Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 588/2015-T
Data da decisão: 2016-04-29  IRC  
Valor do pedido: € 4.664,28
Tema: IRC – Custos; princípio da especialização dos exercícios, princípio da justiça
Versão em PDF

 

DECISÃO ARBITRAL

 

 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 9 de setembro de 2015, a sociedade comercial A…, Lda., NIPC…, com sede na Rua…, …, …, Marinha Grande, (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e consequente anulação[1] da liquidação adicional de IRC n.º 2015…, de 24 de junho de 2015, referente ao exercício de 2012, no montante total de € 4.664,28.

A Requerente juntou 8 (oito) documentos e arrolou uma testemunha, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

1.1. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte (que mencionamos maioritariamente por transcrição):

- Os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de … procederam a uma acção inspetiva à Requerente, de âmbito parcial, incidente sobre o IRC, tendo analisado as imparidades declaradas no exercício de 2012, bem como as tributações autónomas dos exercícios de 2012 e 2013;

- No âmbito da referida ação inspetiva, não foi aceite como custo do exercício de 2012 a importância de € 95.591,00, por não cumprimento do princípio da especialidade dos exercícios quanto ao cliente da Requerente, “B…, S. A.”;

- A Requerente foi notificada do projeto de correções e exerceu o direito de audição, o que fez por escrito mediante requerimento entregue em 4 de maio de 2015, tendo aí demonstrado documentalmente ser credora da sociedade B pelo valor considerado a título de imparidade;

- Não assiste razão à AT quanto à decisão de não aceitar a dedução das perdas por imparidades constituídas em 2012 no que respeita ao cliente “B…, S. A.”;

- As faturas emitidas pela Requerente à sociedade B… remontam ao período compreendido entre março de 2010 e o final de janeiro de 2011, a ação de condenação instaurada pela Requerente contra aquela sua cliente, para cobrança do valor seu crédito, deu entrada em Tribunal em setembro de 2011 e a Requerente considerou tal valor como imparidade no exercício fiscal de 2012;

- A Requerente não obteve nenhum ganho, nem a AT sofreu qualquer prejuízo;

- O desfasamento temporal justifica-se pelo facto de, por conta da larga maioria das faturas em causa, terem sido realizados diversos pagamentos parciais pela sociedade B…;

- Ademais, a sociedade B… fez diversas e repetidas promessas de pagamento das referidas faturas à Requerente;

- Acresce ainda que os serviços administrativos da Requerente se atrasaram quer a comunicar à contabilidade, que é realizada externamente, a propositura da dita ação judicial, quer a fazer-lhe a entrega da respetiva documentação;

- A Requerente não só nunca pretendeu prejudicar a AT, como efetivamente não gerou nesta qualquer prejuízo fiscal, apenas lhe podendo ser imputada a negligência decorrente do atraso na entrega dos documentos ao contabilista;

- Mesmo esse atraso no lançamento da imparidade não gerou qualquer prejuízo à AT, pois a Requerente pagou no ano anterior o imposto (IRC) sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir;

- Assim, tal diferimento da contabilização do respetivo custo fiscal apenas representou prejuízos para a própria Requerente pois, mais cedo houvesse lançado a respetiva imparidade a custo, mais cedo se havia operado a diminuição do lucro tributável;

- Resulta do art. 18.º, n.º 1, do Código do IRC, a vinculação da AT no sentido de dever aplicar o princípio da especialização dos exercícios, sendo que, porém, no caso de daí resultarem situações de flagrante injustiça, deve operar o princípio da justiça consagrado no art. 266.º, n.º 2, da CRP e no art. 55.º da LGT;

- No caso concreto, o princípio da especialização dos exercícios deve ceder perante a flagrante injustiça resultante da não correção da tributação excessiva verificada no exercício em que o referido custo deveria ter sido imputado e, consequentemente, anulada a liquidação adicional de IRC aqui impugnada, na medida em que a correção efetuada pela AT gera uma vantagem patrimonial injusta e indevida a favor da AT;

- É que não sendo agora possível à Requerente corrigir o erro reportado ao exercício de 2011 e aí lançar a respetiva imparidade, a AT logrou, por um lado, receber no exercício de 2011 um valor de IRC superior àquele que seria devido caso a imparidade tivesse sido lançada e, por outro lado, receber também no exercício de 2012 um valor de IRC superior ao devido em razão de expurgar de tal exercício essa mesma imparidade;

- Resulta daí um prejuízo para a Requerente por nunca ver lançada tal imparidade nem no exercício de 2011, nem no exercício de 2012;

- A Requerente, em 23 de agosto de 2015, procedeu ao pagamento do montante total de € 14.187,98, decorrente da compensação n.º 2015…, no qual está integrado o valor da liquidação adicional de IRC impugnada, devendo-lhe pois ser restituído tal montante, acrescido de juros de mora calculados desde aquela data até efetivo e integral pagamento;

- Deve ainda ser anulada a referida nota de compensação.  

A Requerente remata o seu articulado inicial peticionando o seguinte:

«Termos em que nestes e nos melhores de Direito, os quais V. Exa. doutamente suprirá, procedendo-se à constituição de tribunal arbitral, deve a presente impugnação ser julgada procedente e, em consequência, sob os fundamentos expostos, deve o acto impugnado de liquidação bem como a respectiva nota de compensação submetidos a pronúncia arbitral serem revogados, condenando-se ainda a impugnada a pagar à impugnante a quantia de € 14.187,98 (catorze mil cento e oitenta e sete euros e noventa e oito cêntimos), acrescida do pagamento dos juros de mora desde 23.08.2015 e até efectivo e integral pagamento»

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 23 de setembro de 2015.

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 5 de novembro de 2015, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 20 de novembro de 2015.

6. No dia 5 de janeiro de 2016, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

Na mesma ocasião, a Requerida procedeu à junção aos autos do respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

6.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta (que mencionamos maioritariamente por transcrição):

- A liquidação de IRC impugnada teve origem em correções de natureza aritmética, resultantes de imposição legal, que procederam de ação inspetiva, as quais se traduziram em correções à matéria tributável de € 107.034,04, relativamente ao ano de 2012, e de € 4.250,00, relativamente ao exercício de 2013;

- Aquelas correções à matéria tributável resultaram da desconsideração como custo fiscal daqueles montantes, reportando-se a perdas por imparidade constituídas e depreciações e amortizações, não aceites fiscalmente, nos termos legalmente aplicáveis;

- Das correções efetuadas decorreu o ato de liquidação e a correspondente nota de compensação contra as quais a Requerente apresenta a presente impugnação arbitral;

- A Requerente apenas contesta as correções relativas às perdas por imparidade não aceites fiscalmente, da sua cliente “B…, S. A.”, no montante de e 95.591,00, pois no referente às perdas por imparidade não aceites fiscalmente, do seu cliente “C…, Unipessoal, Lda.”, no montante de € 7.193,09, e ainda quanto às depreciações não aceites como gasto fiscal, no montante de € 4.250,00, nada contradita;

