Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 83/2015-T
Data da decisão: 2015-07-08  IUC  
Valor do pedido: € 16.573,99
Tema: IUC
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Decisão Arbitral

 

 

            I – Relatório

 

            1.1. A… - …, S.A., pessoa colectiva n.º …, com sede no …, Avenida …, lote …, …, Lisboa (doravante designada por «requerente»), tendo sido notificada de “várias notas de liquidação de Imposto Único de Circulação («IUC») sobre veículos relacionados com a actividade supra mencionada, das quais reclamou graciosamente, tendo o processo corrido os seus termos sob o número …2014…”, e cuja identificação remete para Tabela Anexa, apresentou, em 9/2/2015, pedido de constituição de tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, nos termos do disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20/1 (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante designado por «RJAT»), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tendo em vista a “anulação das liquidações de IUC identificadas na Tabela Anexa, por violação do disposto no art. 3.º do Código do IUC, quanto aos pressupostos de incidência subjectiva de imposto, e o consequente reembolso do montante de 16.714,45 Euros, correspondente a 15.121,24 Euros de imposto pago indevidamente e 1.593,21 Euros de juros compensatórios indevidos, bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43.º da LGT.”

 

            1.2. Em 20/4/2015 foi constituído o presente Tribunal Arbitral Singular.

 

            1.3. Nos termos do art. 17.º, n.º 1, do RJAT, foi a AT citada, enquanto parte requerida, para apresentar resposta, nos termos do referido artigo. A AT apresentou a sua resposta em 22/5/2015, tendo argumentado no sentido da total improcedência do pedido do requerente e invocado existir incumprimento do disposto no art. 10.º do RJAT.

 

            1.4. Notificada, por despacho de 2/6/2015, a requerente pronunciou-se sobre o referido invocado incumprimento através do seu requerimento de 16/6/2015.

 

            1.5. Em resposta a despacho arbitral de 18/6/2015, no qual se solicitava a remessa de cópia do processo administrativo, a AT remeteu o mesmo a 23/6/2015.

 

            1.6. Por despacho de 1/7/2015, o Tribunal considerou, nos termos do art. 16.º, al. c), do RJAT, ser dispensável a reunião do art. 18.º do RJAT e que o processo estava pronto para decisão. Foi, ainda, fixada a data de 8/7/2015 para a prolação da decisão arbitral.

 

            1.7. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, é materialmente competente, o processo não enferma de vícios que o invalidem e as Partes têm personalidade e capacidade judiciárias, configurando-se legítimas.

 

            II – Fundamentação: A Matéria de Facto

 

2.1. Vem a ora requerente alegar, na sua petição inicial, que: a) “discorda de todos os actos de liquidação objecto do presente requerimento [...], por não se preencherem os pressupostos subjectivos da incidência do imposto”; b) “não é o sujeito passivo de IUC relativo às matrículas em questão em nenhum dos anos sobre os quais incidiram as liquidações oficiosas objecto de pedido de pronúncia arbitral”; c) “as primeiras 77 situações identificadas na tabela em anexo partilham a causa de pedir que se constitui no facto de o veículo associado à liquidação ter sido vendido pela Requerente anteriormente à data de vencimento do IUC”; d) “nos termos [do art. 6.º, n.º 3, do CIUC], resulta que na data de vencimento do imposto, a Requerente já não era proprietária dos veículos em questão, pelo que o sujeito passivo deverá ser o novo proprietário de cada veículo, ou outro detentor equiparável nos termos do art. 3.º, n.º 2, do Código do IUC”; e) “à luz do artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, [...] veículos em causa foram vendidos pela Requerente previamente à verificação do facto gerador e consequente exigibilidade do imposto pelo que deve incidir sobre os novos proprietários dos veículos”; f) “as 50 situações seguintes [...] reconduzem-se à mesma causa de pedir, i.e., o facto de o veículo associado à liquidação ter sido objecto de um contrato de leasing que se encontrava em vigor à data em que se gerou o facto tributável e a correspondente exigibilidade”; g) “da aplicação conjugada [do n.º 1 e 2 do art. 3.º do CIUC] resulta [...] que o IUC se vence numa base anual, sendo que, embora por norma o respectivo sujeito passivo seja o proprietário, caso o veículo tenha sido objecto de leasing, o sujeito passivo deverá ser o locatário financeiro”; h) “tendo em conta a factualidade apresentada, bem como o conteúdo normativo dos referidos preceitos do Código do IUC, cumpre concluir que, estando em curso nas situações assinaladas um contrato de locação financeira durante o período de tributação do veículo e, em particular, no momento em que se despoletaram os factos geradores do imposto, o sujeito passivo de imposto era exclusivamente o locatário financeiro, e não a Requerente”; i) “a última situação identificada na tabela em anexo diz respeito à causa de pedir constituída com base na existência de duplicação de colecta [...], na medida em que o imposto em causa, à data da liquidação, já havia sido objecto de liquidação e pagamento pela Requerente no passado, conforme pode ser comprovado pela Autoridade Tributária através do acesso aos registos tributários da Requerente”; j) “verificado o facto extintivo da obrigação tributária, a liquidação operada pela Administração Tributária deveria ter sido forçosamente considerada inexistente”.

 

            2.2. Conclui a requerente que: a) “as liquidações ora objecto de pedido de pronúncia arbitral não lhe devem ser imputadas, sendo, como tal, ilegais”; b) deve ser declarado procedente “o pedido de anulação das liquidações de IUC identificadas na Tabela Anexa, por violação do disposto no art. 3.º do Código do IUC, quanto aos pressupostos de incidência subjectiva de imposto, e o consequente reembolso do montante de 16.714,45 Euros, correspondente a 15.121,24 Euros de imposto pago indevidamente e 1.593,21 Euros de juros compensatórios indevidos, bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante, nos termos do artigo 43.º da LGT.”  

