Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 544/2016-T
Data da decisão: 2017-04-28  IMT  
Valor do pedido: € 384.100,96
Tema: IMT - Fundos de Investimento Imobiliários - isenção - duplicação de colecta
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III. DE FACTO

Acordam os Árbitros Maria Fernanda dos Santos Maçãs (Árbitro Presidente), Jónatas Machado e Carla Castelo Trindade (Árbitros Adjuntos), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o presente Tribunal Arbitral, na seguinte:

 

DECISÃO ARBITRAL

I – RELATÓRIO

Em 2 de Setembro de 2016, o “A…”, com sede no …, n.º…, …, …-… Lisboa, contribuinte … (doravante “Requerente”) apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 2.º e 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT).

Mediante o pedido de constituição do tribunal arbitral e de pronúncia arbitral, o Requerente pretende a apreciação da legalidade (e consequente anulação) do acto de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), identificado com o número …, no valor global de € 384.100,96 (trezentos e oitenta e quatro mil e cem euros e noventa e seis cêntimos).

Com efeito, não se conformando com a liquidação de IMT acima referida, o Requerente solicitou a constituição deste tribunal arbitral formulando, se bem se entende, um pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação, com fundamento em vícios de violação de lei e vício de inconstitucionalidade, conforme infra melhor se verá.

Com a petição refere a Requerente ter junto 16 documentos.

Como a Requerente optou pela não designação de árbitro, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo a Conselheira Maria Fernanda dos Santos Maças, o Professor Doutor Jónatas Machado e a Dra. Carla Castelo Trindade, que comunicaram a aceitação do encargo no devido prazo.

As partes foram notificadas dessa designação, não tendo sido apresentado qualquer pedido de recusa da designação como árbitro dos que compõem este tribunal.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 e no n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 25 de Novembro de 2016.

Notificada para apresentar a sua resposta, a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante “Requerida”) não a ofereceu.

Atendendo a que, no caso, não se verificava nenhuma das finalidades que legalmente estão cometidas à reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT e, tendo em conta a posição tomada pelas partes nos articulados, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º alínea c) e 19.º do RJAT, bem como dos princípios da economia processual e da proibição de actos inúteis, dispensou-se a realização desta reunião tendo as partes sido notificadas para, querendo, apresentar alegações, com carácter sucessivo. O Tribunal designou o dia 25 de Maio como prazo limite para prolação da decisão arbitral.

Em 3 de Fevereiro de 2017, o Requerente apresentou requerimento invocando não assistir à Requerida o direito de oferecer alegações uma vez que, não tendo a Requerida contestado, a possibilidade de apresentar alegações sucessivas iria permitir-lhe ter acesso à fundamentação da Requerente sem que a esta lhe fosse dada a oportunidade de posteriormente se pronunciar.

O Tribunal indeferiu o pedido do Requerente, por despacho datado de 6 de Fevereiro de 2017, concluindo que a pronúncia da Requerida em alegações, caso a essas houvesse lugar, só seria considerado relativamente à parte que não se encontrasse em violação do princípio da conclusão. Mais determinou, atentas as circunstâncias em causa, que as alegações fossem simultâneas.

Em 27 de Fevereiro de 2017 a Requerida juntou aos autos cópia do procedimento administrativo.

As partes não apresentaram alegações.

II. SANEAMENTO

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

Não foram invocadas, nem se verificam, quaisquer excepções dilatórias que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa.

O processo não enferma de nulidades.

As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias e são legítimas.

Tudo visto, cumpre decidir.

III.MATÉRIA DE FACTO

III.1. FACTOS PROVADOS

Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de seleccionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada. Tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário e o artigo 607.º, n.º 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º Código de Processo Civil aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, consideram-se provados os seguintes factos:

1.             A Requerente é um Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, constituído e a operar nos termos previstos no Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20 de Março;

2.             Em 23.12.2015 o Requerente celebrou com a sociedade B…, S.A., com o NIPC…, um contrato-promessa de compra e venda com tradição do imóvel a seu favor (doravante “Contrato-promessa”), relativo ao prédio urbano inscrito na matriz predial da freguesia de …, sito na Rua …, n.ºs…, … e …, …-… Lisboa, sob o artigo matricial …, destinado a fins comerciais (cfr. Documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

3.             Na mesma data (23.12.2015), a Requerente preencheu e entregou uma “Declaração para Liquidação – Modelo 1”, relativamente ao Contrato-Promessa celebrado (cfr. Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

4.             Ainda em 23.12.2015 a Requerida emitiu acto de liquidação/nota de cobrança de IMT com o número …, com data limite de pagamento em 24.12.2015 (cfr. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

5.             A Requerida liquidou IMT relativo ao Contrato-promessa à taxa de 3,25% (cfr. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

6.             Em 23.12.2015 o Requerente procedeu ao pagamento do IMT identificado no acto de liquidação/nota de cobrança, no valor de € 191.382,75 (cfr. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

7.             Em 08.06.2016 a Requerente a sociedade identificada supra celebraram, por escritura pública, o contrato de compra e venda prometido (cfr. Documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

8.             Em 06.06.2016 a Requerente preencheu e entregou uma “Declaração para Liquidação – Modelo 1” (cfr. Documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

