Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 109/2020-T
Data da decisão: 2021-09-26  IRC  
Valor do pedido: € 73.396,84
Tema: IRC – Encargos não documentados; Tributação autónoma.
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SUMÁRIO:

O reconhecimento de uma despesa como não documentada não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 19 de Fevereiro de 2020, A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua..., n.º..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2019..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2019...e da demonstração de acerto de contas n.º 2019..., referente ao ano de 2018, no valor de €73.396,84.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             as divergências relativas aos saldos da conta 11 – Caixa já se verificavam em exercícios anteriores, pelo que a terem ocorrido despesas não documentadas estas já se teriam verificado dos exercícios passados;

ii.            a simples existência de divergências no saldo da conta caixa não permite, por si só e sem mais, concluir que tais disponibilidades existiam na sociedade e que tenham sido usadas para despesas não documentadas;

iii.           o facto gerador da tributação autónoma é a própria realização da despesa, pelo que compete à AT demonstrar a efectiva ocorrência das despesas não documentadas;

 

3.            No dia 20-02-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 25-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerida, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

 

12.          O processo não enferma de nulidades. Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            A Requerente é uma sociedade por quotas que tem por objecto a actividade de comércio a retalho através da exploração de um “mini-mercado”.

2-            Em 31-12-2018, a conta 11 – Caixa, apresentava um saldo devedor de €163.852,85.

3-            Como resulta dos extractos de conta corrente, o saldo devedor da Conta 11 – Caixa era, nos anos de 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017, o seguinte:

             2013 - €110.868,85;

             2014 - €113.365,37;

             2015 – €120.699,11;

             2016 - €134.184,16;

             2017 - €146.619,24.

4-            A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, em sede de IRC, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2019..., que incidiu sobre o ano de 2018.

5-            Em 17-12-2018, a inspecção tributária procedeu à contagem física do numerário existente em caixa no estabelecimento da Requerente, tendo constatado que a quantia existente em caixa era de €3.702,00.

6-            A inspecção tributária apurou uma diferença de caixa no valor de €145.597,01, entre o saldo contabilístico da conta “Caixa” e a respectiva contagem da mesma à data de 17-12-2018.

7-            Nessa mesma data, foi referido pela sócia-gerente da Requerente Sr.ª B..., após lhe ser questionado sobre a existência de outros valores em caixa localizados fora das instalações visitadas, que “não existem outros locais”.

8-            Nesse contexto, questionada a mesma sócia-gerente sobre se nesse dia tinha sido retirado algum valor para pagamentos a fornecedores ou a outros credores, a mesma declarou que não.

9-            Na data da contagem física de caixa, a sócia-gerente Sr.ª B... foi questionada se, durante o exercício de 2018, se tinha verificado alguma deliberação de distribuição de lucros ou de pagamento dos mesmos a título de adiantamento, tendo a mesma declarado que não.

10-         Em 18-09-2018, a Requerente enviou, via e-mail, cópia das duas últimas actas elaboradas, designadamente, acta n.º 31, datada de 30-03-2017, a qual teve como ponto único a apreciação das contas do exercício de 2016, e a acta n.º 32, datada de 30-03-2018, a qual teve como ponto único a apreciação das contas do exercício de 2017.

11-         A Requerente foi notificada do Relatório de Inspecção Tributária onde consta, além do mais, o seguinte:

 

12-         Na sequência das correcções efectuadas em sede de inspecção tributária, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2019..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2019..., da demonstração de acerto de contas n.º 2019... das quais resultou imposto a pagar no montante de €73.396,84.

13-         Em 28-11-2019, a Requerente procedeu ao pagamento das referidas liquidações.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

A Requerente começa o seu petitório requerendo que se considerem as liquidações controvertidas ilegais, com fundamento na inexistência de facto tributário sujeito a tributação autónoma em sede de IRC, no ano de 2018.

Como pedido subsidiário, argui a Requerente a fundada dúvida sobre em que exercício ocorreram as alegadas despesas não documentadas que terão consumido as disponibilidades de caixa, requerendo a aplicação do art.º 100.º do CPPT, com a consequente anulação dos actos tributários aqui sindicados.

Vejamos.

