Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 547/2021-T
Data da decisão: 2022-07-12  IVA  
Valor do pedido: € 310.626,61
Tema: IVA – Regularizações (artigo 78º, do CIVA) – Prazo
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Sumário: I – O prazo para dedução – que é voluntária - do correspondente imposto no caso de desconto em data posterior à da emissão da fatura pode ser efetuado até ao final do período do imposto seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que determinaram a redução do valor tributável (artigo 78º-2, do CIVA). II. – A regularização com retificação, para menos, do valor tributável da operação ou do imposto só pode ser efetuada quando o sujeito passivo tiver na sua posse a prova de que o adquirente tomou conhecimento da retificação ou de que foi reembolsado do imposto, condições sem o preenchimento das quais se considera indevida a respetiva dedução (artigo 78º-5, do CIVA). III. – O prazo para a dedução referido em I., é peremptório, não sendo admissível o não cumprimento desse,  ainda que por razões não imputáveis ao sujeito passivo.

 

DECISÃO ARBITRAL

Os Árbitros José Poças Falcão (Presidente), Sofia Quental e Raquel Montes Fernandes (árbitras adjuntas), todos designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar este Tribunal Arbitral Coletivo, acordam no seguinte:

 

I. Relatório 

 

A..., S. A., Pessoa Coletiva n. º..., com sede no ..., ..., ..., anteriormente designada B..., S. A., apresentou pedido de pronúncia e de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto no artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida” ou “AT”). 

 

1.     {C}{C}{C}A Requerente pretende no referido pedido de pronúncia arbitral que o Tribunal Arbitral anule: (i) o ato de indeferimento da reclamação graciosa nº ...2020... (despacho proferido pelo Diretor de Finanças do Porto) apresentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA)  e    acrescido   do    ano   de    2015,    no    montante   global   de  € 310.626,61 e

      (ii) consequente anulação dessa liquidação. 

2.     O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e regulamentarmente notificado à Requerida.

3.     A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT, os signatários foram designados como árbitros deste Coletivo pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo as nomeações sido aceites, nos termos e prazos legalmente previstos.

4.     As partes, notificadas da referida nomeação, não apresentaram qualquer oposição.

5.     O Tribunal Arbitral foi constituído em 15-11-2021, tendo a Autoridade Tributária sido notificada para apresentar Resposta, o que fez em 7-1-2022, remetendo conjuntamente cópia do Processo Administrativo (PA). 

6.     Tendo sido invocada na Resposta da AT, a exceção de caducidade do direito de ação, foi notificada a Requerente para exercer o contraditório relativo a essa matéria, tendo-o exercido por requerimento apresentado em 31-1-2022.

7.     Realizou-se em 9-3-2022 a reunião do Tribunal com as partes, prevista no artigo 18º, do RJAT e, nessa mesma data, produzida a prova testemunhal requerida conforme ata respetiva.

8.     Notificadas as partes para alegações finais escritas, apenas a Requerente as apresentou, reafirmando, no essencial, o que já havia alegado na fundamentação do pedido de pronúncia arbitral.

 

A.   Fundamentação do pedido

9.     O pedido de pronuncia arbitral apresentado pela Requerente fundamenta-se, em síntese, no seguinte:

       A Requerente é uma sociedade comercial que tem por objeto essencial a exploração de ginásios e “health clubs” e “fitness centers”.

       Está enquadrada, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade mensal.

       Foi objecto de uma acão inspetiva, desenvolvida sob a Ordem de Serviço n.º OI2017... – de que resultou o Relatório de Inspeção Tributária (RIT) notificado por meio do Ofício n.º 2019..., de 07.10 .2019.

       Do referido RIT resultou uma correção no valor de € 261.450,65, relacionada com aquilo que a AT considera ser uma indevida regularização de IVA.

       Apresentou a competente reclamação graciosa contra as liquidações em causa, a qual veio a ser expressamente indeferida pela decisão ora impugnada (doc. nº 1 ).

       As referidas correções não podem subsistir no ordenamento jurídico, pois que não só resultam de uma interpretação claramente contra legem do Direito aplicável, como resultam, igualmente, da inobservância de princípios fundamentais do Direito Fiscal.

       De igual modo, as correções em causa resultam da inobservância de princípios fundamentais, internos e comunitários, em matéria de IVA.

       Mostra-se violado o princípio da neutralidade consagrado na Diretiva n.º 77 / 388 / CEE do Conselho, de 17 de Maio de1977 (doravante “Sexta Diretiva”), substituída pela Diretiva n.º 2006 / 112/ CE, do   Conselho de   28   de   Novembro de   2006 (“Diretiva do IVA”).

           Mais concretamente alega ainda a Requerente:

•   Conforme se subentende do RIT, e tem vindo a ser publicitado nos meios de comunicação, a Requerente celebrou com a C... S.A. (“C...”), Pessoa Coletiva n.º..., uma parceria no âmbito da qual, beneficiando simultaneamente das sinergias e da complementaridade  das suas redes operacionais, foi negociada a aceitação do denominado “ Cartão ...” nos estabelecimentos da Requerente ( doc. n. º 2 ).

•   Nos   termos do    convencionado   pelas   partes, a    utilização   do “Cartão...” nos estabelecimentos da Impugnante destinava-se a permitir acumulação de descontos, por parte dos seus clientes, em saldo no referido cartão.

•   Ulteriormente, tais descontos acumulados poderiam ser utilizados pelos clientes da Requerente como meio de pagamento nos estabelecimentos comerciais explorados pela C... .

•   Validados pelas AT os procedimentos ou a operacionalização de regularização de imposto [cfr ponto 17, do PPA], surge a divergência quanto ao momento das regularizações respeitantes às utilizações dos saldos em cartão nos meses de março de 2013 a dezembro de 2014 e de janeiro a julho de 2015. 

•   A regularização pela Requerente e a seu favor do IVA dos descontos mencionados ocorreu no momento em que recebeu as listagens por parte da C..., tendo inscrito os respetivos valores na Declaração do período de cada listagem.

•   A AT deveria ter reconhecido o direito da Requerente a regularizar a seu favor o IVA decorrente dos sobreditos descontos promocionais por via da atribuição desses valores (de descontos) no denominado “Cartão...”

•   Está em causa nos autos o exercício da prerrogativa legal de regularização de IVA (a favor da Requerente) depois de efetuada e registada a operação – que, no caso concreto, se traduz na concessão de um desconto.