 

            2.3. Por seu lado, a AT vem alegar, na sua contestação: a) como questão prévia, que ocorre “falta de junção das liquidações atinentes ao presente pedido de pronúncia arbitral” visto que “não obstante a Requerente juntar Tabela Anexa na qual se encontram elencados os números das liquidações, não se encontram juntas ao presente processo as liquidações de IUC”; b) que “tal facto gera [...] a impossibilidade de identificação dos actos tributários contestados, dado que o âmbito do processo de reclamação graciosa, objecto e respectiva decisão, são diversos do âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral”; c) “enquanto que em sede de reclamação graciosa de liquidações de IUC foram contestados e apreciados 150 actos de liquidação, na importância de €17.805,75, tendo sido anulados 5 actos de liquidação, na quantia de €667,05, no presente pedido de pronúncia arbitral são questionadas 128 liquidações de IUC, no valor total de €16.714,45, assim se suscitando legítima dúvida quanto à identificação das liquidações agora contestadas”; c) que “determina peremptoriamente o disposto na alínea b) do n.º 2 do art. 10.º do RJAT, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que deve constar do pedido de pronúncia arbitral «b) a identificação do acto ou actos tributários objecto do pedido de pronúncia arbitral»”; c) que “a requerente incumpriu o citado normativo legal, não tendo procedido à identificação dos actos tributários de IUC cuja legalidade vem sindicar”; d) que “a requerente não juntou as liquidações de IUC quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se, agora, precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior”; e) que “a lei determina prazos para a junção dos documentos destinados a fazer prova, consagrando o art. 423.º do novo Código de Processo Civil que aqueles deverão ser apresentados com o articulado onde se aleguem os factos correspondentes. Assim sendo, após a dedução do pedido de pronúncia arbitral, ficou precludida, por banda da Requerente, a apresentação ulterior de prova documental; f) que, “caso assim não se entenda [...] a resposta ao presente pedido de pronúncia arbitral pela entidade Requerida encontra-se balizada somente pelos outros documentos juntos pela Requerente”; g) que, “[quanto às liquidações referentes a veículos objecto de locação financeira] não assiste razão à Requerente [...] [porque,] ainda que se concluísse estarmos perante contratos de locação financeira outorgados pela Requerente, sempre cabia a esta última demonstrar ter dado cumprimento à obrigação acessória imposta pelo artigo 19.º do CIUC”; h) que, “em matéria de locação financeira e para efeitos da ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto. Ora, nenhuma prova fez a Requerente quanto ao cumprimento desta obrigação no que respeita aos veículos automóveis ora em análise”; i) que, “[quanto à venda dos veículos antes do facto tributário] as alegações não podem [...] proceder, porquanto [a Requerente] incorre [...] [em] enviesada leitura da letra da lei”, [sendo que a] interpretação [da Requerente] não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e decorre, ainda, de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço e, bem assim, em todo o CIUC”; j) que “[quanto às liquidações referentes a contratos de locação financeira], nenhuma razão assiste [...] à ora Requerente [porque] não juntou qualquer contrato de locação financeira [...] [e, ainda, porque] a prova dos factos não se faz com meras alegações [tendo-se limitado] a proceder à junção de facturas, sem fazer qualquer prova ou sequer demonstrar qualquer indício do incumprimento e, sobretudo, da existência antecipada dos contratos de locação financeira que alega”; l) que “o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal” e que “[ainda que se entenda que existe presunção e que a mesma pode ser ilidida, as facturas, que se entende serem «desconformes» por falta de «descritivo uniforme», não são] prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal [...] pelo que se impugnam para todos os efeitos legais os Documentos 1 a 47 juntos à p.i.”; m) que a “interpretação [da requerente] não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime”, e que “ignora o elemento teleológico de interpretação da lei”; n) que “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”; o) que “a transmissão da propriedade de veículos automóveis não é susceptível de ser controlada pela Requerida [ou] dito de outra forma, o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida”; p) que “não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios”; q) que “não existe qualquer situação de duplicação de colecta [quanto à] última viatura constante da Tabela Anexa à PI, com a matrícula de …-…-…”.

 

2.4. Conclui, por fim, a AT que “a requerente não fez prova da alienação dos veículos por via das facturas que juntou ao processo, [que] a requerente não fez qualquer prova da existência de contratos de locação financeira, facto relativamente ao qual não juntou um único documento”, [que] a requerente violou a lei ao não actualizar, na defesa da sua pretensão, os elementos constantes do registo automóvel, e [que] não foi feita prova de qualquer duplicação de colecta”. Assim, pretende que seja “julgada procedente, por provada, a excepção invocada nos termos do disposto no artigo 577.º, e), do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, a qual dá lugar à absolvição da instância nos termos do artigo 278.º, n.º 1, d), do mesmo diploma legal”, e que deve “ainda ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”

 

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            2.5. Consideram-se provados os seguintes factos:

 

            i) A requerente é uma instituição financeira de crédito que prossegue a sua actividade no ramo do financiamento automóvel, designadamente sob a modalidade de concessão de empréstimos para a aquisição dos veículos ou celebração de contratos de locação financeira.

