Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 559/2015-T
Data da decisão: 2016-06-07  IRC  
Valor do pedido: € 120.222,74
Tema: IRC – Liquidação adicional; preços de transferência (art 63º, CIRC); compensação pela cessação de contrato de trabalho: tributação autónoma [art 88º-13/a), CIRC]
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros José Poças Falcão (presidente), Paulo Lourenço e João Gonçalves da Silva, todos designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, acordam no seguinte

 

 

1.       RELATÓRIO

 

A…, Unipessoal, Lda., com o número único de pessoa coletiva…, e com sede na …, n.º…, …, … –… … (adiante abreviadamente designada por «Requerente»), notificada, através do ofício n.º …/…, de 28 de maio de 2015, da decisão de indeferimento parcial proferida pela Senhora Diretora de Finanças Adjunta da Direção de Finanças …-… de,   no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º …2014… (Doc. 1), em que se discutiu a ilegalidade dos atos tributários de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC») n.º 2014…, relativo ao exercício de 2010, de demonstração de acerto de contas n.º 2014 … e de liquidação de juros compensatórios n.º 2014…, todos praticados pelo Senhor Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (cf. Docs. 2 a 4),

 

            veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º-A, n.º 2, e 10.º, n.º 1, alíneas a) e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, requerer a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária, com vista à obtenção da declaração de ilegalidade dos referidos atos tributários, mantidos na ordem jurídica pela decisão de indeferimento parcial do procedimento de reclamação graciosa n.º…2014… .

 

Fundamenta assim o pedido:

 

Em consequência das correções promovidas pela Autoridade Tributária na referida ação inspetiva, e em 24 de janeiro de 2014, a Requerente foi notificada do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2014…, relativo ao exercício de 2010, e respetivas demonstrações de acerto de contas n.º 2014 … e de liquidação de juros compensatórios n.º 2014 … (cit. Docs. 2 a 4).

 

Por seu turno, a identificada demonstração de acerto de contas n.º 2014 … apurou um saldo a pagar pela Requerente no valor global de € 279.479,70 (valor que inclui, já, IRC, derrama e respetivos juros compensatórios), tendo estabelecido como data limite para pagamento voluntário do referido montante o dia 21 de março de 2014 (cit. Doc. 3).

 

Posteriormente, a Requerente foi citada para o processo de execução fiscal n.º …2014…, instaurado para cobrança coerciva do montante global de € 280.830,24 (duzentos e oitenta mil, oitocentos e trinta euros e vinte e quatro cêntimos) (Doc. 7).

 

Neste contexto, a Requerente deduziu, em 30 de abril de 2014, reclamação graciosa contra os referidos atos tributários (Doc. 8), contestando a legalidade das correções realizadas pela Autoridade tributária ao IRC do exercício de 2010 e peticionando, em consequência, a sua revogação (a apresentação deste pedido deu lugar à instauração do procedimento de reclamação graciosa n.º …2014…).

 

Em 13 de maio de 2014, a Requerente prestou garantia bancária no montante global de € 354.086,50 (trezentos e cinquenta e quatro mil, oitenta e seis euros e cinquenta cêntimos), para efeitos de suspensão do processo de execução fiscal n.º …2014…, nos termos do disposto no artigo 169.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (Doc. 9).

 

Entretanto, no passado mês de junho de 2015, a Requerente foi notificada da decisão de (in)deferimento parcial proferida pela Senhora Diretora de Finanças Adjunta da Direção de Finanças do … no âmbito do procedimento de reclamação graciosa n.º …2014…, que se dá aqui por integralmente reproduzida (cit. Doc. 1).

 

Nos termos da referida decisão, a Autoridade Tributária concluiu «pela anulação do imposto liquidado a título de tributação autónoma, no montante de € 145.147,80, e respetivos juros compensatórios, sendo de deferir parcialmente o pedido» (cit. Doc. 1).

 

Não obstante, a Autoridade Tributária indeferiu o pedido de revogação do imposto adicionalmente liquidado em consequência do acréscimo do montante de € 5.999.900,00 ao lucro tributável do exercício de 2010 da Requerente com fundamento na aplicação do regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC à operação de alienação dos direitos associados à marca de vinho do porto B… à sociedade C… .

 

Nesta sequência, ainda em junho de 2015, a Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de IRC n.º 2015…, da demonstração de acerto de contas n.º 2015 … e de liquidação de juros compensatórios n.º 2015…, todos praticados pela Senhora Diretora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (Docs. 10 a 12).

 

Com a anulação parcial do ato de liquidação adicional do IRC de 2010 — em concreto a anulação da parte correspondente à correção da tributação autónoma e respetivos juros compensatórios, no valor de € 159.256,96 (cento e cinquenta e nove mil duzentos e cinquenta e seis euros e noventa e seis cêntimos) — o montante do IRC adicionalmente apurado e juros compensatórios a pagar foi reduzido para a quantia de € 120.222,74 (cento e vinte mil duzentos e vinte e dois euros e setenta e quatro cêntimos).

 

Por fim, ainda na sequência da referida decisão administrativa, a Requerente solicitou junto da Senhora Chefe do Serviço de Finanças … –…, através de requerimento de 16 de julho de 2015, a redução do valor da garantia bancária apresentada no acima identificado processo de execução (Doc. 13).

 

Neste contexto, em 6 de agosto de 2015, a Requerente foi notificada de que «De acordo com o despacho proferido pela Chefe do Serviço do …, Adjunta, cuja cópia se anexa, comunica-se que a garantia bancária nº…, emitida em 08.05.2014 para caucionar o processo de execução fiscal acima identificado, deverá ser reduzida para o montante de 163.295,49€ (cento e sessenta e três mil duzentos e noventa e cinco euros e quarenta e nove cêntimos)» (Doc. 14).

 

A Requerente pretende, através do presente pedido de pronúncia arbitral, ver reconhecida a ilegalidade da identificada correção ao lucro tributável de 2010 — no montante de € 5.999.900,00 — e, em consequência, visa obter a declaração de ilegalidade dos atos tributários de liquidação adicional de IRC, derrama e juros compensatórios praticados ao seu abrigo (o que se peticiona a final).

 

Com o propósito de demonstrar os diversos erros sobre os pressupostos de direito de que padece a correção realizada pela Autoridade Tributária ao lucro tributável do exercício de 2010 da Requerente, recapitule-se que a mesma se fundamentou na aplicação do regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC à operação de alienação dos direitos associados à marca de vinho … B…, realizada entre a Requerente e a sociedade C…, no dia 6 de outubro de 2010.

 

Nos termos do disposto do n.º 1 do referido artigo 63.º do Código do IRC, «Nas operações comerciais, incluindo, designadamente, operações ou séries de operações sobre bens, direitos ou serviços, bem como nas operações financeiras, efetuadas entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis».

 

Assim, como vem sendo observado pela doutrina, «O artigo 63.º, n.º 1 do CIRC faz depender a aplicação do regime jurídico dos preços de transferência dos seguintes pressupostos: • ter havido uma operação comercial – ou uma série de operações; • entre um sujeito passivo e outra entidade (sujeita ou não a IRC); • existirem relações especiais entre as duas entidades» (cf. Diogo Leite de Campos, Susana Soutelinho, As operações comparáveis nos preços de transferência, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Volume I, Almedina, p. 373).

 

Por conseguinte, constitui o pressuposto primário de aplicação do regime dos preços de transferência a existência de relações especiais entre duas entidades intervenientes em determinada operação comercial (ou série de operações).

 

De facto, somente depois de demonstrada a subsistência de tais relações especiais é que se permite à Autoridade Tributária sindicar as condições de determinada operação à luz do princípio da plena concorrência, podendo tal análise culminar (ou não) com a correção das condições que comprovadamente se afastem das que seriam contratadas, aceites ou praticadas entre entidades independentes em operações comparáveis.

 

A metodologia aplicativa subjacente ao citado artigo 63.º do Código do IRC pode, assim, ser sintetizada do seguinte modo: “A Administração Fiscal tem que começar por provar:

·         A existência de relações especiais;

·         Que as operações entre essas entidades ligadas por relações especiais foram efetuadas em condições diferentes das que seriam acordadas entre pessoas independentes;

·         Que as referidas condições diferentes, estabelecidas para as operações entre as «entidades relacionadas», tiveram como causa a existência dessas mesmas relações especiais (…);

·         Que, devido às condições especiais, o resultado fiscal apurado foi diferente do que seria na ausência dessas condições especiais” (cf. Joaquim António R. Pires, Inspetor Principal na DGCI, Os Preços de Transferência, Vida Económica, p. 29).

 

Por conseguinte, seguindo pari passu o iter aplicativo que fica traçado, a Requerente começará por analisar de seguida a subsistência de relações especiais entre si e a contraparte do mencionado contrato de transmissão dos direitos associados à marca de marca de vinho … B… .

 

Não obstante antecipar a falta de verificação, no caso concreto, do primeiro requisito de que depende a válida aplicação daquele regime (i.e., o da subsistência de relações especiais entre as referidas entidades), a Requerente prosseguirá com a análise do método de determinação do princípio da plena concorrência convocado pela Autoridade Tributária para a realização da correção em causa.

 

Neste contexto, a Requerente demonstrará a inidoneidade da metodologia concretamente aplicada para aferir eventuais desvios na operação realizada, evidenciando os diversos erros incorridos pela Autoridade Tributária na identificação de operações comparáveis e na análise económica da situação da Requerente.

 

A finalizar, a Requerente dedicará ainda um capítulo à análise da ilegalidade autónoma de que padece o ato de liquidação de juros compensatórios igualmente objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, seguido de um último respeitante à demonstração da existência do direito à indemnização por prestação indevida de garantia.

 

A presente petição será finalizada com o pedido de anulação total dos atos tributários acima identificados com fundamento na ilegalidade da pressuposta correção ao lucro tributável do exercício de 2010 da Requerente.

 

Sobre a ilegalidade da correção ao lucro tributável do exercício de 2010 por indevida aplicação do regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC

I.                   Da demonstração da inexistência de relações especiais no caso concreto

 

Conforme referido acima, impõe-se começar por analisar o mais elementar dos requisitos de que depende a aplicabilidade do regime dos preços de transferência no caso concreto: o da subsistência, entre a Requerente e a sociedade C… de relações especiais nos termos prefigurados no artigo 63.º do Código do IRC.