9.             Na mesma data (06.06.2016), a Requerida emitiu acto de liquidação/nota de cobrança de IMT com o número …;

10.         A Requerida emitiu ainda acto de liquidação/nota de cobrança de Imposto do Selo com o número …, com data limite de pagamento em 07.06.2016 (cfr. Documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

11.         Em 07.06.2016, o Requerente procedeu ao pagamento do Imposto do Selo identificado no acto de liquidação/nota de cobrança (cfr. Documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral), no valor de € 47.109,60;

12.         O Requerente não pagou o montante de IMT liquidado pelo acto de liquidação/nota de cobrança com o número …;

13.         A Requerida anulou oficiosamente liquidação de IMT número …, tendo notificado o Requerente dessa anulação por comunicação electrónica remetida pelo sistema VIA CTT, acedida pelo Requerente em 17.06.2016 (cfr. Documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral);

14.         Pela mesma notificação a Requerida notificou o Requerente de que da anulação oficiosa do acto de liquidação de IMT … resultava a constituição de reembolso, de acordo com o artigo 46.º do CIMT, no valor de € 191.382,75;

15.         E que “o crédito apurado foi utilizado integralmente para compensação da(s) dívidas abaixo discriminada(s), de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 89.º do CPPT”, nos termos da tabela seguinte:

Aplicação do crédito

Dívida inicial

Montante aplicado

Nota n.º 2016 …

382.765,56

191.382,75

 

16.         Por comunicação datada de 19.06.2016 o Requerente foi citado para o processo de execução fiscal n.º …-2016/…, o qual identifica como dívida exequenda montante equivalente ao saldo de compensação entre a liquidação oficiosamente anulada e o valor da liquidação de IMT com o número …, acrescido de juros de mora vincendos e custas do processo;

17.         Em 08.07.2016, o Requerente procedeu ao pagamento da dívida exequenda (cfr. Documento n.º 12 referido no pedido de pronúncia arbitral e cfr. impressão do sistema informático junto com o processo administrativo);

18.         Em 15.07.2016, através de consulta à sua área de reservada do Portal das Finanças, o Requerente constatou estar em dívida o pagamento de € 623,25 a título de juros de mora (cfr. Documento n.º 13 referido no pedido de pronúncia arbitral);

19.         Em 19.07.2016 Requerente procedeu ao pagamento do montante indicado a título de juros de mora (cfr. procedimento administrativo).

 

III.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Inexistem outros factos com relevo para apreciação do mérito da causa que não se tenham provado.

 III.3. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A factualidade provada teve por base os documentos que foram juntos aos autos pela Requerente, o processo instrutor, bem como a posição processual da Requerida, na medida em que esta não apresentou resposta, nos termos do disposto no art. 110.º, n.ºs 6 e 7.º do CPPT.

IV. MATÉRIA DE DIREITO

Do objecto do processo

Da factualidade dada como assente constam uma série de actos tributários cuja distinção se afigura pertinente para o esclarecimento do objecto do litígio.

Com relevância para a causa distinguem-se:

-      O acto de liquidação de IMT número …, emitido em 23.12.2015, aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda com tradição do imóvel;

-      O acto de liquidação de IMT número …, emitido em 06.06.2016, aquando da celebração do contrato de compra e venda prometido;

-      O acto de anulação oficiosa número 2015 … do acto de liquidação de IMT número …, emitido em 06.06.2016 e notificado ao Requerido em 17.06.2016;

-      O acto de compensação de créditos fiscais pelo qual a Requerida fez operar a compensação do valor de reembolso resultante do acto de anulação oficiosa número 2015 … com o valor do acto de liquidação de IMT número … .

O acto que vem sindicado nos presentes autos é única e exclusivamente o acto de liquidação de IMT número …, no valor global de € 384.100,96. O Requerente pretende, e deixa-o claro no seu pedido de pronúncia arbitral, a apreciação da legalidade (só) deste acto de liquidação e, por conseguinte, a sua anulação, com fundamento em vício de violação de lei.

Analisado o pedido de pronúncia arbitral, o pedido do Requerente é só um: a declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação de IMT número … emitido pela Requerida em 06.06.2016, sobre a aquisição pelo Requerente, de um imóvel, por força da celebração do contrato de compra e venda celebrado entre o Requerente e a sociedade B…, S.A. em 08.06.2016.

O Requerente fundamenta o seu pedido numa série de vícios de violação de lei, de que entende padecer o acto de liquidação, a saber:

             a)                    Incidência sobre transmissão juridicamente inexistente ou irrelevante para efeitos de incidência de IMT;

            b)                    Duplicação da colecta;

             c)                    Caducidade da liquidação;

            d)                    Violação do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro;

             e)                    Violação do artigo 49.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF).

Alegando ainda a inconstitucionalidade da interpretação propugnada pela Requerida do disposto no artigo 22.º do CIMT, por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal.

Tendo o Requerente imputado diversos vícios aos actos tributários impugnados há que determinar a ordem de conhecimento dos mesmos, devendo ser observada a ordem do artigo 124.º do CPPT, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

A precedência de qualquer dos vícios invocados pela Requerente conduzirá à declaração de ilegalidade do acto tributário de liquidação de IMT e, consequentemente, à sua anulação. Analisar-se-á, em primeiro lugar, o vício de violação de lei por incidir sobre transmissão juridicamente inexistente ou irrelevante para efeitos de incidência de IMT.