Em causa nos presentes autos está a aplicação do art.º 88.º/1 do CIRC (redacção em vigor no ano de 2018), que dispõe que:

“As despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.”.

Conforme resulta expressamente do RIT, as correcções operadas pela AT, e ora sindicadas, tiveram a sua origem no desfasamento entre o valor contabilizado pela Requerente na Conta 11 – Caixa, e a verificação física operada pela AT, a 17-12-2018, que constatou a existência em Caixa do valor de €3.702,00.

Concluiu, assim, a AT pela “existência de uma diferença de caixa, na quantia total de €145.597,01 (€3.702,00 - €149.299,01) o que significa que o valor da contagem, efetuada em 2018-12-17, é menor do que o valor contabilizado, nessa data, na quantia de €145.597,01. A falta, ou inexistência de dinheiro, que se encontrava contabilizado na conta “11-caixa”, implica que o mesmo foi retirado da sociedade. Relativamente a essa divergência apurada na conta “11-Caixa”, e dada a ausência de justificação para a sua existência, a mesma terá enquadramento fiscal em despesas não documentadas, uma vez que se desconhece o destino dessa quantia”.

A primeira questão que se coloca, é a de saber se estas circunstâncias comprovam a ocorrência de despesas não documentadas, ou não.

Conforme tem sido jurisprudência recorrente em situações com semelhança à que ora nos ocupa, dever-se-á ter por suficientemente indiciada a ocorrência de despesas, que não estão documentalmente comprovadas, no que diz respeito ao “respectivos beneficiários, (...) natureza, origem e finalidade de tais encargos.” .

A Requerente alega que a existência de elevados saldos da conta Caixa não correspondem a efectivas disponibilidades financeiras, tratando-se, antes, de erros ou irregularidades contabilísticas, decorrentes da “errada emissão de recibos sem que tenha ocorrido o respetivo pagamento ou, noutros casos, à falta ou retardamento na contabilização de documentos relativos a gastos da sociedade e/ou pagamentos de facturas a fornecedores que não foram contabilisticamente registados ou a pagamentos que aguardam a remessa do respectivo documento de quitação do credor”.

Deste modo, e face ao exposto, não se tem dúvidas que a contabilidade da Requerente, não obstante a sua incorrecção e falta de fidedignidade, evidencia, com consistência suficiente, ao ser conjugada com a constatação da inexistência de um valor avultado, contabilizado como tal, no caixa, a ocorrência de despesas não documentadas.

Não obstante, enquanto tributação em sede de IRC, a aplicação da tributação autónoma em questão está sujeita às normas próprias daquele tributo, que não sejam incompatíveis com a sua natureza, designadamente e no que ao caso importa, no que diz respeito às regras relativas à especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, conforme decorre, para além do mais, dos artigos 8.º e 18.º do CIRC, com as necessárias adaptações, derivadas da circunstância de, na tributação autónoma em questão, conforme jurisprudência reiterada quer do Supremo Tribunal Administrativo, quer do Tribunal Constitucional, se estar perante um tipo de tributação que tem subjacente um facto tributário instantâneo e de natureza financeira.

Neste contexto, tem sido entendido que:

- “13. No regime de tributação autónoma o imposto incide sobre cada despesa efectuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a mesma tributação autónoma apurada de forma independente do I.R.C. que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.

14. Na tributação autónoma em I.R.C., o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso). Na tributação autónoma, o facto tributário que dá origem ao imposto, é instantâneo: esgota-se no acto de realização de determinada despesa que está sujeita a tributação (embora, o apuramento do montante de imposto, resultante da aplicação das diversas taxas de tributação aos diversos atos de realização de despesa considerados, se venha a efectuar no fim de um determinado período tributário).” ;

No que respeita à prova da realização de determinada despesa, se nas despesas não devidamente documentadas - aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação – o juízo de não suficiência de suporte documental da despesa é meramente negativo, reportando-se a uma constatação do incumprimento de um ónus contabilístico, não carecendo que se demonstre que a despesa em questão ocorreu na realidade, já que a finalidade prosseguida, a sua desconsideração como encargo, não se vê afectada por tal circunstância, já o reconhecimento de uma despesa não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma ao abrigo do disposto no artigo 88.º, n.º 1 do CIRC, “não poderá prescindir da demonstração efectiva da ocorrência da mesma”.