 

Com este objetivo, e por facilidade de exposição, recapitulam-se de seguida os argumentos que, no Relatório Final de Inspeção Tributária, fundamentaram a verificação de relações especiais entre a Requerente e a sociedade C… (cit. Doc. 6):

(i)     «(…) em 7 de julho de 2006, a A… Lda. adquiriu à firma D…, Lda., os direitos dos vinhos … B…, da Aguardente Velha E… (E…) e do F…[e] assinou um contrato de fornecimento a longo prazo, com o Grupo G… ficando este designado com exclusividade, produtor, engarrafador, embalador e responsável pela armazenagem dos produtos acabados, das marcas B…, Aguardente E… e F…, por um período de 20 anos»;

(ii)   à luz da singela constatação transcrita no ponto antecedente, concluiu a Autoridade tributária que «Entre as empresas “A…, Lda.” e as empresas do “Grupo G…”, existem as relações especiais, tipificadas na alínea g) do n.º 4 do art.º 63.º do Código do IRC»;

(iii) ora, «Em 06 de outubro de 2010, a A…, Lda. procedeu à venda por € 100,00, da marca de vinhos … B…, adquirida em 07 de julho de 2006 por € 6.000.000,00 à sociedade D…, S.A., agora denominada “C…, Vinhos, S.A.” e cujo capital social é detido a 100% pelo Grupo G…, o que gerou uma menos-valia de € 5.999.900 para a A…, Lda.»;

(iv) pelo que, «Tal como já anteriormente referido a C…, Vinhos, S.A., faz parte do Grupo G… e é detida a 100% por empresas do Grupo G… (…) Por tal facto concluímos que esta operação realizada entre a “A…, Lda.” e a C…, …, S.A., deveria ser convenientemente analisada com base nas disposições legais insertas no art.º 63.º do Código do IRC e na Portaria 1446-C/2001».

 

Resulta dos transcritos excertos do Relatório Final de Inspeção Tributária, em síntese, que a Autoridade Tributária entendeu subsistirem relações especiais entre a Requerente e a sociedade C…, nos seguintes termos:

(i)     em julho de 2006, a Requerente celebrou com a sociedade H…, um contrato em regime de exclusividade para produção, engarrafamento e embalagem dos produtos acabados da marca B…, Aguardente E… e F…;

(ii)   em virtude da celebração do referido contrato de fornecimento, entendeu a Autoridade Tributária que entre a Requerente e o «Grupo G… » se verificava uma relação de dependência jurídica e/ou comercial enquadrável na alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC;

(iii) a celebração, em outubro de 2010, de contrato de alienação de direitos entre a Requerente e a sociedade C…, na qualidade de sociedade integrada no indicado «Grupo G…», encontrava-se sujeita ao regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC.

 

Quer isto dizer, portanto, que na opinião da Autoridade Tributária a — alegada — subsistência de uma relação especial entre a Requerente e a sociedade H… é comunicável às restantes sociedades integradas no «Grupo G…» [em virtude, supõe a Requerente, de entre tais entidades e a sociedade H… subsistirem relações especiais enquadráveis noutras alíneas do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC], entre as quais, a sociedade C… .

 

A esta luz, a questão a que cumpre responder em primeiro lugar é, pois, a de saber se a Autoridade Tributária podia — como fez – aplicar sucessiva e conjugadamente as diversas alíneas do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC a distintas entidades e operações com o propósito de fundamentar a subsistência de relações especiais no caso concreto.

 

Por outras palavras, deve averiguar-se se a circunstância de a sociedade C…, ser detida pela sociedade H…, entidade com a qual a Requerente celebrou no passado um contrato de fornecimento, é – ou não – passível de preencher o conceito de relações especiais prefigurado na alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC entre a Requerente e a sociedade C… .

 

Ora, o âmbito de aplicação do regime dos preços de transferência é recortado pelo n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC da seguinte forma: «Nas operações comerciais (…) entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade, sujeita ou não a IRC, com a qual esteja em situação de relações especiais, devem ser contratados, aceites e praticados termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites ou praticados entre entidades independentes em operações comparáveis» (o destacado é da Requerente).

 

Mais adiante, o n.º 4 do mesmo artigo 63.º do Código do IRC determina «que existem relações especiais entre duas entidades [i.e., entre os mencionados sujeito passivo de IRC e respetiva contraparte em determinada operação comercial] nas situações em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre: (…) g) Entidades entre as quais, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, direta ou indiretamente estabelecidas ou praticadas, se verifica situação de dependência no exercício da respetiva atividade (…)» (o destacado é da Requerente).

 

Do teor dos transcritos n.os 1 e 4 do artigo 63.º do Código do IRC permite-se inferir, com mediana evidência, que a subsistência de relações especiais deve ser averiguada entre (i) um sujeito passivo de IRC e (ii) a respetiva contraparte em determinada operação comercial (ou série de operações).

 

Esta conclusão é igualmente confirmada pelo n.º 1 do artigo 1.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro, onde se esclarece que o sobredito regime dos preços de transferência é aplicável às «operações efetuadas entre um sujeito passivo do IRS ou do IRC e qualquer outra entidade, sujeita ou não a estes impostos, com a qual esteja em situação de relações especiais (…)».

 

Ora, do cotejo entre o elemento literal das diversas normas que ficam transcritas resulta, de forma objetiva, que as relações especiais prefiguradas pelo regime dos preços de transferência são as que existem (ou as que se verificam) entre duas entidades que tenham realizado determinada operação comercial.

 

Quer isto dizer, numa outra perspetiva — na do sentido normativo vinculativo para o respetivo intérprete-aplicador —, que a aferição da subsistência de relações especiais deve ser realizada por referência à relação estabelecida entre as partes intervenientes numa dada operação.

 

Neste sentido militam, por impossibilidade de lhes assacarmos outro sentido textual que não aquele que lhes fica apontado, as asserções «entre um sujeito passivo e qualquer outra entidade com a qual esteja em situação de relações especiais» (cf. n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC), «entre duas entidades» (cf. proémio do n.º 4 do mesmo preceito legal) e «nas operações efetuadas entre um sujeito passivo do IRC e qualquer outra entidade com a qual esteja em situação de relações especiais» (cf. n.º 1 do artigo 1.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro).

 

Resulta do anterior, em termos igualmente lineares, que o regime que transcorre do artigo 63.º do Código do IRC não admite a aplicação sucessiva e conjugada das diversas alíneas do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC a distintos sujeitos e a diferentes operações.

 

Dito de outro modo, o conceito de relações especiais entre duas entidades prefigurado no n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, parece não integrar as relações prévia ou concomitantemente estabelecidas entre uma daquelas duas entidades e quaisquer terceiros que não tenham sido parte na operação comercial escrutinada em sede de preços de transferência.

 

Esta conclusão, assente exclusivamente no elemento literal das normas analisadas, é, por seu turno, plenamente confirmada pelos elementos interpretativos racional e sistemático subjacentes ao regime dos preços de transferência.

 

A propósito do elemento racional, sublinha-se que a relação de poder ou de influência pressuposta pelo regime dos preços de transferência assenta no conhecimento — ou, pelo menos, na cognoscibilidade — das respetivas relações especiais.

 

Com efeito, a cognoscibilidade das relações especiais subsistentes entre os intervenientes em determinada operação comercial constitui a única forma de salvaguardar que os sujeitos passivos de IRC se encontram em condições de cumprir as medidas preventivas previstas nos n.os 6 a 13 do artigo 63.º do Código do IRC (onde se exige, v.g., a elaboração de um dossiê de preços de transferência contendo todos os elementos relativos às entidades com as quais o sujeito passivo se encontre em situação de relações especiais e às operações celebradas em tais circunstâncias).

 

Contudo, sendo curial impor aos sujeitos passivos de IRC o dever de averiguação exaustiva da subsistência de tais relações especiais no âmbito de determinada relação comercial bilateral (ou seja, entre a parte e a contraparte diretamente relacionadas por força de determinada transação),…

 

…o certo é que tal averiguação tornar-se-á cada vez mais difícil — senão, mesmo, impossível — na hipótese de tais relações deverem ser analisadas por referência a terceiras entidades que não sejam intervenientes na operação comercial sujeita a escrutínio ao abrigo do artigo 63.º do Código do IRC.

 

Neste contexto, se, por hipótese, as diversas alíneas do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC fossem sucessivamente conjugáveis em operações distintas e com distintos intervenientes (como pretende a Autoridade Tributária), cada sujeito passivo de IRC encontrar-se-ia obrigado não só a averiguar a subsistência de relações especiais com a respetiva contraparte (como resulta textualmente do artigo 63.º do Código do IRC)…

 

…mas, ainda, a escrutinar todas as relações especiais (de grupo ou de outro tipo) mantidas por tal contraparte com outras entidades com as quais esse mesmo sujeito passivo de IRC se pudesse ter anteriormente relacionado ou se pudesse vir a relacionar no futuro.

 

Nesta hipótese, e a título de exemplo, a subsistência de uma relação especial (v.g. em virtude da alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC) entre um sujeito passivo de IRC e uma sociedade integrada num grupo económico, mais ou menos vasto, teria por efeito arrastar para o âmbito do regime dos preços de transferência todas as operações realizadas por esse mesmo sujeito passivo de IRC com qualquer uma das restantes entidades de tal grupo (ou, no limite, com qualquer entidade especialmente relacionada com aquela sociedade, ainda que não pertencente ao mesmo grupo económico).

 

Consequentemente, para antecipar a existência de tais relações especiais (já que somente perante o conhecimento da subsistência de tais relações especiais é que seria oponível aos respetivos intervenientes a implementação de condições conformes com o princípio da plena concorrência), o sujeito passivo de IRC teria que conhecer e analisar, em detalhe, toda a estrutura societária, direta e indireta, do referido grupo (incluindo, designadamente, os acionistas pessoas singulares ou coletivas, os membros dos órgãos sociais das sociedades do grupo, etc., bem como todas as restantes – e eventuais – relações especiais existentes fora do seio do grupo).

 

No entanto, não só tal informação não é conhecida ou, sequer — na maioria dos casos — cognoscível, por parte dos sujeitos passivos de IRC relativamente às respetivas contrapartes, como uma tal interpretação teria por efeito transformar o artigo 63.º do Código do IRC num regime de matriz subjetivista cujo principal critério aplicativo passaria a ser o da extensão do conhecimento dos sujeitos passivos de IRC relativamente às caraterísticas e relacionamentos societários e comerciais de terceiras entidades.

 

Conclui-se, portanto, que uma tal interpretação colidiria frontalmente com o regime atualmente consagrado no artigo 63.º do Código do IRC, de matriz declaradamente objetivista e textualmente circunscrito à análise das eventuais relações especiais estabelecidas entre duas entidades intervenientes em determinada operação comercial.

