Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 559/2022-T
Data da decisão: 2023-07-24  IVA  
Valor do pedido: € 634.253,88
Tema: IVA; Leasing; Cálculo do pro rata de dedução do IVA relativo a custos comuns.
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Decisão Arbitral

 

I. Relatório

A... – SUCURSAL EM PORTUGAL, doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º..., com sede Rua ..., n.º..., ..., ..., ..., apresentou, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos n.os 1 e 2 do artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária ou “RJAMT”) e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, pedido de pronúncia arbitral, com vista a:

  • A declaração de ilegalidade e anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), referente ao ano 2019, materializada na declaração periódica de imposto com referência a dezembro do ano em apreço, no montante de € 634.253,88;
  • A declaração de ilegalidade e anulação parcial do mesmo ato de autoliquidação.

É requerida a AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “Requerida”, “Autoridade Tributária” ou simplesmente “AT”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 21-09-2022.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como membros do tribunal arbitral coletivo os  árbitros Vítor Calvete (presidente) Nina Aguiar (vogal) e Sérgio de Matos (vogal), que  comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 10-11-2022, foram as Partes devidamente notificadas da designação dos árbitros, não tendo manifestado vontade de recusar a mesma, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 28-11-2022.

A fim de alicerçar a sua pretensão, a Requerente alega, em termos sucintos, o seguinte:

  • No cálculo da percentagem de IVA dedutível nos contratos de locação financeira por si celebrados, o Requerente tem direito a considerar os valores relativos às amortizações financeiras, ao contrário do que prescreve o Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA, pois esse procedimento é o que resulta do art.º 174º da Diretiva IVA, que determina que a percentagem de dedução do IVA suportado (em caso de atividade mista) se obtém por um método de pro rata que inclui: a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º; b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.”
  • Relativamente a métodos alternativos à percentagem de dedução ou pro rata, a Diretiva IVA apenas prevê a possibilidade de os Estados-Membros:
  1. Permitirem ou obrigarem os sujeitos passivos “mistos” a determinar um pro rata para cada sector da respetiva atividade
  2. Permitirem ou obrigarem os sujeitos passivos “mistos” a deduzir o IVA com base na afectação (utilização efetiva) dos bens ou serviços adquiridos.

No que se refere à segunda alternativa, o Código do IVA somente a prevê nos condicionalismos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º, a saber:

  1. Se o sujeito passivo optar pelo método da afectação real;
  2. Por imposição da AT, se a aplicação do método do pro rata conduzir a distorções significativas na tributação.
  • No caso vertente, não se vislumbram distorções significativas na tributação derivadas do método da percentagem de dedução, nem a AT as apontou no supra referido Ofício-circulado n.º 30108, limitando-se a alegar genericamente a falta de coerência das variáveis utilizadas no pro rata, sem fundamentar, concretizar e demonstrar, como lhe cabia, a existência de qualquer distorção.
  • No ofício referido não se esclarece porque é que a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, não é justificada a existência de distorções significativas na tributação em consequência do recurso ao pro rata.
  • E, no caso concreto do Requerente, a AT apenas alegou de forma vaga uma distorção significativa, sem indicar os factos em que esta se concretizava e sem demonstrar a sua existência, o que deixa claro o vício de errónea fundamentação de que enferma a sua decisão.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, notificada para o efeito, apresentou resposta, em que alegou, em síntese:

  • Através do ofício circulado n.º 310308, a Autoridade Tributária determinou a aplicação, a situações como a do Requerente, de um método de imputação (de custos, para efeitos de dedução do IVA) do tipo forfetário, mas específico para as instituições  de crédito que desenvolvem atividades de leasing ou de ALD, estando tal conduta autorizada pelo art.º 23.º, n.º 2 do CIVA, que, por sua vez, se mostra conforme com o art.º 17.º, n.º 5 da Diretiva IVA.
  • A imposição do critério de imputação forfetário específico estabelecido no Ofício Circulado nº 310308 é justificada no caso, uma vez que a inclusão, no cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação correspondente à amortização financeira, conduz a distorções significativas.
  • A Requerente não prova, ademais, que os custos em que incorre com os contratos de locação financeira são sobretudo determinados pelos inputs decorrentes dos atos de financiamento e gestão dos ditos contratos.

No dia 24.02.2023, teve lugar, nas instalações do CAAD, em Lisboa, reunião do Tribunal Arbitral nos termos do art.º 18º do RJAT, na qual foram inquiridas as testemunhas indicadas pela Requerente.

Finda a reunião, foram as Partes notificadas para apresentarem alegações escritas simultâneas no prazo de quinze dias.

Nas suas alegações escritas, a AT alega ter ficado provado, na reunião mencionada anteriormente, que:

  • A atividade de locação financeira da Requerente convoca o consumo de gastos comuns, os quais são consumidos tanto nos atos de gestão e de financiamento de contratos – que se repercutem ao longo do período de vida útil do contrato – como nos atos de disponibilização de veículos – no início do contrato.
  • A impossibilidade de o Banco quantificar a percentagem de gastos consumidos na atividade de locação financeira.
  • O Banco se remunera, no que aos contratos de locação financeira diz respeito, quer através das comissões aplicáveis às prestações de serviços, quer através da taxa de financiamento aplicada aos seus clientes da atividade de locação financeira
  • Na atividade de locação financeira, a maior intensidade de procedimentos se prende, não com a entrega dos veículos aos clientes, mas sim com negociação e contratação, suporte diário em matérias contratuais, recuperação de crédito e cessação dos contratos.
  • A atividade de locação financeira representa 4% da atividade bancária geral do Requerente.

