Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 56/2015-T
Data da decisão: 2015-08-24  IVA  
Valor do pedido: € 101.361,60
Tema: IVA – Competência do Tribunal Arbitral: tempestividade; direito à dedução de pessoa colectiva de direito público
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), João Ricardo Catarino e António Nunes dos Reis, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte

 

 

ACÓRDÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. No dia 3 de Fevereiro de 2015, o Município A…, pessoa colectiva de direito público local, contribuinte fiscal número …, com sede na …, …-…, …, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do indeferimento do acto de autoliquidação de IVA relativo a Dezembro de 2009, correspondente a um montante de imposto que entendeu pago a mais, no valor de €101.361,60, e do pedido de revisão oficiosa, e respectivo recurso hierárquico, que apresentou relativamente ao mesmo.

  

  1. Para fundamentar o seu pedido alega o Requerente, em síntese, que, após uma revisão interna dos procedimentos adaptados concluiu que, durante anos, havia limitado indevidamente o exercício do seu direito à dedução relativo ao IVA incorrido nos recursos de utilização “mista”, também designados por “recursos comuns”, tendo por conseguinte suportado IVA que, de acordo com as regras deste imposto, seria recuperável, o que agora pretende ver corrigido.

 

  1. No dia 24 de Fevereiro de 2015, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

  1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 26 de Março de 2015, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

  1. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 13 de Abril de 2015.

 

  1. No dia 12 de Maio de 2015, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.

 

  1. O Requerente, devidamente notificado para o efeito, pronunciou-se por escrito quanto às excepções deduzidas pela Requerida na sua resposta, pugnando pela respectiva improcedência.

 

  1. Posteriormente, atendendo a que não existia necessidade de produção de prova adicional, para lá da prova documental já incorporada nos autos, as partes se tinham pronunciado, na medida do necessário, sobre a matéria de excepção e que no processo arbitral vigoram os princípios processuais gerais da economia processual e da proibição da prática de atos inúteis, ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º do RJAT foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT e facultada às partes a possibilidade de, querendo, apresentarem, alegações escritas, o que não fizeram.

 

  1. Por despacho de 30/06/2015 foi fixado em 30 dias o prazo de apresentação da decisão final dos presentes autos.

 

  1. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

1-      Por requerimento de 27-12-2013, o Requerente pediu, ao abrigo do artigo 78.º da Lei Geral Tributária, a revisão oficiosa da “(auto)liquidação de IVA efectuada em excesso nas declarações periódicas deste imposto, relativamente aos períodos de Janeiro a Dezembro de 2009, e consequente pagamento de prestação tributária em excesso no valor de € 101.361,60...”.

2-      Por despacho de 26-05-2014, do Subdirector-Geral do IVA (com subdelegação de competências), exarado na Informação n.º …, de 19-05-2014, foi indeferido o pedido.

3-      Nesta decisão concluiu-se, para além do mais, que:

«(...) 147.Estando, no caso em análise, já ultrapassados os prazos para o exercício do direito à dedução estabelecidos nos artigos 22.º e 23.º do CIVA, e confirmando-se que os documentos de suporte relativos às operações passivas em causa foram registadas na contabilidade do Requerente em devido tempo, apenas se pode admitir a correcção do imposto deduzido com base no nº6 do art.78º do CIVA.

148. O nº6 do art.78º do CIVA estabelece um prazo especial para o exercício do direito à dedução de dois anos para as regularizações a favor do sujeito passivo, que depois de ultrapassado conduz à preclusão desse direito.

149. Tendo o requerente apresentado, em dezembro de 2013, o pedido de revisão oficiosa onde solicita a dedução adicional de imposto suportado em 2009, mostra-se ultrapassado o prazo para o exercício desse direito. (...).»

4-      Por requerimento de 01-07-2014, veio o Requerente a interpor recurso hierárquico daquela decisão, onde pugnou, a final, por que seja considerado dedutível o montante de IVA de €101.361,60, com referência ao ano de 2009.

5-      Por despacho de 30-11-2014 do Substituto Legal do Director-Geral, exarado na Informação n.º 2427, de 17-10-2014, foi determinado o indeferimento do recurso hierárquico interposto..

6-      Considerou a entidade decisora, para além do mais, que:

«(...) o alegado erro invocado pelo recorrente nunca poderia ser imputável à AT, porque a dedução ou não de imposto e respectivos métodos e critérios estão exclusivamente na disponibilidade dos sujeitos passivos, dependendo, aliás, de escolhas discricionárias e conhecimentos inerentes à gestão da actividade tributada que só estão ao alcance do próprio sujeito passivo, designadamente a separação por setores de actividade onde são aplicados os bens e serviços adquiridos.