 

Já no domínio da coerência intra-sistemática do Código do IRC, importa destacar o regime da indedutibilidade dos gastos suportados com a transmissão de partes sociais adquiridas ou transmitidas a entidades relacionadas, constante dos n.os 3 e 5 do artigo 23.º do Código do IRC (onde são reguladas situações substancialmente mais promíscuas do que as previstas no artigo 63.º do Código do IRC e que, por esse motivo, foram expressamente acauteladas por normas setoriais anti-abuso).

 

Ora, um tal regime de indedutibilidade é aplicável quando «as partes de capital tenham sido adquiridas a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º” ou perante “a transmissão de partes de capital (…) a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do artigo 63.º» (cf., respetivamente, os n.os 3 e 5 do artigo 23.º do Código do IRC; o destacado é da Requerente).

 

Resulta do que fica exposto, portanto, que mesmo nos casos em que se convoca uma atuação mais rigorosa e eficaz do legislador fiscal na evitação de eventuais abusos, o legislador esclarece inequivocamente que a aferição das relações especiais se esgota na operação realizada entre as entidades intervenientes [participações «adquiridas a» ou «transmitidas a»], confirmando, por nítida maioria de razão, a regra que já havia sido identificada no texto do artigo 63.º do Código do IRC.

 

Permite-se assim dar por assente que, conforme textualmente prescrito pelo n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC, e pelo n.º 1 do artigo 1.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro, as relações especiais relevantes para o regime dos preços de transferência são as que se estabelecem objetivamente entre o sujeito passivo de IRC e a respetiva contraparte em determinada operação comercial.

 

Será, pois, entre (estas) duas entidades [cf. proémio do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC], e não outras, que deverá ser averiguado o preenchimento de qualquer uma das hipóteses prefiguradas pelo legislador como consubstanciando relações especiais, designadamente a prevista na alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC.

 

Posto isto, faz-se recordar que o contrato de fornecimento a longo prazo – suscetível de, na opinião da Autoridade Tributária, preencher a hipótese recortada pela alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC – foi celebrado entre a Requerente e a sociedade H… .

 

Isto significa que quando se concluiu, no Relatório Final de Inspeção Tributária (cit. Doc. 6), que «por força das relações comerciais estabelecidas e praticadas, subsiste uma situação de dependência da A…, Lda., em relação à «G…», no exercício da atividade que desenvolve», a Autoridade Tributária referia-se, exclusivamente, às relações estabelecidas entre a Requerente e a sociedade H…, enquanto sua contraparte no sobredito contrato de fornecimento.

 

Porém, conforme porventura se antecipa, a contraparte da Requerente no indicado contrato de fornecimento celebrado em julho de 2006 (a sociedade H…) não é a mesma contraparte da Requerente na operação de alienação dos direitos associados à marca de vinho … B… realizada em outubro de 2010 (a sociedade C…).

 

O mesmo é dizer que a Autoridade tributária convocou, para demonstração da subsistência de relações especiais no âmbito de uma operação realizada entre a Requerente e a sociedade C…, uma operação previamente realizada entre a Requerente e uma terceira entidade (a sociedade H…)…

 

… tendo, nesse contexto e para o efeito, aplicado sucessiva e conjugadamente — em violação da lei — as diversas alíneas do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC.

 

Fica assim evidenciado, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, o erro sobre os pressupostos de direito em que incorreu a Autoridade Tributária na promoção da correção que se analisa.

 

Não obstante o que antecede, veio agora a Autoridade Tributária sustentar, em sede de reclamação graciosa, que «ao contrário do invocado pelo sujeito passivo, a relação especial na operação de alienação da marca de vinho … B… à sociedade C…, …, SA, não resulta da extensão da relação especial entre o sujeito passivo e a sociedade H…, …, Lda à contraparte na alienação da marca (…) De facto, a relação especial invocada no relatório baseia-se unicamente na aplicação do disposto na da alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, a qual prevê que a situação de dependência económica deve resultar de “por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, direta ou indiretamente estabelecidas ou praticadas”, isto é, o legislador na definição da situação de dependência económica, quis alargar o âmbito aos casos em que essa dependência resulte de relações (comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas) indirectamente estabelecidas ou praticadas».

 

Noutros termos, veio agora a Autoridade Tributária — em sede graciosa — defender a existência de uma relação indireta entre a Requerente e a sociedade C…, da qual resultou a existência de uma situação de dependência económica da primeira em relação à segunda.

 

Mais especificamente, sustenta-se — na decisão de indeferimento parcial — que «está em causa a existência de um contrato de fornecimento exclusivo dos produtos transacionados pelo sujeito passivo, resultando directamente dessa exclusividade a dependência deste face à H…, …, LDA e, indiretamente, face à C…, …, SA no abastecimento de matérias-primas».

 

Sucede, porém, que não é essa — não foi essa — a fundamentação sobre a qual a Administração Tributária procurou alicerçar a correção sob apreciação.

 

Conforme vem referido no Relatório Final de Inspeção Tributária, no momento da alienação dos direitos da marca B… a Requerente não mantinha qualquer relação jurídica ou comercial com a sociedade C… em, tão-pouco, detinha qualquer participação, direta ou indireta, no seu capital social.

 

Na verdade, como decorre do Relatório Final de Inspeção Tributária a Autoridade Tributária admite a inexistência de qualquer tipo de relação (comercial, financeira, profissional ou jurídica) entre a Requerente e a sociedade C…, na medida em que se refere invariavelmente — por impossibilidade factual de o fazer por referência direta à sociedade C…— às relações especiais subsistentes entre a Requerente e o «Grupo G…» ou «em relação à H…».

 

Significa isto, pois, que à data da correção sub judice, a Administração Tributária não invocou — nem sequer deixou sugerido — a existência de uma relação (comercial, financeira, profissional ou jurídica) indireta entre a Requerente e a C… nem procurou sustentar, nesse contexto, a existência de uma situação de dependência económica da primeira face à segunda (a Administração Tributária procurou demonstrar, isso sim, a existência de uma situação de dependência da Requerente face à C… decorrente da relação comercial estabelecida com a H…).

 

            Neste contexto, convém precisar que a correção sob análise — enquanto ato pressuposto do ato de liquidação adicional de IRC do ano de 2010 — não podia (não pode) ser apreciada com recurso a motivos e fundamentos diversos dos constantes do Relatório Final de Inspeção Tributária, sob pena de ilegalidade superveniente por desconformidade com os atos antecedentes.

 

Com efeito, a apreciação dos atos sindicados deve circunscrever-se ao respetivo conteúdo contextual, e não, portanto, a um seu eventual conteúdo admissível, devendo-se, nessa medida, única e exclusivamente, atender à concreta situação de facto e de direito verificada, como aliás, e bem, se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 5 de Julho de 2000, Recurso n.º 24632, na parte em que se entendeu que «(... ) no entanto, no caso, não foi por duvidar desta indispensabilidade que a administração fiscal corrigiu a matéria colectável, pelo que não interessa apreciar aqui se ela se verifica ou não».

 

E no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Maio de 2002, proferido no Recurso n.º 0309/02, em que se sublinha que, «se o acto contenciosamente recorrido denegou a pretensão de recebimento de certos juros moratórios com base em fundamentos em que não se incluía a prescrição do respectivo direito, não pode a legalidade do acto ser apreciada à luz dessa prescrição».

 

Significa isto, em síntese, que (i)legalidade dos atos impugnados terá de constituir o resultado de uma apreciação alicerçada na motivação de facto e de direito desses mesmos atos e não em qualquer outra que, eventualmente, pudesse, igualmente, determinar a sua prática.

 

Por conseguinte, o (novo) fundamento utilizado pela Administração tributária em sede graciosa — ainda que, como se verá, igualmente improcedente — nunca poderia sustentar a legalidade dos atos impugnados.

 

Em qualquer caso, ainda que se admita que a Administração tributária já deixava sugerido no Relatório Final de Inspeção Tributária o que agora se afirma em sede graciosaa existência de uma relação indireta entre a Requerente e a C… e, nesse contexto, a existência de uma situação de dependência económica da primeira face à segunda nada vem referido quanto aos termos e condições dessa suposta relação, nem em que medida se verificou uma situação de dependência da atividade da Requerente face à C… .

 

Aliás, na decisão de indeferimento parcial a Autoridade Tributária limitou-se a invocar, enquanto fundamento da subsistência de uma relação especial entre a Requerente e a C…, a mera existência de uma operação pretérita realizada entre a Requerente e uma terceira entidade (a sociedade H…).

 

Por conseguinte, não tendo ficado demonstrado, minimamente que seja, que a C… tinha o poder de exercer indiretamente uma influência significativa nas decisões de gestão da Requerente — rectius, que o exercício da atividade da Requerente encontrava-se dependente da C… em resultado do contrato de fornecimento celebrado entre a primeira e a H…— sempre se teria de concluir, também aqui, pela total falta de fundamentação dos atos impugnados e, por conseguinte, pela sua ilegalidade.

 

Por fim, a Autoridade Tributária refere na decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa que a sociedade H… não só «participou no mesmo contrato em que foi alienada a marca de vinhos … B…», como, nos termos do referido contrato, foi solidariamente responsável perante a Requerente pelo pagamento do preço devido pela sociedade C…, em virtude da aquisição dos direitos associados à marca de vinho … B… .

 

Das referidas circunstâncias e estipulações contratuais a Autoridade Tributária retirou, por seu turno, que as eventuais relações especiais subsistentes entre a Requerente e a sociedade H… se comunicaram aos restantes intervenientes no respetivo contrato, entre os quais a sociedade C… .

 

Ora, o contrato mencionado pela Autoridade Tributária (i.e., o contrato através do qual a Requerente alienou à sociedade C…, os direitos associados à marca de vinho … B…, denominado de «») foi facultado àquela Autoridade no decurso respetiva ação inspetiva (Doc. 15).

 

Conforme indicado no Relatório de Inspeção Tributária, foram partes no referido contrato a I… Ltd., a J…, Unipessoal Lda. (atual Requerente), a K... (L...Limited), na qualidade de vendedores,…

 

…e a H…, a C…, a M… Ltd., e a N…, Inc., na qualidade de compradores,…

 

…tendo sido transmitidos ao abrigo de tal contrato, por seu turno, a biblioteca … (adquirida pela H…), os direitos associados à marca de vinho … B… (adquiridos pela C…), o inventário físico e todos os materiais publicitários localizados ou em trânsito para o Reino Unido (adquiridos pela M… Ltd.), e, ainda, o inventário físico e todos os materiais publicitários localizados ou em trânsito para os Estados Unidos (adquiridos pela N…, Inc.) (cit. Doc. 15, Cláusula 2).