 

Vício de violação de lei

a) Incidência sobre transmissão juridicamente inexistente ou irrelevante para efeitos de incidência de IMT

O artigo 2.º, n.º 1 do CIMT, trata da incidência objectiva e territorial do imposto, ali se dispondo que o IMT incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados no território nacional. O n.º 2 alínea a) do mesmo artigo 2.º do CIMT, alarga a incidência objectiva do imposto, determinando que integram ainda o conceito de transmissão de imóveis as promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente. O legislador tributário acolhe, deste modo, o princípio de realismo que caracteriza o direito fiscal e que frequentemente o leva a privilegiar a consideração da substância económica das transacções em detrimento da respectiva qualificação ou formalização jurídica.

Por seu turno, no que respeita à incidência subjectiva de IMT, de acordo com o artigo 4.º do CIMT, o imposto é devido pelo primitivo promitente adquirente não estando excluída a possibilidade de o mesmo vir a beneficiar de uma isenção ou redução de taxa. Na situação de celebração de um contrato promessa de compra e venda com tradição do imóvel a favor do promitente adquirente, prevista no artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do CIMT, não existe uma norma excludente do benefício de isenção ou redução de taxa. Dito de outro modo, não está prevista para esta situação uma solução idêntica à consagrada nas alíneas e), f) e g) do artigo 4.º do CIMT, em que o legislador tributário expressamente procede a essa exclusão nas situações e com as condições previstas no artigo 2.º, n.º 3, alíneas a), b), c), d) e e) do CIMT. No que respeita ao momento da liquidação do imposto, determina o artigo 22.º, n.º 1, do CIMT, que a liquidação do IMT precede o acto ou facto translativo dos bens, devendo ser efectuada no momento da celebração do contrato de compra e venda com tradição do imóvel.

Por fim, no que diz respeito ao nascimento da obrigação tributária, o artigo 5.º, n.º 1, do CIMT dispõe que a incidência do IMT é regulada pela legislação em vigor ao tempo em que se constituir a obrigação tributária, esclarecendo o n.º 2 do preceito que esta se constitui no momento em que ocorrer a transmissão. Por sua vez, o artigo 18.º, n.º 1 do CIMT, sob a epígrafe “Aplicação temporal das taxas”, determina a liquidação do imposto pelas taxas em vigor ao tempo da ocorrência do facto tributário.

Do conteúdo das disposições normativas a que supra se fez referência, não restam dúvidas de que o contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa a favor do promitente adquirente integra o conceito de transmissão onerosa de imóvel para efeitos de incidência objectiva do artigo 2.º do CIMT.

Ora, conforme consta da factualidade assente, o Requerente é um fundo de investimento imobiliário aberto, constituído e a operar nos termos previstos no Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20 de Março. Tendo celebrado, em 23.12.2015, um contrato-promessa de compra e venda com tradição do imóvel, na qualidade de promitente adquirente, com a sociedade B…, S.A., esta na qualidade de promitente vendedor. Foi, então, nesse momento – com a celebração do contrato-promessa – que ocorreu a transmissão onerosa do imóvel (para efeitos de IMT) e a constituição da obrigação tributária. A incidência do IMT será então regulada pela legislação em vigor em 23 de Dezembro de 2015.

Nessa data encontrava-se em vigor o artigo 49.º n.º 1 do EBF, que, para as aquisições de imóveis por fundos de investimento imobiliários abertos ou fechados de subscrição pública, reduzia para metade a taxa de 6,5% prevista no artigo 17.º alínea d) do CIMT.

Dispunha então o artigo 46.º n.º1 do EBF que: “São reduzidas para metade as taxas de imposto municipal sobre imóveis e de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis aplicáveis aos prédios integrados em fundos de investimento imobiliário abertos ou fechados de subscrição pública, em fundos de pensões e em fundos de poupança-reforma que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional.”

Aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa, foi liquidado o IMT devido pelo mesmo, a uma taxa de 3,25%, o qual foi pago nesse mesmo dia. Cumpriu-se, deste modo, o disposto no artigo 36.º do CIMT, onde se dispõe que “o IMT deve ser pago no próprio dia da liquidação ou no dia útil seguinte, sob pena de esta ficar sem efeito”.

Deste modo, para efeitos de incidência de IMT, a transmissão a título oneroso, do direito de propriedade sobre o bem imóvel ocorreu, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do CIMT, com a tradição do imóvel objecto do contrato-promessa de compra e venda.

E quanto a esse fundamento, por tudo o acima exposto, tem razão o Requerente.

Tendo o legislador atribuído relevância tributária, para efeitos de IMT, ao contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa em favor do adquirente, que passa então a integrar o conceito de transmissão onerosa de bem imóvel, e tendo a primeira liquidação de imposto sido apurada com base no valor total da venda, afigura-se claro o legislador pretendeu que a transmissão juridicamente relevante fosse o contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa, ali se extinguindo a relação jurídica tributária, sem prejuízo do que infra melhor se descortinará a respeito a isenção da operação.

b) Duplicação da colecta

O Requerente alega ainda que o acto tributário de liquidação em sindicância consubstancia uma duplicação da colecta, na medida em que o IMT foi pago pelo Requerente aquando da celebração do contrato-promessa com tradição da coisa.