•   A AT não põe em causa o direito de regularização do IVA a favor do prestador (no caso, a Requerente) na concessão de desconto efetuado fora da fatura porquanto, como reconhece, “(...) os descontos devem ser excluídos do valor tributável em IVA, nos termos do disposto no artigo 16º, nº 6-b), do CIVA (...)”

•   Ora, resulta da operacionalização de toda a operação que existem elementos de prova que justificam e validam a regularização do IVA a favor da Requerente, garantindo desta forma a neutralidade do imposto, bem como garantindo que apenas é entregue ao Estado o valor que efetivamente recebeu do seu Cliente.

•   O valor efetivamente recebido pela Requerente corresponde ao valor da prestação depois de subtraído o valor devolvido ao C... pela utilização do desconto.

•   E daí, que a Requerente pretenda regularizar a seu favor o IVA correspondente ao desconto, dado que, como é evidente, não pode entregar ao Estado um imposto superior ao que recebeu desse mesmo Cliente.

•   A AT não coloca em causa a mecânica e operacionalização do desconto, e tão pouco discute o direito da Requerente à regularização do IVA em causa – o qual é por demais evidente.

•   Simplesmente, numa leitura cega e formalista da operação, a AT pretende denegar o direito à regularização do IVA, por concessão de desconto, atendendo ao momento em que ocorre porquanto em seu entender a regularização do IVA, que considera legitima, deveria ser sido efetuada “até ao final do período seguinte àquele em que as circunstâncias se verificaram”.

•   No caso, a Requerente apenas poderia proceder à regularização de imposto perante a efetiva concretização, na sua esfera tributária, do facto despoletador da regularização.

•   A AT olvida que o desconto foi utilizado numa operação de venda de bens com outro sujeito passivo (a C...), de modo a que, só quando a C... indica a efetiva utilização em compras do saldo do “Cartão ...” é que a Requerente poderia proceder à regularização do IVA. 

•   Careceria em absoluto de sentido uma regularização de IVA a favor da Requerente, ab initio, sem a efetiva concretização e aferição quanto à utilização  do desconto concedido.

•   A Jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (“TJCE”) salienta a exigência de que o prazo de dedução do IVA não pode tornar “excessivamente difícil ou impossível, na prática”, o exercício   desse direito.

•   O TJUE recordou que, “segundo jurisprudência constante” do Tribunal, da qual salientou o acórdão de 21 de Março de 2018, proc. C -533 / 16, o direito de dedução “constitui um princípio fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União”, sistema esse que “garante (…)  a neutralidade quanto à carga fiscal de todas as atividades económicas, quaisquer que sejam os objetivos ou os resultados dessas atividades, desde que elas próprias estejam, em princípio, sujeitas a IVA”.

•   No caso, em que a Requerente, para o exercício do direito à regularização, fica dependente da prévia validação e informação, pela C..., dos descontos utilizados, não pode a AT opor-se ao exercício legítimo de tal direito.

 

B.    {C}{C}{C}Posição da AT

A Requerida mantém a posição que havia assumido para fundamentar o indeferimento da reclamação graciosa, entendendo no essencial que:

- que são de desconsiderar os valores de IVA das regularizações objeto do pedido de pronúncia arbitral, correspondentes aos períodos de 2015.06 e 2015.09 porquanto não foi observado pela Requerente o disposto nos nºs 2, 4, 5 e 13, do artigo 78º, do CIVA e as Informações Vinculativas emanadas do Subdiretor Geral do IVA relativas às regularizações de descontos efetuados após a emissão de faturas;

- as notas de débito emitidas pelo adquirente dos bens ou serviços relativas a descontos concedidos são admitidas como forma de retificar os valores das operações sujeitas a IVA, desde que se cumpram os necessários requisitos legais, com identificação do documento a retificar, o motivo da retificação e seja assegurado o cumprimento do disposto no artigo 78º, do CIVA;

- daqui decorre segundo a Requerida que, à luz do citado artigo 78º-2, do CIVA, conjugado com o artigo 45º, a dedução do correspondente imposto em resultado da invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, designadamente pela concessão de abatimentos no preço ou descontos, deve ser efetuada (a dedução) até final do período de imposto seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável;

- assim, se o SP fornecedor optar pela regularização a seu favor (que não é obrigatória) nos termos do citado nº 2, do artigo 78º, deverá fazê-lo até final do período seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que deram origem à regularização, desde que tenha na sua posse até essa data prova de que o adquirente tomou conhecimento dessa retificação ou de que foi reembolsado do imposto, conforme nº 5, do artigo 78º, do CIVA e

- ... no Campo 40, da declaração periódica de imposto, (ou do período seguinte) em que a regularização é efetuada, devem constar as citadas regularizações;

- no caso, a entidade a quem incumbia a transmissão dos dados sobre a efetivação dos descontos, não forneceu essa prova até final do prazo previsto no citado artigo 78º, nº 2, sendo que era também necessária a comunicação dos descontos por parte da C... para que a Requerente A... reunisse então as condições para efetivar a regularização do IVA contido nos descontos legalmente aceites.

 

 Saneador

 

      i.         O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT. 

    ii.         As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março. 

   iii.         Não se verificam nulidades nem questões prévias que atinjam todo o processo.

   iv.         Foi suscitada pela AT a exceção de caducidade do direito de ação da Requerente.

Esta exceção improcede nos termos e com os fundamentos que serão assinalados infra, no momento de apreciação do mérito do pedido.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados

Mostram-se provados os seguintes factos, essenciais para o objeto do litígio:

a)     A Requerente iniciou a sua atividade em 2000.11.13 e está registada para o exercício da atividade principal de "Atividades de bem-estar físico", CAE 96040, bem como para as atividades secundárias de "Atividades de ginásio {Fitness)", CAE 093130; "Outras atividades de saúde humana, n.e.", CAE 086906 e "Comércio a retalho de artigos de desporto, campismo e laser em estabelecimento estável", CAE 047640. 

b)    A Requerente havia celebrado com a empresa C... (que com ela também integra o denominado e conhecido “Grupo D...”),   uma  parceria no âmbito da qual, beneficiando simultaneamente das sinergias  e da complementaridade  das suas redes operacionais, foi negociada a aceitação do denominado “ Cartão...” nos estabelecimentos da Requerente ( doc. n. º 2 ).