- Assim, não é a totalidade da liquidação adicional de IRC impugnada que aqui está em causa, mas apenas uma parte, ainda que a parte substancial;

- A constituição das imparidades de dívidas a receber constitui uma faculdade do sujeito passivo, contabilisticamente obrigatória face ao princípio da prudência, mas que não poderá ser entendida como de faculdade ilimitada, no sentido de ser exercitada quando lhe aprouver;

- Não se diga que o deferimento dos custos operado é absolutamente neutro do ponto de vista fiscal e que não trará prejuízos para a AT, pois o facto de o custo ser considerado em 2012 e não em 2011, projeta um ano para a frente a eventual dedutibilidade de prejuízos fiscais;

- Apenas os créditos resultantes da atividade normal da empresa, que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam como tal evidenciados na contabilidade, são passíveis de constituição de perdas por imparidade, com relevância para efeitos fiscais;

- Ademais, o montante das perdas por imparidade a constituir encontra-se associado à forma como o risco de incobrabilidade se considera justificado;

- Os documentos que a Requerente apresentou quer em sede de procedimento inspetivo quer nesta ação arbitral, que titulam os créditos sobre a sua cliente “B…, S. A.”, datam todos dos exercícios fiscais de 2010 e 2011 e a data da entrada do processo ordinário n.º …/11…. TGMGR em 9 de setembro de 2011 comprova que nessa data o risco de incobrabilidade destes créditos já se encontrava perfeitamente demonstrado;

- Do ponto de vista fiscal, a obrigatoriedade de considerar os gastos e os rendimentos no exercício em que são gerados/incorridos impede também que os contribuintes difiram os gastos e os rendimentos com finalidades de gestão fiscal diversas daquelas que o legislador fiscal entendeu privilegiar no sistema fiscal português;

- O princípio da justiça deve ser compatibilizado com outros, como sejam os princípios da igualdade e da certeza e segurança das situações jurídicas consolidadas (a definitividade das liquidações de IRC dos anos de 2010 e 2011);

- A Requerente não demonstrou que os erros e omissões cometidos no preenchimento das declarações de IRC dos anos anteriores, não foram voluntários e ou intencionais, sendo que ela sabia que à data do encerramento do exercício fiscal de 2011 estava pendente ação judicial de condenação de pagamento de quantia certa, contra a sua cliente “B…, S. A.”, pelo que o risco de incobrabilidade encontrava-se então perfeitamente demonstrado;

- A mera invocação do princípio da justiça não pode, por si só e face a todo o circunstancialismo do caso concreto, ser suficiente para considerar ilegal a liquidação adicional de IRC de 2012, sendo que desse princípio não decorre um dever jurídico de colmatar ou corrigir atos ou omissões dos contribuintes, salvo se tal ocorrer de forma involuntária ou não intencional;

- As correções efetuadas pela AT permitem, pois, o respeito pelo disposto nos arts. 18.º, 23.º, 35.º e 36.º do Código do IRC. 

A Requerida remata assim o seu articulado:

«Nestes termos, e nos demais que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.»

7. Em 16 de fevereiro de 2016, teve lugar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT – na qual, além do mais ali tratado e que consta da respetiva ata que aqui se dá por reproduzida, foi a Requerente convidada a aperfeiçoar o pedido de pronúncia arbitral (tendo por referência a delimitação do objeto do processo e os respetivos pedido e valor) –, tendo-se, ainda, procedido à inquirição da testemunha arrolada pela Requerente.

8. Na sequência do convite ao aperfeiçoamento do pedido de pronúncia arbitral, a Requerente apresentou, em 26 de fevereiro de 2016, um requerimento no qual afirmou o seguinte que aqui importa respigar:

«Nos presentes autos de impugnação, o pedido formulado consubstancia-se na revogação do acto de liquidação bem com o da respetiva nota de compensação, ambos submetidos a pronúncia arbitral, condenando-se então a impugnada a pagar à impugnante a quantia de EUR 14.187,98, acrescida do pagamento dos juros de mora desde 23.08.2015 e até integral e efectivo pagamento.   

O acto tributário objecto de pronúncia arbitral e que constitui a causa de pedir nos presentes autos é a decisão do impugnado Serviço de Finanças da … que determinou à impugnante o pagamento da quantia global de EUR 14.187,98 mediante a liquidação adicional de IRC dos rendimentos de 2012 a que corresponde a liquidação com o número do documento 2015 … de 24.06.2015 conjuntamente com a nota de compensação n.º 2015 … de 24.06.2015 (…).

Donde resulta claramente que o valor processual dos autos ascende ao montante de EUR 14.187,98, quantia esta correspondente àquela que a impugnante efectivamente desembolsou na sequência da liquidação n.º 2015…, que faz menção expressa à nota de compensação n.º 2015… .

(…)

    Donde se retira que tal liquidação importou para a impugnante um encargo tributário no valor global de EUR 14.187,98, valor este correspondente à utilidade económica que o pedido assume para a impugnante.»

9. Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.     

 

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

            Não há exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

 

***

III. FUNDAMENTAÇÃO                     

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cf. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT). Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

Nesta parametria, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

a) A Requerente encontra-se coletada na atividade de fabricação de moldes metálicos (CAE…), tendo iniciado a sua atividade em 28/08/1996, estando enquadrada no regime normal mensal em sede de IVA e no regime geral de tributação em sede de IRC. [cf. PA junto aos autos]

b) A Requerente emitiu as seguintes faturas à sua cliente “B…, S. A.”, no montante total de € 258.450,00:

1. No decurso do ano de 2010:

                        - Fatura n.º…, datada de 29/03/2010, no valor de € 27.700,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 10/05/2010, no valor de € 44.900,00; 

                        - Fatura n.º…, datada de 10/05/2010, no valor de € 44.900,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 10/05/2010, no valor de € 620,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 08/11/2010, no valor de € 5.420,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 06/12/2010, no valor de € 51.500,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 06/12/2010, no valor de € 52.500,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 06/12/2010, no valor de € 2.500,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 13/12/2010, no valor de € 1.700,00;

- Fatura n.º…, datada de 13/12/2010, no valor de € 330,00.