(...) o pedido de revisão do ato tributário não pode sobrepor-se às normas reguladoras do direito à regularização deste imposto. Por outras palavras, um sujeito passivo que, nos termos do CIVA, já não pode regularizar o IVA autoliquidado, não pode atingir o mesmo resultado através da revisão oficiosa prevista no nº1 do art.78º da LGT e do nº1 do art.98º do CIVA. (...) sob pena destas normas ficarem desprovidas de qualquer efeito prático, perderem a sua razão de ser e daquele direito, na prática, poder ser exercido, em muitas situações, pelo mecanismo da revisão oficiosa no prazo de quatro anos fixado no nº1 do art.78º da LGT.»

7-      O Requerente é uma pessoa colectiva de direito público local, cuja actividade consiste na prossecução das suas atribuições municipais nas mais diversas áreas de actividade, encontrando-se enquadrado, para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), no regime normal mensal.

8-      Na prossecução das suas atribuições, o Requerente realiza um vasto conjunto de operações inseridas no âmbito dos seus poderes de autoridade, as quais são excluídas da sujeição a IVA ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 2.º do Código do IVA.

9-      Realiza também o Requerente um conjunto de operações, quer sejam transmissões de bens, quer sejam prestações de serviços, que não se encontram enquadradas no âmbito dos seus poderes de autoridade, estando por isso sujeitas a IVA nos termos gerais do Código deste imposto.

10-  Ao longo dos períodos do ano de 2009, o Requerente submeteu declarações periódicas mensais de IVA, nas quais não procedeu a qualquer dedução do montante de IVA respeitante a bens de utilização mista, que são indistintamente utilizados para a realização de operações que conferem e de operações que não conferem o direito à dedução do IVA.

11-  Posteriormente, em 2013, após uma revisão aos procedimentos do IVA adoptados, verificou o Requerente que, em face da não dedução do IVA a respeito dos bens de utilização mista, havia entregue, no seu entender, imposto em excesso ao Estado, para o ano de 2009, no montante de €101.361,60.

12-  O pedido de constituição do presente Tribunal arbitral foi apresentado em 03 de Fevereiro de 2015.

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida em sede da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

B. DO DIREITO

            i. Matéria de excepção

a)

            Começa a AT, como matéria prévia ao conhecimento do mérito da causa, por questionar competência material do Tribunal Arbitral em razão da matéria, para apreciar o pedido de restituição à Requerente do IVA liquidado no montante de €162.258,38, em virtude de não ter sido deduzida, previamente, reclamação graciosa.

No entender da Requerida, “na situação sub judice (...), sempre se impunha a precedência obrigatória de reclamação graciosa nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 131.º do CPPT.”.

            Fundamenta a AT o seu entendimento no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

            Entende a AT, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na sua literalidade, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.

            Toda a argumentação da AT na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de actos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, porquanto é isso que diz no texto da norma interpretada.

            Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela AT, uma razão substancial que explique a racionalidade do entendimento que sustenta. Efetivamente, não se descortina qualquer fundamento material – e a AT nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos actos de autoliquidação.

            Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela AT nos autos.

            Com efeito, a expressão empregue por tal norma é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

            A norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação direta de actos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia. Ou seja: tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela AT, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.

            Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a AT dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

            E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012T do CAAD[1], e jurisprudência arbitral subsequente, incluindo o Acórdão proferido no processo 117/2013T, também do CAAD[2], citado pela própria AT a propósito de outras questões, e onde se pode ler, para além do mais, que “a interpretação exclusivamente baseada no teor literal que defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no presente processo não pode ser aceite, pois na interpretação das normas fiscais são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis (artigo 11.º, n.º 1, da LGT) e o artigo 9.º n.º 1, proíbe expressamente as interpretações exclusivamente baseadas no teor literal das normas ao estatuir que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei», devendo, antes, «reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada».”.

            Deve, deste modo, improceder a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral, invocada pela AT.

*

b)

            Seguidamente, argui a AT a incompetência da Jurisdição Arbitral em razão da matéria, em virtude de, no pedido de revisão oficiosa e subsequente recurso hierárquico, não ter sido apreciada a legalidade de qualquer acto tributário de liquidação.