Neste sentido, tem a jurisprudência entendido que:

“1) «Despesas não documentadas» são aquelas que não têm por base qualquer documento de suporte que as justifique.

2) «Despesas indevidamente documentadas» são aquelas que têm suporte documental, mas o mesmo, só por si, não permite identificar, em termos quantitativos e qualitativos quais os bens ou serviços que determinaram certo pagamento a determinada entidade.

3) As despesas não documentadas ou despesas confidenciais são sujeitas a tributação autónoma, nos termos do artigo 88.º/1, do CIRC. Por seu turno, as despesas não devidamente documentadas apenas são consideradas custos não dedutíveis – artigo 23.º-A/1/c), do CIRC.

4) O objectivo da tributação autónoma das despesas confidenciais parece ser o de tentar evitar (atenuando ou anulando a “vantagem” delas resultante em IRC) que, através dessas despesas, o sujeito passivo utilize para fins não-empresariais bens que geraram custos fiscalmente dedutíveis; ou que sejam pagas remunerações a terceiros com evasão aos impostos que seriam devidos por estes. A realização de tais despesas implica um encargo fiscal adicional para quem nelas incorre porque a lei supõe que, assim, outra pessoa deixa de pagar imposto.

5) A distinção entre despesas indevidamente documentadas e despesas não documentadas tem outras consequências, nomeadamente, no que respeita ao ónus da prova da efectividade da despesa.

6) No que respeita às despesas não devidamente documentadas, o juízo de não suficiência de suporte documental da despesa é meramente negativo, reportando-se a uma constatação do incumprimento de um ónus contabilístico do sujeito passivo.

7) Já o reconhecimento de uma despesa como não documentada, em ordem a sujeitá-la a tributação autónoma enquanto tal, não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma.

8) Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma de molde a com ela se possa conformar ou vir a impugná-la, graciosa ou judicialmente, se a entender eivada de algum vício que a afecte na sua legalidade”.

Deste modo, para que uma concreta tributação autónoma do género daquela que ora nos ocupa seja legalmente aplicável, para além da demonstração – feita, no caso, como se viu – da ocorrência de despesas não documentadas, torna-se necessário demonstrar a respectiva quantificação, bem como que as mesmas ocorreram no exercício a que se reporta a correspondente liquidação, ou seja,  no caso, no exercício de 2018.

Neste sentido, entendeu-se já no acórdão arbitral proferido no processo 287/2017-T  do CAAD, que “só as despesas efectuadas n[um] período de tributação podem ser tributadas com referência a esse exercício.”.

Assim, e em suma, a legal aplicação do artigo 88.º/1 do CIRC pressupõe a demonstração de:

i. ocorrência de despesas não documentadas;

ii. num determinado exercício; e

iii. num determinado montante.

No que diz respeito à ocorrência de despesas não documentadas, como se viu já, verifica-se que a AT reuniu indícios consistentes da respectiva ocorrência.

Não obstante, a consistência desses indícios não abrange o concreto montante de despesa ou despesas ocorridas no ano de 2018.

Nesta matéria, alega a Requerente que “a terem ocorrido despesas não documentadas (o que não se concede) estas já se teriam verificado em grande medida nos exercícios passados, sendo que o histórico dos saldos em cada um dos exercícios anteriores indicia claramente que, tais despesas não documentadas (a terem ocorrido) corresponderiam, em cada um dos exercícios, apenas ao acréscimo de saldo da conta Caixa que se verifica em cada um dos anos”,  sendo que, face aos factos apurados não é possível a este Tribunal concluir que assim não seja.

Ora, como a Requerente salienta, competiria à AT, nos termos do artigo 74.º da LGT, a demonstração da realização efectiva da despesa, para além da existência do saldo contabilístico.

No caso, pretendendo a AT aplicar a tributação invocando o disposto no artigo 88.º/1 do CIRC, é àquela Autoridade que assiste o ónus de demonstrar os respectivos factos constitutivos incluindo, no que para o caso interessa, a ocorrência de despesas não documentadas no exercício de 2018, e o respectivo montante.