 

            ii) Na sua p.i., a requerente afirma que “recebeu várias notas de liquidação de [IUC] sobre veículos relacionados com a [sua] actividade [...], das quais reclamou graciosamente, tendo o processo corrido os seus termos sob o número …2014…” (v. ponto 2.º da p.i.), e diz, ainda, que “o presente requerimento versa sobre os actos de liquidação relativos a várias viaturas e, conforme cada uma, em relação aos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012”. Não identifica, com detalhe, os concretos actos de liquidação em causa nestes autos, antes refere que, “por razões de facilidade de exposição, fruto da vasta quantidade de situações em apreço, [remeterá] para a Tabela Anexa [a identificação de] cada acto de liquidação (pelo número da nota de liquidação), o ano a que o mesmo se reporta, a matrícula da viatura bem como o montante de imposto associado a cada acto” (ponto 6.º).

 

            iii) Contudo, a referida tabela também não se fez acompanhar dos comprovativos das liquidações invocadas (cuja identificação a AT viria a colocar em causa na sua resposta). Não obstante esse facto – e a impossibilidade de permitir a junção de novos documentos por parte da ora requerente (vd. infra) –, com o envio e apensação do processo administrativo (PA), por solicitação do tribunal arbitral, passou a ser possível a identificação comprovada dos actos tributários em causa (com natural exclusão das alegadas liquidações que, tendo sido indicadas na tabela anexa à p.i., não tenham sido objecto da referida reclamação graciosa e, portanto, não possam ser vislumbradas no PA apenso).

 

iv) A referida reclamação graciosa foi parcialmente deferida (5 liquidações anuladas relativas às seguintes viaturas e períodos: …-…-… de 2011; …-…-… de 2012; …-…-… de 2012; …-…-… de 2012; e …-…-… de 2012), por despacho de 7/11/2014, como se pode observar pela leitura do PA apenso.

 

            v) Assim sendo, as liquidações de IUC ora em causa, no valor total de €16.573,99, dizem respeito às seguintes viaturas e períodos: …-…-… (Ano 2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2009); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2011); …-…-… (2011); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2010); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2012); …-…-… (2012); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2010); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2011); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2009); …-…-… (2010); …-…-… (2011); …-…-… (2012); …-…-… (2011). Os valores das liquidações constam da tabela anexa à p.i. (para a qual se remete), estão confirmados pelo PA e foram pagos pela requerente.  

 

            vi) Em momento anterior ao ano e mês da tributação do imposto em causa, as viaturas em causa – que não estão sublinhadas no ponto v) e com excepção da última indicada (…-…-…, de 2011), quanto à qual se alega duplicação de colecta – foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da requerente, como se pode observar pelas cópias de facturas que constam do PA apenso, bem como dos Docs. n.os 1 a 47 anexos à p.i..

 

            vii) Quanto às liquidações relativas às viaturas que estão sublinhadas no referido ponto v), verifica-se que, embora a requerente não tenha trazido aos autos os contratos de locação que alega, constata-se a existência dos mesmos através do PA apenso (vd. PA1), no qual a AT identifica, em todas as situações em causa, a vigência desses contratos à data em que se gerou o facto tributável e a respectiva exigibilidade (vd. as colunas relativas às datas de vigência das locações financeiras, no quadro de “IUC devido”, elaborado pela AT a partir das “bases de dados da AT e da conservatória do registo comercial” e que foi anexo à informação em que se propôs o deferimento parcial da reclamação graciosa n.º …2014…).

 

            2.6. Considera-se não provado o (alegado) pagamento da liquidação de IUC de 2011 relativa à matrícula …-…-… (liquidação n.º 2011-…; IUC + juros compensatórios: €53,77), por não apresentação de documento que comprove o referido pagamento.

III – 1.ª Questão Prévia: Excepção relativa ao Art. 10.º do RJAT

 

            Tendo em consideração que foi invocada pela AT a excepção supra referida, justifica-se, previamente, a apreciação da mesma.

 

Lendo o disposto no artigo 10.º, n.º 2, al. b), do RJAT, parece que a ora requerente teria identificado os actos tributários de IUC que afirma estarem em causa. Nomeadamente, porque indicou, em quadro próprio (“Tabela Anexa”): o número de cada nota de liquidação; a matrícula de cada viatura associada; o ano a que se reporta cada uma das liquidações; e o valor de IUC respectivo.

 

Observa-se, contudo, que a requerente não juntou aos presentes autos os documentos que suportam a referida identificação. Tais documentos não deixam de ser (muito) relevantes porque, como refere, v.g., o Acórdão do STA de 28/1/2003, no proc. 02A4013, ainda que “os documentos não constitu[a]m factos, [constituem] elementos de prova de factos articulados”.

 

Pelo exposto, poderá concluir-se que a falta, na p.i., de documentos que suportem a identificação do(s) acto(s) tributário(s) objecto do pedido de pronúncia arbitral configura, por si, incumprimento da al. d) do art. 10.º do RJAT – o qual implica, por sua vez, concluir pelo incumprimento do disposto na al. b) do referido artigo (i.e., sem os elementos de prova das liquidações oficiosas que a ora requerente invocou terem existido, não se poderão considerar identificados os referidos actos).

           

Com efeito, como refere, e.g., a DA proferida no proc. n.º 130/2014-T, de 15/10/2014, “[de acordo com] o princípio contido nas alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, [...] o momento da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é o adequado para exposição das questões de facto e de direito objecto do pedido de pronúncia arbitral e para apresentar elementos de prova dos factos invocados e indicar os meios de prova a produzir.”

 

No mesmo sentido, afirma o Acórdão do STA de 2/4/2009, no proc. 685/08, que, “nos termos do n.º 1 do artigo 523.º do CPC [actual artigo 423.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, al. e), do CPPT e art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT], os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.”

