Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 535/2022-T
Data da decisão: 2023-09-21  IRS  
Valor do pedido: € 4.028,97
Tema: IRS – Regime fiscal aplicável aos ex-residentes (artigo 12º-A do CIRS); conceito de residente (alíneas a), b), c) e d) do n.º1 do artigo 16.º do CIRS); CDT entre Portugal e o Brasil
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Sumário:

 

 

I. O artigo 12.º-A do Código do IRS estabelece uma medida excecional de caráter automático, não estando a sua aplicação dependente de qualquer ato de reconhecimento por parte da AT. Porém, depende da declaração do sujeito passivo de beneficiar do regime, o que será feito aquando do preenchimento do modelo 3 da declaração de IRS do ano seguinte ao ano de regresso a Portugal.

 

II. O sujeito passivo para beneficiar deste benefício fiscal estabelecido no artigo 12.º -A do CIRS, além de ter sido residente em território português antes de 31 de dezembro de 2015, ter a sua situação tributária regularizada, também terá de não ter sido residente em território português em qualquer dos três anos anteriores ao ano de regresso a Portugal e não ter solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

III. A qualificação de uma pessoa singular como residente fiscal em território português depende da verificação, no ano a que respeitam os rendimentos, de algum dos critérios (“condições) previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 16º do CIRS, e não do facto de se declarar na declaração de IRS, por lapso ou intencionalmente, que se é residente fiscal em Portugal. 

 

IV. O conceito de não residência fiscal em Portugal resulta a contrario do próprio Código do IRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16º do CIRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal.

 

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Pedro Miguel Bastos Rosado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral Singular, decide o seguinte:  

 

I. Relatório

 

1.  A..., casado, contribuinte fiscal ..., residente na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, doravante designado por Requerente, apresentou, em 8 de setembro de 2022, pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a declaração de ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2022.., de 2022-05-24, referente ao ano de 2019, requerendo a anulação da aludida liquidação e a correspondente liquidação de juros compensatórios n.º n.º 2022 ..., assim como o respetivo reembolso do montante pago, acrescido de juros indemnizatórios, sendo Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, doravante também designada por Requerida ou AT.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), em 12 de setembro de 2022, e posteriormente notificado à AT.

 

3. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou, em 2 de novembro de 2022, o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do prazo legal.

 

4. Em 2 de novembro de 2022, as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo arguido qualquer impedimento.

 

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 21 de novembro de 2022.

 

6. Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17.º do RJAT, a Requerida, em 3 de janeiro de 2023, apresentou resposta na qual defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, tendo junto o “processo administrativo” (adiante designado apenas por PA).

 

7. Por despacho de 17 de fevereiro de 2023 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e determinou-se que o processo prosseguisse com alegações escritas facultativas.

 

8. As partes não apresentaram alegações.

 

9. Por despachos de 19 de maio de 2023 e de 19 de julho de 2023, o Tribunal determinou a prorrogação por dois meses do prazo estabelecido no n.º 1 do artigo 21.º do RJAT, ao abrigo do disposto no seu n.º 2.

 

II. Saneamento

 

1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos arts. 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

2. As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

3. O processo não enferma de nulidades.

 

4. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo.

 

5. O Tribunal é competente.

 

III. Matéria de facto

 

1. Factos provados

 

Dão-se como provados os seguintes factos relevantes para a decisão:

 

A) O Requerente tem nacionalidade portuguesa;

 

B) O Requerente foi residente em território português até 2013;

 

C) Entre 22/04/2014 e 09/12/2018, o Requerente trabalhou no Brasil como engenheiro assalariado (trabalho dependente) para a sociedade B... Limitada, com sede e atividade no Brasil;

 

D) O Requerente entregou às autoridades fiscais brasileiras as declarações de Imposto de Renda sobre Pessoa Física (“IRPF”) relativas aos anos de 2014, 2015, 2016, 2017 e 2018;

 

E) Nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente tinha, no cadastro da AT (registo central do número de contribuinte), o domicílio fiscal no estrangeiro;

 