 

Resulta do que antecede, portanto, que através do referido instrumento contratual foram formalizadas diversas operações de compra e venda: tantas quantos os objetos atomisticamente transmitidos para cada um dos intervenientes.

 

Com efeito, tais operações de compra e venda poderiam ter sido formalizadas em separado, tendo em consideração a distinta natureza dos elementos alienados, o preço de venda estipulado para cada um deles e a autonomia dos respetivos adquirentes.

 

Porém, por razões de conveniência e de simplificação, é comum concentrar várias operações de compra e venda num único instrumento contratual conjuntamente assinado pelos vários intervenientes (situação denominada de coligação ou de união de contratos).

 

Em tais casos — como no vertente —, cada compra e venda consubstancia um contrato juridicamente autónomo, ainda que coligado ou unido com outros contratos da mesma natureza.

 

Por conseguinte, transpondo o referido processo de formação contratual para o domínio dos preços de transferência, deverá concluir-se que cada uma das operações de compra e venda, ainda que formalizadas num mesmo instrumento contratual, será merecedora de uma análise autónoma em sede de preços de transferência, tendo em consideração a sua independência jurídica (distintos objetos e intervenientes) e económica (distintas condições contratadas).

 

Com efeito, cada elemento patrimonial alienado a uma contraparte específica por um preço determinado traduz uma operação económica independente, suscetível de avaliação autónoma quanto às respetivas condições (v.g., na relação estabelecida entre o preço estipulado e o elemento patrimonial transmitido) e à sua conformidade com o princípio de plena concorrência.

 

Quer isto dizer, portanto, que o regime dos preços de transferência deverá aplicar-se, sendo esse o caso, a cada uma das operações de compra e venda formalizadas no contexto de uma união ou coligação de contratos, devendo, em cada uma delas, averiguar-se a subsistência de relações especiais entre as duas partes intervenientes (ou seja, entre a alienante e a adquirente de determinado elemento patrimonial).

 

Transpondo esta hipótese aplicativa para o caso concreto impor-se-á concluir, uma vez mais, que não subsiste qualquer relação especial entre a Requerente e a sociedade C…, na qualidade de adquirente dos direitos associados à marca de vinho … B…, …

 

…com a consequente inaplicabilidade do artigo 63.º do Código do IRC e, bem assim, com a inerente ilegalidade da correção realizada pela Autoridade Tributária por padecer do vício de violação de lei.

 

Não obstante, caso fosse de admitir que as relações especiais alegadamente subsistentes entre duas partes são passíveis de ser alargadas aos demais intervenientes na respetiva união de contratos, sempre se teria de concluir que todas a operações abrangidas por um tal instrumento contratual constituem uma única operação para efeitos de preços de transferência, atendendo à insusceptibilidade da sua autonomização enquanto operações independentes…

 

…sendo forçoso reconhecer, sob pena de se verificar uma incoerência insanável, que todas as operações incluídas no respetivo instrumento contratual constituíram afinal uma única operação, analisando o conjunto das operações realizadas e os valores estipulados para cada uma delas como se de uma única operação se tratasse para efeitos de preços de transferência.

 

Em consequência, esta hipótese qualificativa implicaria que as diversas operações formalizadas através do contrato celebrado pela Requerente tivessem sido conjuntamente analisadas, atendendo à subsistência de relações especiais entre todos os intervenientes, cabendo à Autoridade Tributária demonstrar que o valor globalmente estipulado fora desconforme com o princípio da plena concorrência.

 

Assim sendo, a Autoridade Tributária deveria ter analisado em sede inspetiva a conformidade do preço globalmente acordado como contrapartida devida pela aquisição dos direitos associados à marca de vinho … B… (o qual ascendeu ao montante de € 2.325.000,00, e não somente ao valor devido pela sociedade C…),…

 

…e, de igual forma, averiguado a conformidade do valor pago pela H… à Requerente em virtude da aquisição da biblioteca … (no montante de € 1.675.000,00), entidades entre as quais a Autoridade Tributária entendeu subsistir, de resto, uma relação especial determinativa da aplicação do regime dos preços de transferência.

 

Contudo, sobressai do Relatório de Inspeção Tributária que apesar de sustentar que o contrato celebrado pela Requerente constituiu uma única operação para efeitos de preços de transferência (com a consequente comunicabilidade das relações especiais estabelecidas entre as diversas partes), a Autoridade Tributária circunscreveu a sua análise à apreciação limitada e parcelar de somente um dos elementos integrativos da operação assim realizada.

 

Com efeito, verifica-se que no decurso da ação inspetiva realizada a Autoridade Tributária se limitou a sindicar a operação realizada entre a Requerente e a sociedade C… (confirmando, de forma implícita, a autonomia ou independência desta operação relativamente às restantes).

 

Em consequência, a Autoridade Tributária omitiu a análise das principais condições da operação sujeita a escrutínio ao abrigo do regime dos preços de transferência (como sejam o preço globalmente devido pela alienação dos direitos associados à marca de vinho … B…, ou o valor devido pela alienação da biblioteca …),…

 

…não analisando — nem, tão-pouco, fazendo qualquer referência —, às implicações que tais condições seriam suscetíveis de produzir, quer na identificação de uma operação comparável (na medida em que a análise comparativa exigida pelo regime dos preços de transferência passaria a exigir a consideração global da operação escrutinada), quer no subsequente apuramento do preço de plena concorrência (tendo em consideração que o valor global da operação ascenderia, neste cenário, a € 4.000.000,00).

 

Significa isto, portanto, que, neste contexto, a correção realizada pela Autoridade Tributária seria igualmente ilegal, desta feita por padecer de manifesta falta de fundamentação,…

 

…já que teria sido omitida a análise da maior parte das condições estipuladas no contrato celebrado pela Requerente, fundamentando-se a correção realizada numa análise meramente parcelar da operação realizada, a qual seria manifestamente violadora da metodologia comparativa prescrita pelo regime dos preços de transferência e, por esse motivo, insuscetível de fundamentar a desconformidade do contrato em causa com o princípio de plena concorrência.

 

A finalizar este ponto, resta referir que a invocada responsabilidade solidária da sociedade H… pelo pagamento do preço devido à Requerente pela sociedade C…, somente confirma, ao contrário do que sustenta a Autoridade Tributária, que as diversas operações de compra e venda formalizadas através do contrato celebrado em outubro de 2010 consubstanciaram operações autónomas entre si.

 

Com efeito, no caso de o contrato celebrado traduzir uma única operação de compra e venda, a sociedade H… seria originariamente responsável pelo pagamento do preço globalmente devido à Requerente, sendo inútil estipular a sua responsabilidade solidária pelos pagamentos devidos pelos restantes adquirentes — na medida em que tal cláusula consubstanciaria uma mera repetição do regime jurídico já aplicável ao contrato celebrado.

 

Neste contexto, a utilidade da estipulação da responsabilidade solidária da sociedade H… apenas se justificaria num cenário de constituição de garantias adicionais, ou seja, num cenário em que aquela primeira sociedade não fosse, já, responsável pelo pagamento devido pela sociedade C… .

 

Assim sendo, a invocada solidariedade passiva terá visado atribuir à Requerente uma garantia adicional, idêntica à da fiança sem o benefício da excussão prévia (nos termos da qual «O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor», cf. artigo 627.º do Código Civil).

 

Por conseguinte, e também por este motivo, deve concluir-se pela manifesta ilegalidade da correção promovida ao lucro tributável da Requerente do exercício de 2010.

 

Aqui chegados, e sem prejuízo de se ter demonstrado que o contrato de fornecimento celeberado entre a Requerente e a sociedade H… não é atendível para efeitos da verificação de uma relação entre a Requerente e a sociedade C…, faz-se notar, em qualquer caso, que a Autoridade Tributária não logrou demonstrar, sequer, a subsistência de uma relação especial entre aquelas primeiras entidades (a Requerente e a sociedade H…).

 

A este propósito, cumpre recordar que as relações especiais prefiguradas na invocada alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC foram descritas no Relatório de Inspeção Tributária da seguinte forma: «Quando em 7 de julho de 2006, a A…, Lda. adquiriu à firma D…, Lda., os direitos dos vinhos … B…, da Aguardente Velha E… (E…) e do F…, assinou um contrato de fornecimento a longo prazo, com o Grupo G… ficando este designado com exclusividade, produtor, engarrafador, embalador e responsável pela armazenagem dos produtos acabados, das marcas B…, Aguardente E… e F…, por um período de 20 anos» (cit. Doc. 6).

 

Contudo, parafraseando os pressupostos recortados pela previsão normativa da invocada alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, verifica-se que a Autoridade Tributária se absteve de demonstrar, por referência ao referido contrato de fornecimento:

(i)     em que medida o exercício da atividade da Requerente dependia substancialmente da cedência de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou do know-how detido pela sociedade H…;

(ii)   em que medida o aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de venda dos produtos por parte da Requerente dependiam substancialmente da sociedade H…;

(iii)  em que medida uma parte substancial da atividade da Requerente só podia realizar-se com a sociedade H… ou dependia das decisões desta;

(iv)  em que medida o direito de fixação dos preços, ou condições de efeito económico equivalente se encontrava na titularidade da H…; ou, bem assim,

(v)   em que medida a H… podia condicionar as decisões de gestão da Requerente, em função de factos ou circunstâncias alheios à própria relação comercial ou profissional.

 

Quer isto dizer que a Autoridade Tributária se limitou a enunciar, singela e acriticamente, a norma legal cujos pressupostos, uma vez preenchidos, poderiam legitimar o recurso ao regime dos preços de transferência.

 

De resto, é a própria Autoridade Tributária que sublinha na decisão de indeferimento parcial do procedimento de reclamação graciosa que, «de facto, não é indicado no relatório final de inspeção tributária qual das situações previstas nas subalíneas da alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC» (cit. Doc. 1).

 

O que fica dito é suficiente para concluir, sem mais — atendendo a que este vício é expressamente reconhecido pela própria Autoridade Tributária —, pela manifesta falta de fundamentação da correção que se analisa, com a consequente necessidade da sua anulação.

 

Travejando o que se afirma, confirma o Supremo Tribunal Administrativo que «não se encontra devidamente fundamentado o ato que conduz a essas correções da matéria coletável se não se descreve as relações especiais que justificam essas alterações» (cf. Acórdão de 22-09-2004, proferido no recurso n.º 119/04),…

 

Não obstante, a Autoridade Tributária veio ensaiar a posteriori o suprimento daquela lacuna na fundamentação, alegando, já em sede graciosa, que «a remissão para o “contrato de fornecimento a longo prazo, com o Grupo G…” indica claramente que está em causa a subalínea 2) daquela alínea, isto é, “o aprovisionamento em matérias-primas ou o acesso a canais de vendas dos produtos, mercadorias ou serviços por parte de uma dependem substancialmente da outra» e que «está em causa a existência de um contrato de fornecimento exclusivo dos produtos transacionados pelo sujeito passivo, resultando diretamente dessa exclusividade a dependência deste face à H…, …, Lda. e, indiretamente, face à C…, Lda. no abastecimento de matérias-primas» (cit. Doc. 1).