 

Acresce que – como refere a AT na sua resposta – novos documentos não podem ser juntos, posteriormente, pela ora requerente, pois, como se salientou na “decisão interlocutória proferida pelo Tribunal Arbitral Colectivo presidido pelo magistrado Jorge Lopes de Sousa, a 2012-10-25, no âmbito do processo arbitral que, sob o n.º 75/2012-T, correu termos neste Centro de Arbitragem Administrativa, «(...) Como resulta do teor expresso das alíneas c) e d) do n.º 2 do art. 10.º do RJAT, o momento da apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral é o adequado para a exposição das questões de facto e de direito objecto do pedido de pronúncia arbitral e para apresentar elementos de prova dos factos invocados e indicar os meios de prova a produzir. Por isso, não há suporte legal para [...] concessão de prazo para apresentação de novos documentos.»” (Sublinhados nossos).

 

            Apesar do que refere o art. 10.º, n.º 2, al. d), do RJAT (e o art. 423.º, n.º 1, do CPC), a requerente, na sua resposta à excepção invocada pela AT, sustenta que, “[se alguma omissão existisse na petição] o tribunal arbitral [...] já teria, em momento prévio à notificação da AT [para responder, de acordo com o artigo 17.º do RJAT], dado conhecimento à requerente da existência de deficiências ou nulidades insanáveis, nomeadamente as previstas no n.º 2 do artigo 10.º do RJAT.”

 

            É certo que, como nota Jorge Lopes de Sousa, em “Comentário ao regime jurídico da arbitragem tributária” (in: Villa-Lobos, Nuno; Vieira, Mónica Brito (Coords.) – Guia da Arbitragem Tributária. Coimbra, Almedina, 2013, p. 193), “antes de receber o requerimento, o tribunal arbitral deverá apreciar se ele enferma de deficiências ou irregularidades sanáveis, designadamente se satisfaz todos os requisitos indicados no n.º 2 do artigo 10.º do RJAT, devendo providenciar para que sejam sanadas todas as deficiências ou irregularidades que o possam ser (n.º 2 do art. 110.º do CPPT, subsidiariamente aplicável)”, e que é “admissível o indeferimento liminar da petição de impugnação judicial”. E também é certo que, como refere o autor, “o pedido de pronúncia deve ser liminarmente indeferido quando for manifesto que é inepto [v. artigos 98.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, e 89.º, n.º 1, alínea a), do CPTA]” (ibidem; sublinhado nosso).

 

Sucede, contudo, que, no específico caso em análise, o pedido não era manifestamente inepto naquela fase inicial. Apenas deveria ser considerado como tal se não existissem, àquela data, condições para suprir a omissão da ora requerente. Mas essas condições ainda existiam: embora a requerente não pudesse apresentar novos documentos (v. supra), os documentos em falta poderiam chegar ao processo arbitral se constassem de um Processo Administrativo (PA) ou informação adicional a enviar pela AT (v. art. 17.º, n.º 2, do RJAT).

 

Foi, precisamente, o que sucedeu no presente caso: com o envio, pela AT, do processo administrativo, o presente tribunal pôde ter acesso a documentos comprovativos da existência e exactidão das liquidações (à excepção de três: v. infra) invocadas pela requerente.

 

IV – 2.ª Questão Prévia: Delimitação do pedido

 

Como constata a AT na sua resposta, a reclamação graciosa n.º …2014… foi deduzida contra 150 liquidações dos anos de 2009 a 2012, no valor de €17.805,75 (5 destas viriam a ser anuladas, no valor total de €667,05), mas, nesta sede, a tabela anexa e o pedido da requerente fazem referência a 128 liquidações, no valor de €16.714,45.

 

Considerando que o pedido da ora requerente está vinculado – como a própria afirma na sua p.i. (vide pontos 6.º e 7.º) –, às liquidações indicadas na tabela anexa, que não foram juntos os documentos de suporte das mesmas na p.i., e que não há uma perfeita coincidência entre a lista dessa tabela e o conjunto de liquidações objecto do processo de reclamação acima referido, justifica-se uma delimitação do pedido, possibilitando o seu aproveitamento (sem se incorrer em excesso ou omissão de pronúncia), na medida do possível, e dadas as limitações quanto à prova que foram acima referidas.

 

Assim, pelas razões expostas, serão apenas consideradas as liquidações que, constando da tabela anexa à p.i., tenham sido objecto da reclamação graciosa n.º …2014…. Excluem-se, consequentemente, as que, embora constando da referida tabela, não tenham sido acompanhadas de documentos de suporte na p.i. nem façam parte do conjunto de liquidações que consta do PA apenso (o que impossibilita comprovar a existência e exactidão dos actos de liquidação indicados).

 

Em resumo, para além das 5 liquidações, no valor de €667,05, já anuladas pela AT em sede de reclamação graciosa – respeitantes aos seguintes veículos: matrícula …-…-… (Ano 2011; IUC €134,09); …-…-… (2012; €137,17); …-…-… (2012; €146,80); …-…-… (2012; €194,93); …-…-… (2012; €54,06) –, também serão excluídas de análise, nesta sede arbitral, as seguintes liquidações:

 

A) 3 liquidações invocadas na tabela anexa à p.i., mas sem documento de suporte nem referidas no PA, e supostamente relativas às matrículas (anos e montantes): …-…-… (2012; IUC + juros compensatórios: €32,56), …-…-… (2010; €53,61) e …-…-… (2011; €54,29).

