cláusula opera mediante uma presunção (de declaração de rendimentos), que, nos termos do artigo 349.º do Código Civil, traduz-se numa ilação que a lei ou o julgador retira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

24. Naturalmente, a aplicação desta norma anti-abuso depende da verificação de algumas premissas, entre elas, a declaração de um valor contratual de transmissão de imóvel, inferior ao VPT que serviu de base à liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis ou que serviria no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

25. Com efeito, verificadas as premissas previstas na norma, presume-se que o valor de aquisição ou realização (consoante os casos), corresponde ao VPT do imóvel, para efeitos de determinação do lucro tributável em IRC.

26. Vejamos em melhor detalhe o que dispõe o artigo 64.º do Código do IRC:

“1 — Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.

2 — Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.

3 — Para aplicação do disposto no número anterior:

a) O sujeito passivo alienante deve efetuar uma correção, na declaração de rendimentos do período de tributação a que é imputável o rendimento obtido com a operação de transmissão, correspondente à diferença positiva entre o valor patrimonial tributário definitivo do imóvel e o valor constante do contrato;

b) O sujeito passivo adquirente adota o valor patrimonial tributário definitivo para a determinação de qualquer resultado tributável em IRC relativamente ao imóvel.”.

27. Resulta da leitura das disposições anteriormente indicadas, uma clara intenção do legislador aproximar o conceito de “valores normais de mercado” ao VPT dos imóveis, determinado nos termos do artigo 12.º do Código do IMT.

28. Com efeito, perante um cenário em que os rendimentos declarados pelo sujeito passivo fujam do padrão estabelecido pelo artigo 64.º do Código do IRC, sem que seja apresentada uma justificação para a uma eventual discrepância face aos “valores normais de mercado”, o rendimento presume-se obtido em função do VPT do imóvel em causa.

29. Consequentemente, devem ser aplicados os procedimentos de correção previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do mesmo artigo.

30. Para obviar à aplicação do disposto no artigo 64.º, n.º 2 do CIRC, o artigo 139.º do Código do IRC, permite ao sujeito passivo fazer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao VPT que serviu de base à liquidação do IMT do imóvel.

31. Vejamos o que diz o referido artigo 139.º do Código do IRC, sob a epígrafe Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis”:

“1 — O disposto no n.º 2 do artigo 64.º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.

2 — Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo pode, designadamente, demonstrar que os custos de construção foram inferiores aos fixados na portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 62.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, caso em que ao montante dos custos de construção deverão acrescer os demais indicadores objetivos previstos no referido Código para determinação do valor patrimonial tributário.

3 — A prova referida no n.º 1 deve ser efetuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em Janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.”.

  1. Posição das partes

32. Em primeira linha, a Requerente não concorda com a correção efetuada pela Requerida ao valor de realização declarado, por entender que o quadro jurídico aplicável à determinação do valor da realização do imóvel, para efeitos do cálculo da mais-valia e do artigo 64.º do Código do IRC, é o que resulta do artigo 12.º, n.º 4, regra 16 do Código do IMT, pelo que, o valor do bem a considerar para efeitos de determinação do IMT seria o preço do contrato de € 20.750,00 (contabilizado nos seus registos) e não o VPT atual do imóvel.

33. Para a Requerente, o facto de em 2015 ter adquirido o imóvel ao Município de ..., por arrematação administrativa, é bastante para que o artigo 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT opere tanto na determinação do valor da aquisição, como na determinação do valor da venda, para efeitos do lucro tributável em sede de IRC (artigo 64.º, n.º 1, do Código do IRC).

34. Neste raciocínio, refere a Requerente que, ainda que seja certo que o artigo 64.º do Código do IRC estabeleça que os valores normais de mercado não possam ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram ou serviriam de base à liquidação do IMT (n.º 1) e que quando o valor constante do contrato seja inferior ao VPT definido do imóvel, que será este o valor a considerar para determinação do valor do lucro tributável (2), a AT não pode ignorar a circunstância de que, para os casos especiais previstos artigo 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT, a base de incidência do IMT corresponderá ao preço constante do ato ou do contrato.