            2. No decurso do ano de 2011:

                        - Fatura n.º…, datada de 10/01/2011, no valor de € 14.150,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 10/01/2011, no valor de € 350,00;

                        - Fatura n.º…, datada de 17/01/2011, no valor de € 11.880,00.

            c) Relativamente a essas faturas, em datas concretamente não apuradas, mas anteriormente a 09/09/2011, a “B…, S. A.” efetuou os seguintes pagamentos parciais à Requerente, num total de € 162.859,00 [cf. documento n.º 5 junto com a P. I.]:

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 19.390,00;

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 31.430,00;

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 31.430,00;  

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 36.050,00;

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 36.750,00;

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 4.245,00;

            - Por conta da fatura n.º…, pagou a quantia de € 3.564,00.

d) Em 7 de fevereiro de 2011, a “B…, S. A.”, através de correio eletrónico, comunicou à Requerente a sua intenção de lhe pagar valores referentes às faturas n.ºs…, … – o que faria em 1 de março de 2011 –, …, … e … – o que faria em 1 de abril de 2011. [cf. documento n.º 7 junto com a P. I.]   

e) Em 9 de setembro de 2011, a Requerente instaurou uma ação declarativa de condenação, em processo ordinário, contra a sua cliente “B…, S. A.”, peticionando o pagamento da quantia de € 95.591,00, acrescida de juros de mora, ainda em divida relativamente às referenciadas faturas, a qual correu termos, sob o n.º …/11…TBMGR, pelo então ….º Juízo do Tribunal Judicial da Marinha Grande. [cf. documento n.º 5 junto com a P. I.]  

            f) Nessa ação judicial, em 02/01/2013, foi proferida sentença que decidiu «pela competência dos Tribunais franceses para o presente litígio, declarando-se o Tribunal Português internacionalmente incompetente (incompetência absoluta) e, assim, conhecendo-se de tal excepção dilatória, se absolve a Ré da Instância». [cf. documento n.º 5 junto com a P. I.]   

g) Inconformada com essa decisão, a Requerente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão proferido em …/07/2013 e transitado em julgado em 18/09/2013, julgou o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida. [cf. documento n.º 5 junto com a P. I.]

h) A “B…, S. A.” era uma cliente importante da Requerente e que sempre tinha pago todas as faturas referentes às transações comerciais realizadas com a Requerente, embora, às vezes, o fizesse com algum atraso ou de forma fracionada/prestacional.

i) Nessa medida, existia entre a Requerente e a “B…, S. A.” uma relação de confiança mútua, não sendo expectável para a Requerente que a “B…, S. A.” não efetuasse o pagamento integral das faturas referidas em b).         

j) A Requerente apenas deu conhecimento da pendência da referenciada ação judicial, ao seu técnico oficial de contas/contabilista, em setembro de 2012.

k) A Requerente inscreveu o referido valor de € 95.591,00 como perda por imparidade de dívidas a receber, na sua declaração anual de IRC, referente ao exercício de 2012.

l) A coberto das Ordens de Serviço n.º OI2014… e n.º OI2014…, foi a Requerente sujeita a uma ação inspetiva interna de âmbito parcial – IRC –, incidente nos exercícios fiscais de 2012 e 2013, visando especificamente a análise das imparidades declaradas em 2012 e as tributações autónomas de 2012 e 2013, a qual foi realizada pela Divisão de Inspeção Tributária II da Direção de Finanças de…, tendo tido início em 10/11/2014 e termo em 24/02/2015. [cf. PA junto aos autos]

m) No âmbito do referido procedimento inspetivo, foi enviada uma notificação à Requerente, em 10/11/2014, para que remetesse os seguintes elementos/esclarecimentos [cf. PA junto aos autos]:

n) Na sequência desse pedido de elementos/esclarecimentos, a Requerente enviou diversos documentos aos Serviços de Inspeção Tributária, de cuja análise resultaram destacados os seguintes aspetos [cf. PA junto aos autos]:

o) Posteriormente, os Serviços de Inspeção Tributária reforçaram o pedido de elementos comprovativos das imparidades de dívidas a receber, nomeadamente, faturas ou outros documentos de suporte aos valores em crédito e registos contabilísticos destes documentos de suporte nas contas de proveitos e terceiros, da empresa (extratos contabilísticos). [cf. PA junto aos autos]   

p) Em resposta a esse pedido de elementos, a Requerente enviou extratos das contas correntes de clientes #... – C… Lda. e #... – B… (FR…), referentes aos exercícios de 2011 e 2012, e cópias dos seguintes documentos [cf. PA junto aos autos]:

            q) Através de ofício dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de…, datado de 15/04/2015, remetido por carta registada com aviso de receção (RF…PT) e rececionado em 17/04/2015, foi a Requerente notificada do Projeto de Correções do Relatório da Inspeção Tributária e para, querendo, exercer o direito de audição, tendo ali sido propostas as seguintes correções em sede de IRC [cf. PA junto aos autos e documento n.º 3 junto com a P. I.]:

r) Em 4 de maio de 2015, a Requerente exerceu o direito de audição sobre aquele Projeto de Correções, no âmbito do qual, além do mais, referiu o seguinte que aqui importa respigar [cf. PA junto aos autos e documentos n.ºs 4 e 5 juntos com a P. I.]:

 

«6.º

            Demonstra-se e comprova-se documentalmente, mediante documentos externos suficientes que provam que a A… era credora da B…, quando e em que montante do crédito considerado em imparidade, o que produz da forma seguinte:

            a) Na data de 9 de Setembro de 2011 a impugnante instaurou uma acção de processo ordinário que sob o n.º …/11… TBMGR correu os seus termos junto do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Marinha Grande (…).

            b) Nesses autos era peticionada a condenação da empresa “B…, S. A.” ao pagamento à A… das facturas seguintes (…):

            1. Factura n.º … de 29.03.2010 no valor de EUR 27.700,00;

            2. Factura n.º … de 10.05.2010 no valor de EUR 44.900,00; 

            3. Factura n.º … de 10.05.2010 no valor de EUR 44.900,00;

            4. Factura n.º … de 10.05.2010 no valor de EUR 620,00;

            5. Factura n.º … de 08.11.2010 no valor de EUR 5.420,00;

            6. Factura n.º … de 06.12.2010 no valor de EUR 51.500,00;

            7. Factura n.º … de 06.12.2010 no valor de EUR 52.500,00;

            8. Factura n.º … de 06.12.2010 no valor de EUR 2.500,00;

            9. Factura n.º … de 13.12.2010 no valor de EUR 1.700,00;

            10. Factura n.º … de 13.12.2010 no valor de EUR 330,00;

            11. Factura n.º … de 10.01.2011 no valor de EUR 14.150,00;

            12. Factura n.º … de 10.01.2011 no valor de EUR 350,00;

            13. Factura n.º … de 17.01.2011 no valor de EUR 11.880,00.

            (…)

            c) A devedora B…, S. A. contestou a referida acção de condenação (…);

            d) A devedora B…, S. A. logrou a sua absolvição da instância por incompetência internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento da acção em causa, conforme sentença judicial de 1.ª instância (…);

            e) De tal sentença a A… recorreu, sem sucesso, tendo a mesma sido confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, deste modo, transitou em julgado (…);

            f) Em conformidade com o exposto, atenta a absolvição da ré B…, S. A., nenhuma quantia foi paga à A…, Lda.

            (…)

9.º

            E, no tocante ao crédito sobre a cliente B…, fica produzida prova de que a acção instaurada pela A… visou exactamente a condenação daquela ao pagamento do crédito que constitui a imparidade constituída e fiscalmente dedutível.

10.º

            Desta feita, as perdas por imparidades constituídas (…) são fiscalmente dedutíveis nos termos do disposto nos artigos 18.º, 23.º, 35.º e 36.º do CIRC.»