F) Nos anos de 2016, 2017 e 2018, os únicos rendimentos auferidos e declarados pelo Requerente em território português foram rendimentos prediais;

 

G) Nas declarações modelo 3 de IRS relativas aos anos de 2016 e 2018, nas quais o Requerente surge como sujeito passivo B, o Requerente surge mencionado como sendo residente em território português (Continente);

 

H) Em 2019, o Requerente voltou a residir em Portugal;

 

I) Em 20 de maio de 2020, o Requerente apresentou a sua declaração modelo 3 de IRS relativa ao de 2019 (código ...-2019-...), como residente em Portugal, tendo declarado a quantia de € 31.147,22 a título de rendimentos de trabalho dependente obtidos em território português;

 

J) Na declaração anual de rendimentos Modelo 3 de IRS respeitante ao ano de 2019 o Requerente preencheu o quadro 4E do anexo A destinado ao regime fiscal aplicável aos ex-residentes (artigo 12.º-A do CIRS);

 

L) A declaração de IRS do Requerente relativa ao ano de 2019, não foi validada pelo Sistema da AT devido a um erro central (código Z10), que assinala erro na declaração relativo ao "Regime Fiscal ex-residente não permitido - residente em PT nos últimos 3 exercícios";

 

M) O Requerente foi notificado da não validação da sua declaração de IRS relativa ao ano de 2019 por parte da AT;

 

N) A AT não procedeu à liquidação de IRS relativa ao ano de 2019 por entender que o Requerente não efetuou a correção da menção à pretensão de ser tributado segundo o  regime fiscal de ex-residentes, tendo considerado que a sua entrega ficou em falta;

 

O) Em resposta ao seu pedido de fundamentação apresentado, o Requerente foi informado, através do ofício da Direção de Finanças de Lisboa n.º ..., de 31 de março de 2022, que “Consultando a sua situação declarativa, verifica-se que na declaração de IRS relativa ao ano de 2018, ambos os contribuintes que compõem o agregado familiar [a saber, o Requerente e sua cônjuge, C..., titular do número de identificação fiscal ...] estão caracterizados como residentes em território nacional. Esta realidade inviabiliza, portanto, a utilização do benefício em causa [regime dos ex-residentes], uma vez que em 2018 foi considerado residente em território português. Assim, por força da realidade inscrita na declaração de IRS de 2018, não poderá usufruir do regime aplicável a ex-residentes previsto no art.º 12.º-A do CIRS”;

 

P) Na sequência de contactos mantidos com o Serviço de Finanças de Lisboa – ..., o Requerente foi informado que existiam declarações Modelo 3 de IRS respeitantes aos anos de 2016 e de 2018 submetidas em que foi declarado como sendo residente fiscal em Portugal;

 

Q) Em 23 de novembro de 2021, o Requerente foi notificado pela AT que a entrega da sua declaração de IRS do ano de 2019 se encontrava em falta;

 

R) Em 14 de fevereiro de 2022, o Requerente procedeu a novo envio da sua declaração modelo 3 de IRS do ano de 2019 (código ...-2019-...);

 

S) Uma vez mais a declaração modelo 3 de IRS do Requerente não foi validada centralmente pelo sistema informático da AT, devido ao erro central (código Z10), que indica erro na declaração relativo ao "Regime Fiscal ex-residente não permitido - residente em PT nos últimos 3 exercícios", tendo o Requerente sido notificado pela AT dessa situação;

 

T) A AT não procedeu, mais uma vez, à liquidação de IRS relativa ao ano de 2019 por entender que o Requerente não efetuou a correção da menção à pretensão de ser tributado segundo o  regime fiscal de ex-residentes, tendo considerado que a sua entrega ficou em falta;

 

U) Em 10 de maio de 2022, a AT procedeu à emissão de uma declaração oficiosa de fixação de rendimentos, que desconsiderou a aplicação ao Requerente do regime fiscal dos ex-residentes (cf. quadro 4E do anexo A) e da qual o ora Requerente foi legalmente notificado; 

 

V) A liquidação de IRS foi elaborada oficiosamente pela AT nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS;

 