No entanto, dadas as circunstâncias do caso concreto, não tem razão o Requerente.

Referiu-se supra que tendo sido já liquidado o imposto aquando da celebração do contrato-promessa de compra e venda com tradição da coisa, uma segunda liquidação desse imposto corresponderia, em rigor, a uma duplicação de colecta.

Ora, no caso sub judice, tal não se verifica, à presente data, desde logo porque a Requerida anulou oficiosamente o primeiro acto de liquidação de IMT. Com efeito, para que se verifique uma duplicação da colecta, é necessário que se considerasse, à data da presente apreciação, que o imposto estivesse pago. Contudo, tendo a Requerida anulado o primeiro acto de liquidação de IMT (ainda que, por acto de compensação tenha imputado o valor do reembolso devido ao pagamento do segundo acto de liquidação de IMT emitido), considera-se formalmente “esvaziada” a duplicação da colecta.

c) Caducidade do direito à liquidação

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do CIMT, “o IMT deve ser pago no próprio dia da liquidação ou no 1.º dia útil seguinte, sob pena de esta ficar sem efeito”.

No dia 6 de Junho de 2016, o sujeito passivo preencheu a Declaração para Liquidação Modelo 1, tendo em vista a liquidação do Imposto do Selo, nos termos do artigo 23.º, n.º 4 do Código do Imposto do Selo, segundo a verba 1.1. prevista na TGIS. A Requerida emitiu então uma nota de liquidação de IS e uma outra nota de liquidação de IMT, sendo o prazo de pagamento o dia de 7 de Junho de 2016. Nesse dia, foi pago apenas o IS. Em 8 de Junho de 2016 foi celebrado o contrato de compra e venda prometido, data na qual a segunda liquidação do IMT já tinha caducado por falta de pagamento, nos termos do artigo 36.º, n.º 1 do CIMT.

Acresce que, segundo o disposto no artigo 49.º, n.º 1 do CIMT, “quando seja devido IMT, os notários e outros funcionários ou entidades que desempenhem funções notariais, bem como as entidades e profissionais com competência para autenticar documentos particulares que titulem atos ou contratos sujeitos a registo predial, não podem lavrar as escrituras, quaisquer outros instrumentos notariais ou documentos particulares ou autenticar documentos particulares que operem transmissões de bens imóveis nem proceder ao reconhecimento de assinaturas nos contratos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 2.º, sem que lhes seja apresentado o extrato da declaração referida no artigo 19.º acompanhada do correspondente comprovativo da cobrança, que arquivarão, disso fazendo menção no documento a que respeitam, sempre que a liquidação deva preceder a transmissão” (sublinhado nosso).

Por conseguinte, a segunda liquidação de IMT – emitida em 6 de Junho de 2016 – caducou no dia 7 de Janeiro de 2016, não poderia haver lugar a cobrança de imposto sem a emissão de uma nova nota de liquidação.

Pelo que, também quanto a este fundamento, assiste razão ao sujeito passivo.

d) Violação do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro e do artigo 49.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais

Cumpre agora analisar aquele que será, porventura, o fundamento cuja eventual procedência determinará a mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos na medida em que tem efeitos para toda a operação e não só para o acto objecto da presente acção.

Ora, conforme se referiu supra, ficou claro que, pelo disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea a) do CIMT, o legislador alargou o conceito de transmissão de imóveis para efeitos de IMT ali integrando as promessas de aquisição e de alienação, logo que verificada a tradição para o promitente adquirente. Por seu turno, o artigo 4.º do CIMT milita que o imposto é devido pelo primitivo promitente adquirente não estando excluída a possibilidade de o mesmo vir a beneficiar de uma isenção ou redução de taxa.

Por fim, recorda-se que no que respeita ao nascimento da obrigação tributária, vimos que nos termos do artigo 5.º, n.º 1 do CIMT a incidência do IMT é regulada pela legislação em vigor ao tempo em que se constituir a obrigação tributária, esclarecendo o n.º 2 do preceito que esta se constitui no momento em que ocorrer a transmissão.

Ora, conforme consta da factualidade assente, o Requerente é um fundo de investimento imobiliário aberto, constituído e a operar nos termos previstos no Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20 de Março. Tendo celebrado, em 23.12.2015, um contrato-promessa de compra e venda com tradição do imóvel, na qualidade de promitente adquirente, com a sociedade B…, S.A., esta na qualidade de promitente vendedor.

Antes de mais, afigura-se relevante fazer um breve enquadramento ao regime dos fundos de investimento.

Foi pelo Decreto-Lei n.º 246/85, de 12 de Julho que se regulamentou a actividade dos fundos de investimento. Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, é expressamente reconhecido o “importante contributo que este novo tipo de instituições financeiras poderá trazer à formação das poupanças e à sua mobilização para investimentos no sector imobiliário. Acrescem os efeitos positivos que por essa via se induzirão nas indústrias da construção e no mercado de arrendamento de imóveis para habitação e para escritórios.” Assim, e na perspectiva do legislador tornou-se “necessário, no sentido de estabelecer condições para criação de fundos de investimento com estas características, definir um quadro fiscal adequado.”