A este propósito, cumpre notar que os movimentos contabilísticos, nos quais a AT fundamenta a sua actuação, e que se revelam não estar devidamente sustentados em documentação de suporte, não incorporam em si qualquer registo de uma concreta despesa (ou despesas), ou seja, a transferência de disponibilidades patrimoniais da Requerente para terceiros, pelo que não se está perante um caso em que há um registo contabilístico directo de uma despesa indocumentada, mas perante registos que não têm suporte material e documental e que, por isso, indiciam a ocorrência prévia de despesas indocumentadas e não contabilizadas.

Não obstante, não é possível, julga-se, extrair de tais movimentos contabilísticos o momento em que as despesas indiciadas ocorreram, sendo que, à míngua destes elementos, não é possível concluir, para lá de qualquer dúvida razoável, que, naquele exercício de 2018, hajam ocorrido despesas correspondentes ao valor assumido pela AT como base para a liquidação de tributações autónomas, ora em crise.

Assim, e desde logo, como se apontou já e é consensual, não se poderá deixar de ter presente que as tributações autónomas têm subjacente factos tributários de natureza instantânea.

Daí não decorre, necessariamente, que para aplicar aquele tipo de tributação a AT tenha, forçosamente, de demonstrar a sua ocorrência num determinado dia – o que de resto poderá ser extremamente difícil, atenta a necessária ausência de documentação – mas não se poderá prescindir da demonstração, para lá de qualquer dúvida razoável, da sua ocorrência, no montante considerado, dentro de um período temporal definido, que se situe dentro do exercício económico a que se reporta a liquidação operada.

Ora, no caso, isso não acontece.

Com efeito, a AT situa a ocorrência das despesas que sujeitou a tributação autónoma, no valor que considerou, na data em que a inspecção tributária efectuou a contagem física de caixa, ou seja, em 17-12-2018 e, por isso, conclui pela sua tributação no exercício de 2018.

No entanto, tal entendimento, funda-se, essencialmente, na credibilidade da contabilidade da Requerente, no que diz respeito às inscrições na Conta 11 – Caixa, naquela data.

Sucede que essa credibilidade está, no presente caso, infirmada, desde logo pelo próprio RIT. Efectivamente, o que se verifica é que o conteúdo da Conta 11 – Caixa, não tinha a mínima correspondência com a realidade, não é credível nem fidedigno.

Por outro lado, a evolução dos saldos da Conta 11 – Caixa da Requerente, de que dá conta o facto provado sob o ponto 3 da matéria de facto, reforça igualmente a falta de credibilidade de tais inscrições, dada a anormalidade da evolução dos saldos inscritos.

Deste modo, não é possível, julga-se, para lá de qualquer dúvida razoável, ter como assente que as despesas não documentadas incorridas pela Requerente, e consideradas pela AT, tenham ocorrido em 17-12-2018, data em que a inspecção efectuou a contagem física de caixa, ou, sequer, genericamente no exercício de 2018, uma vez que, como se escreveu no já citado Acórdão arbitral proferido no processo 287/2017-T, “essa conclusão só poderia basear-se numa presunção de correspondência da contabilidade à realidade que, neste caso, foi ilidida”.             

Não se acolhe, assim, o alegado pela Requerida, segundo a qual “O ónus de prova de que o dinheiro já lá não constava anteriormente, ou de qual teria sido o seu fim incidiam sobre a Requerente, o que não preencheu.”.

Tal alegação só seria de acolher se a AT tivesse reunido indícios suficientes de que em 17-12-2018 o montante considerado pela AT estava na disponibilidade da Requerente. Ora, esses indícios consistem, unicamente, em elementos da contabilidade da Requerente, que não apresentam qualquer credibilidade.

De igual modo, cumpre notar que não está ora em causa a dedutibilidade dos gastos, caso em que o ónus da prova recairia sobre o sujeito passivo, mas a tributação autónoma de despesas por iniciativa da AT. Daí que, em caso algum, julga-se, se pudesse acolher o entendimento de que, a menos que provasse o contrário, o contribuinte haveria de se sujeitar a tal tributação sancionatória.