 

B) 19 liquidações que foram objecto de reclamação graciosa mas que não constam da tabela anexa à p.i.: …-…-… (Ano 2011; IUC: €697,00); …-…-… (2012; €713,00); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2009; €48,00); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2010; €33,10); …-…-… (2011; €33,83); …-…-… (2010; anulada); …-…-… (2009; €52,30); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2010; €32,80); …-…-… (2011; €33,83); …-…-… (2011; €103,00); …-…-… (2012; €105,00); …-…-… (2010; €49,00); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00).

 

Assim sendo, serão aqui analisadas as restantes liquidações (125 no total), indicadas na referida tabela anexa à p.i. (porque, apesar de não terem sido juntos documentos de suporte das liquidações à p.i., aquelas encontram-se referenciadas no PA apenso aos autos): …-…-… (Ano 2012; IUC: €17,25); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2009; €51,30); …-…-… (2011; €52,84); …-…-… (2012; €54,06); …-…-… (2009; €48,00); …-…-… (2011; €49,00); …-…-… (2009; €51,30); …-…-… (2009; €48,00); …-…-… (2010; €48,00); …-…-… (2011; €49,00); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2012; €34,61); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2011; €49,00); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2009; €130,20); …-…-… (2010; €131,20); …-…-… (2011; €134,09); …-…-… (2012; €137,17); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2010; €16,50); …-…-… (2011; €16,86); …-…-… (2011; €124,15); …-…-… (2012; €128,43); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2009; €130,20); …-…-… (2010; €51,70); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2009; €51,30); …-…-… (2009; €137,45); …-…-… (2010; €138,50); …-…-… (2011; €141,59); …-…-… (2012; €146,80); …-…-… (2010; €138,50); …-…-… (2011; €141,59); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2010; €33,00); …-…-… (2011; €93,00); …-…-… (2012; €96,57); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2010; €33,10); …-…-… (2011; €33,83); …-…-… (2012; €34,61); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2009; €48,00); …-…-… (2011; €155,08); …-…-… (2012; €128,43); …-…-… (2010; €16,50); …-…-… (2011; €16,86); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2010; €32,80); …-…-… (2012; €112,10); …-…-… (2011; €500,00); …-…-… (2011; €500,00); …-…-… (2011; €500,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2011; €52,84); …-…-… (2010; €51,70); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2012; €293,50); …-…-… (2012; €128,43); …-…-… (2010; €32,80); …-…-… (2010; €201,52); …-…-… (2011; €207,60); …-…-… (2012; €214,42); …-…-… (2011; €155,08); …-…-… (2009; €51,30); …-…-… (2009; €32,80); …-…-… (2010; €33,10); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2010; €33,10); …-…-… (2011; €33,83); …-…-… (2010; €33,10); …-…-… (2012; €34,61); …-…-… (2011; €134,09); …-…-… (2009; €192,36); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2010; €51,30); …-…-… (2012; €50,00); …-…-… (2011; €49,00); …-…-… (2009; €16,40); …-…-… (2010; €16,50); …-…-… (2011; €16,86); …-…-… (2012; €17,25); …-…-… (2011; €107,76); …-…-… (2012; €112,10); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2012; €31,00); …-…-… (2010; €138,50); …-…-… (2011; €141,59); …-…-… (2012; €146,80); …-…-… (2009; €29,00); …-…-… (2010; €29,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2011; €30,00); …-…-… (2011; €296,56); …-…-… (2012; €307,47); …-…-… (2009; €672,00); …-…-… (2010; €678,00); …-…-… (2011; €693,00); …-…-… (2012; €709,00); …-…-… (2009; €672,00); …-…-… (2010; €678,00); …-…-… (2011; €693,00); …-…-… (2012; €709,00). (As liquidações sublinhadas são aquelas em que a requerente alega “IUC na vigência do contrato”; para todos os restantes casos, a requerente alega “IUC com vencimento posterior à venda do veículo”). Às liquidações indicadas acresce, ainda, a relativa à matrícula …-…-… (Ano 2011; IUC + juros compensatórios: €53,77), sobre a qual a requerente alega “IUC já pago”.

 

Nestes termos, o valor da causa deve, conforme o disposto no art. 12.º, n.º 2, do RJAT, ser reduzido para o somatório do valor das liquidações de IUC descritas no parágrafo anterior (mais os respectivos juros compensatórios), i.e.: €16.714,45 – (€32,56 + €53,61 + €54,29) = €16.573,99. O novo valor da causa não implica alterações no valor das custas.

           

V – Fundamentação: A Matéria de Direito

 

            No presente caso, são seis as questões de direito controvertidas: 1) saber se o art. 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; 2) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; 3) saber se, como também alega a AT, “em matéria de locação financeira e para efeitos da ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele Código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto”; 4) saber se, como também alega a AT, “a interpretação veiculada pela Requerente [...] mostra-se contrária à Constituição”; 5) saber se há duplicação de colecta quanto à liquidação de IUC do ano de 2011 referente à matrícula …-…-…; 6) saber se, no presente caso, são devidos juros indemnizatórios à requerente. 

 

            Vejamos, então.

 

            1) e 2) As duas primeiras questões de direito confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que se mostra necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante do referido art. 3.º, estabelece ou não uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico; c) saber – admitindo que a presunção existe (e que a mesma é iuris tantum) – se foi feita a ilisão da mesma.  

 

            a) O art. 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tem a seguinte redacção, que aqui se reproduz:

 

            “Artigo 3.º – Incidência Subjectiva

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

             

            A interpretação do texto legal citado é, naturalmente, imprescindível para a resolução do caso em análise. Nessa medida, afigura-se necessário recorrer ao art. 11.º, n.º 1, da LGT, e, por remissão deste, ao art. 9.º do Código Civil (CC).