 

s) As correções ao IRC da Requerente, referente aos exercícios de 2012 e 2013, mencionadas em q), foram integralmente mantidas no Relatório da Inspeção Tributária, tendo o exercício de direito de audição por parte da Requerente sido objeto de apreciação pelos Serviços de Inspeção Tributária, nos seguintes termos [cf. PA junto aos autos]:

 

 

t) No Relatório da Inspeção Tributária é apresentada a seguinte fundamentação para as mencionadas correções meramente aritméticas efetuadas ao IRC da Requerente, atinente aos exercícios de 2012 e 2013 [cf. PA junto aos autos]:

 

u) A Requerente foi notificada do Relatório da Inspeção Tributária, através do ofício n.º…, datado de 12/06/2015, dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de…, remetido por carta registada com aviso de receção (RF1…PT) e rececionado em 16/06/2015. [cf. documento n.º 6 junto com a P. I. e PA junto aos autos] 

v) As aludidas correções, no respeitante à matéria coletável de IRC do exercício de 2012, tiveram subjacentes a desconsideração fiscal das perdas por imparidade atinentes às clientes da Requerente, “B…, S. A.”, no valor de € 95.591,00, e “C…, Unipessoal, Lda.”, no valor de € 7.193,09, e ainda as depreciações não aceites como gasto fiscal, no montante de € 4.250,00. [cf. PA junto aos autos]   

w) Em virtude das referenciadas correções, foram efetuadas a liquidação adicional de IRC n.º 2015…, datada de 24/06/2015, referente ao exercício de 2012, no montante de € 4.664,28, as liquidações de juros compensatórios n.º 2015…, no valor de € 666,91 e n.º 2015…, no valor de € 289,70, bem como a compensação n.º 2015…, datada de 29/06/2015, e a demonstração de acerto de contas n.º 2015…, na qual foi apurado um valor total a pagar de € 14.187,98, com data limite de pagamento voluntário a 27/08/2015. [cf. documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a P. I.] 

x) A Requerente procedeu ao pagamento integral do referido montante de € 14.187,98, o que fez tempestivamente em 23/08/2015. [cf. documento n.º 8 junto com a P. I.]

y) Em 9 de setembro de 2015, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]

 

*

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

 

*

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, nos documentos e no respetivo processo administrativo juntos aos autos e, ainda, na prova testemunhal produzida.

Relativamente ao depoimento prestado por D…– testemunha que depôs de forma clara, objetiva e isenta sobre os factos aos quais foi inquirida, revelando inequívoco conhecimento direto dos mesmos, pelo que o seu depoimento nos mereceu total credibilidade –, importa aqui fazer uma brevíssima súmula do mesmo, referindo os seus aspetos essenciais:

É técnico oficial de contas/contabilista da Requerente há mais de 20 anos, atividade que desenvolve de forma autónoma e externa à empresa, em escritório próprio.

A “B…, S. A.” era uma cliente importante da Requerente e que sempre tinha pago todas as faturas referentes às transações comerciais realizadas com a Requerente, embora, às vezes, o fizesse com algum atraso ou de forma fracionada/prestacional.

Por isso, existia entre a Requerente e a “B…, S. A.” uma relação de confiança mútua, não sendo expectável para a Requerente que a “B…, S. A.” não efetuasse o pagamento integral das aludidas faturas emitidas em 2010 e 2011. Tanto mais que foram existindo contactos entre ambas, a esse respeito, tendo a “B…, S. A.” manifestado, por diversas vezes, o propósito de pagar o que devia à Requerente.            

A Requerente apenas lhe deu conhecimento da pendência da referenciada ação judicial instaurada contra a “B…, S. A.”, em setembro de 2012. 

 

*

III.2. DE DIREITO

§1. DA QUESTÃO DECIDENDA

            A questão que é colocada ao Tribunal assenta, essencialmente, em descortinar se as perdas por imparidade que a Requerente contabilizou no exercício fiscal de 2012 e inscreveu na respetiva declaração de IRC devem ou não ser fiscalmente aceites e, consequentemente, se a liquidação adicional de IRC controvertida foi ou não correta e legalmente efectuada e, portanto, se deve ou não ser mantida.

            A Requerente sustenta que, embora aquelas provisões respeitem a créditos vencidos nos exercícios de 2010 e 2011 e não pagos, devem as mesmas ser fiscalmente aceites pois, apesar de não ter sido formalmente respeitado o princípio da especialização dos exercícios, daí não resultou qualquer prejuízo para o Estado. Pelo contrário, segundo a Requerente, a única prejudicada foi ela própria ao proceder ao lançamento da respectiva imparidade apenas no exercício do ano imediatamente subsequente. Mais sustenta a Requerente que, em situações como aquela que aqui se nos depara, deve operar o princípio da justiça consagrado no n.º 2 do art. 266.º da CRP e no art. 55.º da LGT.

            Por seu turno, a Requerida posiciona-se nos antípodas deste entendimento, propugnando que as perdas por imparidade que foram constituídas pela Requerente no exercício de 2012 não devem ser fiscalmente aceites por consubstanciarem violação dos arts. 18.º, 23.º, 35.º e 36.º do Código do IRC. Mais refere a Requerida que a simples invocação do princípio da justiça não pode, por si só e face a todo o circunstancialismo da situação em apreço, ser suficiente para considerar ilegal a liquidação adicional de IRC controvertida; efetivamente, diz a Requerida, era um direito da Requerente constituir as referidas imparidades nos períodos de 2010 e 2011, todavia não o fez à luz do princípio da especialização dos exercícios e tal omissão não foi decorrente de qualquer circunstância impeditiva ou de desconhecimento mas, tão só, porque não quis fazê-lo. Assim, conclui a Requerida, se a Requerente não usou do referido direito (dever) no tempo e modo devidos, sibi imputat.

 

*

§2. DO ENQUADRAMENTO LEGAL

§2.1. DO BLOCO NORMATIVO APLICÁVEL

            A apreciação jurídico-tributária da situação sub judice tem, necessariamente, de iniciar pela delimitação do bloco normativo aplicável, para o que é necessário convocar as normas legais que se afiguram concretamente relevantes, as quais terão de ser consideradas na redação aplicável ratione temporis.

            Assim, do Código do IRC cumpre atender às seguintes normas:

 

«Artigo 17.º

Determinação do lucro tributável

            1. O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.

            (…)

            3. De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:

            a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;

            b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeita ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.»

 

«Artigo 18.º

Periodização do lucro tributável

            1. Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.

            2. As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

(…)»

 

«Artigo 23.º

Gastos

            1. Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:

            (…)

            h) Ajustamentos em inventários, perdas por imparidade e provisões;

            (…)»

 

«Artigo 35.º

Perdas por imparidade fiscalmente dedutíveis

            1. Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes perdas por imparidade contabilizadas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores:

            a) As relacionadas com créditos resultantes da actividade normal que, no fim do período de tributação, possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade;

            (…)»

 

«Artigo 36.º

Perdas por imparidade em créditos

            1. Para efeitos da determinação das perdas por imparidade previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, consideram-se créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade esteja devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

            a) O devedor tenha pendente processo de insolvência e de recuperação de empresas ou processo de execução;

            b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente ou em tribunal arbitral;

            c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respectivo vencimento e existam provas objectivas de imparidade e de terem sido efectuadas diligências ara o seu recebimento.