Por seu turno, nas suas alegações escritas, o Requerente alegou ter ficado inequivocamente demonstrado que os procedimentos adotados por si no âmbito do segmento da locação financeira integram um universo significativo de atividades atinentes à disponibilização dos bens locados, sendo a maioria dos gastos incorridos para a disponibilização de viaturas.

Alegou ainda ter ficado provado:

  •  O facto de a utilização dos recursos adquiridos pelo Requerente ser, sobretudo, determinada pela disponibilização dos bens locados.
  • Que, atenta a participação ativa de múltiplos departamentos do Requerente, verificam-se inúmeras despesas gerais de funcionamento, tais como energia e combustíveis, material de consumo corrente (material de expediente, consumíveis, impressos, ferramentas e utensílios de desgaste rápido), material de higiene e limpeza, serviços de comunicações, serviço de reparação nas instalações, serviços de informática, serviços de segurança e vigilância, serviços de limpeza, entre outros.
  • Que esta evidente impossibilidade de quantificação conduz à inviabilidade de adoção do método de afetação real.

O Requerente alegou ainda que, independentemente do facto de cobrar comissões relacionadas com os processos de leasing, essas são destinadas, na sua maioria, a ressarcir custos diretos. Estas comissões têm como intuito minimizar/neutralizar os custos diretos do Requerente, mas não visam ressarcir – até porque não se consegue quantificar e, consequentemente, cobrar – os gastos gerais incorridos.

 

II. Saneamento

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é materialmente competente.

As Partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

III. Questões a apreciar

São questões a apreciar no presente processo:

  1. Se a imposição, ao Requerente, da aplicação da regra constante do parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 de 30.01.2009 do Gabinete do Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária do IVA, respeitante à dedução de IVA relativo a bens de utilização mista, é ilegal por determinar a aplicação de uma percentagem de dedução calculada com exclusão de uma parte do valor das operações de locação financeira para efeitos de IVA, em violação da norma prevista no artigo 174.º da Diretiva IVA e nos n.ºs 4 e 5 do artigo 23.º do Código do IVA;
  2. Se a imposição, ao Requerente, da aplicação da regra constante do parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 é ilegal, por violar o princípio da legalidade tributária, consagrado no nº 2 do art.º 103.º da CRP;
  3. Se a imposição, ao Requerente, da aplicação da regra constante do parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 é ilegal, por não se verificarem os pressupostos que o n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA exige para essa imposição;
  4. Se a imposição, ao Requerente, da aplicação da regra constante do parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 é ilegal, por violar o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da CRP;
  5. Se a decisão de indeferimento da reclamação graciosa impugnada padece do vício de falta de fundamentação, nomeadamente por nela a AT não demonstrar que, no apuramento do imposto em causa, resultariam distorções significativas da aplicação do método da percentagem de dedução.

 

IV. Fundamentação

  1. Matéria de facto

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

  1. O Requerente é uma instituição de crédito, cujo objeto social consiste na realização das operações descritas no artigo 4.º, n.º 1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro;
  2. Para efeitos de IVA, o Requerente é um sujeito passivo, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, encontrando-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 41.º do Código do IVA;
  3. No âmbito da sua actividade, o Requerente realiza operações financeiras enquadráveis na isenção constante do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, que não conferem o direito à dedução deste imposto. É o caso das operações de financiamento/concessão de crédito, e das operações relativas a pagamentos;
  4. Simultaneamente, o Requerente realiza também operações não isentas que conferem o direito à dedução deste imposto, em concreto, operações de locação financeira mobiliária, locação de cofres e custódia de títulos;
  5. Na declaração periódica de IVA referente a dezembro de 2019, o Requerente deduziu, na íntegra, o IVA suportado na aquisição de veículos no âmbito de contratos de locação financeira, de acordo com o método da imputação direta, ao abrigo do preceituado no n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA;
  6. Para determinar o IVA dedutível relativamente às aquisições de bens e serviços afectos indistintamente às diversas operações por si desenvolvidas (recursos de “utilização mista”), o Requerente aplicou o método geral e supletivo da percentagem de dedução, conforme previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA, excluindo do cálculo as amortizações financeiras do contrato de leasing, em consonância com o preceituado no ponto 9 do Ofício-circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, da Área de Gestão Tributária do IVA;
  7. O Requerente apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação efetuada na mesma declaração;
  8. A referida Reclamação Graciosa foi indeferida pela Unidade de Grandes Contribuintes da Autoridade Tributária, por despacho de 8 de Junho de 2022.

 

Não existem outros factos alegados e não provados com relevância para a decisão do mérito da causa.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pelo Requerente, no processo administrativo junto pela AT e ainda nos depoimentos produzidos pelas testemunhas inquiridas na reunião do Tribunal com as Partes.

 

  1. Discussão de direito

Na sua atividade, o Requerente realiza operações bancárias que se encontram isentas de IVA, nos termos do art.º 9º, n.º 27 do CIVA e, como tal, não conferem direito a dedução do IVA suportado.

O Requerente realiza também contratos de locação financeira de veículos automóveis, operações que estão sujeitas a IVA e conferem direito a dedução do imposto.

Para essa finalidade, o Requerente adquire, junto dos revendedores de automóveis, os veículos pretendidos pelos seus clientes, suportando o IVA respetivo.

Esse IVA é integralmente deduzido no mesmo período, nos termos do art.º 22º do CIVA.

Celebrado o contrato de locação financeira, são, no âmbito do mesmo, cobradas rendas mensais ao cliente-locatário, nas quais é liquidado IVA, incidindo este sobre a totalidade da renda.