            Ora, nos termos do referido art. 9.º do CC, a interpretação parte da letra da lei e visa, através dela, reconstituir o “pensamento legislativo”. O mesmo é dizer (independentemente da querela objectivismo-subjectivismo) que a análise literal é a base da tarefa interpretativa e os elementos sistemático, histórico ou teleológico são guias de orientação da referida tarefa.

 

            A apreensão literal do texto legal em causa não gera - ainda que seja muito discutível a separação desta relativamente ao apuramento, mesmo que mínimo, do respectivo sentido - a noção de que a expressão “considerando-se como tais” significa algo diverso de “presumindo-se como tais”. De facto, muito dificilmente encontraríamos autores que, numa tarefa de pré-compreensão do referido texto legal, repelissem, “instintivamente”, a identidade entre as duas expressões.

 

            Confirmando a indistinção (tanto literal como de sentido) das palavras “considerando” e “presumindo” (presunção), vejam-se, por ex., os seguintes artigos do Código Civil: 314.º, 369.º, n.º 2, 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 2, e 1629.º. E, com especial interesse, o caso da expressão “considera-se”, constante do art. 21.º, n.º 2, do CIRC. Como assinalam Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, a respeito desse artigo do CIRC: “para além de esta norma evidenciar que o que está em causa em sede de tributação de mais valias é apurar o valor real (o de mercado), a limitação ao apuramento do valor real derivada das regras de determinação do valor tributável previstas no CIS não poder deixar de ser considerada como uma presunção em matéria de incidência, cuja ilisão é permitida pelo artigo 73.º da LGT” (Lei Geral Tributária, Anotada e Comentada, 4.ª ed., 2012, pp. 651-2).

 

            b) Estes são apenas alguns exemplos que permitem concluir que é precisamente por razões relacionadas com a “unidade do sistema jurídico” (o elemento sistemático) que não se poderá afirmar que só quando se usa o verbo “presumir” é que se está perante uma presunção, dado que o uso de outros termos ou expressões (literalmente similares) também podem servir de base a presunções. E, de entre estas, as expressões “considera-se como” ou “considerando-se como” assumem, como se viu, destaque.

 

            Se a análise literal é apenas a base da tarefa, afigura-se, naturalmente, imprescindível a avaliação do texto à luz dos demais elementos (ou subelementos do denominado elemento lógico). Com efeito, a AT alega, também, que a interpretação da requerente “não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal”, e “que à luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente [...] é manifestamente errada”.

 

            Justifica-se, portanto, averiguar se a interpretação que considere a existência de uma presunção no art. 3.º do CIUC colide com o elemento teleológico, i.e., com as finalidades (ou com a relevância sociológica) do que se pretendia com a regra em causa. Ora, tais finalidades estão claramente identificadas no início do CIUC: “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária” (vd. art. 1.º do CIUC).

 

            O que se pode inferir deste artigo 1.º? Pode inferir-se que a estreita ligação do IUC ao princípio da equivalência (ou princípio do benefício) não permite a associação exclusiva dos “contribuintes” aí referidos à figura dos proprietários mas antes à figura dos utilizadores (ou dos proprietários económicos). Como bem se assinalou na DA do processo n.º 73/2013-T: “na verdade, a ratio legis do imposto [IUC] antes aponta no sentido de serem tributados os utilizadores dos veículos, o «proprietário económico» no dizer de Diogo Leite de Campos, os efectivos proprietários ou os locatários financeiros, pois são estes que têm o potencial poluidor causador dos custos ambientais à comunidade.”

 

            Com efeito, se a referida ratio legis fosse outra, como compreender, p. ex., a obrigação (por parte das entidades que procedam à locação de veículos) - e para efeitos do disposto no art. 3.º do CIUC e no art. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 22-A/2007, de 29/6 - de fornecimento à DGI dos dados respeitantes à identificação fiscal dos utilizadores dos referidos veículos (vd. art. 19.º)? Será que onde se lê “utilizadores”, devia antes ler-se, desconsiderando o elemento sistemático, “proprietários com registo em seu nome”...?

 

            c) Do exposto retira-se a conclusão de que limitar os sujeitos passivos deste imposto apenas aos proprietários dos veículos em nome dos quais os mesmos se encontrem registados - ignorando as situações em que estes já não coincidam com os reais proprietários ou os reais utilizadores dos mesmos -, constitui restrição que, à luz dos fins do IUC, não encontra base de sustentação. E, ainda que a AT alegue a “intenção [do legislador] foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários aqueles que, como tal, constem do registo automóvel”, é necessário ter presente que tal registo, em face do que foi dito anteriormente, gera apenas uma presunção ilidível, i.e., uma presunção que pode ser afastada pela apresentação de prova em contrário. Neste sentido, vd., por ex., o Ac. do TCAS de 19/3/2015, proc. 8300/14: “O [...] art. 3.º, n.º 1, do CIUC, consagra uma presunção legal de que o titular do registo automóvel é o seu proprietário, sendo que tal presunção é ilidível”.

 

            Seria, aliás, injustificada a imposição de uma espécie de presunção inilidível, uma vez que, sem uma razão aparente, estar-se-ia a impor uma (reconhecidamente discutível) verdade formal em detrimento do que realmente podia e teria ficado provado; e, por outro lado, a afastar o dever da AT de cumprimento do princípio do inquisitório estabelecido no art. 58.º da LGT, i.e., o dever de realização das diligências necessárias para uma correcta determinação da realidade factual sobre a qual deve assentar a sua decisão (o que significa, no presente caso, a determinação do proprietário actual e efectivo do veículo).