c)     Nos   termos do   convencionado  pelas  partes,  a   utilização  do sobredito “ Cartão...” nos estabelecimentos da Requerente destinava-se a permitir  acumulação de descontos, por parte dos seus clientes, em saldo no referido cartão.

d)    A Requerente inscreveu no campo 40 da declaração periódica de IVA (DP) com referência ao período de 2015.06, o valor de EUR 263.141,17, correspondente à regularização do IVA, com os saldos utilizados em “Cartão ...” nas condições supra, nos períodos de março de 2013 a dezembro de 2014.

e)     A Requerente apresentou reclamação graciosa contra as demonstrações de liquidações de IVA e juros compensatórios que resultaram de correção em sede de IVA no âmbito de ação de inspeção tributária sob a credencial n.º ... .

f)     As circunstâncias que determinaram a redução do valor tributável das operações (a efetiva utilização do desconto em Cartão ...), verificaram-se entre março de 2013 e dezembro de 2014, relativamente à regularização de imposto levada a cabo pela Requerente na DP do IVA do período 2015.06 e, nos meses de janeiro a julho de 2015, relativamente à regularização levada a cabo pela Requerente na DP do IVA do período 2015.09. 

g)    A Requerente, que era a entidade a quem incumbia a transmissão dos dados sobre a efetivação do desconto, não forneceu prova dos mesmos até ao fim do prazo definido no n.º 2 do artigo 78º, do CIVA.

h)    Os procedimentos de concessão de descontos em Cartão ... e, da respetiva utilização, são todos operados informaticamente. 

i)      Os descontos referidos supra, em c), foram objeto de regularização atempada de IVA e espelhados nas DP’s apresentadas posteriormente a setembro de 2015.

j)      A sobredita reclamação graciosa foi apresentada contra as liquidações adicionais de IVA referentes aos períodos com referência a 2015.06 a 2015.10, bem como contra as respetivas liquidações de juros compensatórios, conforme a seguir se discrimina:

 

Liquidação

Adicional     Período   Data da Liquidação    Valor€  Nota de cobrança IVA e Juros de IVA       

…           2015.06         2019.10.25             97.466,72   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.06         2019.10.25             16.171,46   Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.07         2019.10.25             91.548,00   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.07         2019.10.25             18.917,88   Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.08         2019.10.25             47.126,45   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.08         2019.10.25              9.512,17    Nota de Cobrança Juros n.º2019…

…           2015.09         2019.10.25              8.405,11    Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.09         2019.10.25              1.309,81    Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.10         2019.10.26             16.904,37   Nota de Cobrança IVA n.º 2019...

…           2015.10         2019.10.26             3.264,64     Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

 

k)    Na sequência dessa reclamação, veio a Requerente a ser notificada do seguinte parecer ou informação dos serviços da AT (transcrevendo, no essencial):

 

Reclamação Graciosa n.º ...2020... Reclamante: B..., SA. NIF: ...

Sede: ... ...-... ...

 

Objeto: Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) - Períodos de imposto: 2015.06, 2015.09 e Juros Compensatórios

Data das liquidações: 2019.10.25 e 2019.10.26. Data de entrada do pedido: 2020.02.12  Mandatário: Dr. E...Morada do mandatário: ... -... ...-... ...

 

1. {C}{C}{C}Vem a Reclamante supra identificada (a partir de agora A... ou Reclamante) deduzir reclamação graciosa (RG), contra a liquidações de IVA referentes aos períodos com referência a 2015.06 e 20'15.09, bem como respetivas liquidações de juros compensatórios, a seguir identificadas.

 

Liquidação 

Adicional     Período   Data da Liquidação    Valor€  Nota de cobrança IVA e Juros de IVA

…           2015.06         2019.10.25             97.466,72   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.06         2019.10.25             16.171,46   Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.07         2019.10.25             91.548,00   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.07         2019.10.25             18.917,88   Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.08         2019.10.25             47.126,45   Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.08         2019.10.25              9.512,17    Nota de Cobrança Juros n.º2019…

…           2015.09         2019.10.25              8.405,11    Nota de Cobrança IVA n.º 2019 ...

…           2015.09         2019.10.25              1.309,81    Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

…           2015.10         2019.10.26             16.904,37   Nota de Cobrança IVA n.º 2019...

…           2015.10         2019.10.26             3.264,64     Nota de Cobrança Juros n.º 2019 ...

 

 

2. Após analisados os elementos junto aos Autos, verifica-se que:

- Nos termos dos artigos 9.º, 68.º, n.0 1 e 70.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a reclamação apresentada é o meio próprio, é tempestiva e a Reclamante tem legitimidade para o ato.

- Verificou-se que até à presente data, não foi apresentada impugnação judicial com o mesmo objeto desta reclamação.

Do alegado pelo reclamante na petição inicial [da reclamação graciosa] (p.i.), que se dão aqui como integralmente reproduzidos, no essencial, a Reclamante vem alegar o seguinte:

A A... vem apresentar reclamação graciosa nos termos do artigo 68.º e seguintes do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por remissão do disposto no artigo 97º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), contra as demonstrações de liquidações de IVA e juros compensatórios que resultaram de correção em sede de IVA no âmbito de ação de inspeção sob a credencial n.º 012017... .

A Reclamante não se conforma com a correção referida no Relatório de Inspeção Tributária (RIT), no valor de€ 261.450,65, relacionada com regularização de IVA considerada indevida, por entender que a mesma é ilegal e por desvirtuar os princípios da matriz de funcionamento do IVA.

Assim, vem contextualizar os factos que estão subjacentes às correções anteriormente referidas, que resultam da celebração de uma parceria com a entidade C..., SA., (C...), NIF..., relacionada com a aceitação do denominado "Cartão ..." nos estabelecimentos da A... . Resumidamente, consiste em descontos concedidos pela Reclamante a utilizar nos estabelecimentos comerciais explorados pela C..., como meio de pagamento. A operacionalização da referida parceria consiste na emissão de fatura pela A... e atribuição do desconto no "Cartão ..." que poderá ser utilizado em compras futuras. Por sua vez, a C... procede à emissão de documento (sem IVA), para transferência do valor que consta em cartão e envio de listagens à Reclamante com indicação do saldo utilizado em compras.