            Sustenta a Requerida que “o Requerente, no pedido de revisão oficiosa e no recurso hierárquico posterior, não solicitou a anulação de qualquer acto de autoliquidação.”, “Sendo que as decisões de indeferimento ora impugnadas foram motivadas pela subsunção do caso em concreto à disciplina do n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA, tendo-se, consequentemente, concluído pelo não cumprimento pela Requerente do prazo de dois anos para a efectivação das correcções previstas.

            Mais uma vez entende-se não lhe assistir razão.

            Com efeito, logo no primeiro parágrafo da decisão do pedido de revisão oficiosa, lê-se (sublinhado nosso):

Através de petição apresentada em 2013-12-27, vem, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 78° e 98°, ambos do Código do IVA (CIVA) e no art° 78º da Lei Geral Tributária (LGT), requerer a revisão do ato tributário de (auto)liquidação, por alegado pagamento em excesso, nas declarações periódicas de IVA apresentadas para os períodos de janeiro a dezembro de 2009, no valor de €101.361,60.”.

            Também no ponto 2.1 da informação em que se fundamenta o indeferimento do recurso hierárquico oportunamente interposto pela Requerente, se lê (sublinhado nosso): “Em 2013-12-27, o Recorrente apresentou pedido de revisão oficiosa (RO … 2014 …), relativo à autoliquidação e pagamento do IVA, efetuado em excesso nas declarações periódicas relativas ao ano de 2009, no valor de € 101.361,60”.

            As passagens transcritas são suficientes, crê-se, para evidenciar que quer no pedido de revisão oficiosa, quer no subsequente recurso hierárquico estava, efectivamente, submetida à apreciação da AT a legalidade do acto de autoliquidação de IVA do Requerente, do mês de Dezembro de 2009, que tratando-se de acto, notoriamente, do conhecimento pessoal da AT, esta não poderá alegar desconhecer.

            Conforme se escreveu no Ac. do CAAD proferido no processo 117/2013T[3], “embora a parte decisória do acto de indeferimento do pedido de revisão do acto de autoliquidação não se pronuncie sobre a legalidade deste, acaba por se admitir, na fundamentação, que a pretensão da ora Requerente poderia ter acolhimento se tivesse sido formulada dentro do prazo previsto no artigo 78.º, n.º 6, do CIVA, o que tem ínsito que o acto de autoliquidação é ilegal.”.

            Assim, e por todo o exposto, deverá também esta excepção improceder.

*

c)

Por fim, e antes de se apresentar a discutir o mérito da causa, argui a AT a intempestividade para a impugnação directa dos actos de liquidação de IVA, por ter expirado, há muito, o prazo de 90 dias contado desde o termo do prazo legal para o respectivo pagamento voluntário.

            Aponta, correctamente, a AT que “a "tempestividade" do pedido apenas poderia fundar-se na existência de um qualquer meio de impugnação gracioso do acto de autoliquidação onde tivesse sido prolatada decisão a negar/indeferir, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto (naquilo que constituiria um acto de segundo grau).”.

            Entende, ainda, a AT, que o pedido de revisão oficiosa apresentado pelo Requerente, não incidiu sobre a legalidade de qualquer autoliquidação, tendo o Requerente pedido, unicamente, autorização para a regularização de IVA dos períodos por si indicados, pelo que será insusceptível de interferir com o prazo de impugnação das referidas autoliquidações.

            Relevante para a resolução da questão em apreço, será, então, apurar se o pedido de revisão oficiosa (meio de impugnação gracioso) apresentado pelo Requerente, e subsequente recurso hierárquico, incidiram mesmo sobre o acto de autoliquidação impugnado, e respectiva legalidade ou se, pelo contrário, tiveram exclusivamente outro objecto, que não aquele.

            Ora, a resposta a esta questão não poderá deixar de ir no primeiro dos sentidos apontados, conforme se expôs já previamente, sendo claro que quer o pedido de revisão oficiosa, quer o recurso hierárquico que lhe sucedeu, não só incidiram sobre o acto de autoliquidação indicado pelo Requerente, como apreciaram a respectiva legalidade, confirmando-a por, no entender da AT, ter decorrido o prazo dentro do qual lhe seria permitido exercer o direito de aquela proceder às correcções por si propugnadas.

