Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 111/2013-T
Data da decisão: 2014-02-20  IVA  
Valor do pedido: € 184.704,82
Tema: Prova da presunção legal de transmissão de bens; Competência para apreciação da legalidade de acto de liquidação de coima
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Decisão Arbitral

 

 

 

Os árbitros, Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. Lino França e Prof. Dra. Clotilde Celorico Palma (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 15 de Julho de 2013, acordam no seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

              

  1. Em 10.05.2013, a sociedade A…, Pessoa Colectiva nº …, com sede na Rua …, freguesia de …, concelho da … (doravante designada por “Requerente”), requereu a constituição e decisão do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 10º nº 2 do DL nº 10/2011, de 20/1.

 

1.2.         O pedido de decisão arbitral tem por objeto a declaração de ilegalidade e anulação dos seguintes atos de liquidação, com a consequente devolução das correspondentes quantias pagas:

 

  1. liquidação adicional de IVA nº…, no valor de Euro 134.705,20, relativa a Junho de 2008;
  2. liquidação de juros compensatórios (JC) nº …, também relativa a Junho de 2008, no valor de Euro 23.058,58; e

 

  1. coima nº … (“referência para pagamento”), no valor de Euro 26.941,04.

 

1.3.         Para fundamentar esse pedido, alega a Requerente, em suma, que existe evidência documental do abate de existências, em Junho de 2008, no valor global de Euro 641.453,13, pelo que se mostra ilidida a presunção legal (artigo 86º do CIVA) de que tais existências teriam sido transmitidas a terceiros, com a consequente ilegalidade da referida liquidação de IVA.

 

1.4.         A Requerida apresentou Resposta em 30.09.2013, alegando, em suma, que os documentos apresentados pela Requerente não são suficientes para evidenciar a ocorrência do aludido abate de existências; que os Serviços de Inspeção Tributária (SIT) não puderam validar, em face desses documentos, a valorização do abate, contabilizado no sobredito montante de Euro 641.453,13; que a Requerente não apresentou “nenhuma fatura de compra referente a bens retomados que constavam no Inventário de 31/12/2007”; que esses documentos não permitiram identificar o que foi destruído, tão pouco se os elementos destruídos tinham correspondência com as listagens elaboradas pela Requerente, apesar de a Requerida reconhecer que em 27.06.2008 foram destruídos resíduos sólidos; que, comparando o peso dos elementos transportados em Junho de 2008 com o peso dos elementos abatidos em 2009 e 2010, aos bens constantes das listagens de abates de 2008 deveria corresponder um peso substancialmente superior àquele que consta dos documentos de transporte de 2008, 6.480Kg; e que, nos termos do artigo 86º do CIVA, presumem-se transmitidos os bens não encontrados em qualquer dos locais em que o contribuinte exerce a sua actividade.

 

1.5.         Em 03.10.2013, a Requerida juntou o processo administrativo.

 

1.6.         Em 28.11.2013, teve lugar, na sede do CAAD, a primeira reunião do Tribunal Arbitral, nos termos do artigo 18º do RJAT, no âmbito da qual foi definida data para a inquirição das testemunhas indicadas pelas partes, 12.12.2013.

 

1.7.         Em 12.12.2013, na sede do CAAD, foi realizada a diligência de inquirição das testemunhas arroladas pelas partes, com exceção da testemunha …, indicada pela Requerente e de cuja inquirição a mesma prescindiu.

 

1.8.         Nessa diligência foi a Requerente notificada para juntar listagem integral das existências abatidas; Requerente e Requerida foram notificadas para apresentar alegações escritas; foi decidido, fundamentadamente, prorrogar por 2 meses o prazo para a prolação da decisão arbitral, nos termos do artigo 21º nº 2 do RJAT.

 

1.9.         Em 17.12.2013, na sequência da notificação efetuada na diligência de inquirição de testemunhas, a Requerente apresentou requerimento e reprodução integral das listagens de equipamentos e peças abatidas em 2008.

 

1.10.       Em 28.01.2014, a Requerida apresentou as suas alegações escritas, nas quais, para além da argumentação anteriormente aduzida, arguiu a excepção da incompetência do Tribunal Arbitral para se pronunciar sobre o pedido de anulação de coima, por não fazer parte do elenco de competências consignado no artigo 2º do RJAT.