Por outro lado, o Requerente suporta IVA com a aquisição de bens e serviços comuns (eletricidade, informática, etc.) que são de utilização mista, isto é, que são utilizados tanto nas operações que conferem direito a dedução de IVA, como nas operações que não conferem direito a dedução de IVA –  caso, este último, dos contratos de locação financeira de veículos.

Este IVA, referente a custos mistos, nos termos do art.º 23.º do CIVA, apenas é dedutível na proporção em que diga respeito a operações que conferem direito a dedução do IVA (operações tributáveis).

Pelo que se torna necessário determinar essa proporção.

Para determinar essa proporção, o art.º 23.º, n.º 1 do CIVA prevê dois métodos de dedução:

  1. O método da afetação real (art.º 23º, nº 1 al a) e nº 2 CIVA);
  2. O método da afetação proporcional ou baseado no volume de negócios (art.º 23º, nº 1, al b) e nº 4 CIVA);

Para aplicar o método da afetação real, é necessário que o sujeito passivo tenha meios de determinar objetivamente a parte dos custos mistos que é utilizada nas operações tributáveis.

Não tendo o sujeito passivo tais meios, deverá então utilizar o método do pro rata baseado no volume de negócios.

Para isso, o sujeito passivo deve determinar a percentagem que as operações tributáveis representam no volume total das suas operações, utilizando para tal uma fração, em que, no numerador, deve colocar o montante das operações que conferem direito a dedução do IVA, e no denominador o montante total das operações por si realizadas (tributáveis e não tributáveis).

Coeficiente de imputação =

De acordo com esta regra, no caso do Requerente, no numerador iria figurar, para cada período tributável, o montante cobrado em rendas nesse mesmo período relativas a contratos de locação financeira, pois estas operações não conferem direito a dedução.

Contudo, a renda da locação financeira inclui duas parcelas distintas: uma parcela que se refere à amortização do capital (que corresponde ao valor de aquisição do bem locado), e uma parcela que se refere a juros desse capital.

Através do Ofício Circulado nº 30108 de 2009-01-30 do Gabinete do Subdiretor-geral da Área de Gestão Tributária do IVA, a Autoridade Tributária definiu regras para a determinação do direito à dedução pelas instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as atividades de leasing ou de ALD.

No nº 8 dessa instrução, diz-se:

“(...) considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.”

No nº 9, a mesma instrução administrativa especifica de forma mais concreta como deve ser efetuada a “afetação com base em critérios objetivos”, dizendo:

“Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.”

A instrução administrativa determina, pois, que, na equação para determinar a percentagem que as operações tributáveis representam nas operações totais, no numerador se inclua apenas o montante da renda das locações financeiras correspondente aos juros:

Coeficiente de imputação =

Foi esta a regra que o Requerente aplicou na sua autoliquidação de IVA referente a dezembro de 2019 e foi também esta a regra que a Autoridade Tributária aplicou na decisão de indeferimento da reclamação graciosa aqui em causa (doravante referida como a Reclamação Graciosa).

 É também com esta regra que o Requerente não concorda, por considerar que a sua imposição, com base no Ofício Circulado nº 30108 de 2009-01-30, é ilegal.

Na opinião do Requerente, tal regra, estabelecida por via administrativa, seria ilegal por ser contrária, quer à Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado), quer ao art.º 23.º do CIVA.

Quanto à primeira:

No seu art.º 173º, nº 1, a Diretiva 2006/112/CE estabelece a regra da dedução proporcional do IVA relativo aos custos comuns, nos seguintes termos:

1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, (...), como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efetuadas pelo sujeito passivo.

O art.º 174º esclarece como deve ser apurado o pro rata de dedução, nos seguintes termos:

O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Ou seja:

Coeficiente de imputação =

O nº 2 do art.º 174º determina ainda que os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respetiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efetuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante.

Por seu turno, o art.º 23º do CIVA, no número 2, dispõe:

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

Ou seja, a lei prevê que, na situação de custos mistos (custos comuns a operações que conferem o direito a dedução e a operações que não conferem esse direito), em vez do método do pro rata, o sujeito passivo utilize o método de afetação real, se para isso dispuser de critérios objetivos.

No seu nº 3, o art.º 23º acrescenta:

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

Conclui-se então que, quando o sujeito passivo realiza quer operações que conferem direito a dedução, quer operações que não conferem direito a dedução:

  1. O método aplicável por defeito é o método de imputação pro rata geral, ou baseado no volume de negócios;
  2. Afastando esse método, o sujeito passivo pode, quando disponha de critérios objetivos para tal, aplicar o método da afetação real;
  3. A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a utilizar o método da afetação real, quando, disjuntivamente:
    1.  O sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;
    2. A aplicação do pro rata geral conduza a distorções significativas na tributação.

O Ofício Circulado nº 30108 de 2009-01-30, no seu nº 9, impõe, em situações semelhantes à do Requerente, um método de imputação que não é o método de afetação real previsto no art.º 23º, n.º2, uma vez que prescinde de uma verificação da afetação efetiva de cada bem ou serviço à operação tributada; e também não é o método de imputação pro rata previsto na al. b) do nº 1 do art.º 23.º do CIVA.

Pelo que se suscita a questão da sua compatibilidade quer com a Diretiva IVA, quer com o art.º 23º do CIVA.