 

            Acresce que, se não se permitisse ao vendedor a ilisão da presunção constante do art. 3.º do CIUC, estar-se-ia a beneficiar, sem uma razão plausível, os adquirentes que, na posse de formulários de contratos de aquisição correctamente preenchidos e assinados, e usufruindo das vantagens associadas à sua condição de proprietários, se tentassem eximir, por via de um “formalismo registral”, ao pagamento de portagens ou coimas.

 

            A este propósito, convém notar, também, que o registo de veículos não tem eficácia constitutiva, funcionando, como antes se disse, como uma presunção ilidível de que o detentor do registo é, efectivamente, o proprietário do veículo. Neste sentido, vd., v.g., o Ac. do STJ de 19/2/2004, proc. 03B4639: “O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção «juris tantum») da existência do direito (art.s 1.º, n.º 1 e 7.º, do CRP84 e 350.º, n.º 2, do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.”

 

            No mesmo sentido, referiu, a este respeito, a DA proferida no processo n.º 14/2013-T, em termos que se acompanham: “a função essencial do registo automóvel é dar publicidade à situação jurídica dos veículos não surtindo o registo eficácia constitutiva, funcionando (apenas) como mera presunção ilidível da existência do direito, bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constante. A presunção de que o direito registado pertence à pessoa em cujo nome está inscrito pode ser ilidida por prova em contrário. Não preenchendo a AT os requisitos da noção de terceiro para efeitos de registo [circunstância que poderia impedir a eficácia plena dos contratos de compra e venda celebrados], não pode prevalecer-se da ausência de actualização do registo do direito de propriedade para pôr em causa a eficácia plena do contrato de compra e venda e para exigir ao vendedor (anterior proprietário) o pagamento do IUC devido pelo comprador (novo proprietário) desde que a presunção da respectiva titularidade seja ilidida através de prova bastante da venda.”

 

            Ora, no caso aqui em análise, verifica-se que a ilisão da presunção (por meio de “prova bastante” das vendas) foi realizada. Com efeito, apesar do que a AT alega nos pontos 138.º a 142.º da sua resposta, o Tribunal não vê razão para questionar as facturas apresentadas pela requerente, dado que se considera que as mesmas são claramente demonstrativas de que esta não era, à data do imposto, a proprietária dos veículos. Note-se, também, que a AT, apesar de “levanta[r] dúvidas” em algumas das facturas (v. pontos 141.º e 142.º sobre a alegada falta de “descritivo uniforme”), não as impugnou, invocando, nomeadamente, a respectiva falsidade ou a simulação das vendas.

 

            Conclui-se, portanto – e como se referiu na matéria de facto provada [ponto vi)] –, que em momento anterior ao ano e mês da tributação do imposto em causa, as viaturas em causa foram objecto de venda a terceiros, não sendo, assim, propriedade da ora requerente, como se pode observar pelas cópias de facturas que constam do PA apenso, bem como dos Docs. n.os 1 a 47 anexos à p.i..

 

            Ainda a este respeito, justifica-se notar que, como bem salientou a DA do processo n.º 27/2013-T, datada de 10/9/2013, “os documentos apresentados, particularmente as cópias das facturas que suportam, desde logo, as vendas [...] [dos] veículos atrás referenciados, [...] corporizam meios de prova com força bastante e adequados para ilidir a presunção fundada no registo, tal como consagrada no n.º 1 do art. 3.º do CIUC, documentos, esses, que gozam, aliás, da presunção de veracidade prevista no n.º 1 do art. 75.º da LGT.”

 

            Por último, note-se que, como bem afirma a DA do processo n.º 230/2014-T, datada de 22/7/2014, “os elementos documentais, constituídos por cópias das respectivas facturas de venda – que não foram impugnados pela AT –, gozam da força probatória prevista no artigo 376.º, do Código Civil e da  presunção de veracidade que é conferida pelo art. 75.º, n.º 1, da LGT, tendo, assim, idoneidade e força bastante para ilidir a presunção que suportou as liquidações efetuadas. Estas operações de transmissão de propriedade são oponíveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, embora os factos sujeitos a registo só produzam efeitos em relação a terceiros quando registados, face ao disposto no art. 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial [aplicável por remissão do Código do Registo Automóvel], a Autoridade Tributária não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que não se encontra na situação prevista no n.º 2 do referido art. 5.º do Código do Registo Predial, aplicável por força do Código do Registo Automóvel, ou seja: não adquiriu de um autor comum direitos incompatíveis entre si. Quanto à prova de venda de veículos, ela pode ser feita por qualquer meio, uma vez que a Lei não exige forma específica, designadamente, escrita.”

 

            3) Alega, também, a requerida que, “em matéria de locação financeira e para efeitos da ilisão do artigo 3.º do CIUC, forçoso é que os locadores financeiros (como a Requerente) cumpram a obrigação ínsita no artigo 19.º daquele Código para se exonerarem da obrigação de pagamento do imposto”.