 

1.11.       Em 31.01.2014, a Requerente apresentou as suas alegações escritas, nas quais elencou os factos que, no seu entender, resultaram da globalidade da prova documental e testemunhal produzida, e cujo ónus da prova lhe competia, articulando essa factualidade com a argumentação de Direito que anteriormente havia aduzido; enfatizou que a impossibilidade de certificação da valorização das existências expressa na certificação legal de contas relativa a 2007 não significa que essa valorização estivesse errada; e que a alegada impossibilidade de confirmação da valorização das existências abatidas não impediu a AT de fazer a liquidação adicional de IVA precisamente tendo por base essa valorização, vincando qualquer desinteresse económico da Requerente em ocultar vendas.

 

  1. QUESTÕES A SOLUCIONAR

 

Em face do referido, são essencialmente as seguintes as questões a solucionar: (i) determinar se o Tribunal Arbitral é materialmente competente para apreciar a legalidade de um acto de liquidação de coima; (ii) saber se a Requerente produziu prova de factualidade bastante para ilidir, como lhe competia, a presunção legal de transmissão de bens consignada no artigo 86º do CIVA.

 

  1. FACTOS PROVADOS

 

Com relevo para a decisão de mérito, dá-se por provada a seguinte factualidade alegada pelas partes:

 

a)            Na sequência de uma acção inspetiva realizada em 2012 aos exercícios de 2008, 2009 e 2010, foram efetuadas correções à Requerente que deram origem às liquidações impugnadas que abaixo se identificam, as quais estão fundamentadas no respetivo Relatório de Inspeção Tributária, cujo teor se dá por reproduzido (cfr. anexos 1, 2, 3 e 4 juntos ao requerimento inicial/RI e PA, 1ª parte, fls. 38 e ss.):

i)              liquidação adicional de IVA nº ..., no valor de Euro 134.705,20, relativa a Junho de 2008;

ii)             liquidação de juros compensatórios (JC) nº ..., também relativa a Junho de 2008, no valor de Euro 23.058,58; e

iii)            Coima nº ... (“referência para pagamento”), no valor de Euro 26.941,04.

 

b)            A Requerente tem por objeto a distribuição, comercialização e aluguer de equipamento fotográfico, óptico, de vídeo e impressão, acessórios e consumíveis e serviços de manutenção daquele equipamento (cfr. anexo 4 ao RI e Relatório de Inspeção Tributária, a fls. 51 do PA, 1ª parte).

 

c)            O equipamento distribuído e comercializado pela Requerente está sujeito a grande depreciação tecnológica (depoimentos das testemunhas … e …).

 

d)            No  inventário com referência a 31.12.2007 os materiais (existências) surgem classificados nas três tipologias seguintes (cfr. anexo 1 constante da 1ª parte do PA, a fls. 2 e ss., e depoimentos das testemunhas … e …, esta última da AT):

  • Retomas (de equipamentos);
  • Equipamentos;
  • Peças.

 

e)            Os registos contabilísticos da Requerente evidenciam, com referência ao início do exercício de 2008, existências no valor de Euro 6.194.020,93, parte das quais transferidas da B… (B…, doravante) no âmbito de um processo de fusão por incorporação na Requerente (cfr. anexo 5 ao RI; fls. 53 e 54 do PA, 1ª parte, e depoimento da testemunha …).

 

f) Na sequência da fusão, a Requerente encetou um processo de análise dos equipamentos descontinuados e, face à identificação dos elementos que já não tinham valor comercial, elaborou as correspondentes Propostas de Abate, que foram validadas pelos órgãos competentes da Requerente (cfr. anexo 6 ao RI; listagens juntas aos autos em 17.12.2013 e depoimentos das testemunhas ...e ...).

 

g)            As Propostas de Abate, com centenas de páginas, listaram milhares de referências e artigos, variadas quantidades de cada artigo, discriminando designadamente o respectivo preço/custo ponderado, valor respectivo e justificação para o abate - “material/artigo obsoleto” -, sendo subscritas por vários responsáveis da Requerente, designadamente pelo seu Country Director e pelo seu Financial Controller (cfr. Anexo 6 ao RI; listagens juntas aos autos em 17.12.2013 e depoimentos das testemunhas ...e ...).

 

h)            As Propostas de Abate não contêm referência ao peso dos bens (equipamentos ou peças) e foram extraídas dos registos contabilísticos de existências da Requerente em função da valorimetria das existências que transitaram da B..., as quais (existências) estavam contabilizadas pelo respectivo custo de aquisição (cfr. Anexo 6 ao RI; listagens juntas aos autos em 17.12.2013 e depoimentos das testemunhas …, ... e …).