Com este objectivo em mente, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, determinou que:

são isentas de Sisa as aquisições de bens imóveis efectuadas para um fundo de investimento imobiliário pela respectiva sociedade gestora”.

De acordo com o teor literal desta norma, as aquisições de bens imóveis levadas a cabo com o intuito de passarem a integrar um fundo de investimento imobiliário estariam isentas de Sisa.

Mais tarde, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, procedeu à reforma da tributação do património, aprovando o CIMI, e o CIMT, publicados, respectivamente, nos seus anexos I e II.

Dali em diante, no que respeita às remissões, determinou o artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que:

1 - Todos os textos legais que mencionam Código da Contribuição Autárquica ou contribuição autárquica consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) ou ao imposto municipal sobre imóveis (IMI).

2 - Todos os textos legais que mencionem Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, imposto municipal de sisa ou imposto sobre as sucessões e doações consideram-se referidos ao Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (CIMT), ao Código do Imposto do Selo, ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e ao imposto do selo, respectivamente. (sublinhado nosso)

Além disso, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, incluiu ainda uma norma de revogação, no seu artigo 31.º, cujo n.º 6 dispunha: 

Mantêm-se em vigor os benefícios fiscais relativos à contribuição autárquica, agora reportados ao IMI, bem como os respeitantes ao imposto municipal de sisa estabelecidos em legislação extravagante ao Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, e no Estatuto dos Benefícios Fiscais, que passam a ser reportados ao IMT.(sublinhado nosso)

Assim, de acordo com o teor literal dos artigos 28.º e 31.º, n.º 6 do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, as isenções ao imposto de Sisa deveriam considerar-se reportadas ao IMT, pelo que as aquisições de bens imóveis levadas a cabo por uma sociedade gestora de um fundo de investimento imobiliário com o intuito de os mesmos passarem a integrar esse fundo continuariam isentas de IMT (aquela isenção de sisa prevista no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro). A isenção existiria sempre que o fundo se encontrasse na posição de adquirente do imóvel. 

Refira-se que esta isenção tinha uma finalidade clara e inteiramente assumida pelo legislador tributário. Em causa estava o objectivo, de natureza social e económica, de definição de um quadro fiscal susceptível de incentivar a criação de fundos de investimento com capacidade para mobilizar as poupanças para a realização de investimentos no sector imobiliário, estimulando, desse modo, as indústrias da construção e o mercado de arrendamento de imóveis para habitação e para escritórios.

O artigo 82.º da Lei n.º /2006 de 29 de Dezembro (LOE de 2007), veio alterar o artigo 46.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), passando a prever, a par da isenção da Contribuição Autárquica (IMI) para os prédios integrados em fundos imobiliários abertos, uma isenção de IMT para esses mesmos prédios. Assim, os prédios integrados nos fundos mistos ou fechados, verificadas certas condições, gozariam de uma redução de taxa para metade (artigo 46.º, n.º 2 do EBF). No entanto, o referido artigo 82.º da LOE de 2007 não fez qualquer referência à isenção de Sisa (IMT) constante do o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro.

Por conseguinte, a questão que se coloca, na sequência do que se disse supra, prende-se com a problemática de saber se a isenção de IMT introduzida no artigo 46.º do EBF pela LOE de 2007 veio ou não revogar – e, se sim, expressa ou tacitamente – a isenção de Sisa (IMT) constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro – que, até então, ninguém duvidou manter-se. Esta questão é pertinente na medida em que, nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do Código Civil, a regra geral em matéria de cessação da vigência da lei é que “quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por outra lei.

Ora, o Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, não contém qualquer indicação de que o seu artigo 1.º pretendia ter uma vigência temporária, pelo que, admitindo-se a sua não revogação por outra lei, a isenção dali constante, permanecerá – ainda hoje – em vigor. E a resposta a esta questão responderá à que ora se trata nos presentes autos: a de saber se o acto de liquidação da Administração Tributária padece, ou não, de um vício de violação de lei, por desconsideração de uma norma de isenção de imposto.

Ora, recuperando o que se disse supra, para determinar se houve ou não revogação da norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, que prevê uma isenção de Sisa (IMT), importa atentar ao disposto no artigo 7.º, n.º 2, do Código Civil, que se ocupa do conceito de revogação da lei. Aí se dispõe que

“a revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.”

A existência de regras de reconhecimento, orientadas para a identificação clara e precisa das normas que se encontram em vigor no ordenamento jurídico e das que já foram expressa ou tacitamente revogadas, reveste-se do maior significado, desde logo do ponto de vista do princípio da legalidade, designadamente na sua dimensão de legalidade tributária, afirmando a exigência de segurança jurídica e protecção da confiança ínsita no princípio constitucionalmente estruturante do Estado de direito. Os cidadãos, os agentes económicos e os operadores jurídicos devem poder saber com certeza quais as normas que estão e quais as que não estão em vigor no ordenamento jurídico. O artigo 7.º do Código Civil estabelece então três critérios alternativos de revogação, cujo preenchimento ou não tem relevantes implicações no caso concreto.

Importa pois aferir se ocorreu alguma das três alternativas que, segundo o artigo 7.º, n.º 2 do Código Civil, conduziram à revogação do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 1/87, de 3 de Janeiro, a saber:

                      a)          a declaração expressa de revogação;

                      b)          a incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes; ou

                      c)          a circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior.