            Deste modo, existindo, efectivamente e ao contrário do que sugere a AT, um “meio de impugnação gracioso do acto de autoliquidação”, no caso o pedido de revisão oficiosa e o subsequente recurso hierárquico, onde foi “proferida decisão a negar/indeferir, total ou parcialmente, as pretensões aí formuladas pelo sujeito passivo de imposto”, e tendo o presente pedido de pronúncia arbitral sido apresentado dentro do prazo legalmente previsto, por referência ao último daqueles actos, deve considerar-se tempestiva a presente lide.

*

Não há, aqui chegados, qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

***

ii. Do fundo da causa

A questão de fundo submetida a este Tribunal Arbitral, prende-se com aferir se assiste ou não razão ao decido pelo AT no pedido de revisão oficiosa apresentado pela Requerente, e no subsequente recurso hierárquico, onde foi entendido que a situação em apreço não se subsume no disposto nos artigos 98.º do CIVA e 78.º da LGT mas sim no disposto no artigo 78.º n.º 6 do CIVA.

Vejamos, então.

Dispõe o artigo 98.º do CIVA que:

“1 — Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária.

2 — Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respectivamente.”.

Por sua vez, o artigo 78.º do mesmo Código refere, para além do mais, que:

“(...) 2 — Se, depois de efectuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efectuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.

(...) 6 — A correcção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º e nas guias ou declarações mencionadas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 67.º é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efectuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respectivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.”

Como resulta das normas transcritas, a legislação nacional permite que, nomeadamente, ocorrendo um erro material ou de cálculo, que se tenha dado em prejuízo do sujeito passivo, o mesmo possa ser corrigido no prazo fixado no artigo 78.º/6 do CIVA.

            Outros tipos de erros poderão ser corrigidos mediante a apresentação de declaração de substituição[4], caso tal ainda seja, nos termos legais, possível, ou, não o sendo, mediante pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, desde que verificados, igualmente, os correspondentes pressupostos, o que, de resto, decorre directamente do disposto no artigo 98.º do CIVA, acima transcrito.

Não se subscreve, assim, a tese de que o pedido de revisão oficiosa, nos termos do artigo 78.º da LGT, relativamente a erro de direito ou de facto em autoliquidações de IVA, apenas se poderá efectuar no prazo fixado no n.º 6 do artigo 78.º do CIVA[5]. Com efeito, na situação regulada por tal norma – correcção de erros materiais ou de cálculo – não será, inclusive, necessário formular qualquer pedido de revisão oficiosa, já que aquela norma do artigo 78.º/6 do CIVA integra uma previsão própria de correcção do erro, motivador do correspondente procedimento, inexistindo qualquer relação entre este e o pedido de revisão oficiosa regulado no artigo 78.º da LGT, para o qual o artigo 98.º do CIVA expressamente remete.

Para além da correcção de erros materiais ou de cálculo, também serão atendíveis factos supervenientes, nos termos regulados pelo n.º 2 do artigo 78.º do CIVA. Cumprirá, todavia, ter sempre bem presente que uma coisa será um erro (um desfasamento entre a realidade representada na declaração periódica e a realidade – erro de facto – ou o direito) e outra coisa é a ocorrência superveniente de um facto (uma alteração na realidade), que acarreta uma alteração no imposto a suportar ou deduzir, sendo que é a estas últimas situações que a referida norma do artigo 78.º/2 do CIVA se reporta.

            No presente caso, manifestamente, o que ocorreu foi, não a superveniência de qualquer facto, mas, antes, um erro – não material ou de cálculo – mas de no direito aplicável, que se terá traduzido na não determinação da matéria tributável nos termos em que, face aos factos que, na realidade, ocorreram e eram conhecidos do Requerente, e ao direito aplicável, o deveria ter sido.

            Não se trata, ao contrário do que pretende a AT (cfr. artigo 115.º da Resposta), de “um erro material” que se reporte “ao cálculo do pro rata de dedução do imposto, relativamente a um sujeito passivo misto.”. Seria este o caso, e assistiria razão à AT, se, de facto, o Requerente tivesse deduzido imposto relativamente à aquisição de recursos de utilização mista, aplicando um pro rata que, a final, reputasse errado. Contudo, no caso sub iudice, e conforme resulta do ponto 10 dos factos dados como provados, o Requerente não procedeu a qualquer dedução do montante de IVA respeitante a bens de utilização mista.

            Não se concorda, igualmente, com a inferência da AT, segundo a qual “os erros constantes nos actos de autoliquidação consubstanciam erros materiais, pois são erros internos do Requerente, na valoração do que deve constituir IVA dedutível e não dedutível, apurado contabilisticamente e reportado, nessa medida, na respectiva declaração periódica do imposto.” (cfr. artigo 126.º da Resposta).