A primeira questão – compatibilidade com a Diretiva – foi apreciada pelo TJUE no acórdão “Banco Mais” (processo C‑183/13), em que o tribunal concluiu (par. 35):

“(...) há que responder à questão submetida que o artigo 17.°, n.° 5,[1] terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado‑Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

Por força dos vários princípios que regem a aplicação do direito da União Europeia nos Estados Membros (nomeadamente, o princípio do primado do direito da União, o princípio da interpretação conforme com o direito da União e o princípio da lealdade[2]), as decisões do TJUE vinculam todos os órgãos jurisdicionais nacionais, pelo que a decisão acima referida é vinculativa para a presente causa. Só não o seria se existisse uma diferença nas circunstâncias de facto entre os casos apreciados que justificasse um afastamento daquela jurisprudência, o que não se verifica.

Assim, quanto à primeira das “questões a decidir” elencadas anteriormente, suscitada pelo Requerente, que é a de saber se a imposição, ao Requerente, da aplicação da regra constante do parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 é ilegal por determinar a aplicação de uma percentagem de dedução calculada com exclusão de uma parte do valor das operações de locação financeira para efeitos de IVA, em violação da norma prevista no artigo 174.º da Diretiva IVA e nos n.ºs 4 e 5 do artigo 23.º do Código do IVA, a apreciação do Tribunal Arbitral, em consonância com a jurisprudência citada do TJUE, é no sentido negativo: a regra de imputação prevista no parágrafo 9 do Ofício Circulado n.º 30108 não viola, mas sim, é conforme com o artigo 174.º da Diretiva IVA.

Contudo, a decisão do TJUE não resolve completamente a questão da legalidade da liquidação efetuada de acordo com o Ofício Circulado nº 30108, porquanto resta ainda a questão de saber se, em face do princípio da legalidade dos impostos, pode ser a administração fiscal, através de uma instrução administrativa, a:

“[obrigar] um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.”

Ou seja, se o Estado membro pode usar as prerrogativas que lhe são concedidas pelo art.º 174.º, n.º 2 da Diretiva IVA através de um ato que se enquadra na função administrativa do Estado, ou se, em face do princípio da legalidade dos impostos, só o poderá fazer através de um ato legislativo.

Quanto a este ponto, importa referir que o TJUE, no mesmo acórdão já citado (processo C‑183/13), considerou (parágrafos 17, 18 e 19) que os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva IVA (correspondente ao anterior artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Diretiva).

Diz o Tribunal, quanto a este ponto:

17. Ora, segundo esta disposição, conjugada com o artigo 23.°, n.º 3, do CIVA, no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, um sujeito passivo pode ser obrigado a efetuar a dedução do IVA em função da afetação real da totalidade ou de parte dos bens e serviços utilizados.

18.  Assim, a referida disposição reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, que é uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.°, n.° 5, primeiro parágrafo, e 19.°, n.° 1, dessa diretiva.

19. Consequentemente, importa considerar, como confirmou o Governo português na audiência, que o artigo 23.°, n.° 2, do CIVA constitui a transposição, para o direito interno do Estado‑Membro em causa, do artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva.”

Esta interpretação foi sucessivamente reafirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo em múltiplas decisões, de que podem ser citados os acórdãos de 29 de outubro de 2014, processo n.º 1075/13; de 4 de março de 2015, processo n.º 1017/12; de 3 de junho de 2015, processo n.º 0970/13; de 17 de junho de 2015, processo n.º 0956/13; e de 15 de novembro de 2017, processo n.º 0485/17.

A título de exemplo, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29-10-2014, proc. nº 01075/13 (relator Aragão Seia), diz-se:

Portanto, a interpretação que deve ser feita do artigo 23º do CIVA, no entender do TJUE, deve englobar necessariamente todos os seus números e não apenas os n.ºs. 1 e 4 como parece fazer crer a recorrida.

E portanto, o TJUE ao determinar que o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, pronunciou-se expressamente sobre a concreta situação dos autos.

 Num exemplo mais recente, no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24-03-2021, proc. n.º 087/20.0BALSB (relator Francisco Rothes) o tribunal declarou:

O n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA, articulado com o seu n.º 3, prevê que a Administração Tributária possa obrigar o sujeito passivo a «efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados».
Na redacção originária do preceito, o legislador não dizia o que entendia por «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados». Mas já então se entendia que esta disposição estava relacionada com a alínea c) do n.º 3 do artigo 17.º da Sexta Diretiva 77/388/CEE, do Concelho, de 17 de maio de 1977 [doravante “Sexta Diretiva”] e que a expressão «afectação real» era equivalente à expressão «utilização» adotada no preceito comunitário. A qual, por sua vez «não pode deixar de ser entendida como imputação do uso real e efetivo que cada bem ou serviço adquirido tenha em cada um dos tipos de operações em que é usado conjuntamente» (...).

Interpretação que a alteração introduzida pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Janeiro, veio de alguma forma confirmar, ao aditar a frase «… com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito». Tornou-se então evidente que o que estava em causa era um método que, em relação a bens ou serviços de utilização mista, permitisse medir a «intensidade efetiva e real da utilização dos bens ou serviços em cada um dos tipos de operações em causa» (...).


Assim, quando o Tribunal de Justiça da União Europeia, no denominado acórdão «Banco Mais» (acórdão de 10 de Julho de 2014, tirado no processo C-183/13), veio reconhecer que a referida regra reproduz em substância a referida disposição comunitária e constitui a transposição da mesma para o direito interno, veio reafirmar apenas o que já se sabia e que não era controvertido.”

Ora, ao concluir-se, como faz o Supremo Tribunal Administrativo, que os nºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA constituem a transposição do artigo 173.º, n.º 2, alínea c) da Diretiva, e tendo em conta que o nº 3, concretamente, habilita a administração tributária a obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com “o disposto no número anterior” quando “a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação”, fica também ultrapassada a questão da possível ilegalidade da liquidação por violação do princípio da legalidade tributária, uma vez que a atuação da AT se encontraria respaldada por uma habilitação expressamente estabelecida através de um ato legislativo.