Relativamente ao primeiro aspecto, em vão se procurará no artigo 46.º do EBF, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 82.º da LOE de 2007, uma qualquer norma de revogação expressa do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 1/87, de 3 de Janeiro. Assim conclui-se que não houve qualquer declaração expressa de revogação pelo que a haver revogação ela só poderia acontecer pela verificação de qualquer das restantes condições.

De incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes, que configura a segunda alternativa do artigo 7.º, n.º 2 do Código Civil, também não se pode falar. Bem pelo contrário, uma leitura conjunta da nova disposição do artigo 46.º do EBF e da regra precedente do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, permite razoavelmente concluir que a partir da entrada em vigor da nova redacção do artigo 46.º do EBF passariam a estar isentas do IMT, não apenas as aquisições de bens imóveis levadas a cabo por sociedades gestoras de fundos de investimento imobiliário com o intuito de as mesmas passarem a integrar esses fundos – tal como estabelecido na regra precedente – como também os prédios integrados nos fundos imobiliários – tal como estabelecido naquele artigo 46.º do EBF. Por outras palavras, a isenção de IMT valeria doravante quer para imóveis adquiridos para virem a integrar fundos imobiliários, como até então se estabelecia, quer para esses mesmos imóveis se e enquanto integrados em fundos imobiliários, nos termos do artigo 46.º do EBF. No primeiro caso, a isenção seria aplicável sempre que o fundo se encontrasse na posição de adquirente do imóvel. No segundo caso a isenção seria aplicável sempre que o fundo se encontrasse na posição de alienante do imóvel. Assim, é forçoso concluir-se pela inexistência de uma incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes.

Abra-se aqui um parêntesis quanto à distinção entre imóveis a integrar no fundo e imóveis integrados no fundo, a qual reveste, ao que se crê, grande relevância no caso sub judice. Nos termos do artigo 22.º, n.º 1 do CIMT, a liquidação do IMT precede o acto ou facto translativo dos bens, devendo ser efectuada no momento da celebração do contrato-promessa de compra e venda com tradição do imóvel. Nesse momento, os bens adquiridos pelo sujeito passivo ainda não estavam integrados no fundo de investimento imobiliário. Com efeito, a sociedade gestora do fundo de investimento imobiliário pretendia adquirir o bem imóvel em causa precisamente para o vir a integrar no respectivo fundo. Daí que ela pudesse reclamar a isenção prevista no artigo 1.º do Decreto-Lei n. º 1/87, de 3 de Janeiro, e não a do artigo 49.º do EBF, na medida em que vale unicamente para bens imóveis integrados no fundo imobiliário, realidade que só se consumaria depois da celebração do contrato promessa de compra e venda com a tradição da coisa.

Não obstante as diferenças estruturais que separam ambas as isenções, a verdade é que em ambos os casos as sociedades gestoras de fundos de investimento são colocadas numa posição economicamente vantajosa: ou porque não têm que pagar o IMT quando adquirem imóveis para os integrar no respectivo fundo de investimento imobiliário, ou porque os podem colocar no mercado mais facilmente em virtude de o prospectivo adquirente estar isento de IMT. As novas disposições e as regras precedentes não só são inteiramente compatíveis como criam um regime fiscal especialmente apetecível para as sociedades gestoras de fundos imobiliários.

Compreende-se bem a isenção de IMI a favor dos imóveis integrados em fundos imobiliários, na medida em que isso os liberta do pagamento deste imposto anual sobre o património imobiliário, prevista no artigo 46.º do EBF antes da redacção que lhe foi dada pela Lei LOE de 2007. No entanto, também não é negligenciável a utilidade de que a isenção de IMT, acrescentada por este diploma, se revista no caso das transacções de imóveis integrados em fundos imobiliários.

Com efeito, apesar de, nos termos do artigo 4.º do CIMT, o IMT dever ser suportado pelo adquirente do bem imóvel – que na generalidade dos casos será alguém inteiramente alheio à actividade de investimento imobiliário – a verdade é que esta isenção coloca os fundos de investimento imobiliário numa posição economicamente favorável e competitiva no seio do mercado imobiliário, na medida em que lhes permite escoar os seus bens imóveis mais facilmente, a um preço mais atractivo do ponto de vista do consumidor, porque está isento de IMT ou beneficia de uma redução de taxa.

Por esse motivo, a isenção do actual artigo 49.º do EBF, mesmo na sua versão atenuada de redução das taxas de IMT para metade, constitui um suplemento não despiciendo e não redundante relativamente à isenção estabelecida pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro. Trata-se de uma isenção estrutural e teleologicamente distinta desta última, cuja introdução e manutenção na ordem jurídica assenta numa distinta valoração de política fiscal.

E tanto assim é que chegou a existir uma proposta de lei do Governo dirigida à Assembleia da República, a PL 478/2006, de 13 de Outubro de 2006, para aprovação do Orçamento do Estado, onde se previa a inserção de um artigo 81.º, n.º 3, alínea e) em que expressamente se revogava o Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro. Proposta essa que não foi objecto de aprovação. 