Neste contexto, a Reclamante inscreveu no campo 40 da declaração periódica de IVA (DP) com referência ao período de 2015.06, o valor de€ 263.141,17, correspondente à regularização do IVA, com os saldos utilizados em cartão ... nos períodos de março de 2013 a dezembro de 2014, informação que só foi recebida pela Reclamante em junho de 2015 devido a alguns contratempos atendendo à carga administrativa desse processo.

Da consideração pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) que o momento em que é efetuada a regularização e ter na posse a informação sobre a utilização dos descontos em cartão, são as regras a considerar para a regularização do imposto, a Reclamante entende que se abstraem do contexto factual referido bem como dos princípios da matriz do IVA.

Para tal, vem fazer referência à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativamente ao tempo e modo do direito à dedução do IVA que se aplica aos casos em que se verifica a retificação das operações, constituindo o direito à dedução um direito fundamental do sistema comum do IVA instituído pela legislação da União Europeia.

Mais refere que a Jurisprudência relativiza precisamente os requisitos temporais em prol dos princípios da proporcionalidade e neutralidade.

Acerca da magnitude da tarefa administrativa em causa, relativamente aos ficheiros informáticos para reporte dos descontos, este procedimento é alheio à Reclamante, justificativa do momento em que a A... obteve a informação para efeitos da regularização do IVA.

Alega que, para o exercício do direito à dedução, fica dependente da validação e informação disponibilizada pela C..., pelo que não pode a AT opor-se ao referido direito à dedução.

Mais refere que, os requisitos subjetivos e objetivos são essenciais para a verificação do direito à dedução do IVA suportado nas operações de aquisição de bens e serviços a sujeitos passivos. 

 Assim, encontra-se consagrado na nossa legislação o princípio da dedutibilidade de todo o IVA suportado através do disposto no artigo 19.º do CIVA, como forma de garantir a neutralidade da tributação sobre o consumo.

Vem alegar, que ao pretender a liquidação adicional do IVA com base em pressupostos meramente formais, a AT não está a salvaguardar o princípio da neutralidade e não tem em conta o contexto específico da operação em causa.

Por último, vem fazer referência ao artigo 78.º da Lei Geral Tributária (LGT) de forma a conceder ao IVA tratamento igual ao dos outros impostos, bem como ao artigo 98.º do CIVA e o prazo de referido, para o direito à dedução.

Peticiona-se a final, que seja deferida integralmente a reclamação graciosa com a anulação da liquidação e demais efeitos legais (...)

Quanto aos argumentos apresentados pela Reclamante, cumpre-nos informar o seguinte:

Analisada a documentação constante do processo e consultada a base de dados do sistema informático da Autoridade Tributaria e Aduaneira (AT), verifica-se que a Reclamante iniciou a sua atividade em 2000.11.13 e está registada para o exercício da atividade principal de "Atividades de bem-estar físico", CAE 96040 bem como para as atividades secundárias de "Atividades de ginásio{Fitness)", CAE 093130; "Outras atividades de saúde humana, n.e.", CAE 086906 e "Comércio a retalho de artigos de desporto, campismo e laser em estabelecimento estável", CAE 047640. Em sede de IRC, está enquadrada no regime geral de determinação do lucro tributável.

As liquidações reclamadas têm origem em ação de inspeção credenciada pela ordem de serviço n.º 012017..., com referência ao período de tributação 2015, da qual resultaram, correções em sede de IVA nos montantes de€ 236.141,17 e€ 25.309,48, respetivamente quanto ao período 2015.06 e período 2015.09, tendo como conclusão que a Reclamante considerou indevidamente regularizações em sede de IVA, por incumprimento do estipulado no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA.

Assim, conforme referido no Relatório de Inspeção Tributária (RIT) de 2019/10/13, relativamente às correções apuradas em sede de IVA, foram verificados os seguintes factos:

A situação em apreciação envolve o tratamento dos descontos em "Cartão ...", e as regularizações de imposto a favor do sujeito passivo daí resultantes. 

A Reclamante, no âmbito da política do Grupo D..., grupo económico a que pertence, concede aos seus clientes um desconto promocional, que se traduz na atribuição de um determinado valor no "Cartão ...".

Consequentemente, os clientes podem utilizar as importâncias inseridas no "Cartão ..." em futuras compras de bens/serviços, de acordo com a política definida para os utilizadores do referido cartão.

Através de listagens provenientes da entidade gestora do "Cartão ...", a C..., verifica-se um reporte do saldo mensal utilizado pelos clientes em compras, proveniente dos descontos em "Cartão ..." atribuídos pela A... .

Ainda no âmbito da ação de inspeção referida, relativamente aos procedimentos adotados pela A... bem como quanto às normas aplicáveis, na operacionalização dos descontos atribuídos em "Cartão ...", verificou-se estarem conformes as "regras em uso", com exceção quanto ao momento em que foram efetuadas as regularizações de IVA a favor do sujeito passivo, respeitantes às utilizações dos saldos em cartão, nos meses de março de 2013 a dezembro de 2014 e janeiro a julho de 2015.

A questão analisada relativamente à emissão da fatura ao cliente, que motivou a atribuição do desconto em "Cartão ...", revela, para efeitos de IVA, na esfera da A..., no momento em que o cliente utiliza o saldo em cartão numa compra. Assim, a redução do valor tributável da operação na esfera do sujeito passivo, que dará origem à regularização do imposto a seu favor, está prevista no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA.

Neste contexto, a Reclamante só poderá efetuar a dedução do correspondente imposto, até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável, sendo relevante a data em que se verificaram as "circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável das operações".

E foi este o motivo que deu origem às correções efetuadas, tendo por base o não cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA, nos períodos imposto de 2015.06 e 2015.09. A Reclamante, ao regularizar o imposto a seu favor, agiu indevidamente uma vez que não efetuou esta regularização até ao final do período seguinte àquele em que as circunstâncias se verificaram, originando as correções a seguir identificadas:

•          DP do IVA do período 2015.06: Regularizações indevidas de imposto a seu favor, verificadas nos meses de março de 2013 a dezembro de 2014, no montante de€ 236.141,17; e

•          DP do IVA do período 2015.09: Regularizações indevidas de Imposto a seu favor, verificadas nos meses de janeiro a julho de 2015, no montante de€ 25.309,48.

 

Assim, atendendo ao enquadramento legal, conclui-se no RIT, serem de desconsiderar, os valores de IVA das regularizações referidas, inscritos no campo 40 das OP de IVA correspondentes aos períodos 2015.06 e 2015.09.