Com efeito, como se escreveu no Acórdão proferido no processo 117-2013T do CAAD, já referido, “estar-se-á perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretendia escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade ou em algum documento que sirva de base ao exercício do direito à dedução. Estar-se-á perante um erro de cálculo, quando as operações aritméticas para determinar o montante do IVA dedutível foram mal efectuadas, na própria declaração ou em algum dos documentos em que ela se baseou. (...) O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA.

            O que ocorreu, então, foi que o Requerente se consciencializou, entretanto, que nas autoliquidações a que procedeu, por desconsideração do regime legal aplicável, não procedeu às deduções que lhe era legítimo fazer.

            Deste modo, não será o erro em causa corrigível nos termos do n.º 6 do artigo 78.º do CIVA do mesmo artigo, uma vez que não se trata de erro de cálculo (não se traduz na incorrecta articulação de parcelas integrantes de operações aritméticas), nem de um erro material (uma divergência entre o que foi escrito e o que, manifestamente, se queria ter escrito no momento em que se escreveu).

            A correcção da situação em causa nos autos (erro de direito na autoliquidação), face a todo o acima exposto, sempre teria de ocorrer por referência à declaração periódica em que o imposto a deduzir foi suportado, se, e nas condições em que legalmente a rectificação desta – por iniciativa do contribuinte ou, oficiosamente, pela AT, ainda que a pedido daquele – se possa legalmente dar.

            E foi precisamente isso que aconteceu, relativamente à autoliquidação do Requerente, referentes ao período de Dezembro de 2009, relativamente à qual foi apresentado um pedido de revisão oficiosa, nas condições legalmente admitidas, como se viu atrás.

            Não se tratará aqui – ou, pelo menos, não está apurado que se trate – do exercício do direito à dedução em momentos posteriores aos que resultam do artigo 22.º do Código do IVA, não sendo por isso, tanto quanto até ao momento se apurou, caso de aplicação da doutrina do Acórdão do STA de 18-05-2011, proferido no processo 0966/2010[6], citado pela Requerida, que, de resto, se subscreve[7]. Com efeito, apenas na medida em que o Requerente esteja a pretender a revisão da auto-liquidação de Dezembro de 2009, com base em imposto que se tenha tornado dedutível em data não abrangida por aquele período, é que a dedução ocorrerá em violação do artigo 22.º do CIVA, situação que, contudo, não integra o fundamento dos actos tributários em crise no presente processo.

            Não se ratifica, igualmente, o entendimento da decisão do recurso hierárquico (não sustentado, diga-se, em sede arbitral), segundo o qual “o alegado erro invocado pelo recorrente nunca poderia ser imputável à AT, porque a dedução ou não de imposto e respectivos métodos e critérios estão exclusivamente na disponibilidade dos sujeitos passivos, dependendo, aliás, de escolhas discricionárias e conhecimentos inerentes à gestão da actividade tributada que só estão ao alcance do próprio sujeito passivo, designadamente a separação por setores de actividade onde são aplicados os bens e serviços adquiridos.”.

            Atemo-nos aqui, antes, ao conceito de erro para efeitos do artigo 78.º da LGT, que tem sido recorrentemente afirmado pela jurisprudência, como abrangendo o erro de facto, e o erro de direito, que não é compatível com o referido entendimento da AT.

Com efeito, e desde logo, o Requerente é, no caso, tributada, não por ter feito constar dos seus registos contabilísticos determinadas inscrições, mas por ter efectivamente realizado operações sujeitas em volume superior às operações dedutíveis. Daí que o erro na liquidação se afira, não face à contabilidade da Requerente, mas à realidade tal como ela ocorreu, e ao direito que lhe é aplicável.

            Por outro lado, a circunstância de, objectivamente, o erro na autoliquidação poder não ser, concretamente, imputável à Administração Tributária, que é, no fundo, aquilo que a AT pretende reportar-se com a frase transcrita, não relevará, já que a lei, no n.º 2 do artigo 78.º da LGT, ficciona a imputabilidade aos serviços do erro na autoliquidação.

Assim, por exemplo, no Ac. do STA de 14-12-2011, proferido no processo 0366/11[8], pode ler-se que “Apesar de não ter sido deduzida reclamação contra o acto de autoliquidação no prazo previsto no artigo 131.º do CPPT, o interessado podia ainda solicitar à administração tributária a revisão oficiosa do acto ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 78.º da LGT, vez que a lei ficciona que os erros da autoliquidação são imputáveis à administração”.