35. Consequentemente, o “valor normal de mercado”, aplicado pela Requerente, na venda do imóvel em 2018, corresponde (segundo esta) ao valor que serviria de base à liquidação do IMT, ou seja, o valor do contrato, pela aplicação do artigo 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT.

36. Assim, e não existindo diferença entre o preço da venda e o VPT do imóvel, segundo a Requerente, também não existe fundamento para a correção efetuada pela AT ao campo 745, do quadro 07, da sua Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC de 2018, da qual resultou um acréscimo de € 50.753,43, correspondente à diferença entre o VPT do imóvel (€ 71.503,43) e o valor declarado na venda de (€ 20.750,00).

37. Em caso de não colhimento da sindicância deste primeiro argumento, a Requerente invoca que existiria sempre uma flagrante violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (“C.R.P”), pois que “por uma questão de igualdade e por respeito ao principio da proporcionalidade, a AT, deveria ter tido em consideração, que o VPT à data da compra, era de 69.930.00€, pelo que, para efeitos de cálculo da mais valia sujeita a IRC, deveria ter levado em linha de conta que, o valor da realização bem como o custo da aquisição, deveria seguir em ambas as situações, o respetivo VPT à data.” (cfr. ponto 25 do PPA).

38. Ademais, a Requerente considera que a Requerida “não fundamentou de forma suficiente razões que a levaram a não aceitar a dedução da diferença entre o VPT e o valor da aquisição, para efeitos de determinação do valor tributável.” (cfr. ponto 29 do PPA).

39. Por último, a Requerente aponta como fundamento para a pretendida anulação das correções, a inconstitucionalidade de uma interpretação conjugada do artigo 64.º do Código do IRC com o artigo 12.º do Código do IMT, por entender que está a ser tributada por um o ganho que nunca obteve, pelo que defende a existência de uma violação do princípio da tributação pelo lucro real nos termos do artigo 104.º, n.º 2, da C.R.P.

40. No que respeita à posição da AT, resulta o seguinte: relativamente ao custo de aquisição, a AT verificou que o valor do contrato (€ 20.727,51) esteve na base da liquidação do IMT, nos termos do art.º 12º, n.º 4, 16º do CIMT e por isso não efetuou qualquer correção prevista no artigo 64.º do Código do IRC.

41. Já no que respeita ao valor de realização do imóvel, a AT procedeu à correção do valor declaração pela Requerente (correspondente ao preço contratual) e acresceu a diferença correspondente à diferença entre o VPT do imóvel e o valor declarado na venda.

42. A AT separa as duas escrituras celebradas pela Requerente e respetivas liquidações do IMT:

  1. Quanto à escritura celebrada em 2015-03-18, de onde consta que a Requerente adquiriu o imóvel supra descrito pela quantia de € 20.727,51, a AT verificou pela declaração de IMT que dela consta como facto tributário a “31- Aquisição de Imóveis do Estado, Regiões Autónomas e Autarquias Locais; Aquisição de Imóveis por arrematação judicial ou administrativa ou ao abrigo de regimes legais de apoio financeiro à habitação” – não tendo havido referência ao VPT, uma vez que para o caso concreto tal não seria aplicável, nos termos do art.º 12º, n.º 4, 16º do CIMT (isto é, a base de incidência seria o valor do contrato);

 

  1. Já quanto à escritura realizada em 2018-03-16, o mesmo imóvel foi alienado pela Requerente ao sujeito passivo B... – Unipessoal, Lda., com o NIPC..., pelo valor de € 20.750,00, sendo que da consulta à declaração de IMT, a AT verificou que dela constava como facto tributário a “1- Aquisição do direito de propriedade plena sobre Imóveis”, estando fixado na liquidação do IMT (...) um Valor Patrimonial Tributário deu € 72.575,98.

43. Segundo a AT, a análise do artigo 64.º do Código do IRC deve ser efetuada, em separado, para as duas operações realizadas pelo Requerente, uma na qualidade de adquirente e outra na de alienante.

44. Com efeito, enquanto a liquidação de IMT sobre a operação de aquisição de 2015 do imóvel pela Requerente, teve por base o valor do contrato (não existindo um valor que fosse inferior ao outro), a matéria coletável sobre a qual incidiu a liquidação de IMT de 2018 foi o VPT do mesmo, fixado em € 71.503,43; consequentemente, a AT aplicou a correção prevista no art.º 64º, n.º 3. al. a) do CIRC.