Contudo, em face deste entendimento, resta ainda analisar se, através do Ofício Circulado nº 30108, o Estado aplica o estipulado nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA de maneira conforme com esta disposição habilitante.

Por outras palavras, utilizando os termos do Requerente e indo ao encontro dos fundamentos do seu pedido, é necessário que se verifiquem em concreto os pressupostos e limitações estabelecidos no nº 3 do art.º 23º para a atuação da Autoridade Tributária.

Analisando o nº 3 do art.º 23.º, vemos que ele habilita a administração tributária a “obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior”, quando [al. b) “a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.”

“Proceder de acordo com o disposto no número anterior” significa (de acordo com o disposto no nº 2) “efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.”

Ou seja, o nº 3 do art.º 23º habilita a Autoridade Tributária a impor aos sujeitos passivos a utilização do método de “afectação real”, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, podendo ainda impor condições especiais.

Para que a Autoridade Tributária possa atuar desse modo, é necessário que se verifique um pressuposto: que a aplicação do processo referido na al. b) do nº 1 do art.º 23.º conduza a “distorções significativas na tributação”, o que caberá, obviamente, à AT, demonstrar, uma vez que se trata de um pressuposto de legalidade da sua atuação.

Concluímos, assim, que o nº 3 do art.º 23º do CIVA habilita a AT a impor ao sujeito passivo um método diferente do pro rata geral, com duas condições: i) uma, anterior à decisão de aplicar as regras do ofício circulado, relativa à verificação de distorções significativas na tributação na ausência dessa intervenção da administração; e ii) outra, posterior à decisão  de aplicar as regras do ofício circulado, relativa ao método de imputação que a AT pode impor aos sujeitos passivos.

Quanto à primeira condição ou pressuposto, não nos parece oferecer dúvida ser sobre a Autoridade Tributária, de acordo com a regra geral de repartição do ónus da prova (art.º 74.º, n.º 1 da LGT) que recai o ónus de demonstrar que a aplicação, no caso concreto, da regra geral de imputação de custos com base no volume de negócios conduz a “distorções significativas na tributação”, pois trata-se de demonstrar a existência de factos constitutivos de um direito da administração.

Desde logo, consideramos que essa demonstração não se encontra no Ofício Circulado n.º 30108.

Com efeito, analisando os trechos da instrução administrativa que podem ser vistos como uma justificação da solução que na mesma se adota, consideremos:

O parágrafo 6 diz:

Face à anterior redacção do artigo 23º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.

No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do nº 4 do artigo 23º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um prorata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.

Vemos aqui apenas uma alusão à necessidade de uma solução “mais ajustada”, mas não se explica por que razão o método do nº 4 do art. 23º não é ajustado. Trata-se, pois, de uma conclusão jurídica.

O parágrafo 7 diz:

Face à atual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

Mais uma vez, alude-se à necessidade de um método mais ajustado, mas não se demonstra a razão de tal necessidade. De novo, estamos perante uma conclusão jurídica.

O parágrafo 8 diz:

Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades

Neste trecho afirma-se que a utilização do método previsto no nº 4 do art.º 23.º pode “provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas” ou conduzir a “distorções significativas na tributação”, mas, mais uma vez não se explicam tais afirmações.

Porém, entende este tribunal, a demonstração de que, da aplicação do método de imputação segundo o pro rata geral resultariam “distorções significativas para a tributação” não tinha por que ser feita no Ofício Circulado n.º 30108. O ofício circulado é apena uma norma, constante de uma instrução administrativa. Como instrução administrativa, não tem sequer efeito vinculativo para os sujeitos passivos, pelo que tão pouco é impugnável. Através da emissão de um ofício circulado, a administração fiscal não pratica nenhum ato que afete os direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, em que haja necessidade de fundamentação. A administração tributária podia fazer a demonstração da ocorrência de “distorções significativas” no ofício circulado, mas a omissão dessa demonstração não preclude o seu direito a aplicar o disposto no ofício circulado.

É no ato que, no exercício de poderes de autoridade, se aplica a norma, que é absolutamente necessário, por força do art.º 268º, n.º 3 da CRP e do art.º 77.º da LGT, que a administração fiscal fundamente a sua decisão, sendo nessa fundamentação que se insere a demonstração dos pressupostos da sua atuação.

Ora, no caso concreto, por estarmos perante uma autoliquidação, a administração fiscal só praticou um ato suscetível de afetar os direitos ou interesses legalmente protegidos do Requerente ao decidir a Reclamação Graciosa. Que, aliás, é o ato diretamente impugnado nos presentes autos.

Só nesse ato a administração teve oportunidade de efetuar a demonstração dos pressupostos da sua atuação, atuação essa que consistiu em negar provimento à Reclamação Graciosa do Requerente.

Analisemos a decisão da Reclamação Graciosa, no que diz respeito à demonstração de que resultariam “distorções significativas” do método do pro rata geral:

No parágrafo 106, a AT exprime as seguintes ideias:

  1. A componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução uma vez que não constitui rendimento da atividade do sujeito passivo, ao invés do que sucede com as demais variáveis que integram a fórmula.
  2.     Sendo que, a sua consideração, provocaria distorções significativas na tributação.
  3.    Também desvirtuaria o próprio método do pro rata e todos a sistema de dedução do IVA, ao reconhecer como dedutíveis, custos que não contribuíram, para a realização de operações tributadas.