De resto, a possibilidade de coexistência jurídico-normativa de isenções de IMT nos momentos da aquisição e de alienação de um imóvel está longe de constituir uma solução anómala ou sistemicamente disfuncional. Tal coexistência pode ser encontrada hoje no próprio EBF, em matéria de prédios urbanos destinados a reabilitação, verificados determinados pressupostos. Com efeito, o artigo 45.º, n.º 2 determina que “Ficam isentas de imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis as aquisições de prédios urbanos destinados a reabilitação urbanística, desde que, no prazo de três anos a contar da data de aquisição, o adquirente inicie as respectivas obras.” Paralelamente, o artigo 71. º, n.º 8 do EBF dispõe que “São isentas do IMT as aquisições de prédio urbano ou de fracção autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, na primeira transmissão onerosa do prédio reabilitado, quando localizado na 'área de reabilitação urbana”. Também aqui uma isenção ao IMT no momento da aquisição do imóvel a reabilitar coexiste com a isenção no momento da alienação do imóvel reabilitado, num quadro de complementaridade jurídica pleno de racionalidade económica e social.

Solução estruturalmente idêntica pode encontrar-se também no artigo 8. º, n.º 7 do Regime especial aplicável aos fundos de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (FIIAH) e às sociedades de investimento imobiliário para arrendamento habitacional (SIIAH), aprovado pelo artigo 102.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro - Capítulo X, onde se dispõe que ficam isentos do IMT “a) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados exclusivamente a arrendamento para habitação permanente, pelos fundos de investimento referidos no n.º 1; b) As aquisições de prédios urbanos ou de fracções autónomas de prédios urbanos destinados a habitação própria e permanente, em resultado do exercício da opção de compra a que se refere o n.º 3 do artigo 5.º pelos arrendatários dos imóveis que integram o património dos fundos de investimento referidos no n.º 1.

Por fim, também atendendo ao último dos critérios do artigo 7.º, n.º 2 do Código Civil, se dirá que a simples introdução da isenção do artigo 46.º do EBF dificilmente poderá ser interpretada como uma medida de revogação e substituição da isenção criada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro. Por um lado, resulta das considerações precedentes que o artigo 46.º do EBF não veio regular toda a matéria constante do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 1/87. Em rigor, é introduzida uma nova isenção para além da já existente, a qual permanece intocada. Por outro lado, o EBF não tem o monopólio dos benefícios fiscais, podendo os mesmos ser consagrados e subsistir em legislação avulsa. Pense-se, por exemplo, nos benefícios fiscais constantes do Código Fiscal do Investimento.

Não se preenche, por isso, o último dos critérios que, nos termos do artigo 7.º, n.º 2 do Código Civil, sinalizam alternativamente a presença de uma revogação. Com efeito, para além do distinto teor literal, as duas isenções em discussão são estruturalmente diferentes, económica e fiscalmente compatíveis, e, em rigor, complementares. E mesmo que se entenda que o EBF constitui lei geral em matéria de benefícios fiscais, o artigo 7.º, n.º 3 do Código Civil dispõe que “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”. Sendo certo que nenhum dado de facto ou de direito permite discernir uma intenção inequívoca do legislador no sentido da revogação da isenção do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro.

A este respeito, poder-se-á ainda atentar às sucessivas alterações de que foi sendo alvo a norma constante do artigo 46.º do EBF. Com efeito, a redacção do artigo 46.º do EBF foi sofrendo várias vicissitudes e alterações ao longo do tempo, designadamente:

·                a previsão, no artigo 88.º da Lei n.º 53-A/2006, de 31 de Dezembro (LOE de 2007), de um regime transitório para fundos mistos ou fechados em determinadas circunstâncias;

·                a renumeração do artigo 46.º do EBF, que passou a 49.º, efectuada pelo artigo 109.º da Lei n.º 2-B/2010, de 28 de Abril (LOE de 2010), que reserva a isenção do IMT a fundos de investimento imobiliário abertos;

·                a extensão da isenção do IMT a fundos fechados de subscrição pública efectuada pelo artigo 119.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (LOE de 2011);

·                a substituição da isenção de IMT dos prédios integrados em fundos de investimento imobiliário abertos ou fechados de subscrição pública por uma redução para metade das taxas de IMT, operada pelo artigo 206.º da Lei
n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro (LOE de 2014), acompanhada por um regime transitório no artigo 209.º.

Todas as vicissitudes e alterações mencionadas tiveram como objecto a isenção de IMT respeitante a imóveis integrados em fundos imobiliários, tal como consagrada no EBF. Não existe nenhum texto-prova (dicta probandi) que permita concluir que as mesmas se reportavam à isenção – criada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, e factualmente sustentada pela legislação subsequente – para as aquisições de imóveis levadas a cabo por sociedades gestoras de fundos de investimento imobiliário para os mesmos virem a integrar estes fundos.

As isenções em análise são substancial e estruturalmente diferentes e independentes uma da outra, não podendo, de modo algum, ser consideradas contrárias, contraditórias ou logicamente inconciliáveis. E muito menos poderão ser tidas como jurídica e economicamente incompatíveis. Uma conserva a sua utilidade própria independentemente do que venha a suceder à outra.