 

Contudo, mesmo perante esta constatação superveniente, a verdade é que o Relatório de Inspeção se mantém totalmente omisso quanto à efetiva demonstração dos requisitos prescritos pela subalínea 2) da alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC, não aflorando, minimamente que seja, em que termos o contrato de fornecimento celebrado pela Requerente com a sociedade H… criou uma relação de dependência económica relevante para efeitos de preços de transferência.

 

Confirmando esta falta de fundamentação, sublinha-se, ainda, que as relações especiais decorrentes de uma situação de dependência económica resultam da possibilidade de aproveitamento, por parte de uma empresa, do poder ou ascendente de que dispõe em relação a outra, que se encontra num estado de dependência por não dispor de alternativa equivalente para fornecimento dos bens ou prestação dos serviços em causa.

 

Como nota essencial desta situação destaca-se, portanto, que a empresa desfavorecida encontrar-se-á num estado de dependência económica relativamente à empresa dominante, atendendo à inexistência de alternativas equivalentes.

 

Neste contexto, com vista a apurar a existência de uma situação de dependência económica no caso da Requerente, a Autoridade Tributária deveria ter averiguado se, em momento anterior ao da celebração do contrato de fornecimento com a H…, a Requerente teve a opção de negociar com outras entidades produtoras de vinho … e, face às opções realisticamente disponíveis, selecionou a entidade que, à data, lhe oferecia as melhores condições comerciais e confiança para o exercício dessa atividade.

 

De resto, é do conhecimento público que existem outras entidades no mercado com atividades e características idênticas às da H… (outras famílias com reputação na produção de vinho …), pelo que não haveria impedimento efetivo para que a Requerente tivesse selecionado outro fornecedor, em regime de exclusividade e por um período de tempo igualmente longo, à data em que estabeleceu o referido contrato de fornecimento.

 

Porém, a este propósito nada foi referido no Relatório Final de Inspeção Tributária ou, sequer, na decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa.

 

Conclui-se, portanto, pela manifesta violação do dever de fundamentação imposto pela alínea a) do n.º 3 do artigo 77.º da Lei Geral Tributária, nos termos do qual a Autoridade Tributária deveria ter demonstrado os requisitos constitutivos da alegada relação especial subsistente entre a Requerente e a sociedade H… .

 

Neste preciso sentido observou já o Tribunal Central Administrativo Sul, que «A prova de que estão reunidos os pressupostos para aplicação do disposto no art. 57.º do CIRC [atual artigo 63.º do Código do IRC] (…) cabe à Fazenda Pública, nomeadamente descrevendo, de forma clara e objetiva, o tipo de relações verificadas entre o contribuinte e a pessoa com a qual se diz ter tido relações especiais» (Acórdão de 16-01-2007, proferido no recurso n.º 1114/03).

 

Em suma, e pelo que fica exposto — seja por assentar em erro sobre os respetivos pressupostos de direito, seja por incorrer no vício de falta de fundamentação —, a correção ao lucro tributável do exercício de 2010 da Requerente, fundamentada na aplicação do artigo 63.º do Código do IRC, é ilegal, devendo, como tal, ser anulada.

 

II.                Da inidoneidade do método de determinação dos preços de transferência convocado pela Autoridade tributária

A)    Considerações introdutórias

 

Prosseguindo a presente discussão, refira-se que mesmo que subsistissem quaisquer relações especiais no caso vertente, haveria ainda que escrutinar a conformidade das condições acordadas entre a Requerente e a sociedade C…, com o princípio da plena concorrência e, em caso de comprovada desconformidade, quantificar o respetivo desvio (enquanto valor da correção admitida pelo artigo 63.º do Código do IRC).

 

Refere-se no Relatório Final da Inspeção Tributária a propósito do critério utilizado para este efeito, que «de entre os métodos apontados no n.º 2 do mesmo art. 63.º do Código do IRC, o que melhor se adequa à operação em análise, é, o Método do Preço Comparável de Mercado, na medida em que, é possível determinar qual o preço de mercado normal para operações substancialmente idênticas» (cit. Doc. 6) (o destacado é da Requerente).

 

Por conseguinte, a adoção do método do preço comparável de mercado convocado pela Autoridade Tributária reclama, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro, «o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objeto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes».

 

Por seu turno, o método do preço comparável de mercado convocado pela Autoridade Tributária pode ser utilizado, de acordo com o n.º 2 do artigo 6.º da Portaria 1446-C/2011, de 21 de dezembro, nas seguintes situações: «a) Quando o sujeito passivo ou uma entidade pertencente ao mesmo grupo realiza uma transação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, com uma entidade independente no mesmo ou em mercados similares; b) Quando uma entidade independente realiza uma operação da mesma natureza que tenha por objeto um serviço ou um produto idêntico ou similar, em quantidade ou valor análogos, e em termos e condições substancialmente idênticos, no mesmo mercado ou em mercados similares».

 

Neste contexto seria curial presumir, pois, que no processo de identificação de operações comparáveis a Autoridade Tributária tivesse identificado os elementos e as circunstâncias distintivas da operação realizada em 6 de outubro de 2010 entre a Requerente e a sociedade C…, para, a essa luz, fixar os fatores de comparabilidade pertinentes, dado que a adoção deste método requer, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º da Portaria 1446-C/2001, de 21 de dezembro, «o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objeto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes».

 

Posto isto, uma vez identificada uma operação não vinculada substancialmente idêntica aos fatores de comparabilidade extraídos da operação realizada em 6 de outubro de 2010 entre a Requerente e a sociedade C…— podendo ser uma operação de natureza interna (aplicando-se a transcrita alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º da Portaria 1446-C/2011, de 21 de dezembro) ou de natureza externa (aplicando-se a referida alínea b)) —, seria ainda exigível à Autoridade Tributária o cotejo entre tais operações com vista a identificar as respetivas discrepâncias.

 

Porém, conforme será demonstrará de seguida, a Autoridade tributária não atendeu ao pilar fundamental da aplicação do método do preço comparável de mercado (a natureza não vinculada da operação comparável), violando um dos mais elementares princípios do regime dos preços de transferência, e não procedeu à prévia identificação dos fatores de comparabilidade relevantes que permitiriam assegurar a comparabilidade ao mais alto nível no caso vertente (prejudicando, assim, o grau de comparabilidade exigido por lei para determinação dos preços de transferência).

 

Sem prejuízo do que antecede, a Requerente não deixará de evidenciar, adicionalmente, os erros em que incorreu a análise económica realizada pela Autoridade Tributária.

 

B)    Da falta de identificação de fatores de comparabilidade e da consequente violação do grau de comparabilidade ao mais alto nível

 

Atalhando a presente análise, recorde-se que o método do preço comparável de mercado convocado pela Autoridade Tributária «requer o grau mais elevado de comparabilidade com incidência tanto no objeto e demais termos e condições da operação como na análise funcional das entidades intervenientes», nos termos do artigo 6.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Para este efeito, a Autoridade tributária deveria ter fixado preliminarmente os fatores de comparabilidade pertinentes para a identificação da respetiva operação comparável,…

 

…em particular, as «as características específicas dos bens, direitos ou serviços; as funções desempenhadas pelas entidades intervenientes nas operações; os termos e condições contratuais; as circunstâncias económicas prevalecentes no mercado; a estratégia das empresas; e outras características relevantes quanto à operação em causa ou às empresas envolvidas» (cf. artigo 5.º da Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro).

 

Aliás, o entendimento do Tribunal Arbitral a propósito da necessidade de fixação e de ponderação aturada dos fatores de comparabilidade utilizados como critério de base para o ajustamento fiscal tem sido lapidar: «Como resulta do texto desta norma, só é legal a utilização deste método quando existir o grau mais elevado de comparabilidade e esta tem de incidir cumulativamente no objecto, termos e condições da operação, para além da análise funcional das entidades intervenientes. Com efeito, aquela palavra «tanto» [incluída no referido n.º 1 do artigo 6.º] evidencia que não se está perante um arrolamento alternativo de requisitos, mas sim cumulativo.» (cf. Processos n.º 55/2012-T, n.º 145/2013-T e n.º 160/2013-T);…

 

…acrescentando o mesmo Tribunal, noutro aresto, que «Daqui decore que o PCM [Preço Comparável de Mercado], eleito como o método mais fiável como base de eventuais ajustamentos, requer condições bastante exigentes para a sua aplicação. Compreende-se que assim seja. Para que tal método constitua a base dos ajustamentos, as operações em causa (vinculadas e não vinculadas) devem possuir um elevado grau de comparabilidade. Se assim não for, o PCM não servirá com critério de base para o ajustamento fiscal.» (cf. Processo n.º 91/2012-T; refira-se ainda que todos os Processos identificados neste artigo e no anterior têm em comum a declaração de ilegalidade de correções em sede de preços de transferência por violação das normas que definem a aplicação do método do preço comparável de mercado).

 

No caso concreto, porém, verifica-se que a Autoridade Tributária se limitou a identificar como operação comparável, para efeitos de quantificação do ajustamento a realizar ao lucro tributável da Requerente do exercício de 2010, a operação de aquisição dos direitos associados à marca de vinho … B… realizada em 7 de julho de 2006 entre a Requerente (então denominada O…– …, Unipessoal, Lda.) e a sociedade D…., S.A.,…

 

…sustentando-se para o efeito na análise genérica de alguns indicadores económicos com o intuito de fundamentar — através da quota de mercado, margens operacionais positivas e ausência de perdas por imparidade — que o preço de venda da marca em 2010 seria idêntico ao preço pago pela Requerente aquando da sua aquisição em 2006,…

 

…e concluindo, a este propósito, que «Tudo aponta que o preço de mercado da marca B… em 2010 seria idêntico ao preço de mercado obtido em 2006 dado não ter havido qualquer deterioração até 2010 das condições de mercado subjacentes à formação do preço de compra» (cit. Doc. 6).

 

No mesmo sentido, a Autoridade Tributária reiterou na decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa que entre a operação vinculada e a operação comparável existe perfeita identidade, tanto no objeto (a marca de vinho … B…), como nas entidades intervenientes (invertendo-se apenas as posições de compradora e vendedora), considerando assim assegurado o mais elevado grau de comparabilidade exigido pelo n.º 1 do artigo 6.º Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro.