As ideias contidas nos pontos ii) e iii) são, mais uma vez, conclusões jurídicas. São afirmações de  que a utilização do método previsto no nº 4 do art.º 23.º conduziria a distorções, e não a demonstração da validade de tais conclusões.

A ideia contida no ponto I), essa sim, contém uma justificação da afirmação “a componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução”.

Segundo a AT, o método do n.º 4 do art.º 23.º (inclusão da parcela da amortização no numerador da equação para o cálculo do pro rata) não se deve aplicar porque “não constitui rendimento da atividade do sujeito passivo, ao invés do que sucede com as demais variáveis que integram a fórmula.”

Contudo, esta fundamentação padece de insuficiência, que reside em não se explicar, minimamente, por que razão, ao “não constituir rendimento”, a componente de capital contida nas rendas não deve onerar o cálculo da percentagem de dedução, quando o IVA incide sobre o preço dos bens e serviços, e não sobre “rendimentos”.

O IVA não é estruturado sobre o conceito de rendimento. O conceito de rendimento não entra na definição dos factos tributáveis, nem da base tributável, nem do valor tributável, nem na determinação do imposto, nem na determinação da dedução do imposto. De modo que não é compreensível, sem uma explicação, por que razão a amortização, ao não constituir rendimento, não deve entrar no cálculo do pro rata de dedução.

Aliás, no parágrafo 118 da decisão da reclamação graciosa, a AT foca este ponto, dizendo:

118. Pese embora, a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, refira que, nas operações de locação financeira, o valor tributável corresponde à renda recebida no seu todo, a verdade é que a parcela correspondente à amortização financeira, não assume a natureza de proveito, e como tal, não integra o conceito de volume de negócios nas instituições de crédito, e daí que não possa influenciar o cálculo da percentagem de dedução .

Ou seja, a AT, na sua decisão, reconhece que o facto de toda a renda da locação financeira, incluindo a parcela que respeita à amortização, estar sujeita a IVA, é adversativa da conclusão de que a mesma deve ser excluída do cálculo do pro rata, sendo esse o significado da expressão “pese embora”.

Mas não explica como se resolve esta contradição.

Diz, aliás: “a verdade é que a parcela correspondente à amortização financeira, não assume a natureza de proveito, e como tal, não integra o conceito de volume de negócios nas instituições de crédito, e daí que não possa influenciar o cálculo da percentagem de dedução”.

Mas a questão subsiste. O IVA não incide sobre “proveitos”, mas sobre preços. E é por incidir sobre preços que incide sobre o total da renda da locação financeira, incluindo a parcela referente a amortização. Sendo que o volume de negócios – e, este sim, é um conceito relevante no âmbito do IVA, encontrando-se definido no art.º 42.º – é a soma dos preços dos bens e serviços cobrados, e não a soma dos “proveitos” ou “rendimentos”. Aliás, a AT não explica o que é para si, neste contexto, “rendimento”, ou “proveitos”, o que, tratando-se de conceitos de recorte jurídico indeterminado, teria que explicar.

De onde se conclui que o facto de uma parte do preço ser destinada a amortização de capital não justifica, só por si e em regra, a exclusão da mesma do conceito de volume de negócios.

O parágrafo 7 da Decisão volta a ter caráter exclusivamente conclusivo, enfermando, além do mais, de uma petição de princípio:

 “Só assim é alcançada a neutralidade do imposto. Não são todas as operações tributadas e/ou não tributadas que devem ser integradas na fórmula, mas apenas aquelas que, realizadas no âmbito de uma atividade económica realizada pelo sujeito passivo, tenham utilizado custos comuns para gerar valor acrescentado (no caso da locação financeira, advém da cedência do uso do bem objeto do contrato, através da qual o locador obtém rendimentos, sob a forma de juros).”

Repare-se: quais as componentes que utilizaram, ou não, custos comuns para gerar valor acrescentado, é, justamente, o que se pretende aferir através do método de imputação que se escolher. Logo, não pode ser uma conclusão prévia à escolha desse método.

O parágrafo 108 volta a ter caráter puramente conclusivo, sendo redundante com o dito anteriormente:

“resulta claro à evidência, que consubstanciando a componente das rendas correspondente à amortização financeira, um mero reembolso de capital, que nesse sentido, não gera qualquer valor acrescentado, só a título muito diminuto é que os custos comuns suportados pelo locador numa operação de locação financeira, poderão, eventualmente, contribuir para a sua realização. Se não contribuíram para a amortização financeira, não lhe podem ser imputáveis.”

Nomeadamente, quanto à afirmação “só a título muito diminuto é que os custos comuns suportados pelo locador numa operação de locação financeira, poderão, eventualmente, contribuir para a sua realização”, é precisamente o que careceria de uma demonstração.

Ora, constitui doutrina e jurisprudência solidamente firmadas que um ato administrativo se encontra devidamente fundamentado quando é possível, através do mesmo, descobrir qual o percurso cognitivo utilizado pelo seu autor para chegar à decisão final (acórdão do STA, de 02-02-2022, proc. 03014/11.1BEPRT, relator Joaquim Condesso).

Na formulação de diversos acórdãos do STA, o ato administrativo só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto ato (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do ato (acórdão STA, de 02-02-2022, proc. 03014/11.1BEPRT, já citado).

Citando ainda o mesmo aresto do STA:

 “Se a fundamentação não esclarecer concretamente a motivação do ato, por obscuridade, contradição ou insuficiência, o ato considera-se não fundamentado (...). Haverá obscuridade quando as afirmações feitas pelo autor da decisão não deixarem perceber quais as razões porque decidiu da forma que decidiu. Por outras palavras, os fundamentos do ato devem ser claros, por forma a colher-se com perfeição o sentido das razões que determinaram a prática do ato, assim não sendo de consentir a utilização de expressões dúbias, vagas e genéricas.”