 

i)             Os equipamentos eléctricos e electrónicos constantes dessas listagens eram vendidos à unidade e não ao peso (depoimentos das testemunhas ...e ...).

 

j)             No dia 25 de Junho de 2008, a Requerente comunicou ao Serviço de Finanças da … que iria efetuar um abate de existências no dia 27 de Junho de 2008, dois dias depois (cfr. anexo 4 do RI; relatório de inspeção a fls. 68 do PA, 1ª parte; admitido por acordo).

 

l)             No dia 27 de Junho de 2008 foi efectuado o carregamento, nas instalações da Requerente, de equipamento elétrico e electrónico e peças constantes das listagens acima referidas (Propostas de Abate), pesando um total de 6.480 Kg. Esses bens foram transportados pelas sociedades .... e ..., para as instalações da empresa …, no …, tendo seguindo nos veículos pesados matrículas … e respectivo reboque …, bem como no veículo matrícula … (cfr. Anexos 7 a 12 ao RI; fls. 94 e 95 da 2ª parte do PA; fls. 89 e ss. da 3ª parte do PA e depoimentos das testemunhas ...e ...).

 

m)           A … foi incumbida de proceder ao tratamento e reciclagem desses equipamentos eléctricos e electrónicos transportados no dia 27.06.2008 (fls. 32 da 1ª parte do PA; fls. 94 e 95 da 2ª parte do PA; fls. 89 e 90 da 3ª parte do PA e depoimentos das testemunhas...e...).

 

n)            A Requerente contabilizou, com referência a 30.06.2008, um abate de existências no valor de Euro 641.453,13 correspondente ao carregamento de material obsoleto referido na alínea l) supra (cfr. RI, Anexo 1, a fls. 12; Relatório de Inspeção a fls. 68 do PA, 1ª parte, e depoimento da testemunha …).

 

o)            A Requerente não dispõe de auto de abate (facto confessado pela Requerente).

 

p)            Da Certificação Legal de Contas da Requerente relativa a 31.12.2007 consta a escusa de opinião relativamente à valorização das existências registadas no activo da Requerente em resultado da fusão com a antiga B... pelo valor líquido de, aproximadamente, 2,1 milhões de euros, por insuficiência da informação disponibilizada (cfr. certificação legal de contas de fls. 41 e ss. do PA, 2ª parte).

 

q)            Da Certificação Legal de Contas da Requerente relativa a 31.12.2008 consta a impossibilidade de “determinar em que extensão o custo das vendas reconhecido no exercício pode estar afectado por eventuais erros de valorização relacionados com exercícios anteriores.” (cfr. certificação legal de contas de fls. 45 e ss. do PA).

 

r)             Consta ainda da Certificação Legal de Contas da Requerente relativa a 31.12.2008 “terem sido resolvidas e corrigidas no exercício as situações relevantes sobre as demonstrações financeiras do exercício anterior” (cfr. certificação legal de contas de fls. 45 e ss. do PA).

 

s)             A Requerente não apresentou qualquer fatura de compra referente a bens retomados que constavam no Inventário de 31.12.2007 (depoimento da testemunha..., da AT).

 

t)             As liquidações impugnadas, bem como a coima igualmente impugnada, foram pagas (cfr. Anexo 1 ao RI).

 

u)            Em 10.05.2013 a Requerente apresentou o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral (cfr. requerimento eletrónico no sistema do CAAD).

 

  1. FactoS não provados

 

Não se provou que todo o material obsoleto constante das listagens mencionadas nas alíneas f), g), h) e i) tenha sido transportado até à … (alegação da Requerente).

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

A factualidade provada teve por base a análise crítica dos documentos acima discriminados, que não foram impugnados pelas partes, o conteúdo do processo administrativo junto aos autos e a prova testemunhal.

 

Neste âmbito, foram relevantes os depoimentos da testemunha …, director financeiro da Requerente em 2008; da testemunha ..., responsável pela logística da Requerente em 2008 (ex-funcionário da anterior B..., que terá sido fundida na Requerente) e que presenciou o carregamento dos equipamentos e peças em questão; da testemunha …, técnica oficial de contas da Requerente em 2008; e da testemunha ..., Inspetora Tributária, a qual participou na inspeção, ocorrida em 2012, que esteve na génese das liquidações aqui impugnadas.