 

Sublinha-se, contudo, que a Autoridade tributária se contradiz ao concluir que «A única situação que distingue a operação vinculada (realizada em 2010) com a operação comparável (realizada em 2006) é realmente o facto de terem sido realizadas em períodos distintos.» (cit. Doc. 1, ponto 29 da pág. 10) quando, no ponto anterior, reconhece que as posições contratuais e comerciais das entidades intervenientes se inverteram,…

 

…nada mais acrescentando acerca desta inversão, como se a posição das partes — de comprador ou de vendedor numa operação vinculada — consubstanciasse um aspeto irrelevante em matéria de comparabilidade.

 

A este respeito importa referir que no parágrafo 1.55 das Orientações da OCDE em matéria de preços de transferência (versão de 2010) se refere expressamente a necessidade de consideração, na análise comparativa a realizar, de todas as circunstâncias económicas relevantes neste domínio, entre as quais se contam «as posições competitivas relativas dos compradores e dos vendedores».

 

Por outras palavras, é reconhecido pelos princípios orientadores da OCDE — nos quais, por seu turno, se baseia o regime português de preços de transferência — que a posição competitiva relativa do comprador ou do vendedor influencia o preço de plena concorrência.

 

Por conseguinte, ao não fixar os fatores de comparabilidade prescritos pela Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, a Autoridade Tributária prejudicou a identificação de uma operação comparável que acautelasse devidamente a inversão de papéis de vendedor para comprador e, logo, a posição competitiva e negocial da Requerente.

 

De igual forma, a Autoridade Tributária não salvaguardou a comparabilidade das circunstâncias económicas prevalecentes no mercado em 2010, já que se limitou a convocar uma operação comparável realizada em 2006 sem cuidar de comprovar (mediante a fixação dos devidos fatores de comparabilidade) que as condições de mercado se mantiveram idênticas não obstante o lapso temporal decorrido entre a data da operação comparável (2006) e a data da operação comparada (2010).

 

Resulta do que antecede, portanto, que a falta de fixação dos fatores de comparabilidade por referência ao caso concreto levou a que a Autoridade Tributária ignorasse elementos tão relevantes como o tempo decorrido entre as operações analisadas e a posição relativa das partes intervenientes, prejudicando de forma irremediável o mais elevado grau de comparabilidade exigido pelo n.º 1 do artigo 6.º Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de dezembro, e ferindo a correção realizada do vício de ilegalidade por violação de lei.

 

C)    Sobre a natureza vinculada — e, portanto, inadmissível — da operação comparável utilizada pela Autoridade Tributária para quantificar o ajustamento realizado

 

Prosseguindo a presente análise, salienta-se, conforme já sobejamente referido, que nos termos do n.º 1 do artigo 63.º do Código do IRC a operação comparável para efeitos de aplicação do regime dos preços de transferência deverá consubstanciar uma operação realizada em «termos ou condições substancialmente idênticos aos que normalmente seriam contratados, aceites e praticados entre entidades independentes em operações comparáveis» (o destacado é da Requerente).

 

Foi igualmente possível verificar acima que a Autoridade Tributária elegeu como operação comparável, para efeitos de quantificação do ajustamento a realizar ao lucro tributável da Requerente do exercício de 2010, a operação de aquisição dos direitos associados à marca de vinho … B… realizada em 7 de julho de 2006 entre a Requerente (então denominada O…– …, Unipessoal, Lda.) e a sociedade D..., S.A..

 

No entanto, como a Autoridade Tributária não deveria desconhecer — atendendo ao levantamento factual realizado em sede inspetiva e aos elementos adicionalmente solicitados à Requerente —, a referida operação comparável não traduz uma operação realizada entre entidades independentes, mas antes uma operação vinculada realizada entre entidades relativamente às quais subsistiam relações especiais.

 

Neste sentido, refere-se no ponto «II.3 – Breve caraterização do sujeito passivo» do Relatório de Inspeção Tributária (cit. Doc. 6) que:

(i)                 A Requerente «foi constituída em 06 de julho de 2006, com o capital social de € 5.000,00, sob a designação O…– …, Unipessoal, Lda., tendo como único sócio a firma P…, S.L., com sede em Madrid – Espanha»;

(ii)               Em 7 de julho de 2006, a marca B… foi adquirida pela Requerente à sociedade D..., S.A.;

(iii)             Subsequentemente, em 25 de julho de 2006, «a totalidade do capital social da D…, Lda., foi adquirido pelo grupo G…, tendo a firma H…, Lda., NPC … adquirido 71% do capital social e a firma Q…– …, S.A., NPC … adquirido os restantes 29%»;

(iv)             Por fim, «Em 09 de novembro de 2006, a D…, Lda., foi transformada em sociedade anónima passando a designar-se C…, …, S.A.».

 

Ora, como a Autoridade Tributária destaca, a sociedade D…, S.A. (posteriormente redenominada para C…), apenas integrou o Grupo G… no dia 25 de julho de 2006, data em que o seu capital social foi globalmente adquirido pelas sociedades H… e Q…– Vinhos, S.A..

 

Até ao dia 25 de julho de 2006, a referida sociedade D…, S.A., foi globalmente detida pelas entidades R… B.V. e S… (UK) Limited (em 71,43% e em 28,57%, respetivamente), ambas sociedades integradas no Grupo T…, conforme expressamente se refere no Asset Sale and Purchase Agreement facultado à Autoridade Tributária no decurso da ação inspetiva (cit. Doc. 15, Considerando C).

 

Quer isto dizer, portanto, que em 7 de julho de 2006 (data de aquisição da marca B… por parte da Requerente), tanto a Requerente (compradora) como a D…, S.A. (vendedora), pertenciam ao Grupo T…, subsistindo entre ambas uma situação de relações especiais nos termos prefigurados na alínea b) do n.º 4 do artigo 63.º do Código de IRC.

 

Dito de outro modo: os valores que foram utilizados pela Autoridade Tributária como valores de plena concorrência para efeitos de correção ao lucro tributável da Requerente, constituíram, afinal, valores de uma operação realizada entre duas entidades especialmente relacionadas — a Requerente e a sociedade D…, S.A., ambas sociedades integradas no Grupo T… .

 

Em consequência, os valores da operação de aquisição da marca B… realizada em 7 de julho de 2006 pela Requerente não poderiam ter sido utilizados pela Autoridade Tributária como referentes para a aferição do preço de plena concorrência numa operação comparável, pela simples — mas definitiva — razão de não traduzirem um preço acordado entre entidades independentes,…

 

…sendo a correção realizada com fundamento em tais valores, por este motivo, ilegal, na medida em que viola frontalmente o regime prescrito pelo artigo 63.º do Código do IRC.

 

D)    Sobre os erros incorridos pela Autoridade Tributária na análise de alguns indicadores económicos

 

Já propósito da análise de alguns indicadores económicos (análise que foi realizada com o intuito de sustentar que o preço de venda da marca em 2010 seria idêntico ao preço pago pela Requerente aquando da sua aquisição em 2006), refere-se no Relatório de Inspeção Tributária (cit. Doc. 6) que:

(i)     em relação aos resultados operacionais, «a contribuição da marca B… sempre foi positiva. Nos últimos 4 exercícios, foi mesmo superior à contribuição dada pelas marcas E… e F…» [contudo, atendendo à evolução deste indicador (30,25% em 2007, 86,93% em 2008, ‑50,81% em 2009 e ‑46,21% em 2010), facilmente se compreende que, a partir de 2009, o negócio do vinho … deu sinais de forte enfraquecimento, sobretudo quando comparado com o negócio dos brandies (‑26,97% em 2007, 10,39% em 2008, ‑1,08% em 2009 e 11,47% em 2010)];

(ii)   que «em todos os exercícios a margem operacional [da marca B…] foi positiva» [pese embora as margens verificadas no segmento do vinho … sejam efetivamente positivas, não pode a Requerente deixar de chamar a atenção para o decréscimo das mesmas nos últimos anos de atividade (‑41,82% em 2009 e ‑34,80% em 2010)];

(iii) que «a procura deste tipo de produto [vinho …] apenas decresceu, entre 2006 e 2010, cerca de 6%, quer em quantidades quer em volume de negócios» [porém, fica por saber se, contrariamente à evolução negativa do mercado mundial de vinho … que a Autoridade Tributária considera constituir uma redução pouco significativa, a evolução do mercado de brandy não terá sido melhor, situação que justificaria o interesse da Requerente em distanciar-se do negócio do vinho … para se entregar ao core business do Grupo T…, através das marcas E… e F…];

(iv) e que a quota de mercado da marca B… «se manteve estável no período compreendido entre 2006 e 2010, mesmo considerando que 2006 e 2010 não correspondem a anos completos, tendo inclusive aumentado ligeiramente em 2007 e 2008» [neste ponto, não pode a Requerente concordar com a avançada conclusão, já que, como se pode verificar, a quota de mercado da B… registou um crescimento cada vez menor (27,1% em 2007 e 17,8% em 2008), até registar, inclusivamente, uma retração em 2009 e em 2010 (-9,7% e ‑21,6%, respetivamente)].

 

Sintetizando o que fica dito, não pode a Requerente conformar-se com a análise realizada pela Autoridade Tributária acerca da estabilidade da quota de mercado, da manutenção de margens operacionais positivas e da ausência de perdas por imparidade invocadas com o propósito de demonstrar a impossibilidade de desvalorização da marca B…, na medida em que:

(i)     por um lado, e como acima evidenciado, a quota de mercado da Requerente sofreu uma retração em 2009 e em 2010, de -9,7% e -21,6%, respetivamente, valores completamente incompatíveis com uma situação de estabilidade (a Autoridade Tributária terá, aparentemente, focalizado a sua análise em valores absolutos, examinando a quota de mercado da Requerente de uma forma reducente, sem contemplar e avaliar a sua evolução, um bom indicador do crescimento e sustentabilidade do negócio); e

(ii)   por outro lado, ainda que as margens operacionais se tenham mantido positivas, é notória a quebra verificada nos períodos de 2009 e 2010, sobretudo quando comparadas com as margens operacionais registadas no segmento de negócio do brandy, razão pela qual nunca seria óbvio e «expectável que tal situação [a manutenção de margens operacionais positivas] se mantivesse», porquanto quedas sucessivas da margem operacional poderiam, ao longo do tempo, originar margens negativas;

 

Já em sede graciosa, observou a Autoridade Tributária que o ponto de partida da análise efetuada foi o de «apurar quais os critérios que estiveram na base da formação dos preços de compra (em 2006) e de venda (em 2010) da marca de vinho … B…» (cit. Doc. 1, p. 11)…

 

…e, com base em alguns dos elementos facultados (com um propósito diferente) pela representante da Requerente, determinar a alocação do preço entre as entidades que participaram na compra dos direitos associados à marca B… (i.e., a Requerente e a I…), tendo a Autoridade Tributária concluído que «o preço de venda deveria ter sido pelo menos €365.178,53» (cit. Doc. 1), a que corresponde a uma alocação de 16% do preço da transação.