X) Na liquidação de IRS elaborada oficiosamente pela AT não foi considerado o estado civil de casado e os dois dependentes a seu cargo por a AT entender que, sendo o regime regra a tributação separada, a consideração da cônjuge, bem como dos seus dependentes na respetiva declaração, teria de ser efetuada pelo próprio Requerente e não oficiosamente;

 

Z) Na liquidação de elaborada oficiosamente pela AT foi assinalado o campo 03 destinado ao estado civil de solteiro, divorciado ou separado judicialmente;

 

AA) Na sequência da elaboração da declaração oficiosa de IRS relativa ao ano de 2019, a AT emitiu a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) n.º 2022..., de 2022-05-24, nos termos da qual resultou um valor a pagar de €  3.925,74 (três mil, novecentos e vinte e cinco euros e setenta e quatro cêntimos);

 

AB) Na sequência da elaboração da declaração oficiosa de IRS relativa ao ano de 2019, a AT emitiu a liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., nos termos da qual resultou um valor a pagar de € 76,23 (setenta e seis euros e vinte e três cêntimos);

 

AC) Em 6 de julho de 2022, o Requerente efetuou o pagamento das liquidação de IRS e de juros compensatórios, notificadas, no montante global de € 4.028,97 (quatro mil, vinte e oito euros e noventa e sete cêntimos);

 

AD) Em 2019, o Requerente tinha a sua situação tributária regularizada;

 

AE) O Requerente não solicitou a sua inscrição como residente não habitual;

 

AF) Nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente não permaneceu em território nacional mais de 183 dias;

 

AG) Nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente não dispunha em território nacional de habitação em condições que fizessem supor intenção de a manter e ocupar como residência habitual;

 

AH) Em 31 de dezembro dos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente não era tripulante de navios e aeronaves;

 

AI) Nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente não desempenhou no estrangeiro funções ou comissões de caráter público, incluindo as de deputado ao Parlamento Europeu;

 

AJ) Em 8 de setembro de 2022, o Requerente  apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.

 

2. Fundamentação da matéria de facto dada como provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, als. a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT).

 

Os factos provados acima elencados baseiam-se nos documentos juntos pelo Requerente com o pedido de pronúncia arbitral, cuja autenticidade não foi colocada em causa, no processo admnistrativo e nas posições assumidas por ambas as Partes em relação aos factos essenciais, sendo as questões controvertidas estritamente de Direito.

 

3. Factos não provados

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.

 

IV. Matéria de Direito

 

1.  Apreciação do mérito do pedido de pronúncia arbitral

 

1.1. Posições das Partes

 

Para fundamentar o pedido de pronúncia arbitral, o Requerente  alegou, em síntese, o seguinte:

 

- que preenche todos os requisitos para, no ano de 2019, beneficiar do regime fiscal  aplicável a não residentes, nomeadamente, a não residência em território nacional nos três anos anteriores (2016, 2017 e 2018), pelo que deveria ser tributado ao abrigo daquele regime e, consequentemente, beneficiar da exclusão de tributação de 50% dos rendimentos de trabalho dependente auferidos no ano de 2019;

 

- que a declaração elaborada oficiosamente pela AT não teve em consideração o seu estatuto civil de casado e dos dois dependentes a seu cargo, pelo que a subsequente liquidação de IRS está eivada de ilegalidade;

 

- que não são por si devidos quaisquer juros compensatórios;

 

- que tem direito a juros indemnizatórios.

 

Na sua resposta, a AT alegou, em síntese, o seguinte:

 

- que na declaração de IRS relativa ao ano de 2018, ambos os contribuintes que compõem o agregado familiar [o Requerente e sua cônjuge, C..., estão “caracterizados como residentes em território nacional”;

 

-  que “por força da realidade inscrita na declaração de IRS de 2018, não poderá usufruir do regime aplicável a ex-residentes previsto no art.º 12.º-A do CIRS”;

 

- que “por consulta às declarações de IRS, que também no ano de 2016 foi entregue declaração Modelo 3 de IRS na situação de residente em território nacional, tendo apenas sido entregue declaração como não residente no ano de 2017”;