 

As testemunhas ... e ... depuseram com objectividade, de forma credível e com razão de ciência bastante, designadamente sobre a tipologia, obsolescência, mensurabilidade e antiguidade de equipamentos propostos para abate em 2008, respectivo valor e conjunto de circunstâncias que estiveram na origem e que rodearam a elaboração das listagens de elementos a abater. Depuseram igualmente, em particular a testemunha ..., sobre a logística, carregamento, transporte desses equipamentos e procedimentos administrativos inerentes. Os depoimentos de ambos contribuíram, por conseguinte, conjugadamente com a prova documental, para a formação da convicção do Tribunal no que concerne à factualidade acima provada nas alíneas c), f), g), h), i), l) e m).

 

A testemunha ... depôs de igual modo de forma objectiva, isenta e credível, com razão de ciência bastante, designadamente quanto às circunstâncias da demonstração, contabilização e valorização das existências em questão e da relação da Requerente com a anterior titular dessas existências, a B.... Salientou os problemas contabilísticos herdados da B..., nomeadamente ao nível da valorimetria das existências que transitaram da B..., confirmando contudo que as existências estavam contabilizadas pelo respectivo custo aquisitivo. Contribuiu, por isso, conjugadamente com a prova documental produzida, para a convicção do Tribunal no que concerne à factualidade acima provada nas alíneas d), e) e h).

 

A testemunha ..., Inspetora Tributária que efectuou a inspeção ao ano de 2008, e que também inspecionou os anos de 2009 e 2010, depôs também de forma objectiva, isenta e credível, confirmando o conteúdo do relatório inspetivo que esteve na base das liquidações, depondo sobre as circunstâncias da inspeção e da contabilização das existências em questão, contribuindo, por conseguinte, conjugadamente com a prova documental produzida, para a formação da convicção do Tribunal no que concerne à factualidade acima elencada nas alíneas d) e s).

 

  1. DECISÃO DE DIREITO

 

6.1.        Questão prévia: não arbitrabilidade da matéria contra-ordenacional (aplicação de coima)

 

Vem a Requerida, nas suas alegações finais, suscitar a excepção relativa à não arbitrabilidade, ou seja, após o momento processual próprio (que idealmente seria o da resposta). Porém, a não arguição desta questão prévia no articulado de resposta não preclude a possibilidade da sua invocação posterior, a que acresce o facto de estarmos perante uma excepção de conhecimento oficioso, pelo que não pode este Tribunal deixar de proceder à sua apreciação.

 

Com efeito, a determinação do âmbito de competência material dos tribunais é de ordem pública e o seu conhecimento (oficioso) precede o de qualquer outra matéria, podendo a infracção das regras de competência material ser suscitada até ao trânsito em julgado da decisão final (cfr. artigos 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”) e 96.º e 98.º do Código de Processo Civil (“CPC”), subsidiariamente aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a), c) e e) do RJAT).

 

O âmbito da jurisdição arbitral tributária, gizada como meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária, está delimitado pelo disposto no mencionado artigo 2.º do RJAT, sob a epígrafe “Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável”. A referida norma enuncia, no seu n.º 1, os critérios de repartição material, competindo a estes tribunais a apreciação (apenas) das seguintes pretensões: 

 “a)         A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b)            A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais;

c)             Revogada (pelo artigo 160.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2012).”

 

Verifica-se que o regime das infracções fiscais e a matéria contra-ordenacional tributária estão omissos no elenco fechado de matérias passíveis de apreciação pelos tribunais arbitrais, tendo o legislador visivelmente privilegiado a sua vocação (destes tribunais arbitrais) para o julgamento de causas que nos tribunais administrativos e fiscais revestem a forma processual de impugnação judicial (cfr. artigo 101.º, alínea a) da LGT e artigo 97, n.º 1, alíneas a) a f) do CPPT), e nem mesmo todas essas como se extrai da exclusão da Portaria (de vinculação) n.º 112-A/2011, de 22.03, em particular do seu artigo 2.º. Salienta-se que a própria previsão inicial constante da Lei de Autorização Legislativa referente à acção para o reconhecimento de um direito não chegou a ter consagração expressa no RJAT, de pendor mais restritivo.