            (…)»

           

Por seu turno, da Lei Geral Tributária importa chamar à colação a seguinte norma:

 

«Artigo 55.º

Princípios do procedimento tributário

            A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.»

 

Importa, ainda, atender à seguinte norma da Constituição da República Portuguesa:

 

«Artigo 266.º

Princípios fundamentais

(…)

2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.»

 

*

§2.2. DO PRINCIPIO DA ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS: DEFINIÇÃO E APLICAÇÃO

            O princípio da especialização dos exercícios está positivado no n.º 1 do art. 18.º do Código do IRC e traduz-se na regra de que devem ser considerados como ganhos ou perdas de determinado exercício os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, que a esse exercício digam respeito, sendo irrelevante o exercício em que elas se materializam. No n.º 2 daquele mesmo art. 18.º prevê-se uma exceção para as componentes positivas ou negativas do lucro tributável que, na data do encerramento das contas de determinado exercício, eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.

O princípio da especialização dos exercícios deriva da periodização dos resultados que é imposta por necessidades de gestão e de informação, sendo «caracterizado pela cisão da vida da empresa em intervalos temporais e pela imputação dada a um deles das componentes, positivas e negativas, que tornem possível determinar o resultado que lhe corresponde», impondo essa especialização «a realização de inventário de fim de exercício, dela decorrendo a necessidade de imputar a cada exercício todos os proveitos e custos que lhe são inerentes e só esses»[2].

            O mesmo autor, referindo-se à importância e razão de ser do princípio da especialização dos exercícios, afirma que «a especialização temporal das componentes do lucro é ainda mais importante para efeitos fiscais dos que contabilísticos, dados os condicionalismos em que decorre a determinação do imposto a pagar, de modo a evitar desvios de resultados entre exercícios diferentes com propósitos de minimização da carga fiscal, (…). Com efeito, essa imputação temporal pode ser instrumento de uma manipulação de resultados, de modo a, designadamente:

            a) Diferir no tempo os lucros;

            b) Fraccionar os lucros, distribuindo-os por exercícios diferentes, com o objectivo de evitar, num imposto de taxas progressivas, a tributação por taxas mais elevadas;

c) Concentrar o lucro em exercício onde se podem efectivar deduções mais avultadas (v. g. por reporte de prejuízos ou por incentivos fiscais).»[3]  

            Efetivamente, existem, «em abstracto, dois tipos de erros fiscais ligados à imputação temporal das componentes positivas e negativas do rédito ao exercício competente:

            - a omissão ou esquecimento (erro voluntário ou involuntário): conhece-se a regra, que é indisputável, mas por algum motivo (ilegítimo ou justificado) não se regista o proveito ou o custo no ano devido;

            - a álea ou abertura interpretativa: errónea inscrição temporal dum proveito ou um custo, efectuada, todavia, com base numa interpretação plausível da regra fiscal (geral ou específica) da especialização dos exercícios, regra essa que possui um conteúdo aplicativo equívoco (ou não concludente) diante do caso concreto.»[4]

É, pois, vedado aos contribuintes definirem como bem entenderem ou segundo critérios de oportunidade ou, ainda, em conformidade com a sua estratégia comercial ou de gestão, o timing para declararem os proveitos e os custos decorrentes da sua actividade comercial ou industrial, porquanto lhes são legalmente impostos limites e regras para o efeito, designadamente no sentido de os obrigar a imputar esses proveitos e custos ao exercício a que digam respeito.

            Assim, todos os custos e proveitos que sejam reconhecidos em determinada data devem ser registados no exercício a que correspondem de modo a que se produza uma imagem fidedigna da posição da empresa para esse período; ou seja, devem ser imputados «ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro» (acórdão do STA, proferido em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07, disponível em www.dgsi.pt).   

Não obstante o que se vem de dizer, como salienta Tomás Cantista Tavares, os tribunais nacionais já se confrontaram «com o problema da compaginação entre o interesse tributário e os erros contabilísticos e fiscais da especialização dos exercícios. Com a questão da hipotética aceitação fiscal (e, em caso afirmativo, sob que condições) duma errónea inscrição contabilística, em violação formal do princípio da especialização dos exercícios; com a admissibilidade do registo fiscal de um custo ou de um proveito num ano diverso (anterior ou posterior) ao da sua correcta imputação temporal.

            A Jurisprudência gira em torno de duas teses antagónicas:

            a) a corrente primitiva, de cariz formal e legalista, não admite quaisquer violações do princípio da especialização de exercícios;

            b) a tese actual, de cariz material, aceita a violação formal do princípio da especialização, desde que essas inscrições erróneas não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.

            (…)

            Esta corrente jurisprudencial [a tese primitiva] não pactua com a violação da regra legal da especialização de exercícios. Não aceita a inscrição duma rubrica (positiva ou negativa) do rendimento, em exercício diverso do que lhe compete. Fica-se pelo mero enunciado do princípio. Sobrevaloriza-o face à ponderação doutros factores de justiça material, como a interferência em exercício alheio ao objecto do processo ou ao atendimento de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação plausível dum comando complexo).

            (…)

            A Jurisprudência [c]onsente, actualmente, a violação formal do princípio da especialização de exercícios, desde que não se reconduzam a comportamentos voluntários e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios. Aceita a inscrição dum custo ou proveito em exercício diverso do que lhe competia, por intervenção de razões desculpabilizantes (actuação de boa-fé, sustentada numa interpretação séria e plausível dum comando complexo, assente em interpretações abertas e dúbias da sua estatuição).

(…)

A tese actual (…) [r]ompe com o facilitismo do formalismo legalista. Procura a solução material e justa. Faz prevalecer um princípio estrutural (capacidade contributiva) sobre uma regra operacional (especialização de exercícios). O seu ponto de partida é irrepreensível: se a sociedade incorreu num verdadeiro custo, esse decaimento tem de modelar, obrigatoriamente, o rédito fiscal. A convenção formal da especialização não tem o condão de impedir o efeito material, nem de torná-lo excessivamente oneroso ou complexo. O mesmo se passa, mutatis mutandis, com os proveitos. Contribuem uma só vez para o lucro (…)»[5]

            Constitui, de facto, jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal Administrativo que a rigidez do princípio da especialização dos exercícios tem de ser temperada com a invocação do princípio da justiça – nomeadamente, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do ato tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado –, o qual funcionará então como uma válvula de escape. Neste sentido, ficou lapidarmente consignado o seguinte no acórdão proferido em 19/11/2008, no processo n.º 0325/08 (disponível em www.dgsi.pt)[6]:

            «O princípio da justiça é um princípio básico que deve enformar toda a actividade da Administração Tributária, como resulta do preceituado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT.

Embora estes princípios constitucionais tenham um domínio primacial de aplicação no que concerne aos actos praticados no exercício de poderes discricionários, introduzindo neste exercício aspectos vinculados cuja não observância é susceptível de constituir vício de violação de lei, a sua relevância não se esgota nos actos praticados no exercício desses poderes discricionários.