 

Todavia, não foi essa a abordagem adotada pela Autoridade Tributária para determinar a correção efetuada ao preço de venda da marca B… pela Requerente à C… .

 

Neste sentido, apesar de não questionar o preço global pago pela C…, no valor de € 2.325.000,00 (tendo questionado somente a sua repartição entre a Requerente e a I… no Relatório Final de Inspeção Tributária) a Autoridade Tributária acabou por apurar o valor da correção realizada desatendendo completamente àquele preço global ou à sua conformidade com o princípio de plena concorrência.

 

Em consequência, e em virtude da — incorreta — aplicação do método do preço comparável de mercado, a Autoridade Tributária acabou por corrigir o preço da transação atribuído à Requerente para um valor inclusivamente superior ao preço globalmente devido, sem fundamentar, minimamente que fosse, o afastamento daquele valor (ou seja, sem demonstrar a sua desconformidade com o princípio de plena concorrência, o que uma vez mais demonstra o cometimento do vício de falta de fundamentação).

 

Por fim, a análise efetuada pela Autoridade Tributária à argumentação apresentada pela Requerente em sede de reclamação graciosa suscita as seguintes observações adicionais:

(i)     Entende a Autoridade Tributária que, ainda que a margem mensal operacional registada pela Requerente apresente um comportamento muito díspar nos anos analisados, «fica por demonstrar que "a partir de 2009, o negócio do vinho … deu sinal de forte enfraquecimento”, já que, em 2008, o valor da margem mensal não era muito diferente do que se apurou em 2009». Ora, atendendo à evolução deste indicador, calculado mensalmente (-34,88% em 2007, 86,93% em 2008, 50,81% em 2009 e -28,29% em 2010), mantém-se a conclusão de que, a partir de 2009, o negócio do vinho … deu sinais de forte enfraquecimento, sobretudo quando comparado com o negócio dos brandies (-63,48% em 2007, 10,39% em 2008, -1,08% em 2009 e 48,63% em 2010). Aliás, não é compreensível a afirmação da Autoridade Tributária relativamente à variação da margem registada entre 2008 e 2009, pois está em causa uma quebra para metade do valor.

(ii)   Acrescenta a Autoridade Tributária que «a quota de mercado no ano 2009 apenas é inferior à observada no ano imediatamente anterior e a quota de mercado de 2010 é superior à observada em 2006, no ano em que o sujeito passivo adquiriu a marca de vinho … B…, pelo que se conclui que não existe a detioração invocada pelo sujeito passivo». Neste ponto, não entende a Requerente como pode a Autoridade Tributária ignorar o registo de retrações sucessivas em 2009 e em 2010, respetivamente de 9,7% e -21,6%.

 

…impondo-se, por tudo o que fica exposto, a anulação da correção consubstanciada no acréscimo do montante de € 5.999.900,00 ao lucro tributável do exercício de 2010 da ora Requerente.

 

Ilegalidade – autónoma – da liquidação de juros compensatórios

Da absoluta falta de fundamentação quanto à demonstração da exigibilidade de juros compensatórios

 

Juntamente com a liquidação adicional de IRC, a Requerente foi notificada da demonstração de liquidação de juros compensatórios, no valor de € 24.760,13 (cit. Docs. 2 a 4).

 

Este ato de liquidação de juros compensatórios não foi, contudo, acompanhado de qualquer fundamentação demonstrativa da verificação dos pressupostos, de facto e de direito, de que depende a sua exigibilidade.

 

A este respeito, dispõe o artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, na esteira, aliás, do que já estatuía o anterior artigo 83.º do Código de Processo Tributário, que só «(...) são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária».

 

Atenta a doutrina mais reconhecida e a jurisprudência que se tem sedimentado, os juros compensatórios só serão de liquidar no caso de haver prejuízo para a Autoridade Tributária por facto imputável – a título de culpa, portanto – ao sujeito passivo; por outras palavras, nas do Supremo Tribunal Administrativo, «(...) os juros compensatórios decorrentes do atraso na liquidação do respectivo imposto (...) pressupõem a existência de culpa (dolo ou negligência) do contribuinte pelo atraso ou falta da liquidação» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de outubro de 2002, Processo n.º 1145/02).

 

Exige-se, portanto, uma ação voluntária, dirigida a um aproveitamento indevido e conhecido, ou cognoscível, por parte do sujeito passivo, relativamente às legítimas receitas do Estado.

 

E, neste ponto particular, atento o disposto nos artigos 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária e 342.º, n.º 1, do Código Civil, cabe(ia) à Autoridade Tributária demonstrar e provar tais factos constitutivos do direito à liquidação de juros compensatórios (designadamente, a culpa do sujeito passivo no eventual atraso ou retardamento da liquidação do imposto),…

 

…ou seja, demonstrar o pressuposto da liquidação de juros compensatórios que se traduz na «(...) existência de um nexo de causalidade entre a atuação do contribuinte e o retardamento da liquidação e, bem assim, um juízo de censura, a título de dolo ou negligência, aferido em abstrato, segundo a diligência do “bonus pater famílias”» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de outubro de 2001, Processo n.º 25.803),...

 

...sendo certo que a jurisprudência tem defendido que não se verifica a imputabilidade exigida por lei no caso de o «(...) retardamento da liquidação (...) [resultar] de simples divergência, não culposa, de critérios” entre o contribuinte e a Administração Fiscal» (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de fevereiro de 1998, Processo n.º 22.325, e de 23 de outubro de 2002, Processo n.º 1145/02).

 

Mais: no mesmo aresto sustentou-se ainda que à imputabilidade referida na lei não «(...) basta a mera ligação objetiva do facto ao contribuinte (...) comportando ainda um juízo subjetivo consistente na atribuição ou imputação da falta de cumprimento à vontade do agente, de forma a poder formular-se a respeito da sua conduta, um juízo de censura, numa palavra, a culpa» (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de fevereiro de 1998, Processo n.º 22.325).

Ora, esta culpa tem que ser apreciada ou, pelo menos, objeto de ponderação – ainda que perfunctória – por parte da Autoridade Tributária, exteriorizada no respetivo Relatório.

 

E isto porque a liquidação de juros compensatórios não é uma consequência imediata e automática – como parece pretender a Autoridade Tributária – de qualquer liquidação adicional de imposto, só podendo corresponder, ao invés, ao resultado final de todo o processo cognitivo e valorativo onde se estabeleça o nexo de causalidade referido e se formule um juízo de censura quanto à atuação do contribuinte (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 3 de outubro de 2001, Processo n.º 25.034).

 

Não foi, no entanto, o que fez a Autoridade Tributária, limitando-se a exigir, de forma automática, o indicado montante de € 24.760,13 a título de juros compensatórios, ultrapassando as formalidades legais estabelecidas para a respetiva liquidação e inquinando, assim, o respetivo ato de liquidação do vício de forma por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 35.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.

 

Da preterição de formalidade legal essencial

 

Acresce ao que fica exposto que, nos termos do artigo 60.º, n.º 1, alíneas a) e e), da Lei Geral Tributária – que concretiza o princípio constitucional da participação dos cidadãos na formação das decisões da Administração Pública (artigo 267.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa) –, os contribuintes devem ser notificados para, querendo, exercerem o direito de audição prévia sobre o relatório de conclusões de qualquer ação de inspeção e respetivos – e consequentes – atos de liquidação,…

 

…estabelecendo-se mais adiante, o n.º 3 do mesmo preceito legal, que «(...) tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado».

 

Pois bem, a Requerente foi notificada para exercer o direito de audição prévia, mas apenas quanto às conclusões da ação inspetiva realizada ao exercício de 2010, onde não se trata, minimamente que seja, a questão dos juros compensatórios.

 

Por esta razão, e atendendo à redação do n.º 3 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, deveria a Requerente ter sido notificada para se pronunciar sobre tal liquidação, fosse no momento previsto na alínea e) do n.º 1 do mesmo preceito, fosse antes da liquidação, isto é, no momento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária.

 

O que importa é que, independentemente do momento em que tal notificação para audição prévia devesse ter ocorrido, a Requerente teria que ter sido notificada expressamente para, querendo, se pronunciar sobre a intenção de se proceder à liquidação de juros compensatórios.

 

Dito isto, o ato de liquidação de juros compensatórios supra identificado é ainda ilegal por preterição da formalidade legal essencial prevista no artigo 60.º, n.º 1, alínea a), da Lei Geral Tributária.

 

Da indemnização por prestação indevida de garantia

 

Conforme referido, o valor adicionalmente liquidado pela Administração tributária no ato de liquidação de IRC sub judice, encontra-se, atualmente, a ser exigido no âmbito do processo de execução fiscal n.º …2014….

 

Por seu turno, no dia 13 de maio de 2014 a Requerente juntou ao mencionado processo de execução fiscal a garantia bancária autónoma n.º…, emitida pelo Banco U… (Portugal), S.A., no montante de € 354.086,50, com vista à suspensão do referido processo de execução (entretanto reduzida para o valor de € 163.295,49, na sequência da decisão de indeferimento parcial).

 

Ora, nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária, «1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida. 2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo».

 

Tem entendido a doutrina, a propósito do citado preceito legal, que «a razão que justifica a atribuição do direito a indemnização é o presumível prejuízo provocado ao particular por uma actuação ilegal da administração tributária, ao efectuar erradamente uma liquidação» (Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral anotada e comentada, 3.ª Edição, Vislis Editores, p. 230).

 

Convergentemente, observou o Supremo Tribunal Administrativo, em Acórdão de 21 de novembro de 2007, processo de recurso n.° 633/07, que «o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal actuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua actuação, não teria sido necessário prestar».

 

Resulta do anterior, assim, que a consagração do direito do contribuinte a ser ressarcido dos encargos suportados com a prestação e manutenção de garantia assenta, essencialmente, na verificação de um erro imputável aos serviços, determinativo da ilegalidade do ato reclamado ou impugnado e, consequentemente, da prestação — necessariamente indevida — de garantia por parte do contribuinte.