 

Resulta, assim, da leitura das regras atributivas de competência aos tribunais arbitrais, que o pedido de anulação de coima deduzido pela Requerente (que, além do mais, já foi paga, solicitando-se a restituição do correspondente valor de Euro 26.941,04) não se encontra incluído na lista taxativa de pretensões arbitráveis, pelo que este tribunal não pode dele conhecer.

 

À face do exposto, conclui-se pela procedência da excepção suscitada pela Requerida, não podendo este Tribunal Arbitral conhecer (ratione materiae) da questão relativa à invalidade da decisão de aplicação da coima.

 

6.2.        Do mérito

 

Contesta a Requerente a aplicação pela Requerida da presunção prevista no artigo 86º do CIVA, segundo o qual “salvo prova em contrário, presumem-se adquiridos os bens que se encontrem em qualquer dos locais em que o sujeito passivo exerce a sua actividade e presumem-se transmitidos os bens adquiridos, importados ou produzidos que se não encontrem em qualquer desses locais.”

 

O artigo 86º do CIVA estabelece claramente uma presunção legal iuris tantum (e não iure et de iure), ou seja, suscetível de prova em contrário. Aliás, o artigo 73º da LGT afirma claramente que as presunções consignadas em normas de incidência tributária (como é o caso) admitem sempre prova em contrário, em concretização dos princípios constitucionais vigentes no domínio fiscal.

 

Nos casos de presunção legal ilidível mediante prova em contrário, ocorre a inversão do ónus da prova, ficando aquele que tem a ser favor a presunção legal dispensado de provar o facto a que a presunção legal conduz (artigos 344º, nº 1 e 350º, nº 1 do Código Civil). No caso, dado que a Autoridade Tributária e Aduaneira tinha a seu favor a presunção legal de transmissão dos bens consignada no artigo 86º do CIVA, competia pois ao contribuinte provar que, apesar dos bens já não estarem na sua posse, não os havia alienado a terceiros.

 

Segundo a Requerente, foi feita prova cabal da realização do abate de existências na importância de Euro 641.453,13, apoiando-se, para tanto, no seguinte encadeamento de factos:

  1. Foi realizado o abate dos equipamentos e das peças obsoletas, contabilizados em existências, em Junho de 2008;
  2. Esta circunstância foi comunicada com antecedência à Requerida, embora com um prazo diminuto (a comunicação foi efectuada dois dias antes do carregamento);
  3. O carregamento, transporte e abate dos materiais obsoletos foi efectuado com a intervenção de entidades terceiras (empresas de transportes e de tratamento de resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos), encontrando-se documentados no processo, sendo que o abate e reciclagem daquele tipo de bens é obrigatoriamente efetuado, por imposição legal, por intermédio de entidades certificadas para o efeito (Decreto-Lei nº 178/2006, de 05.09 e Portaria nº 335/97, de 16.05); e
  4. O abate foi objecto do correspondente registo contabilístico pelo valor de Euro Euro 641.453,13.

 

Face à prova adquirida afigura-se inequívoco, e a própria Requerida não o põe agora em causa, que foi efectuado um abate significativo de material obsoleto, cujo peso ascendeu a 6.480Kg.

 

Relativamente à alegação da Requerida, de que a Requerente não efetuou a comunicação prévia com a antecedência devida (tendo-o feito com pré aviso de somente dois dias) e não dispunha de auto de abate, importa notar que nenhum destes requisitos é exigido por lei. Devem efectivamente admitir-se, para efeitos de afastamento da presunção, todos os meios de prova ao dispor do contribuinte, tendo a Requerente carreado os elementos pertinentes, incluindo documentais, à comprovação plena de um abate de existências, cujo carregamento ocorreu em 27.06.2008, com o peso de 6.480 kg, não dispondo (nem podendo dispor) de auto de abate por não ter assistido ao ato, dado este ter sido realizado por uma entidade externa contratada para o efeito, em conformidade com o regime jurídico de gestão de resíduos.

 

Neste quadro, não pode deixar de se considerar verificado o mencionado abate e, por conseguinte, afastada a presunção do artigo 86º do CIVA por prova em contrário, produzida e adquirida processualmente, concluindo-se que os bens foram de facto abatidos e não alienados a terceiros.