 

A questão em análise tem a ver com regularizações de descontos efetuados após a emissão de faturas. Sobre este tema e atendendo às orientações emanadas pelo Subdiretor Geral (SOG) do IVA, nomeadamente através de informações vinculativas, a regularização do imposto correspondente a abatimentos ou descontos concedidos após a realização da operação a que respeitam é facultativa. Porém, se optarem por proceder à regularização do IVA, as partes (quem emitir o documento) devem observar as normas constantes dos n.ºs 2, 4, 5 e 13 do artigo 78.º do Código do IVA. Assim, "a retificação do valor das operações, por motivos de concessão de abatimentos ou descontos, com ou sem regularização do imposto, é, por norma, da responsabilidade do fornecedor dos bens ou serviços, que para o efeito, pode emitir a competente nota de crédito.

 

'Contudo, têm os referidos Serviços entendido que a mesma pode ser efetuada mediante a emissão ide uma nota de débito pelo adquirente, com a identificação do documento a retificar, bem como o motivo da retificação, devendo, no caso de pretenderem proceder à regularização do imposto, 1assegurar as supra, referidas normas legais".

 

Ora, o disposto no nº 2 do artigo 78.º do Código do IVA, determina que "se, depois de efetuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em 'consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimento ou descontos, o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efetuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável".

 

As regularizações previstas nos n.ºs 2 e 4 do art.º 78.ª do Código do IVA- Redução ou anulação das operações contratadas ou encomendadas pelo cliente (descontos, devoluções ou abatimentos ou invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato), abrange situações em que a redução ou anulação da base tributável origina correções no imposto, cuja regularização "não é obrigatória". "Se, porém, o sujeito passivo fornecedor optar pela regularização a seu favor, nos termos do n.º 2, então deverá fazê-lo até ao final do período seguinte àquele em que se verificaram as circunstâncias que deram origem à regularização, desde que, conforme exige o n.º 5 do mesmo artigo 78.º do Código do IVA, tenha na sua posse (até essa data) prova de que o adquirente tomou conhecimento dessa retificação ou de que foi reembolsado do imposto".

 

Em conformidade, as regularizações nestas condições, devem constar no campo 40, declaração periódica do período de imposto (ou do período seguinte) em que a regularização é efetuada.

 

Decorre que da análise à legislação em vigor que, entre a data da fatura e a da concessão do desconto ou abatimento, podem decorrer até 4 anos, sendo mesmo assim possível proceder à regularização do IVA. Mas concedido o desconto, o fornecedor, caso pretenda efetuar a regularização, terá de fazê-lo no mês (ou trimestre) em que esses factos ocorreram, ou o mais tardar, no mês (ou trimestre) seguinte.

 

Da análise aos factos ocorridos e relatados, quer no RIT, quer na PI, verifica-se que a entidade a quem incumbia a transmissão dos dados sobre a efetivação do desconto, não forneceu essa prova até ao fim do prazo definido no n.º 2 do artigo 78.º• No entanto, era necessário a comunicação por parte da C... dos descontos que se tornaram efetivos em cada mês, dado ser essa a periodicidade em sede de IVA dos sujeitos passivos intervenientes, de maneira que a A... estivesse em condições de efetivar a regularização do IVA, contido nos descontos legalmente aceites.

 

No que respeita à argumentação apresentada pela Reclamante, acerca da "magnitude da tarefa administrativa em causa", de acordo com a legislação em vigor, não é mencionado qualquer referência relativamente à quantidade e/ou número de descontos concedidos pelos sujeitos passivos por período para efeitos de regularização do IVA.

 

Para apuramento dos valores do IVA a declarar mensalmente, os sujeitos passivos devem efetuar o apuramento através da conta do IVA, bem como, nos termos do artigo 29.0 do CIVA, das '/Obrigações em geral", "Para além da obrigação do pagamento do imposto, os sujeitos passivos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.ª devem, sem prejuízo do previsto em disposições especiais, conforme alínea c) do referido artigo "Enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade no decurso do segundo mês precedente, com a 'indicação do imposto devido ou do crédito existente e dos elementos que serviram de base ao respetivo cálculo"; Por conseguinte, as regularizações em causa teriam de ser efetivadas nesse contexto, e particularmente atender ao prazo definido no n.º 2 do artigo 78.º do CIVA.

 

Face ao exposto, concluímos que a regularização do imposto correspondente a abatimentos ou descontos concedidos após a realização da operação a que respeitam é facultativa. Porém, se optarem por proceder à regularização do IVA, as partes (quem emitir o documento) devem observar as normas constantes dos n.ºs 2, 4, 5 e 13 do artigo 78.º do Código do IVA, sendo que não se encontra na legislação em vigor sobre o tema qualquer exceção justificativa para o procedimento efetuado pela Reclamante. 

 

A referência pela Reclamante quanto à revisão oficiosa do artigo 78.º da LGT, pelo anteriormente exposto, não será de acionar o procedimento supra descrito bem como do referido, n.º 2 do artigo 98.º- Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução.

 

Quanto à questão dos juros compensatórios, nos termos do disposto no artigo 96.º, n.º 1 do CIVA, "Sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação ou tenha sido recebido reembolso superior ao devido, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios nos termos do artigo 35.º da lei geral tributária", pelo que se adequa ao presente caso.

 

Conclusão

Face ao exposto, conclui-se pela manutenção das liquidações supra identificadas e juros, sendo de indeferir o pedido (...)”

 

l)      Com base no sobredito parecer ou informação foi proferido despacho, ora objeto do presente pedido de pronúncia arbitral, a indeferir totalmente a sobredita reclamação graciosa.

m)   A Requerente foi notificada desse ato de indeferimento por ofício a si remetido por carta registada com data de 28-5-2021.

n)    O pedido de pronúncia arbitral que dá origem a estes autos foi apresentado em 1-9-2021.

 

Os factos não provados

Pese embora com a natureza mais conclusiva do que factual, a verdade é que não se provou que:

o elevado número de operações inviabiliza que a Requerente pudesse cumprir os prazos legalmente previstos para a regularização de imposto em apreço nos autos.   

 

C.   Motivação

Para a fixação do sobredito quadro factual no que concerne aos factos provados, relevaram as posições expressas pelas partes nos articulados, os documentos juntos pela Requerente, o processo administrativo instrutor apresentado pela Requerida e os depoimentos prestados em audiência realizada pelo Tribunal, tudo analisado de forma crítica.