  1. Apreciação

45. A primeira questão suscitada pela Requerente, reconduz-se em saber se as liquidações em apreço enfermam do vício de violação da lei, em concreto, do artigo 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT.

46. Este artigo deve ser considerado conjuntamente com o artigo 64.º do Código do IRC, que refere: “Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.”.

47. Face à imposição estatuída neste artigo de que os “valores normais de mercado não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos”, importa saber, para o caso em apreço, para além do valor do contrato, qual o VPT que serviu ou serviria de base de incidência para a liquidação de IMT sobre a transmissão onerosa do imóvel em questão.

48. O artigo 12.º, n.º 1, do Código do IMT ajuda-nos a determinar este VPT, referindo: “1 - O IMT incidirá sobre o valor constante do ato ou do contrato ou sobre o valor patrimonial tributário dos imóveis, consoante o que for maior.”

49. Não obstante, existem algumas exceções a esta regra geral, nomeadamente, o n.º 4, regra 16, do mesmo artigo, que refere: “O valor dos bens adquiridos ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais, bem como o dos adquiridos mediante arrematação judicial ou administrativa, é o preço constante do acto ou do contrato”.

50. Não restam dúvidas que esta regra especial se aplica à aquisição do imóvel em 2015, que foi efetuada pela Requerente ao Município de ... através de arrematação administrativa, tendo, aliás, a liquidação do IMT daquela aquisição recaído sobre o valor do contrato e não sobre o VPT; em consequência, nenhuma correção foi efetuada pela AT ao valor da aquisição.

51. Em complemento, dir-se-á que o artigo 64.º, n.º 2, do Código do IRC, apenas tem aplicação nos casos em que o VPT é superior ao valor do contrato, o que não era o caso da aquisição de 2015, pois por força do artigo 12.º, n.º 4, regra n.º 16, do Código do IMT, aqueles dois valores eram iguais.

52. Conforme mencionou o CAAD na decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 43/2019-T, de 05-09-2019, “A desnecessidade de correção ao valor de transmissão dos imóveis resulta da certeza e maior segurança de correspondência e conformidade dos valores declarados com os valores reais das transações, face à intervenção das autoridades judiciais e administrativas.”.

53. Ora, esta desnecessidade de se colocar à prova os “valores normais de mercado” nas transmissões onerosas de imóveis, não se verifica na alienação do imóvel de 2018 efetuada pela Requerente a uma empresa que atua em condições normais do mercado.

54. Assim, não assiste razão à Requerente quanto à pretensão de aplicar-se o artigo 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT, na determinação do VPT de uma operação que não se realizou nas circunstâncias especiais previstas pela norma, i.e. que não se subsume a uma arrematação administrativa como a ocorrida em 2015, nem muito menos se traduz numa aquisição efetuada ao Estado, às Regiões Autónomas ou às autarquias locais.

55. Em conclusão, relativamente à alienação de 2018, o VPT de referência, para efeitos do artigo 64.º, n.º 1, do Código do IRC, deve ser calculado nos termos da regra geral (artigo 12, n.º 1, do Código do IMT), não assistindo razão à Requerente na sua pretensão.

56. Aliás, referiu a AT que, quanto à declaração de IMT relativa à alienação de 2018, dela constava como facto tributário a “1- Aquisição do direito de propriedade plena sobre Imóveis”, estando fixado na liquidação do IMT (...) um Valor Patrimonial Tributário de € 72.575,98.

57. Sendo o VPT (€ 72.575,98), superior ao contrato (€ 20.750,00), dita a presunção prevista no artigo 64.º, n.º 2, do Código do IRC (conjugada com o artigo 12, n.º 1, do Código do IMT), que será de considerar o VPT do imóvel para efeitos do IMT da transação.

58. Certo é que esta presunção não é inilidível, existindo um regime próprio, ao dispor dos sujeitos passivos, ao abrigo do qual, os mesmos poderão provar que efetivamente o valor declarado coincide com o preço praticado no contrato, ainda que inferior ao VPT.