 

O mesmo é dizer, portanto, que a procedência do presente pedido de pronúncia arbitral implicará o reconhecimento de um erro imputável à Administração tributária., e este, por seu turno, o pagamento dos prejuízos causados à Requerente pela garantia a prestar no âmbito do processo de execução.

 

Em face do exposto, uma vez anulado ato de liquidação adicional o IRC do ano de 2010, deverá a entidade requerida ser condenada, nos termos do disposto no artigo 53.º da Lei Geral Tributária, na imediata e plena reconstituição da situação existente antes da prática de tal ato, concretamente no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, pelo tempo em que a mesma se mantiver.

 

Constituição do Tribunal

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em31 de agosto de 2015.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.° 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo o Exmo. Juiz José Poças Falcão, o Dr. Paulo Lourenço e o Dr. João Gonçalves da Silva, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 27 de outubro de 2015 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 11 de novembro de 2015.

 

Resposta

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, na resposta apresentada, defendeu a total improcedência do pedido.

 

Reunião do Tribunal com as partes (artigo 18º, do RJAT) – Dispensa

 

Por despacho de 21 de janeiro de 2016, foi dispensada, sem oposição, a realização da reunião a que se refere o artigo 18º, do RJAT.

 

Alegações finais

 

Ambas as partes apresentaram, por escrito, as suas alegações finais, concluindo, no essencial, pela mesma forma que o fizeram nos respetivos articulados.

 

Saneador

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5º. e 6.º, n.º 1, do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

 

Tudo visto, cumpre proferir a decisão quanto ao mérito do pedido.

 

2.      FUNDAMENTAÇÃO

 Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

1.      A Requerente foi constituída em 6 de julho de 2006, com o capital social de € 5 000,00 e sob a designação social de O…, Unipessoal, Lda, sendo o capital social integralmente detido pela P…, SL, com sede em Madrid, Espanha.

2.      O objeto social da Requerente consiste na produção, importação, exportação, distribuição, comercialização e marketing de bebidas espirituosas, vinhos …, vinhos comuns e seus derivados, bem como bebidas não alcoólicas.

3.      A Requerente alterou, por diversas vezes, a sua designação, tendo a última alteração ocorrido em 11 de fevereiro de 2011, data em que passou a designar-se A…, Unipessoal, Lda e a possuir a sua sede social na …, nº…, sala…, no ….

4.      Em 7 de julho de 2006, a Requerente, que na altura usava a designação O…, adquiriu à D…, Lda os direitos, faculdades, poderes, benefícios associados aos direitos, incluindo os registos das marcas, insígnias de estabelecimento, modelo industrial e nome de domínio dos vinhos … B…, da aguardente velha E…e do F…, bem como a totalidade do stock de vinhos … …, pelo valor global de € 9 297 300,00.

5.      Na mesma data, foi assinado um contrato de fornecimento, em regime de exclusividade, pelo período de 20 anos, relacionado com a produção, engarrafamento, embalagem e armazenagem dos produtos acabados das marcas B…, aguardente E… e F… .

6.      Em 25 de julho de 2006, o capital social da D…, Lda foi adquirido pela H…, Lda (71%) e pela Q…-…, SA (29%).

7.      No dia 9 de novembro de 2006, a D…, Lda foi transformada em sociedade anónima e adotou a designação C…, SA.

8.      Em 6 de outubro de 2010, a Requerente procedeu à venda por € 100,00, da marca de vinhos … B…, à sociedade D…, S.A., agora denominada “C…, …, S.A.” e cujo capital social é detido a 100% pela H… …, Lda. e pela Q… …, Lda., o que gerou uma menos-valia de € 5.999.900 para a Requerente.

9.      Em outubro de 2010, a Requerente, então designada J…, Unipessoal, Lda, vendeu os direitos relacionados com a marca de vinhos … B… à empresa C…, …, SA.

10.  Na mesma data foi celebrado um contrato entre a Requerente e a H…, ., Lda, através do qual esta sociedade passou a ser a responsável pela produção, envelhecimento, embalagem e armazenamento de produtos para a Requerente.

11.  Em 24 de maio de 2011, a Requerente apresentou a sua Declaração Modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2010 e nela declarou, no campo 301 do quadro 9, um prejuízo fiscal no montante de € 5.580.525,38 e, bem assim, no campo 365 do quadro 10 da mesma declaração, respeitante às tributações autónomas, o valor de € 3.025,50.

12.  Em abril de 2013, a Autoridade Tributária iniciou um procedimento de inspeção externa, de âmbito geral, ao exercício de 2010, procedimento que terminou no mês de janeiro de 2014 com a notificação do respetivo Relatório Final.

13.  No referido Relatório Final, a Autoridade Tributária promoveu correções de natureza meramente aritmética resultante de imposição legal ao IRC do exercício de 2010 da Requerente, procedendo ao acréscimo do montante de € 5 999 900,00 ao lucro tributável, correção que se fundamentou na aplicação do regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC, em relação à operação de alienação dos direitos associados à marca de vinho … B… à sociedade C…, …, S.A.

14.  Por outro lado, a Autoridade Tributária promoveu ainda ao apuramento do montante de € 145.147,80, correspondente a IRC em falta a título de tributações autónomas do mesmo exercício.

15.  A Requerente foi notificada do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2014…, relativo ao exercício de 2010, bem como das demonstrações de acerto de contas n.º 2014 … e da liquidação de juros compensatórios n.º 2014…, tudo num total de € 279.479,70, a ser pago voluntariamente até ao dia 21 de março de 2014.

16.  Na falta de pagamento voluntário, a Autoridade Tributária instaurou um processo de execução fiscal, a que corresponde o nº …2014…, tendo sido citada a Requerente para proceder ao pagamento de € 280.830,24 (duzentos e oitenta mil, oitocentos e trinta euros e vinte e quatro cêntimos).

17.  A Requerente apresentou, em 30 de abril de 2014, uma reclamação graciosa contra os referidos atos tributários, contestando a legalidade das correções realizadas pela Autoridade tributária ao IRC do exercício de 2010 e peticionando, em consequência, a sua revogação.

18.  Em junho de 2015, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento parcial da reclamação graciosa n.º …2014…, proferida pela Senhora Diretora de Finanças Adjunta da Direção de Finanças … .

19.  A Autoridade Tributária anulou o imposto liquidado a título de tributação autónoma, no montante de € 145.147,80, incluindo os juros compensatórios.

20.  A Autoridade Tributária indeferiu o pedido de anulação do imposto adicionalmente liquidado em consequência do acréscimo de € 5.999.900,00 ao lucro tributável do exercício de 2010, com fundamento na aplicação do regime dos preços de transferência consagrado no artigo 63.º do Código do IRC à operação de alienação dos direitos associados à marca de vinho … B… à sociedade C… .

21.  Com a anulação parcial do ato de liquidação adicional do IRC de 2010, na parte que diz respeito à tributação autónoma e respetivos juros compensatórios, o IRC adicionalmente apurado pela Autoridade Tributária e juros compensatórios a pagar foram reduzidos para € 120.222,74.

22.  A Requerente, na sequência da referida decisão administrativa, solicitou à Chefe do Serviço de Finanças …, através de requerimento de 16 de julho de 2015, a redução do valor da garantia bancária apresentada no processo de execução supra identificado, pedido que foi deferido, reduzindo-se assim o valor da referida garantia para o montante de 163.295,49€.

 

3. Factos essenciais não provados

 

Não há factos com relevo para a apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 

4. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada [(cfr. art. 123º nº 2 do CPPT e artigos 607º do CPC, aplicáveis ex vi  artigo 29º, nº 1, alínea a), do RJAT)].

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) quest(ão)(ões) de direito (cfr. artigo 596º do CPC, aplicável ex vi do artigo 29º, nº 1, alínea a) do RJAT).

 

Assim, in casu, o sobredito qudro factual foi estabelecido ou fixado tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova, documental, junta aos autos e a cópia do   PA (processo administrativo instrutor) anexo.

 

5. Matéria de direito

 

A alínea g) do n.º 4 do artigo 63.º do Código do IRC previa, em 2010, que se considera que existem relações especiais entre duas entidades nas situações em que uma tem o poder de exercer, direta ou indiretamente, uma influência significativa nas decisões de gestão da outra, o que se considera verificado, designadamente, entre entidades que, por força das relações comerciais, financeiras, profissionais ou jurídicas entre elas, direta ou indiretamente estabelecidas ou praticadas, se encontrem em situação de dependência no exercício da respetiva atividade.

 

Ora, o Grupo G…, através da sua participada H… …, Lda., que era produtor, engarrafador, embalador e responsável exclusivo pela armazenagem dos produtos acabados da Requerente, tinha o poder de exercer influência significativa sobre as decisões de gestão da Requerente.

 

Por conseguinte, por força das relações comerciais mantidas entre a Requerente e a H… …, Lda. havia em 2010, ainda que indiretamente, uma relação de dependência.

 

Para a realização da correção, a Autoridade Tributária utilizou o método do preço comparável de mercado, o qual, segundo a Portaria nº 1446-C/2001, requer o grau mais elevado de comparabilidade tanto ao nível do objeto e demais termos e condições como ao nível da análise funcional das entidades intervenientes.

 

Para efeitos da quantificação da correção, a Autoridade Tributária utilizou como operação comparável a compra da marca de vinho … pela Requerente à D…, Lda, em 7 de julho de 2006, por € 6.000.000,00. Porém, nesta data, a Requerente e a D…, Lda. eram entidades com relações especiais, atendendo a que ambas pertenciam ao Grupo T… .

 

Ora, nos termos do artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria nº 1446-C/2001, as operações vinculadas devem ser comparadas com operações não vinculadas (estabelecidas entre entidades não relacionadas), situação que não se verificou no caso em concreto.

 

Posto isto, tendo o montante da correção sido apurado pela diferença entre o valor da operação vinculada, realizada em 2010, com o valor de uma outra operação vinculada, ocorrida em 2006, a correção efetuada pela Autoridade Tributária carece de fundamento legal, razão pela qual a liquidação de IRC em apreço deve ser anulada.

 

4. Decisão

 

De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

a) Julgar totalmente procedente o pedido de declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC relativo ao exercício de 2010, por errada aplicação do regime previsto no artigo 63.º do Código do IRC e da Portaria nº 1446-C/2001;

b) Julgar procedente o pedido de indemnização por prestação indevida de garantia, cujo valor deve ser determinado em execução da decisão.

 

5. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto no artigo 315.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 120 222,74.

 

6. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.060.00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 7 de junho de 2016

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

José Poças Falcão

(Presidente)

 

 

 

 

Paulo Lourenço

(Vogal)

 

 

 

João Gonçalves da Silva

(Vogal)