 

E, para afastar a presunção legal de transmissão, parece-nos que não era exigível à Requerente que demonstrasse, ao cêntimo, o transporte de todos os (milhares de) elementos constantes das listagens, mas apenas que criasse no julgador a convicção de que os elementos em causa não haviam sido alienados a terceiros, sendo certo que inexiste qualquer sinal de que os elementos em causa hajam sido vendidos a terceiros. E com a prova produzida a Requerente almejou esse objectivo, ao demonstrar que um conjunto substancial de elementos obsoletos, com o peso total de 6.480 Kg, foi transportado em 27.06.2008 para as instalações da … para o respetivo tratamento a título de resíduos. 

 

Com efeito, neste âmbito, e como é aceite pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, não é imperiosa uma prova directa. Em muitos casos haverá que recorrer à prova indirecta, a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, da ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém directamente, mas indirectamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – cfr. Alberto Xavier, Conceito e Natureza do Acto Tributário, Coimbra, 1972, p. 154.

 

Por outro lado, como acima se fez notar, a Requerida não conseguiu abalar a presunção de veracidade que assiste aos elementos e valores declarados pelo contribuinte (cfr. artigo 75.º, n.º 1 da LGT), a acrescer ao facto da Requerente ter demonstrado sem dificuldades que em 27 de Junho de 2008 realizou um abate de materiais obsoletos, tendo intervindo nesse processo diversas entidades externas não relacionadas (empresas de serviços de transportes e de resíduos e reciclagem desse tipo de bens).

 

Neste contexto, ilidida a referida presunção (como foi), cabia à Requerida fundamentar eventuais divergências ou dúvidas em matéria de quantificação e/ou valorização dos bens abatidos, e estabelecer os correspondentes pressupostos de facto, por forma a afastar os valores declarados pelo sujeito passivo (ora Requerente), que beneficiam da mencionada presunção de veracidade. 

 

No entanto, a Requerida limitou-se a assinalar o facto de, por um lado, o transporte ter por unidade de medida o peso e de, por outro, as listagens do material abatido não fazerem menção ao peso, mas a referências de equipamento e peças e a valores monetários (que foram objecto de registo contabilístico). Ora, sucede que estas circunstâncias são usuais, pois a unidade de medida dos serviços de transporte é em regra peso/volume e não valor. Esta circunstância, conjugada com os demais sinais dos autos, leva-nos à conclusão de que a Requerida não conseguiu abalar suficientemente a presunção legal de veracidade do valor do abate declarado pela Requerente.

 

Acresce que a Requerida fez apelo a uma comparação com as pesagens (pesos médios) de outros abates realizados em anos posteriores, para estabelecer os pressupostos de quantificação (da aplicação da presunção legal - artigo 86.º do CIVA) no caso concreto, argumentando que o peso mencionado das pesagens efetuadas pela empresa de resíduos (…), de 6.480Kg, não se coaduna com a quantidade de equipamentos e peças destruídas, constantes nas listagens do referido abate, quando comparado com outros abates efetuados nos anos de 2009 e de 2010, pois o peso médio desses anos é substancialmente superior.

 

Porém, na sequência deste raciocínio, cuja fragilidade começa com a demonstração dos pesos médios, como adiante se referirá, a Requerida não procede à quantificação (ainda que aproximada) que o desvio de peso devia implicar na quantidade ou valor (ainda que médios) dos bens que se deviam presumir transmitidos. Pura e simplesmente, a Requerida considera que não ocorreu qualquer abate e presume transmitida a totalidade dos bens constantes das listagens de abate no valor global de Euro 641.453,13, apesar de, paradoxalmente, reconhecer que foram abatidos bens correspondentes a seis toneladas e meia de equipamento e peças.

 

Na verdade, em matéria de quantificação, o único argumento da Requerida assenta numa presunção (desta vez sem a natureza de presunção legal) assente na extrapolação de que o peso dos itens destruídos teria que ser superior àquele que consta da documentação deste abate, por comparação com valores médios de outros abates.

 

No entanto, como acima referido esta alegação apresenta debilidades, pois trata-se de abates com composições diferenciadas e diferentes pesos relativos das tipologias de materiais (equipamentos e peças). A que acresce o facto, não menos relevante, de que, caso tal ilação devesse ser retirada (e não estamos seguros que devesse), a mesma nunca se traduziria na desconsideração total do abate, como sustenta a Requerida, mas apenas parcial. E neste caso caberia à Requerida determinar os pressupostos quantitativos da tributação, a qual, reitera-se, nunca poderia corresponder à incidência de imposto sobre o valor total do abate. 