Acrescentando ainda o mesmo acórdão:

“Por último, a fundamentação é insuficiente se o seu conteúdo não é bastante para explicar as razões por que foi tomada a decisão. Em conclusão, a fundamentação deve ser suficiente, no sentido de que não fiquem por dizer razões que expliquem convenientemente a decisão final. E recorde-se que o dever legal de fundamentação do ato administrativo reveste uma função exógena, a de dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do ato ou a sua impugnação graciosa ou contenciosa, e também uma função endógena, consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta

Ora, em face desta jurisprudência sobre os requisitos da fundamentação e das insuficiências anteriormente apontadas, há que concluir que a decisão da reclamação graciosa não contém, no seu texto, uma demonstração suficiente de como a aplicação do método de imputação estabelecido no nº 4 do art.º 23.º do CIVA geraria “distorções significativas da tributação”. Portanto, a AT não demonstra os pressupostos da legalidade da sua atuação.

Mas vejamos ainda um último aspeto.

O parágrafo 109 de Decisão diz ainda e por último que “a demonstração de tais riscos decorre claramente do teor do oficio-circulado em análise, sendo que, é defendida ao nível da jurisprudência e doutrina desenvolvidas para casos semelhantes, destacando-se, dada a clareza da exposição o que ficou consignado na declaração de voto de vencido de Vítor Calvete lavrada no âmbito do processo arbitral n.º 811/2019-T (p. 71 a 80).

Neste trecho, a decisão remete a sua fundamentação para o Ofício Circulado n.º 30108, para “doutrina” em geral e ainda para uma opinião expressa (um voto de vencido) numa decisão arbitral.

Quanto à remissão para o ofício circulado, a mesma poderia, já com dificuldade, enquadrar-se no disposto no nº 1 do art.º 77.º da LGT, na parte em que dispõe que a fundamentação pode consistir numa “declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”. Dizemos com dificuldade, pois “pareceres, informações ou propostas” são documentos que se integram no procedimento tributário (vg. a informação que serve de fundamento à decisão de uma reclamação graciosa) que levou ao ato tributário, fazendo, pois, parte do processo de formação do ato. O que não é o caso de uma instrução administrativa. Que aliás, como qualquer norma, é geral e abstrata, e não tem em conta o caso concreto.

Porém, como já notámos, o ofício circulado tão pouco contém uma demonstração da ocorrência de “distorções significativas”.

Quanto à remissão para “doutrina” e para uma decisão arbitral, julgamos que não é uma forma de fundamentação válida, à luz do princípio da legalidade, consagrado no art.º 266.º n.º 2 da Constituição, e estabelecido também no art.º 8.º n.º 2 da LGT.

Com efeito, diz o art.º 268.º, n.º 3 da Constituição, que “os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.”

A fundamentação do ato administrativo – e do ato tributário – tem de ser “expressa” e “acessível”. Para cumprir estes dois requisitos, a fundamentação há de encontrar-se dentro do procedimento que conduz ao ato tributário, como acontece com as informações, pareceres e propostas previstos no nº 1 do art.º 77.º da LGT.

Como se diz também no acórdão do STA de 02-02-2022, proc. 03014/11.1BEPRT:

“[A] fundamentação pode ser expressa ou consistir em mera declaração de concordância de anterior parecer, informação ou proposta, o qual, neste caso, constitui parte integrante do respectivo ato (...)”.

Fica claro e é dito expressamente que, na chamada fundamentação per relationem, o parecer, informação ou proposta constituem parte integrante do respetivo ato, o que sublinha a exigência de um vínculo particular entre o documento de onde promana a fundamentação e o ato tributário, que não existe se a fundamentação for efetuada por remissão para uma sentença ou para uma obra doutrinária, ou para a “doutrina”.

É importante e nunca demais referir que o dever de fundamentação constitui uma garantia dos administrados, contribuintes incluídos, com consagração constitucional e, por isso, exige formalismo na sua concretização. Desde logo, importa que a fundamentação diga respeito à situação individual do sujeito passivo, sob pena de se perder o caráter expresso e de acessibilidade.  Não pode ser exigido ao contribuinte que indague pela fundamentação do ato, que só a ele diz respeito, numa sentença dum tribunal ou numa obra jurídica totalmente alheias ao procedimento. Aceitar tal corresponderia a uma perigosa desresponsabilização da Autoridade Tributária em matéria de fundamentação dos atos tributários, incompatível com a função garantística e com dignidade constitucional do direito à fundamentação.

Por outro lado, passando ao plano da lei ordinária, que dá expressão àquele princípio constitucional no campo tributário, nem a “doutrina”, nem as decisões dos tribunais figuram entre os elementos para os quais a fundamentação pode remeter, nos termos do nº 1 do art. º 77.º da LGT.

Concluímos, assim, que a decisão recaída sobre a Reclamação Graciosa não demonstra suficientemente que a aplicação do método de imputação estabelecido no nº 4 do art.º 23.º provocaria as “distorções significativas da tributação” que são pressuposto para que a AT possa, ao abrigo do nº 3 do art.º 23.º, obrigar o sujeito passivo a  (nº 2) “efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação”.

Sendo este, como já se disse, um pressuposto da atuação da AT, recaindo sobre esta o ónus de demonstrar a respetiva verificação, conclui-se que não estão demonstrados os pressupostos da atuação da Autoridade Tributária, o que afeta o ato impugnado de ilegalidade e não apenas de vício formal de falta de fundamentação.