 

Por outro lado, não se provou a inviabilização do cumprimento do prazo de regularização de IVA decorrente dos descontos ulteriormente repercutidos nas aquisições dos clientes ao C... com vista à redução do valor tributável em IVA e comunicados à Requerente muito para além do prazo previsto no artigo 78º-5, do CIVA. O que se comprovou nesta matéria foi tão só as dificuldades da exequibilidade da parceria “A.../C...”, nomeadamente na parte que respeita ao cumprimento do prazo para regularização de IVA previsto no artigo 78º, do CIVA, dificuldades que, pelo depoimento da testemunha e contabilista de empresa do Grupo D..., F..., foram sendo corrigidas, designadamente pela via de programação (referiu a testemunha a “alteração do algoritmo”) [o que explicará a regularização atempada do IVA a partir de setembro de 2015 – i), dos factos provados].

 

 

II – FUNDAMENTAÇÃO (cont.)

 

O DIREITO

 

A exceção de caducidade do direito de ação

 

Alega em síntese a Requerida (AT) que, até ao 90º dia posterior ao da notificação e ponderando a presunção, no caso, não ilidida, de considerar notificada a Requerente no dia 31-5-2021 (segunda-feira), deveria o pedido de pronúncia arbitral ser apresentado, no máximo, segundo a Requerida, até ao dia 29-8-2021 (terça-feira).

 

Ouvida a parte contrária sobre esta matéria, veio contestar a conclusão de caducidade.

 

Decidindo a exceção:

É certo que o prazo de 90 dias para apresentação do pedido de pronúncia arbitral (artigo 10º, do RJAT) é um prazo substantivo, que segue o regime de contagem previsto no artigo 279º, do Código Civil (cfr  artigo 20º, nº 1, do CPPT). 

 

Neste regime de contagem do prazo, torna-se evidente que o termo final do citado prazo de 90 dias ocorreu em agosto de 2021 e que o pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 1-9-2021.

 

A apresentação do pedido nesta data (1-9-2021) foi efetuada, no entanto, atempadamente na medida em que, o dia 1-9-2021 coincide notoriamente com o primeiro dia útil após férias judiciais de verão e que é permitida a transferência do termo final do prazo citado quando este coincide com férias judiciais – Cfr artigo 279º/e), do Código Civil.

 

Improcede, em consequência, a exceção de caducidade do direito de ação.

 

 

O mérito do pedido

 

Em causa nos autos o direito de um contribuinte regularizar a seu favor IVA decorrente de descontos promocionais concedidos aos seus clientes com atribuição do valor desses descontos (crédito) a uma entidade terceira (no caso, a C...).

 

Mais concretamente:   trata-se de apurar se, conforme alega a Requerente,  a AT,  ao proceder à liquidação  adicional impugnada por incumprimento do prazo previsto no artigo 78º-2, do CIVA, ,   “[(...) centra toda a sua fundamentação em torno de aspetos de carácter meramente formalmenosprezando  a relevância  do direito  à   regularização/ dedução  do  IVA  e do Princípio da  Neutralidade  consagrados nos  termos da Diretiva  n.º  77 / 388 / CEE, do Conselho, de 17  de  Maio  de 1977  (doravante  “ Sexta  Diretiva”), substituída pela  Diretiva  n.º   2006 / 112/ CE,   do   Conselho  de   28   de   Novembro  de   2006 (“ Diretiva do IVA”)].

 

O que os autos ou a prova dos factos evidenciam é, em síntese, a concretização a posteriori de descontos após a emissão e registo de faturas e se esses descontos, pese embora concedidos para além do prazo previsto no artigo 78º-2, do CIVA, podem entrar no cômputo da regularização de IVA à luz do citado artigo 78º.

 

A questão em análise tem a ver com regularizações de descontos efetuados após a emissão de faturas. 

 

Vejamos a situação mais de perto:

De acordo com o n.º 2 do artigo 78.º do Código do IVA, se, depois de efetuado o registo referido no artigo 45.º, for anulada a operação ou reduzido o seu valor tributável em consequência de invalidade, resolução, rescisão ou redução do contrato, pela devolução de mercadorias ou pela concessão de abatimentos ou descontos (sublinhado nosso), o fornecedor do bem ou prestador do serviço pode efetuar a dedução do correspondente imposto até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável.

A Lei usa a expressão "pode", ou seja, o fornecedor do bem ou prestador do serviço não é obrigado a regularizar a seu favor (no campo 40 da declaração periódica) o IVA anteriormente liquidado e declarado em declaração periódica de período anterior ao da anulação ou redução.

A única forma de conceder um desconto (ou abatimento) fora de uma fatura emitida e registada é precisamente através da emissão de uma nota de crédito. Existindo a opção de regularização, o fornecedor ou prestador do serviço apenas a pode efetuar quando tiver na sua posse uma prova de que o adquirente, sujeito passivo, tomou conhecimento dessa regularização, como previsto no n.º 5 do artigo 78.º.

Acentue-se assim que a regularização do imposto (IVA) correspondente a abatimentos ou descontos concedidos após a realização da operação a que respeitam é facultativa e, no caso de se optar pela regularização do IVA,  deve então ser observado o disposto nos n.ºs 2, 4, 5 e 13 do artigo 78.º do Código do IVA,  ou seja, ponderando que a retificação do valor das operações, por motivos de concessão de abatimentos ou descontos, com ou sem regularização do imposto, é, por norma, da responsabilidade do fornecedor dos bens ou serviços, que para o efeito, pode emitir a competente nota de crédito.

 

Da citada parceria “A.../C...” resulta que a Requerente só poderá validamente efetuar a dedução do correspondente imposto (IVA) até ao final do período de imposto seguinte àquele em que se verificarem as circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável, sendo, portanto, relevante a data em que se verificaram as "circunstâncias que determinaram a anulação da liquidação ou a redução do seu valor tributável das operações".

 

Trata-se aqui de alteração do valor de transações não em resultado de erro mas em resultado de efetivo uso superveniente do “Cartão...”, com utilização do desconto na faturação dos serviços prestados pela Requerente, nos termos pré-acordados entre esta e a sua parceira, C... .