Na verdade, por um lado, o texto do art. 266.º da CRP não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa, pelo que, em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade.
Por outro lado, na aplicação da legalidade, tanto pela Administração como pelos tribunais, não pode ser encarada isoladamente cada norma que enquadra uma determinada actuação da Administração, antes terá de se atender à globalidade do sistema jurídico, com primazia para o direito constitucional, como impõe o princípio da unidade do sistema jurídico, que é o elemento primacial da interpretação jurídica (art. 9.º, n.º 1, do CC).

Não se pode afirmar, que, nos casos de exercício de poderes vinculados, a obediência a uma determinada lei ordinária se sobrepõe aos princípios constitucionais referidos, pois estes princípios fazem também parte do bloco normativo aplicável, eles são também definidores da legalidade e, como normas constitucionais, são de aplicação prioritária em relação ao direito ordinário.

Tanto são normas legais a primeira parte do n.º 2 do art. 266.º da CRP, que impõe à Administração a observância do princípio da legalidade prevê o princípio da legalidade (…), como a sua segunda parte em que se prevêem os outros princípios e que generalizadamente impõem os modelos de actuação de toda a actividade administrativa, como também é uma norma legal a que, em determinada situação específica, prevê uma determinada actuação da Administração, designadamente, no caso em apreço, a aplicação do princípio da especialização dos exercícios (art. 18.º, n.º 1, do CIRC).

Por isso, para definir a legalidade a que a Administração está vinculada, terão de se ter em conta todas essas normas e fazer uma ponderação e escolha entre elas caso a sua aplicação global, abstractamente compatível, se demonstre inviável em determinada situação concreta.

Assim, (…), do referido art. 18.º, n.º 1, do CIRC resulta uma vinculação para a Administração, que, em regra, deve aplicar o princípio da especialização dos exercícios na sua actividade de controle das declarações apresentadas pelos contribuintes.

Mas, o exercício deste poder de controle, predominantemente vinculado, pode conduzir a uma situação flagrantemente injusta e, nessas situações, é de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar a que se concretize essa situação de injustiça repudiada pela Constituição.

Na ponderação dos valores em causa (por um lado o princípio da especialização dos exercícios que é uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada e, por outro lado, o princípio da justiça, que reflecte uma das preocupações nucleares de um Estado de Direito), é manifesto que, numa situação de incompatibilidade se deve dar prevalência a este último princípio.»

Neste mesmo sentido, já anteriormente o Tribunal Central Administrativo Sul se havia pronunciado da seguinte forma[7]:

«I - O princípio da especialização ou autonomia dos exercícios impõe que os proveitos e os custos economicamente imputáveis a um determinado exercício, sejam considerados apenas nesse exercício, só eles podendo, assim, influenciar o seu resultado.

II - Tal princípio sofre as excepções, previstas na lei, quais sejam: nos casos em que haja imprevisibilidade ou manifesto desconhecimento das componentes positivas ou negativas e das obras de carácter plurianual (artigos 18°, n.ºs 2 e 5 e 19° do CIRC); nas situações em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte e quando esse erro não resultar de omissões voluntárias ou intencionais, com vista a operar as transferências de resultados entre exercícios.»    

Na jurisprudência tributária do CAAD, também constatamos o mesmo sentido decisório, entre outros, nos acórdãos proferidos em 24/11/2014, no processo n.º 367/2014-T e em 22/01/2016, no processo n.º 262/2015-T (disponíveis em www.caad.org.pt/tributário/decisoes). 

Acompanhando este entendimento jurisprudencial, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa[8] preconizam a seguinte posição quanto à aplicação do princípio da especialização dos exercícios:

«Quando há divergência entre o critério do contribuinte e o da administração fiscal sobre a imputação de determinado ganho ou perda a determinado exercício esta deve proceder a correcção da matéria colectável, fazendo acrescer o proveito ou custo ao ano a que entende que ele deve respeitar e, correspondentemente, deveria bater tal proveito ou custo à matéria colectável do ano ao qual o contribuinte a imputou.

Com este procedimento, não haverá qualquer situação de injustiça, pois ao acréscimo de imposto em determinado ano, corresponderá uma diminuição tendencialmente semelhante noutro, não havendo, assim, tributação de um mesmo proveito em dois exercícios ou não dedução em qualquer deles de um custo que deva ser considerado.

  Porém, em certas situações em que a correcção é efectauda no último ano em que pode ser feita e tem por objecto um custo que deveria ter sido considerado no exercício anterior, não é já (ou pode não ser já) possível corrigir a matéria colectável desse anterior ano, por ter já transcorrido o prazo em que podiam ser efectuadas correcções. O mesmo sucede quando, embora no momento em que a administração fiscal faz a alteração da matéria colectável fosse possível efectuar a correspondente correcção no ano a que se entende ser de imputar os custos, ela não o faz e, com o decurso do tempo, se torna inviável fazê-lo.

Nestas condições, se a administração fiscal tinha razão na correcção que efectuou, o contribuinte, em princípio, teria sido prejudicado pelo seu próprio erro ao declarar a matéria colectável, pois, abatendo um custo no ano seguinte àquele em que o deveria ter deduzido, deixou de ver diminuído o montante do imposto correspondente no ano em que tal diminuição deveria ter ocorrido, para só ver tal diminuição ocorrer no ano seguinte e, paralelamente, a administração fiscal não tinha tido qualquer prejuízo, pois recebera no ano anterior o imposto sem que fosse tido em conta esse custo que o deveria diminuir.

Assim, no caso de não poder ser feita já a correcção relativamente ao ano anterior, o contribuinte, que já era o único prejudicado pelo seu erro, veria ainda agravada a sua situação, vendo-se impossibilitado de efectuar a dedução desse custo em qualquer dos anos. A administração fiscal, assim, reteria em seu poder um imposto a que manifestamente não tinha direito.

Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção.

Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça. 

Entre esses dois valores, designadamente nos casos em que a administração fiscal não teve qualquer prejuízo com o erro praticado pelo contribuinte, deve optar-se por não efectuar a correcção, limitando aquele dever de correcção por força do princípio da justiça.

Por outro lado, é de notar que numa situação deste tipo não se verifica sequer qualquer interesse público na actuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a actividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de actuar.

Consequentemente, serão de considerar anuláveis, por vício de violação de lei, actos de correcção da matéria tributável que conduzam a situações de injustiça deste tipo.»                        

            Na mesma esteira, Tomás Cantista Tavares[9] propugna o seguinte entendimento:

            «A violação formal da especialização dos exercícios provoca a antecipação temporal do imposto devido, com diferimento do custo fiscal ou a antecipação do proveito tributário (em anos lucrativos). Aqui, o auto-declarante do imposto prejudica-se a si próprio. Paga-se o mesmo imposto – mantém-se a taxa efectiva, em ambos os anos. Mas fá-lo mais cedo. Antecipa-o, por comparação com o resultado da rigorosa aplicação das regras da especialização de exercícios.      