 

Acresce referir que as dificuldades na valorização das existências transferidas da B... (de cerca de 2,1 milhões de euros), que extravasam amplamente as aqui em análise, e a não apresentação de facturas de compra referentes a bens retomados que constavam do inventário a 31.12.2007, não excluem, nem são incompatíveis com a ocorrência do abate (que ficou inequivocamente evidenciado), podendo, quando muito, influir na sua quantificação. Todavia, quanto a este ponto, como acima se salientou, em matéria de quantificação a Requerida não cumpriu o ónus que sobre si impendia, relativamente à prova dos respetivos pressupostos de facto.

 

De relembrar a este respeito que a Requerida não procedeu ao apuramento de quaisquer elementos concretos que permitissem uma quantificação, ainda que aproximada, das hipotéticas divergências (alegadamente referentes ao número de bens e ao correspondente valor), optando por sustentar, sem fundamento, que seria de desconsiderar na íntegra o abate realizado e declarado pela Requerente, numa aplicação da presunção legal (artigo 86º do CIVA) à totalidade dos bens constantes das quatro listagens de abate, incluindo aqueles que faziam parte integrante das seis toneladas e meia de material obsoleto que foi indiscutivelmente transportado e destruído.

 

E mesmo que se entendesse que a Requerida havia coligido, no que se refere ao quantum do abate, alguns factos-índice passíveis de questionar, em parte, o seu valor, certo é que sempre subsistiria o deficit instrutório com a incerteza relativa à quantificação (que nunca poderia ser integral). Com efeito, a AT está subordinada ao princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material, devendo realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material (cfr. artigo 58º da LGT).

 

Deve ainda referir-se que a presunção administrativa do quantum do abate insere-se já no domínio da tributação por métodos indirectos, que o legislador elegeu como um método de quantificação da matéria colectável claramente residual e excepcional (cfr. artigos 83º nº 2, 84º e 85º nº 1 da LGT). E a tributação segundo métodos indirectos sempre implicaria a observância, pela AT, do respectivo normativo especialmente previsto na lei, o que não sucedeu (cfr. artigos 81º nº 1 in fine, 82º nº 3 e nº 4, 87º, 88º e 90º e ss. da LGT).

 

Acresce que a AT não fundamentou por que razões, de facto e de Direito, quantificou o facto tributário - a presumida venda dos ditos equipamentos elétricos e eletrónicos obsoletos - precisamente no valor de Euro 641.453,13, particularmente atendendo ao facto da própria AT ter admitido que pelo menos uma parte substancial deste montante havia sido efectivamente objecto de abate em 27.06.2008. O que, diga-se, equivale a admitir que pelo menos uma parte daquele valor não havia sido efectivamente transmitida a terceiros (ou seja, que relativamente a uma parte daquele valor era indevida a presunção legal do artigo 86º do CIVA). Deste modo, verifica-se uma contradição na fundamentação da correcção em questão e, consequentemente, na fundamentação da liquidação adicional de IVA em causa, o que, nos termos do artigo 125º nº 2 do CPA, equivale a falta de fundamentação (cfr. tb. os artigos 77º da LGT e 268º nº 3 da CRP).

 

Por outro lado, diz-nos o artigo 100º nº 1 do CPPT que, sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a quantificação do facto tributário, deve o acto impugnado ser anulado.

 

Como acima referido, a Requerente logrou pôr em causa a justeza da comparabilidade, invocada pela Requerida, dos pesos médios apurados em abates ocorridos em exercícios subsequentes, que tiveram por objecto equipamentos e peças com características distintas. Mais ainda, a Requerente aponta para a dificuldade em extrair dessa unidade de medida (o peso) um padrão que configure um critério de decisão adequado.

 

Por outro lado, a Requerida não apresentou qualquer critério ou metodologia de quantificação do eventual valor residual dos bens não cobertos pelos referidos transporte e destruição, não cumprindo o ónus de demonstrar os pressupostos (quantitativos) da tributação, tendo, paralelamente, ficado claro que se não a totalidade, pelo menos uma parte substancial dos equipamentos e peças elétricos e eletrónicos constantes das listagens foi transportada para a empresa de resíduos e reciclagem no dia 27.06.2008.

 

No limite, mesmo que se considerasse estar (somente) perante uma situação de incerteza de quantificação (e não, como sustentamos, de omissão dos pressupostos de facto relativos ao quantum), seria de convocar, como se disse, a aplicação do disposto no artigo 100.º, n.º 1 do CPPT, segundo o qual, “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”.