 

Esta superveniente, embora previsível, alteração dos valores faturados e contabilisticamente registados, enquadra-se no direito potestativo de dedução de IVA, concretizável sempre num de dois seguintes períodos:

a)     No período de imposto em que se verificaram as circunstâncias que conferiram o direito à redução do valor tributável (no caso, o período de imposto em que o desconto ou o crédito foi usado numa compra à C...),  ou

b)    No período de imposto seguinte.

 

Pois bem validados que foram pela AT os procedimentos e fluxos documentais e contabilísticos de regularização, coloca-se então a questão do exercício tempestivo do direito da Requerente quando esse direito se traduz em regularizações de IVA de março de 2013 a dezembro de 2014, na declaração (DP) de junho de 2015 e de setembro de 2015, estribando-se a Requerente no argumento ou “causa justificativa” de que não lhe é imputável o atraso, na medida em que para efetivar o direito estava dependente de documentação a emitir ou a fornecer pela C... e esta não a forneceu de modo  a permitir esse exercício em momento anterior.

 

Serão relevantes os argumentos da Requerente?

Afigura-se-nos que não.

 

Isto porque, desde logo, o prazo previsto no nº 2, do artigo 78º, do CIVA, é um prazo peremptório, vinculativo em qualquer circunstância para o sujeito passivo de IVA, tanto mais quando se trata de caso de, como se viu supra,  exercício facultativo do direito [o prestador do serviço não é obrigado a regularizar a seu favor (no campo 40 da declaração periódica) o IVA anteriormente liquidado e declarado em declaração periódica de período anterior ao da redução que veio posteriormente a ocorrer].

 

Por outro lado, sempre a Requerente poderia eventualmente ter-se socorrido do recurso ao mecanismo de entrega de declarações de substituição de IVA para os períodos em causa, faculdade que pode ser exercida, em regra num prazo “retroativo” de 2 anos.

 

Não se descortina, assim, qualquer fundamento para excecionar a regra do prazo previsto no artigo 78º-2, do CIVA e que não impede nem torna excessivamente difícil o exercício do direito à regularização de IVA, tanto mais quando, como é o caso, se está perante uma situação de implementação de parceria comercial livremente acordada entre a Requerente e a C... tendo em vista o aproveitamento das sinergias do Grupo D... (que ambas essas entidades integram).

 

Alegada violação do princípio de neutralidade fiscal

O IVA é um imposto indireto, plurifásico, de matriz comunitária, que pretende tributar, essencialmente, as atividades económicas efetuadas por um sujeito passivo (imposto geral sobre o consumo).

 

Na prática, pretende-se que, em regra, apenas os consumidores finais sejam efetivamente onerados por este imposto.

 

Pois bem, o mecanismo para obter a neutralidade do imposto é permitir que um sujeito passivo possa deduzir, ao imposto que liquidou ao seu cliente, o IVA que suportou quando adquiriu bens e serviços para realizar essa operação tributável, garantindo-se desta forma que esse imposto suportado não irá constituir encargo para esse agente. 

 

Todavia, o exercício do direito à dedução tem de atender às condições substantivas e formais previstas no CIVA, desde logo, que se esteja perante um sujeito passivo de IVA e que os bens ou serviços adquiridos tenham sido utilizados para os fins das suas operações tributáveis. 

 

Em termos de condição formal, é necessário que o imposto suportado seja mencionado em faturas que cumpram com os requisitos legais presentes no CIVA, passadas em nome e na posse do sujeito passivo.


Por outro lado – e este aspeto é particularmente relevante no caso sub juditio - existe ainda um limite temporal para que o direito à dedução seja exercido: o Código do IVA estabelece o prazo limite de quatro anos para exercer o direito à dedução, contados a partir do momento em que o imposto dedutível se torna exigível. Isto é, a partir do momento em que o imposto se torne exigível, o adquirente dos bens ou serviços tem quatro anos para exercer o direito à dedução (nos casos em que tenha direito a essa dedução).

 

Em abril de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em acórdão de 12 de abril de 2018, [processo C-8/17 (conhecido como o caso Biosafe)], veio esclarecer que em determinadas situações (no caso em apreço, o sujeito passivo ficou objetivamente impossibilitado de exercer o seu direito à dedução antes da regularização do IVA efetuada pela Biosafe, não tendo previamente tido acesso a documentos retificativos das faturas iniciais nem sabido que era devido um acréscimo de IVA) não pode ser recusado o direito à dedução do imposto tendo como fundamento que o prazo previsto para a dedução, contado a partir da data de emissão das faturas iniciais, tenha expirado. 

 

De referir que esta decisão está na mesma linha de outra decisão do mesmo tribunal no caso VW Financial Services.

A situação apreciada pelo TJUE era a de um alienante de bens, sujeito passivo de IVA, que foi alvo de uma inspeção tributária da qual resultou que a taxa de IVA que oportunamente tinha aplicado foi inferior à devida. Para regularizar a situação o alienante dos bens procedeu à emissão dos respetivos documentos retificativos das faturas iniciais, tendo pago ao Estado o acréscimo de imposto, na sequência da liquidação adicional.

 

Na argumentação do tribunal é referido, em síntese, que, não estando perante situações de falta de diligência do adquirente antes da receção dos documentos retificativos nem perante abuso ou conluio fraudulento entre o adquirente e o fornecedor, o IVA pode ser deduzido porque estão reunidas as condições substantivas e formais. Ou seja, foram emitidos documentos retificativos nos termos legais, contendo o montante do IVA, que o adquirente suportará quando proceder ao pagamento dos referidos documentos.

 

Nesta linha, em dezembro de 2019, a AT publicou a ficha doutrinária -  Processo nº 15042 - , por despacho de 2019-11-06, da Diretora de Serviços do IVA,   com o seguinte entendimento: “Face ao exposto, considerando a jurisprudência do TJUE, conclui-se, em termos gerais, que nos casos em que, na sequência de uma liquidação adicional, tenha sido entregue ao Estado um acréscimo de IVA e tenham sido emitidos pelo sujeito passivo fornecedor os correspondentes documentos retificativos das faturas, os quais devem obedecer aos formalismos previstos no nº 7 do artigo 29º e do n.º 6 do artigo 36.º, ambos do CIVA, o exercício do direito à dedução pelo sujeito passivo adquirente não pode ser negado apenas com o argumento de que se encontra expirado o prazo legal de exercício do direito à dedução contado da data de emissão das faturas iniciais, se apenas com o recebimento dos documentos retificativos da fatura o adquirente toma conhecimento de que é devido aquele acréscimo do imposto, ficando apenas nesse momento reunidas as condições (formais e materiais) para o exercício do direito à dedução.” 