59. Este mecanismo de prova está previsto no artigo 139.º do Código do IRC e não se mostrou provado que a Requerente tenha recorrido ao mesmo, para demonstrar à AT as razões que levaram à prática de um preço inferior ao VPT, que o legislador aponta como critério orientador do que devem “valores normais de mercado”.

60. Vejamos um caso semelhante julgado pelo CAAD, em 2018-12-24, no âmbito do processo n.º 169/2018-T, em que o imóvel foi adquirido pela Requerente por arrematação judicial e a venda foi efetuada a uma empresa, mas a Requerente queria beneficiar (também quanto à venda) da regra n.º 16, do n.º 4 do artigo 12.º do Código do IMT; o CAAD conclui pela improcedência do pedido, referindo o seguinte:

“(…) sempre se dirá que o elemento literal do artigo 64.º, n.º 2 e n.º 3 aponta para a sua inaplicabilidade a situações de arrematação judicial uma vez que a transmissão ocorre por ato de arrematação e não por “contrato”.

Pelo que, entende este tribunal que o valor de aquisição a considerar, para efeitos de cálculo do resultado fiscal da venda em causa, deverá corresponder ao valor da arrematação.

No que respeita ao valor de venda, a existência do mecanismo próprio previsto no artigo 139.º, n.º 3 do Código do IRC — que permite ilidir a presunção de venda pelo valor patrimonial tributário —, visa acautelar precisamente o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), o princípio da capacidade contributiva ou o princípio da tributação segundo o rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP). A Requerente não lançou mão de tal mecanismo no prazo legal, nem tão pouco procurou suscitar a revisão do ato de liquidação, permitindo a sua consolidação na ordem jurídica.

Desta forma, julga-se improcedente o pedido de anulação do ato de liquidação de IRC e Juros Compensatórios bem como o consequente pedido de pagamento de juros indemnizatórios.”.

61. Note-se que jurisprudência portuguesa tem ido mais longe, considerando que o mecanismo do artigo 139.º do Código do IRC é, aliás, condição necessária ao recurso da via contenciosa de impugnação do ato tributário, como concluiu o Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão de 09-03-2016, proferido no âmbito do processo n.º 0820/15:

“I - Para determinação do lucro tributável do vendedor e do comprador deve ser tido em conta o valor resultante da fixação do VPT de um prédio quando seja inferior ao estipulado no contrato de compra e venda, constituindo uma presunção de rendimentos o valor constante do contrato que lhe seja inferior, art.º 64, do CIRC

II - Por não serem admitidas nas normas de incidência tributária presunções inilidíveis - art. 73.º da LGT - o legislador estabeleceu no CIRC um procedimento no seu art. 139.º para prova de que o preço efectivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário permitindo que aí se faça a ilisão de tal presunção.

III - Tal procedimento é accionado pelo sujeito passivo e, como indica o n.º 5 do art. 139.º do CIRC rege-se pelo disposto nos artigos n.º 4 do artigo 86.º 91.º e 92.º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações.

IV- Este procedimento constitui condição necessária à abertura da via contenciosa, n.º 7 do art. 130.º do CIRC.”.

62. Também o CAAD concluiu, na decisão arbitral de 09-11-2021, proferida no âmbito do processo n.º 650/2020-T, pelo seguinte:

“18. Sucede que, nos presentes autos, a Requerente pretende demonstrar e comprovar que o preço efetivamente pago na transmissão dos imóveis é o constante da escritura de compra e venda e não o resultante das correções levadas a cabo pela AT, para daí retirar as devidas consequências quanto ao ato de liquidação de IRC.

19.  É facto que este valor está na génese da liquidação do IRC do exercício de 2016, mas é facto, igualmente, e verdadeiro, que este valor poderia ser o que a Requerente pretende agora fazer prova se tivesse diligenciado e acionado o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC.

20. Procedimento este que foi previsto pelo legislador precisamente com esse propósito: prova do preço efetivo, nestas circunstâncias em que a alienação de bens imóveis é feita por um valor inferior ao VPT fixado.”