            Deste modo, não se validando o entendimento de que, in casu, há uma norma especial fixando genericamente o limite de dois anos para a correcção de erros de facto ou de direito na auto-liquidação de IVA, incluindo os relacionados com o exercício do direito à dedução, mas, antes, que aquele limite se situa no prazo geral de 4 anos prescrito pela norma do n.º 2 do artigo 98.º do CIVA, sendo que no caso não se verifica qualquer situação de especialidade (designadamente erro de cálculo ou material), conclui-se pela ilegalidade das decisões, fundadas naquele entendimento, do pedido de revisão oficiosa e do recurso hierárquico, objecto do presente processo, devendo, nessa medida, proceder os correspondentes pedidos arbitrais.

 

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            O Requerente peticiona ainda nos autos, a condenação da AT ao reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de €101.361,60 e, ao pagamento dos respectivos juros indemnizatórios.

            Nesta parte já não poderá, contudo, o pedido arbitral proceder.

            Como resulta dos factos provados e não provados, não se apurou, desde logo porquanto, nessa parte, nada foi alegado, que o montante de imposto a reembolsar ao Requerente fosse aquele que ele reclama, ou outro qualquer.

            Deste modo, não podendo o Tribunal determinar qual o concreto valor do imposto indevidamente pago pelo Requerente, não poderá proceder o pedido de reembolso formulado, e ter-se-á que concluir, como sugere a AT na sua Resposta, que “em face da anulação das decisões administrativas [do recurso hierárquico e do pedido de revisão oficiosa], deve o Tribunal determinar que o processo seja devolvido à Autoridade Tributária e esta se pronuncie pela regularização peticionada.”.

            Efectivamente, tal decorre, desde logo, da obrigação da AT “Praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto objecto da decisão arbitral”, consagrada na al. a) do n.º1 do art.º 24.º do RJAT, bem como do próprio efeito anulatório da presente decisão, que, retirando da ordem jurídica os actos decisórios do pedido de revisão oficiosa e do subsequente recurso hierárquico, e os que dele dependem, faz retornar o procedimento à fase imediatamente anterior à decisão daquele pedido, assistindo à AT o dever legal de o decidir.

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            Mais peticiona o Requerente que a AT seja condenada a ressarcir o Requerente de todas as despesas resultantes da lide, com honorários de mandatários judiciais, a liquidar em execução de julgados.

            A pretensão referida, no contexto da petição que culmina, é absolutamente destituído de qualquer fundamento, de facto ou de direito.

            De resto, nos Tribunais Tributários, o ressarcimento das despesas com honorários de mandatários, é assegurado pelas custas de parte, sendo que, no processo arbitral tributário, as mesmas não estão previstas, sendo, consequentemente, a não ressarcibilidade das mesmas um decorrência da opção pelo accionamento da via arbitral pelo contribuinte.

            Deve, assim, também este pedido improceder.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar parcialmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência,

a)      Anular o despacho de indeferimento do pedido de Revisão Oficiosa, de 26-05-2014;

b)      Anular o despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico, de 30-11-2014;

c)      Julgar improcedentes os restantes pedidos arbitrais formulados;

d)     Condenar as partes nas custas do processo, no montante de €3,060,00, na proporção do respectivo decaimento, fixando-se em €1.530,00 a parte a cargo da Requerente e em €1.530,00 a parte a cargo Requerida.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em €101.361,60, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelas partes, na proporção do respectivo decaimento, acima fixado, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

 

24 de Agosto de 2015

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho - Relator)

 

O Árbitro Vogal

(João Ricardo Catarino)

 

O Árbitro Vogal

(António Nunes dos Reis)

 

 



[1] Disponível para consulta em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/.

[2] Idem.

[3] Disponível para consulta em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/.

[4] Cfr. neste sentido o Ac. do STA de 02-10-2010, proferido no processo 0256/10, disponível em www.dgsi.pt.

[5] Neste sentido, cfr. os Acs. proferido nos processos 117/2013T, 185/2014T e 277/2014T, todos do CAAD, disponíveis em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/.

[6] Disponível em www.dgsi.pt.

[7] Cfr., nesse sentido, o Acórdão proferido no processo 185/2014T do CAAD (a aguardar publicação).

[8] Disponível em www.dgsi.pt.