Não tem qualquer sustentação, igualmente, o alegado pela Requerida, segundo a qual se estaria “perante um facto tributário instantâneo, o qual não pode lógica e legalmente, reportar-se a outra data que não a da comprovação da sua realização, que foi na data da contagem do saldo de caixa”, não só porquanto, como se viu, o que resulta do RIT é a consideração da ocorrência das despesas em 17-12-2018, como ainda porquanto seria pouco credível, à falta de mais elementos, e note-se, não estamos no campo da tributação presuntiva, que uma despesa avultada como a do montante considerado sujeito a tributação autónoma, tivesse sido feita, por coincidência, no dia em que a Requerente foi sujeita a uma contagem física do caixa, quando já estava sujeita a um procedimento inspectivo...

Não será consistente, também, o argumento da Requerida de que “Seria subversivo e passível de perverter a estabilidade processual e as regras basilares do ónus probatório dar vazão aos intentos da ora Requerente, isto é, permitir-lhe beneficiar da falta de comprovação de que os movimentos foram efectuados antes de 2018, e exigindo-se à AT o ónus de prova que nem a própria Requerente consegue cumprir”.

Efectivamente, o que está em causa é, face à constatação de uma determinada realidade de facto, a AT ter optado por uma forma de tributação que lhe impõe determinados ónus probatórios, que não pode transferir para o sujeito passivo. Estando previstos legalmente outros meios para reagir legalmente à situação constatada, designadamente, e no limite, a tributação por métodos indirectos.

Por fim e no que diz respeito à jurisprudência arbitral invocada pela Requerida, não se julga a mesma transferível para o presente caso.

Assim, o Acórdão arbitral proferido no processo arbitral 3/2017-T do CAAD não diz respeito a tributações autónomas, mas a distribuição ou adiantamentos por conta de lucros.

No que diz respeito ao Acórdão proferido no processo arbitral 256/2018-T do CAAD, a “discordância da Requerente prende-se com a causa da saída e com o seu caráter não documentado”, quando o que está em causa no presente caso é o momento da ocorrência da saída ou saídas de disponibilidades monetárias.

Já no processo arbitral 256/2018-T do CAAD, exarou-se, como aqui, que “Defende ainda a Requerente que o reconhecimento de uma despesa como não documentada não poderá prescindir da demonstração da efectiva ocorrência da mesma (como se entendeu no acórdão arbitral de 28-05-2014, proferido no processo n.º 20/2014-T). Afigura-se que o que defende a Requerente, na linha da jurisprudência citada e que aqui se adopta, é correcto e não é sequer contrariado pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua Resposta, pelo que se tem como processualmente assente.” .

No mais, no caso em referência, ao contrário do presente, estavam em causa despesas contabilizadas mas não documentadas, o que não ocorre no presente caso, onde as despesas sujeitas a tributação autónoma pela AT não constam da contabilidade da Requerente, não estando ali, também, em causa, a definição do momento da ocorrência da despesa, mas unicamente a sua quantificação.

Deste modo, dispõe o art.º 100.º/1 do CPPT que “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.”

Assim, e face às regras do ónus da prova, bem como ao disposto no referido artigo 100.º/1 do CPPT, atenta a fundada dúvida na quantificação do facto tributária operada pela AT, haverá que concluir pela verificação do arguido erro nos pressupostos de facto, e consequente erro de direito, com a consequente anulação das liquidações de tributação autónoma e juros compensatórios sub iudice.

 

*

Quanto ao pedido acessório de “condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios”, formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

No caso, o erro que afecta a liquidação adicional anulada é de considerar imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que a praticou sem o necessário suporte factual e legal.

Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou indevidamente (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força do acto anulado e, ainda, a ser indemnizada do pagamento indevido através de juros indemnizatórios, desde a data do correspondente pagamento, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril

 

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)            Anular o acto de liquidação adicional de IRS n.º 2019..., a demonstração de liquidação de juros n.º 2019... e a demonstração de acerto de contas n.º 2019...;

b)           Condenar a AT no reembolso do imposto indevidamente pago, ora anulado, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos acima indicados;

c)            Condenar a Requerida nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €73.396,84, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

26 de Setembro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Adelaide Moura)

 

O Árbitro Vogal

(Mariana Vargas)