A introdução e evolução do regime do artigo 46.º (e depois 49.º) do EBF, respeitante à isenção e redução de taxa de IMT para as transacções envolvendo bens imóveis integrados em fundos de investimento imobiliário tem o seu próprio efeito útil e em nada afecta o efeito útil da isenção criada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, em matéria de aquisições de bens imóveis a integrar em fundos imobiliários, pelo que não há nenhum motivo para concluir que a posterior revogou ainda que tacitamente a anterior.

Não admira, por isso, que, em 2009, o Estudo da Política Fiscal, Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal – Subgrupo 3 Tributação do Património, sob a coordenação do Professor Doutor Sidónio Pardal, tenha vindo a concluir pela vigência da isenção da Sisa (IMT) criada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, surgindo o mesmo incluído na lista de Síntese dos Benefícios Fiscais e Desagravamentos Estruturais Vigentes em Sede de IMT e de IMI (a páginas 81). Esta conclusão não foi infirmada por uma recente e criteriosa análise da evolução do regime dos fundos de investimento imobiliário, a qual, pelo contrário, corroborou o entendimento segundo o qual o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, nunca chegou a ser revogado (apesar de se ter contemplado essa hipótese na proposta de lei para o Orçamento do Estado para 2007), pelo que os FII, independentemente da sua tipologia, mantêm a isenção em sede de IMT na aquisição de imóveis[1].

Por tudo o exposto, dúvidas não subjazem de que a isenção de Sisa prevista o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, e que passou a reportar-se ao IMT, nos termos dos artigos 28.º e 31.º do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, que aprovou o CIMT, se mantém, ainda, em vigor, pelo que, estão isentas de IMT as aquisições de bens imóveis efectuadas para um fundo de investimento imobiliário pela sua respectiva sociedade gestora, ou seja, levadas a cabo com o intuito de as mesmas passarem a integrar o próprio fundo.

Ora, o Requerente adquiriu um imóvel, com o intuito de que este integrasse o próprio fundo. Deste modo, a isenção de IMT prevista no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro, é aplicável à transacção, não devendo haver lugar ao pagamento do imposto nem pela celebração do contrato promessa de compra e venda com tradição nem, tão pouco, pela celebração da escritura pública.

Assim, e em conclusão, assiste razão ao Requerente determinando-se a declaração de ilegalidade da liquidação impugnada termos em que procede o pedido com a consequente anulação da liquidação de IMT, com as legais consequências.

Inconstitucionalidade por violação do princípio da irretroactividade da lei fiscal

Alega ainda o Requerente que caso se entenda que o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro já não vigorava na ordem jurídica à data do facto tributário, sempre estaria em vigor a isenção parcial de IMT estabelecida no artigo 49.º do EBM cuja desaplicação por força da interpretação feita pela Requerida do artigo 22.º do CIMT, consubstanciaria uma violação do princípio da segurança jurídica e o princípio da irretroactividade da lei fiscal, enquanto seu corolário.

Tendo este Tribunal dado como procedente o vício de violação de lei invocado pelo Requerente, de desconsideração da norma de isenção constante do Decreto-Lei n.º 1/87, de 3 de Janeiro – que, entende-se, mantém a sua aplicabilidade – fica prejudicado o conhecimento do vício de inconstitucionalidade invocado.

Com efeito, o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pela eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritários tornar desnecessário o conhecimento dos restantes, pois, se fosse sempre necessário conhecer todos os vícios seria irrelevante a ordem do seu conhecimento.

Pelo exposto, procedendo aquele vício de violação de lei, fica prejudicado o conhecimento do vício de inconstitucionalidade.

Juros indemnizatórios

O Requerente pede ainda que seja determinado o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, calculados sobre o montante do imposto e correspondentes juros de compensatórios já pagos.

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até o termo do prazo previsto para execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.

Já nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” mais não é do que o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

A doutrina também tem defendido que se enquadra no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a fixação dos efeitos das suas decisões, nos mesmos termos previstos para a impugnação judicial, designadamente, quanto a condenação em juros indemnizatórios ou a condenação por indemnização por garantia indevida (Cf. Carla Trindade (2016) “Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado”, 121 e Jorge Lopes de Sousa (2013), “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária”, 116).

O pedido de pronúncia relativamente ao direito a juros indemnizatórios versa, então, sobre o imposto indevidamente pago e ainda sobre os juros compensatórios liquidados pela Requerida.

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de IMT, há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que o Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais prevista no artigo 559.º do Código Civil e, actualmente na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT).

 

IV. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

             a)                    Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

            b)                    Declarar a ilegalidade da liquidação de IMT número …;

             c)                    Anular a liquidação de IMT supra referida;

            d)                    Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar ao Requerente juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagou indevidamente até à data do pedido de constituição do tribunal arbitral.

 

V.VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 384.100,96.

VI. CUSTAS

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 6.426,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4 do referido Regulamento.

 

Notifique-se.

Lisboa, 28 de Abril de 2017

 

A Árbitro Presidente

 

(Fernanda Maçãs)

 

O Árbitro Vogal

 

(Jónatas Machado)

 

A Árbitro Vogal

 

(Carla Castelo Trindade)

 

 

 



[1] Aqui segue-se de perto Bruno Rafael Batalha Filipe, em O Regime Fiscal dos Fundos de Investimento Imobiliário, ISCAL, Lisboa, 2016, 30 ss.