 

Este entendimento da AT resultou de um pedido de informação vinculativa efetuado numa situação em que o adquirente, sujeito passivo de IVA, recebeu do seu fornecedor, em janeiro de 2018, notas de crédito emitidas em 2018, através das quais lhe foi liquidado IVA relativo a faturas emitidas em 2013 (na altura, tinham sido emitidas com isenção de imposto). Em concreto, pretendeu-se saber se, tendo decorrido mais de quatro anos após a emissão das faturas regularizadas, expirou ou não o prazo para dedução do IVA que lhe foi repercutido pelo fornecedor. 

 

Ora, em resultado da citada decisão do TJUE de abril de 2018, a AT parece ter passado a admitir que o prazo para o exercício do direito à dedução expira passados quatro anos a partir da emissão dos documentos retificativos e não a partir do momento inicial em que o imposto se tornou exigível

 

Sem necessidade de ulteriores desenvolvimentos sobre esta matéria, reconhece-se, em síntese, que o direito à dedução é visto como um princípio fundamental do sistema comum do IVA que não pode, em princípio, ser limitado e que é exercido imediatamente para a totalidade dos impostos que oneraram as operações efetuadas a montante.

 

Todavia, tal princípio, garante da neutralidade fiscal do imposto, não invalida, naturalmente, que o não exercício atempado do direito (ainda que potestativo, como é o caso dos autos), à dedução, ceda a outrance perante o cumprimento estrito do princípio da neutralidade fiscal. 

 

Ora se duas entidades pertencentes ao mesmo Grupo económico celebram uma parceria em que visam o aproveitamento das sinergias comerciais do Grupo e desta (parceria)  resulta a necessidade mais que provável de regularização de valores tributários decorrente da incerteza do quando e quanto dos descontos a efetivar sempre após emissão das faturas, deveria ter sido acautelado por ambas as entidades e, maxime,  pela Requerente, para efeitos de exercício do direito à retificação ulterior das faturas para efeitos de IVA, a forma como ficaria assegurado o cumprimento do prazo e regras previstas no artigo 78º, do CIVA.

 

Não tendo sido tomadas essas cautelas, não pode, escudando-se no cumprimento do princípio da neutralidade do imposto, ser afastada a aplicação desse artigo 78º e, designadamente, dos prazos previstos para a regularização do valor tributável.

 

Por outro lado,  e en passant, não pode também afirmar-se que o direito à regularização do imposto na sequência ou em consequência de alteração superveniente, embora, no caso, não imprevista,  está sujeito a um prazo incompatível com o regime fixado pela denominada Diretiva IVA quando, como é o caso, tal prazo se aplica de igual modo aos direitos análogos em matéria fiscal baseados no direito interno (princípio da equivalência) e não se verifica notoriamente uma situação que torne impossível ou excessivamente difícil na prática o exercício do direito à efetiva dedução [Cfr., Jurisprudência do TJUE,  v. g.,  Acórdão Ecotrade (Procs C-95/07 e C-96/07) e Acórdão EMS-Bulgaria Transport OOD (Proc c-284/11)].

 

Concluindo nesta parte:  não ocorre, na circunstância qualquer violação do princípio da neutralidade.

 

E tão pouco se encontra qualquer fundamento para, como pretende a Requerente, surpreender a violação, no caso, dos artigos 63º, 167º, 168º, 178º a 180º, 182º e 219º da Diretiva IVA.

 

Reenvio prejudicial

Pede a Requerente o “(...) reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, com a consequente suspensão da presente instância, nos termos do artigo 272.º n.º 1 do CPC (...)”.

 

De harmonia com, e desde as, conclusões emanadas do Acórdão Schwarze (Proc. 16/65 de 1 de Dezembro de 1965), o reenvio prejudicial é considerado "um instrumento de cooperação judiciária ... pelo qual um juiz nacional e o juiz comunitário são chamados, no âmbito das competências próprias, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos estados-membros". 

 

 Ou, por outras palavras e como se salienta nas RECOMENDAÇÕES à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais[1] “(...) o reenvio prejudicial é um mecanismo fundamental do direito da União Europeia, que tem por finalidade fornecer aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros o meio de assegurar uma interpretação e uma aplicação uniformes deste direito em toda a União (...)”.

 

É doutrina oficial do TJUE, a partir do Acórdão Cilfit (Proc. 283/81 de 6 de Outubro de 1982), que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pode ser dispensada quando:

     i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;

     ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma; 

     iii) o juiz nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente.   

 

Claramente que, como se depreende da exposição supra sobre o mérito do pedido, está implícita a conclusão, no caso, que se verifica o preenchimento do último dos pressupostos para a recusa de reenvio: o Tribunal Arbitral não tem dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão ou questões de direito suscitadas, atenta a clareza e sentido evidente das normas em causa e, consequentemente, sobre todas as questões suscitadas se pronunciou.

 

Vai deste modo indeferido o pedido de reenvio prejudicial.

 

IV.  Decisão

Pelo exposto, acordam os árbitros que integram este Tribunal Coletivo, em:

a)     Julgar improcedente a exceção de caducidade do direito de ação suscitada pela Requerida;

b)    Indeferir o pedido de reenvio prejudicial; 

c)     Manter na ordem jurídica o citado despacho que indeferiu a reclamação graciosa nº ...2020..., apresentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e acrescido do ano de 2015, no montante global de €310.626,61, emitida pela AT; 

d)    Manter na ordem jurídica a sobredita liquidação adicional de imposto (IVA) do ano de 2015 e acrescido, no montante de € 310.626,61;

e)     Absolver a Requerida do pedido; 

f)     Considerar prejudicados os demais pedidos formulados pela Requerente; e 

g)    Condenar a Requerente nas custas do processo.

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de EUR310.626,61.

 

Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em EUR 5.508,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, conforme decidido supra.

 

Lisboa, 12 de julho de 2022

 

O Tribunal Arbitral Coletivo

 

 

José Poças Falcão (Presidente)

 

 

Sofia Quental (Adjunta)

 

 

Raquel Montes Fernandes (Adjunta)

 



[1] 2012/C 338/01, JO C 338/1, de 6.11.2012.