            (…) o sujeito interpreta e aplica o princípio da especialização em seu desfavor. Entrega o imposto mais cedo. Antecipa-o temporalmente. Este desfecho confirma a inexistência duma intenção fraudatória ou culposa do agente e impõe a total aceitação da conduta do contribuinte, embora sob violação formal da especialização.

            (…) no vazio legal, (…), a jurisprudência deve impor (…), por razões de justiça:

a)      a antecipação do imposto confirma a boa fé do contribuinte – que actuou numa interpretação plausível da regra da especialização;

b)      a correcção assimétrica dum só exercício corre o risco de transformar uma questão temporal num problema material – com uma indesejada dupla tributação, dada a dificuldade em se conseguir a dupla correcção fiscal inversa do balanço.

Em suma: em caso de antecipação temporal do imposto devido, deve-se aceitar a violação formal da especialização dos exercícios, independentemente de juízos sobre a censurabilidade do agente (quer a sua actuação se fique a dever a um erro intencional ou desculpabilizante). Essa tese assenta ainda em duas outras nuances acessórias:

- à entrega antecipada do imposto não se associa a concessão dum direito de juros a favor do contribuinte. O sujeito tomou a atitude que tomou, por sua livre e exclusiva vontade. (…)

- o sujeito passivo, para beneficiar deste regime, tem de alegar e provar qual o exercício em que contabilizou (ou vai contabilizar) o proveito ou o custo.»

 

*

§3. DO CASO SUB JUDICE: SUBSUNÇÃO AO BLOCO NORMATIVO APLICÁVEL

Após a incursão que fizemos pelo bloco normativo aplicável e pela doutrina e jurisprudência sobre o sentido e alcance do princípio da especialização dos exercícios, cumpre agora apreciar a situação sub judice, por via da sua subsunção àquelas normas jurídicas.

Como ponto de partida, importa frisar que, como aliás os próprios Serviços de Inspeção Tributária deixaram expresso no Relatório de Inspeção Tributária, a fundamentação para a não admissão das imparidades emergentes dos créditos não recebidos sobre a cliente da Requerente, “B…, S. A.”, não reside na falta de apresentação de documentos que demonstrem quer a existência de tais créditos, quer que esses créditos foram objeto de reclamação judicial. Efetivamente, a fundamentação para a não aceitação das perdas por imparidade constituídas no exercício de 2012 radica na violação do princípio da especialização dos exercícios; violação essa que, sublinhe-se, é insofismável que foi cometida pela Requerente. De facto, como ficou provado (cf. facto e)), em 9 de setembro de 2011, a Requerente instaurou uma ação declarativa de condenação, em processo ordinário, contra a sua cliente “B…, S. A.”, peticionando o pagamento da quantia de € 95.591,00, acrescida de juros de mora, ainda em divida relativamente às referenciadas faturas; assim, pelo menos a partir dessa altura deveria ter sido tomada a decisão de constituir as perdas por imparidade, o que poderia ter sido feito na subsequente declaração de rendimentos atinente ao exercício de 2011 (entregue em 2012). 

 Todavia, atentas as circunstâncias que enformam o caso concreto e tendo presente a factualidade considerada provada (cf., nomeadamente, os factos d), h), i) e j)), emerge dos autos evidência suficiente para concluir que o não cumprimento do princípio da especialização dos exercícios não resultou de omissões voluntárias e intencionais da Requerente, resultantes de estratégias deliberadas (comerciais, de gestão ou outras), com vista a manipular resultados ou operar a sua transferência entre exercícios, contornando-se, dessa forma, as finalidades visadas por lei com a consagração do princípio da especialização dos exercícios.

Por outro lado, é também evidente que o Estado não foi prejudicado pela atuação da Requerente, pois o que aconteceu é que esta contabilizou os custos em causa (perdas por imparidade), só que não o fez corretamente; ou seja, os respetivos quantitativos, embora certos, não foram levados aos exercícios correspondentes.

Mas daí, como se disse, não resulta prejuízo para o Estado. Pelo contrário, a Requerente é que ficou prejudicada com a não observância do princípio da especialização dos exercícios. Na verdade, a imputação de custos a um determinado exercício tem como corolário diminuir a matéria coletável respetiva e, logo, o pagamento de menos imposto. Assim, tendo-se atrasado na imputação dos custos, a Requerente também atrasou a entrada na sua esfera jurídica da vantagem patrimonial em que se consubstancia a correspondente redução de imposto do ano respetivo, o que se reconduz a um prejuízo para si própria, por vir a auferir essa vantagem um ano ou dois anos depois daqueles em que deveria ter beneficiado, perdendo a disponibilidade das respetivas quantias durante esses períodos. E, como é óbvio, esse atraso beneficiou a Fazenda Pública, pois esta teve em seu poder durante esses anos em que houve atraso na imputação de custos, as quantias de imposto pagas a mais, nos anos em que os custos deviam ter sido imputados e não o foram.

Nesta parametria, a seguir-se o entendimento da AT, a Requerente sairia intoleravelmente prejudicada, pois não poderia agora contabilizar como custos, aquilo que efetivamente suportou, sendo que a Requerente não poderá já lançar mão da revisão do ato tributário, por estar ultrapassado o respetivo prazo para o fazer.

Dito isto, comungando com a jurisprudência e a doutrina acima referenciadas, entendemos que, não sendo o princípio da especialização dos exercícios um princípio absoluto, o mesmo, enquanto norma contabilística e fiscal, não pode ser interpretado e aplicado em prejuízo dos princípios da verdade material, capacidade contributiva e da justiça. Pelo que, entre uma solução, como a que aqui adotamos, em que não existem prejuízos nem benefícios e aqueloutra que seria encontrada pela aplicação estrita e absoluta do princípio da especialização dos exercícios, que beneficiaria uns (Fazenda Pública) e prejudicaria outros (contribuinte), é seguramente de optar pela primeira, para a qual existe, como vimos, fundamento legal.

Nestes termos, a correção efetuada à matéria coletável de IRC, referente ao exercício de 2012, consubstanciada na desconsideração do custo fiscal respeitante às perdas por imparidade registadas naquele exercício, atinentes à cliente da Requerente, “B…, S. A.”, no valor de € 95.591,00, enferma de vício de violação de lei, por violação do princípio da justiça; daí decorre, necessariamente, a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC controvertido e a sua consequente anulação, na parte em que teve como pressuposto esta correção. 

 

*

§4. DO REEMBOLSO DA QUANTIA PAGA E JUROS DE MORA 

A Requerente peticiona o reembolso da quantia de € 14.187,98, por si paga em 23 de agosto de 2015, atinente à referenciada demonstração de acerto de contas n.º 2015 … (cf. factos w) e x)).

Adicionalmente ao reembolso daquela quantia, a Requerente peticiona o pagamento de juros de mora, contados desde a data de pagamento (23.08.2015) até ao seu efetivo e integral reembolso.

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT (aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT).

Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso do montante indevidamente pago.

Como resultou provado (cf. facto v)), as mencionadas correções meramente aritméticas efetuadas à matéria coletável de IRC do exercício de 2012, tiveram subjacentes a desconsideração fiscal das perdas por imparidade atinentes às clientes da Requerente, “B…, S. A.”, no valor de € 95.591,00, e “C…, Unipessoal, Lda.”, no valor de € 7.193,09, e ainda as depreciações não aceites como gasto fiscal, no montante de € 4.250,00.