 

O artigo 100.º, n.º 1 do CPPT mais não é do que a aplicação (no processo judicial) da regra geral sobre o ónus da prova no procedimento tributário enunciada no artigo 74.º, n.º 1 da LGT (idêntica à prevista no artigo 342.º n.º 1 e nº 2 do Código Civil) e que vigora no contencioso administrativo em geral: "há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do acto, quando se mostrem verificados estes pressupostos" – cfr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª. edição, Almedina, 2001, p.269.

 

A propósito do ónus da prova e da sua valoração, no contexto tributário, vejam-se os Acórdãos do STA, processos n.º 26.635, de 17.04.2002; n.º 243/03, de 07.05.2003; n.º 1568/03, de 24.03.2004; n.º 810/04, de 27.10.2004, e os Acórdãos do TCA Norte, 1834/04 - Viseu, de 24.01.2008; 1203/09.8BEBRG, de 08.11.2012, e 383/08.4BEBRG, de 28.02.2013.

 

A Requerente, como se disse, logrou provar factualidade impeditiva do direito de tributação da Autoridade Tributária e Aduaneira legalmente presumido, i.e., provou o abate (artigo 342º, nº 2 do Código Civil).

 

Em qualquer caso, a quantificação nunca corresponderia ao valor integral tido em conta pela Requerida nos actos tributários emitidos (de IVA e de juros), procedimento aliás totalmente incongruente com o reconhecimento, por parte desta, de que houve efectivamente um abate de destruição de seis toneladas e meia (mais precisamente de 6.480 Kg) de bens elétricos e eletrónicos, não tendo daí retirado quaisquer ilações ou consequências (i.e, não poderia ter presumido, como fez, que todos os bens tinham sido transmitidos, tributando a presumida transmissão integral dos mesmos).

 

Com efeito, a Requerida não deixou de fazer as liquidações precisamente sobre o valor que ela própria questionou, aplicando-lhe simplisticamente a taxa de IVA em vigor à data, de 21%, sendo que se afigura inadmissível a Requerida não aceitar a valorização do sujeito passivo e, depois, proceder a uma liquidação adicional de IVA com base nesse valor.

 

Em conclusão, seja por falta de preenchimento dos pressupostos de facto (quantitativos) que incumbia à Requerida (como entendemos suceder na situação vertente), seja por falta de certeza (non liquet) quanto à quantificação do facto tributário, deve fazer-se aplicação desta regra sobre o ónus da prova, decidindo a questão contra quem tem o ónus de quantificação nos casos em que a liquidação advém da Autoridade Tributária e Aduaneira e não do contribuinte (vide Jorge Lopes de Sousa, in CPPT, anotado e comentado, Vol II, 6.ª edição, 2011, Áreas Editora, pp. 132 e segs.).

 

À face do exposto, conclui-se nesta matéria assistir razão à Requerente, devendo as liquidações adicionais de IVA e de juros compensatórios ser anuladas por vício de violação de lei e por erro nos pressupostos.

 

* * *

 

Termos em que acordam neste Tribunal Arbitral em:

–          julgar procedente a excepção de incompetência quanto à pretensão de apreciação da ilegalidade da decisão de aplicação da coima, absolvendo da instância a Requerida (Autoridade Tributária e Aduaneira) quanto a tal pretensão;

–          julgar procedentes os pedidos de declaração de ilegalidade e de anulação dos actos de liquidação adicional de IVA e de juros compensatórios referidos na alínea a) – i) e ii) – da  matéria de facto assente; e

–          em consequência, julgar procedente o pedido de devolução das importâncias de Euro 134.705,20 (IVA) e  Euro 23.058,58 (juros compensatórios), tudo com as legais consequências.

 

Fixa-se o Valor do processo em Euro 184.704,82, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.

 

O montante das Custas é fixado em Euro 3.672,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem (RCPAT), sendo Euro 3.136,26 a cargo da Requerida (Autoridade Tributária e Aduaneira) e Euro 535,74 a cargo da Requerente, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

 

Notifique.

 

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2014

 

 

Os Árbitros,

 

 

(Dra. Alexandra Coelho Martins)

 

 

(Dr. Lino França)

 

 

(Prof. Dra. Clotilde Celorico Palma)

 

               

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131º nº 5 do CPC, aplicável por remissão do artigo 29º nº 1, alínea e) do DL nº 10/2011, de 20.01, com versos em branco e revisto.