            Não procede esta conclusão da AT, dado que, como bem se referiu na DA proferida no proc. n.º 14/2013-T, de 15/10/2013, “o locatário financeiro é equiparado a proprietário para efeitos do nº 1 do artigo 3.º do CIUC, o mesmo é dizer para ser sujeito passivo do IUC (Cfr. n.º 2 do art. 3.º). [...] não dispondo o locador, por imposição legal e contratual, do potencial de utilização do veículo e tendo o locatário o gozo exclusivo do automóvel, reafirmamos a conclusão a que já tínhamos chegado de que [...] manda a ratio legis do CIUC que, nos termos do referido n.º 2 do artigo 3.º deste Código, seja o locatário o responsável pelo pagamento do imposto, uma vez que é ele que tem o potencial de utilização do veículo e provoca os custos viários e ambientais a ele inerentes. À mesma conclusão se chega quando se verifica a importância dada aos utilizadores dos veículos locados no artigo 19.º do CIUC. Com efeito, nos termos do disposto neste artigo, as entidades que procedam, designadamente, à locação financeira de veículos ficam obrigadas a fornecer à AT (ex-DGCI), a identidade fiscal dos utilizadores dos veículos locados para efeitos do disposto no artigo 3.º do CIUC (incidência subjectiva), bem como do n.º 1 do artigo 3.º da Lei da respectiva aprovação, uma vez que nos termos desta norma da Lei n.º 22-A/2007, se a receita gerada pelo IUC for incidente sobre veículos objecto de aluguer de longa duração ou de locação operacional, deve ser afecta ao município de residência do respectivo utilizador (sublinhados nossos). [...] [Mas, apesar dessa obrigação, tal não impede que,] na data da ocorrência do facto gerador do imposto, vigor[e] um contrato de locação financeira que tem por objecto um automóvel, para efeitos do disposto no artigo 3.º, nºs. 1 e 2, do CIUC, [sendo que o] sujeito passivo do IUC é o locatário mesmo que o registo do direito de propriedade do veículo se encontre feito em nome da entidade locadora, desde que esta faça prova da existência do referido contrato.” (Itálicos nossos).

 

            Pelo exposto, improcede a alegação da AT relativa ao art. 19.º do CIUC, dado que a mesma visa sobrepor uma obrigação de cariz formal a uma realidade substancial claramente demonstrativa da condição da requerente como entidade locadora nos contratos subjacentes.

 

            No entanto, a requerida alega, ainda, que a requerente se limitou “a proceder à junção de facturas [...] [mas] não junt[ou] qualquer contrato de locação financeira [pelo que] o efeito pretendido pela Requerente é meramente especulativo.”

 

            Contudo, e como se disse no ponto vii) dos factos provados, verifica-se que, “quanto [às] liquidações [relativas a veículos objecto de contrato de locação], embora a requerente não tenha trazido aos autos os contratos de locação que alega, constata-se a existência dos mesmos através do PA apenso (vd. PA1), no qual a AT identifica, em todas as situações em causa, a vigência desses contratos à data em que se gerou o facto tributável e a respectiva exigibilidade (vd. as colunas relativas às datas de vigência das locações financeiras, no quadro de «IUC devido», elaborado pela AT a partir das «bases de dados da AT e da conservatória do registo comercial» e que foi anexo à informação em que se propôs o deferimento parcial da reclamação graciosa n.º …2014…).”

 

            Conclui-se, portanto, que também é improcedente esta alegação da requerida.

 

            4) Em face do que foi supra exposto [em 1) e 2)], conclui-se não existir interpretação “contrária à Constituição”, ao contrário do que alegou a requerida nos pontos 113.º a 121.º da sua resposta.

 

            5) Quanto à alegada duplicação de colecta (na liquidação com o n.º 2011-…), concorda-se – porque os autos assim o confirmam – com o que diz a AT na sua resposta. Com efeito, não há uma “situação de duplicação de colecta – [quanto à] última viatura constante da Tabela Anexa à PI, com a matrícula …-…-… (IUC de 2011) – [porque] o único documento de pagamento junto pela Requerente se refere ao IUC do ano de 2009”. 

 

            6) Uma nota final para apreciar, ao abrigo do artigo 24.º, n.º 5, do RJAT, o pedido de pagamento de juros indemnizatórios a favor da requerente (art. 43.º da LGT e 61.º do CPPT).

 

            A este respeito, lembrou a DA proferida no processo n.º 26/2013-T, de 19/7/2013 (que tratou de situação semelhante à ora em apreciação): “O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT. [...] ainda que se reconheça não ser devido o imposto pago pela requerente, por não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, determinando, em consequência, o respectivo reembolso, não se lobriga que, na sua origem, se encontre o erro imputável aos serviços, que determina tal direito [a juros indemnizatórios] a favor do contribuinte. Com efeito, ao promover a liquidação oficiosa do IUC considerando a requerente como sujeito passivo deste imposto, a AT limitou-se a dar cumprimento à norma do n.º 1 do art. 3.º do CIUC, que, como acima abundantemente se referiu, imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.”

           

Considerando esta justificação – com a qual se concorda inteiramente –, conclui-se, também quanto ao presente caso, pela improcedência do mencionado pedido de pagamento de juros indemnizatórios.  

 

***

 

            VI – Decisão

 

            Em face do supra exposto, decide-se:

 

            - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto às liquidações impugnadas e que constavam do processo de reclamação graciosa, com a consequente anulação, com todos os efeitos legais, dos citados actos de liquidação (excepto o acto de liquidação de IUC com o n.º 2011 - …) e o respectivo reembolso das importâncias indevidamente pagas.

            - Julgar improcedente o pedido na parte que diz respeito ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor da requerente.

 

 

Fixa-se o valor do processo em €16.573,99 (dezasseis mil quinhentos e setenta e três euros e noventa e nove cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

Custas a cargo da requerida, no montante de €1224,00 (mil duzentos e vinte e quatro euros), nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do disposto no art. 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

 

Notifique.

 

Lisboa, 8 de Julho de 2015.

 

O Árbitro

 

 

 

(Miguel Patrício)

 

 

 

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Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.