Assim sendo, torna-se inútil analisar:

  • Se se verifica a segunda condição necessária à legalidade da atuação da AT, relativa ao método de imputação que a AT pode impor ao sujeito passivo;
  • Se a decisão da AT de impor à Requerente “efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação” viola o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º da CRP.

 

V. Pedido de reembolso e de juros indemnizatórios

Pede ainda o Requerente que a AT seja condenada a reembolsá-lo do imposto indevidamente pago, bem como a pagar-lhe os respetivos juros indemnizatórios.

Dispõe a alínea b), do nº 1, do art.º 24º, do RJAT, que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta - nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários - restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito.

Tal dispositivo está em sintonia com o disposto no artigo 100.º da LGT, aplicável ao caso por força do disposto na alínea a), do nº 1, do art.º 29º, do RJAT, no qual se estabelece que: “A administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei.”

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira diretriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à ação para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária” (CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

Dispõe, por sua vez, o artigo 43.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

O artigo 43.º da LGT pressupõe que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial – ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.

No caso, o erro imputável aos serviços consistiu na prática de um ato tributário sem que se verificassem os pressupostos legais para a sua prática.

Esse erro ocorreu com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa.

Sendo assim, está a Autoridade Tributária obrigada não apenas a reembolsar a Requerente do imposto indevidamente pago, no montante de 634.253,88 euros, como a pagar à Requerente os correspondentes juros indemnizatórios, desde a data do indeferimento da Reclamação Graciosa.

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de atos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT, que dispõe que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea” ”( CAAD, proc. nº 277/2020-T; CAAD, proc. nº 220/2020-T).

 

VI. Decisão

Por tudo o que ficou exposto, decide-se:

  1. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e de e anulação do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra a autoliquidação de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), referente ao ano 2019, materializada na declaração periódica de imposto com referência a Dezembro do ano em apreço, no montante de € 634.253,88;
  2. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e anulação parcial do mesmo ato de autoliquidação, na parte em que exclui do cálculo do pro rata de dedução do IVA o montante das rendas de locação financeira de automóveis correspondentes à amortização do capital.
  3. Julgar procedente o pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, no montante de 634.253,88 euros, bem como de pagamento dos respetivos juros indemnizatórios, desde a data do indeferimento da Reclamação Graciosa até à emissão da correspondente nota de liquidação.

 

VII. Valor do processo

Nos termos do art. 97.º-A nº 1, al. a) do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em 634.253,88 euros.

 

VII. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 9.486,00 euros, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente.

 

Notifiquem-se as Partes.


Lisboa, 24 de julho de 2023.

 

 

O Árbitro Presidente

 

(Vítor Calvete)

Vencido conforme declaração junta

 

O Árbitro vogal

 

(António Sérgio de Matos)

                                                     

 

O Árbitro vogal (Relatora)

 

 

(Nina Aguiar)

 

 

Voto de Vencido

Quer-me parecer que a presente decisão vem, de novo, trazer ruído ao estado da arte da tributação em IVA dos inputs promíscuos. Suponho que já estava dado como assente – quer pela AT quer pelos sujeitos passivos a quem o assunto pode interessar (que não são o contribuinte comum) – que a questão do apuramento do pro rata era, nestes casos, uma questão de facto.  

Após anos de disputas doutrinárias e jurisdicionais, julgo que já era de aceitação geral que as entidades que discordassem do critério estabelecido pelo Ofício Circulado n.º 30108 de 30.01.2009 pudessem fazer prova de que a sua repartição de custos se afastava da que resultava da aplicação daquela fórmula. Aliás, a audição das testemunhas nos presentes autos visou isso mesmo.

A tese que vingou nesta decisão é – a meu ver, contra o que tem sido estabelecido pelo STA – a de que é preciso, ainda, que a AT apure, no caso concreto, uma distorção significativa se o SP apresentar uma reclamação graciosa (o que é pouco menos, na verdade, do que impor-lhe que desconsidere o Ofício Circulado).

Que a distorção é geral e devia ser evidente (pelas razões que têm sido repetidas vezes invocadas, designadamente na jurisdição arbitral – mas, infelizmente, sobretudo em votos de vencido), já subjaz à orientação do referido Ofício Circulado, mas pode ser assim resumido: computar as amortizações do capital de operações de leasing/ALD no volume de negócios de instituições financeiras que realizam operações isentas (como o crédito normal para aquisição de automóveis) e operações sujeitas a IVA (como o leasing/ALD de automóveis) significa, muito simplesmente, desconsiderar o volume de capital mutuado no caso do crédito e considerá-lo no caso de um crédito com outro nome (a soma das amortizações é, evidentemente, a soma dos capitais mutuados). Isto permite a manipulação das condições de oferta de um e outro desses produtos financeiros e é, a meu ver, o mais oposto que o IVA pode ser, visando, como visa, a neutralidade económica. Considerei, portanto, que a presunção de partida do Ofício Circulado é correcta, e que a única coisa que devia ser apreciada era uma questão de facto: a da distribuição dos inputs ditos promíscuos.

 

Vítor Calvete

 



[1] O TJUE refere-se ao artigo 17º da “Sexta Diretiva IVA” (Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme), que corresponde ao atual artigo 173º da Diretiva 2006/112/CE.

[2] Acórdão Costa/ENEL de 15 de Julho de 1964, Proc. 6/64; Acórdão Simmenthal de 9 de Março de 1977, Proc. 106/77.