Ora, a Requerente apenas veio contestar a correção relativa às perdas por imparidade não aceites fiscalmente, atinentes à sua cliente “B…, S. A.”, no valor de € 95.591,00, nada mais tendo contraditado.

Por isso, o Tribunal Arbitral apenas conheceu dessa matéria e acima já deixou expresso o seu juízo no sentido de aquela correção enfermar de vício de violação de lei, por violação do princípio da justiça, decorrendo daí a ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC controvertido e a sua consequente anulação, na parte em que teve como pressuposto esta correção.

Assim, não tem a Requerente direito ao reembolso integral do montante de € 14.187,98, por si pago – pois isso equivaleria a considerar totalmente ilegal e, portanto, a anular integralmente a liquidação adicional de IRC controvertida –, mas apenas a uma parte desse valor, a ser determinada e fixada em execução de sentença.  

Isto posto, cumpre agora apreciar o pedido de pagamento de juros de mora.

A este propósito, importa atender ao disposto no n.º 5 do art. 24.º do RJAT, que estabelece que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário».

Esta norma deve ser entendida como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral. Com efeito, embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4, do CPPT, que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Acontece que, a Requerente peticiona o pagamento de juros de mora.      

            A lei prevê, efetivamente, dois tipos de juros a favor dos contribuintes: os juros indemnizatórios e os juros moratórios (cf. arts. 43.º e 102.º, n.º 2, da LGT).

            A distinção entre estas duas figuras radica no seguinte: os juros indemnizatórios visam ressarcir o contribuinte pelo desapossamento do capital correspondente a um imposto indevidamente liquidado; os juros moratórios visam ressarcir o contribuinte pelo atraso no pagamento do seu crédito resultante da anulação do ato.

            Existindo dois tipos de juros a favor dos contribuintes, importa balizar os períodos de tempo relevantes para a respetiva contagem, sendo que, a este propósito, a jurisprudência é pacífica: os juros indemnizatórios são devidos até ao termo do prazo da execução espontânea do julgado e os juros moratórios são devidos a partir daí e até efetivo e integral pagamento.

            Assim, decorrido o prazo de execução espontânea da sentença transitada em julgado, pela Administração Tributária e Aduaneira, sem que ela seja cumprida, pode o interessado requerer a execução da sentença e, enquanto credor da restituição de tributo (indevidamente) pago, terá direito a juros de mora, cujo pagamento deverá expressamente peticionar.

Sucede que, na falta de qualquer disposição legal que permita concluir em contrário, o âmbito dos processos arbitrais restringe-se às questões da legalidade dos atos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT que são abrangidos pela vinculação que a Autoridade Tributária e Aduaneira veio a fazer na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, ao abrigo do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT, não podendo os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, designadamente, definir os termos em que devem ser executados julgados anulatórios que vierem a ser proferidos.

Na verdade, a competência para executar os julgados proferidos pelos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD cabe, em primeira linha, à própria Autoridade Tributária e Aduaneira, como resulta do teor expresso do n.º 1 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que «a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta...».

Por outro lado, a haver discordância entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e os sujeitos passivos sobre a forma de execução de julgados, são os tribunais tributários os competentes para a sua apreciação, já que não são atribuídas aos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD competências em processos de execução de julgados e os tribunais arbitrais dissolvem-se na sequência da decisão arbitral, como decorre do artigo 23.º do RJAT.

Atento o exposto e uma vez que a apreciação dos pressupostos do (eventual) direito da Requerente a juros de mora só poderá vir a ser efetuada em sede de um processo de execução de julgado, conclui-se que este Tribunal Arbitral é materialmente incompetente para apreciar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros de mora, o que consubstancia uma exceção dilatória conducente à absolvição da instância da Autoridade Tributária e Aduaneira, quanto a este pedido (cf. arts. 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a) e 578.º do CPC aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

***

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

a) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente:

- declarar ilegal a correção meramente aritmética efetuada à matéria coletável de IRC, referente ao exercício de 2012, consubstanciada na desconsideração do custo fiscal respeitante às perdas por imparidade registadas naquele exercício, atinentes à cliente da Requerente, “B…, S. A.”, no valor de € 95.591,00;

- declarar, nesta exata medida, parcialmente ilegal a liquidação adicional de IRC impugnada nestes autos, com a sua consequente anulação parcial, o mesmo sucedendo com as correspondentes liquidações de juros compensatórios;

b) Condenar a Administração Tributária no reembolso à Requerente da quantia por esta indevidamente paga, no valor que vier a ser fixado em execução de sentença;  

c) Julgar o Tribunal Arbitral materialmente incompetente para apreciar o pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros de mora à Requerente e, consequentemente, absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância, quanto a este pedido;

d) Absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira do pedido nas partes em que não é decidida a anulação das liquidações controvertidas;

e) Condenar ambas as Partes no pagamento das custas do processo, na proporção do decaimento.

 

***

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 4.664,28.

 

*

CUSTAS

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo de Requerente e Requerida, na proporção, respetivamente, de 11,00% e de 89,00%.

 

*

Lisboa, 29 de abril de 2016.

 

O Árbitro,

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)

 

 



[1] A Requerente peticiona a revogação do ato tributário controvertido, o que, salvo o devido respeito, se afigura incorreto.

A revogação do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada incumbe ao dirigente máximo do serviço da AT (cf. art. 13.º, n.º 1, do RJAT) e não ao Tribunal Arbitral.

O processo arbitral tributário está estruturado como um contencioso de mera anulação e, como tal, tem em vista aferir da (i)legalidade de atos dos tipos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 2.º do RJAT e anulá-los ou declarar a sua inexistência ou nulidade.   

No entanto, entendemos que tal imprecisão “conceptual” não deve obstar ao conhecimento do pedido de pronúncia arbitral, por ser percetível aquela que é a real pretensão da Requerente, o que, aliás, resulta comprovado pelo teor da Resposta apresentada pela Requerida.  

[2] Manuel Henrique de Freitas Pereira, “A periodização do lucro tributável”, Ciência e Técnica Fiscal, 1988, n.º 349, pp. 77 e ss.

[3] Ob. cit., pp. 80-81.

[4] Tomás Cantista Tavares, IRC e contabilidade: da realização o justo valor, Coimbra, Almedina, 2011, p. 63.

[5] Ob. cit., pp. 63-66.

[6] No mesmo sentido, vide, entre outros, os acórdãos proferidos em 02/04/2008, no processo n.º 0807/07, em 25/06/2008, no processo n.º 0291/08 e em 09/05/2012, no processo n.º 0269/12. 

[7] Acórdão proferido em 28/03/2007, no processo n.º 01551/06, disponível em www.dgsi.pt.

[8] Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª Edição, Lisboa, Encontro da Escrita, 2012, pp. 452-454.

[9] Ob. cit, pp. 67-69.