63. Ora, refere ainda a Requerente que, “por uma questão de igualdade e por respeito ao princípio da proporcionalidade, a AT, deveria ter tido em consideração, que o VPT à data da compra, era de 69.930.00€, pelo que, para efeitos de cálculo da mais valia sujeita a IRC, deveria ter levado em linha de conta que, o valor da realização bem como o custo da aquisição, deveria seguir em ambas as situações, o respectivo VPT à data.” (cfr. Ponto 35 do PPA).

64. Mais refere que “as empresas têm direito a ser tributadas pelo lucro real nos termos do artigo 104.º, 2 da CRP”, o que não se verificou neste caso porque foi tributada por um ganho que não teve (cfr. Ponto 49 do PPA).

65. Conforme já mencionado na presente decisão, na aquisição de 2015 a questão dos “valores normais do mercado” não se colocava, devido às condições especiais que a operação se realizou, que levaram a que, pelo artigo 12, n.º 4, regra 16 do Código do IMT, a base de incidência do IMT fosse o valor do contrato e, consequentemente, não estivessem preenchidas as premissas da presunção (e correções) do artigo 64.º do Código do IRC.

66. Consequentemente, também aqui não assiste razão à Requerente, uma vez que, para acautelar os princípios da igualdade, proporcionalidade, e tributação pelo lucro real, o legislador colocou à disposição do sujeito passivo, o mecanismo do artigo 139.º do Código do IRC; com efeito, nem a interpretação conjugada dos artigos 64.º do Código do IRC e 12.º, n.º 4, regra 16, do Código do IMT é inconstitucional, nem se verifica que atuação da AT tenha sido desproporcional.

67. Conforme refere o CAAD, na decisão que proferiu no processo n.º 653/2018-T, “a existência do mecanismo próprio previsto no artigo 139.º, n.º 3 do Código do IRC — que permite ilidir a presunção de venda pelo valor patrimonial tributário —, visa acautelar precisamente o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP), o princípio da capacidade contributiva ou o princípio da tributação segundo o rendimento real (artigo 104.º, n.º 2 da CRP). A Requerente não lançou mão de tal mecanismo no prazo legal, nem tão pouco procurou suscitar a revisão do ato de liquidação, permitindo a sua consolidação na ordem jurídica.”

68. Finalmente, também não assiste razão à Requerente, quando alega o vício da falta de fundamentação por parte da AT, pois resulta claro da exposição da Requerida (nomeadamente, no Relatório da Inspeção Fiscal), as razões que sustentaram as correções.

69. A este respeito, vide as conclusões proferidas pelo CAAD no âmbito do processo 866/2019-T, que o presente Tribunal Singular concorda serem aplicáveis ao caso em apreço, para indeferir o pedido de anulação das correções, com fundamento na violação do dever da fundamentação que recai sobre a AT:

“I. Não ocorre violação do dever de fundamentação se, em função do contexto do qual emerge o acto de liquidação, é possível ao sujeito passivo alcançar o itinerário cognoscitivo levado a cabo pela AT na tomada de decisão, não sendo censurável a remissão implícita daquele acto para o Relatório de Inspecção Tributária do qual consta um quadro factual pormenorizado e exaustivo, bem como um enquadramento aprofundado das normas jurídicas aplicáveis(…)”.

Decisão

70. Nestes termos, decide este Tribunal Arbitral Singular:

  1. Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à declaração de ilegalidade a liquidação de IRC n.º 2021... e demonstração de liquidação e juros n.º 2021..., com valor total a pagar de € 12.054,00 (doze mil e cinquenta e quatro euros), e, bem assim, do ato de indeferimento tácito da Reclamação Graciosa n.º ...2021..., apresentado sobre as referidas liquidações;

 

  1. Condenar a Requerente no pagamento das custas devidas.

Valor do processo

71. De harmonia com o disposto no n.º 2 do artigo 306.º do Código do Processo Civil, da alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em € 12.054,00 (doze mil e cinquenta e quatro euros).

Custas

72. Nos termos do n.º 4 do artigo 22.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 918.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente.

Notifique-se.

 

Lisboa, CAAD, 04 de novembro de 2022

 

O Árbitro

 

 

 

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(Sérgio Santos Pereira)