 

- que “tendo o ora Requerente se tornado, de novo, residente em Portugal em 2019, o mesmo não podia ter sido residente em Portugal nos três anos imediatamente anteriores, isto é, 2016, 2017 e 2018, para poder usufruir do regime fiscal previsto para os ex-residentes consagrado no artigo 12.ºA do CIRS, sendo este um critério objetivo”;

 

- que “Tendo sido entregues declarações de IRS respeitantes aos anos de 2016 e 2018 na situação de casado com C..., NIF ..., com opção pela tributação conjunta foi o Requerente considerado e tributado na situação de residente em território nacional naqueles anos.”;

 

- que “o Requerente aquando da entrega das referidas declarações de rendimentos (2016 e 2018), optou pela tributação conjunta, tendo, consequentemente, sido tributado como residente em Portugal, afastando, assim, a presunção decorrente da informação do cadastro, i.e., que o Requerente era não residente em Portugal naqueles anos, pelo que não se verifica o requisito de não ter sido considerado residente em Portugal nos três anos anteriores ao ano em causa”;

 

- que não se verificam os pressupostos para aplicação do regime fiscal previsto para os ex-residentes, nos termos do artigo 12.ºA do CIRS, e consequentemente, não se verificando qualquer ilegalidade na liquidação contestada;

 

 - que não foi considerado o estado civil de casado e os dois dependentes a seu cargo na declaração elaborada oficiosamente “uma vez que a mesma foi elaborada nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 76.º do CIRS, ou seja, de acordo com os elementos conhecidos pela administração tributária”;

 

- que “sendo o regime regra a tributação separada, a consideração da cônjuge bem como dos seus dependentes na respetiva declaração tem de ser efetuada pelo próprio Requerente e não oficiosamente”

 

1.2. Da legalidade da liquidação de IRS contestada

 

A questão central objeto do presente pedido de pronúncia arbitral é a de saber se o Requerente preenche todos os requisitos para, no ano de 2019, para beneficiar do regime fiscal aplicável aos ex-residentes, nomeadamente, a não residência em território nacional nos três anos anteriores (2016, 2017 e 2018), pelo que deveria ser tributado ao abrigo daquele regime e, consequentemente, beneficiar da exclusão de tributação de 50% dos rendimentos de trabalho dependente auferidos no ano de 2019.

 

O Requerente entende que sim.

 

Diversamente, a AT entende que, aquando da entrega das declarações de rendimentos de 2016 e 2018, o Requerente optou pela tributação conjunta, tendo, consequentemente, sido tributado como residente em Portugal, afastando, assim, a presunção decorrente da informação do cadastro, isto é, que o Requerente era não residente em Portugal naqueles anos, pelo que não se verifica o requisito de não ter sido considerado residente em Portugal nos três anos anteriores ao ano em causa.

 

Segundo o Requerente, a sua habitação era no Brasil, país onde trabalhou, entre outros,  naqueles anos de 2016 e 2018, onde auferiu rendimentos do trabalho dependente como engenheiro e onde pagou os impostos equivalentes ao IRS.

 

Além de que, nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente tinha, no cadastro da AT (registo central do número de contribuinte), o seu domicílio fiscal no estrangeiro.

 

Vejamos:

 

Estabelecia o artigo 12º-A do CIRS, na versão em vigor à data dos factos (artigo aditado pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro), sob a epígrafe “Regime fiscal aplicável a ex-residentes”, que:

 

1 - São excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais dos sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 e 2 do artigo 16.º em 2019 ou 2020:

a) Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores;

b) Tenham sido residentes em território português antes de 31 de dezembro de 2015;

c) Tenham a sua situação tributária regularizada.

2 - Não podem beneficiar do disposto no presente artigo os sujeitos passivos que tenham solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

Como foi decidido no Processo n.º de 168/2021-T, de 2021-10-22: “Trata-se de uma norma que, embora inserida no Código do IRS, consubstancia um benefício fiscal automático e temporário, enquanto medida de caráter excecional instituída tendo em vista incentivar o regresso “daqueles que tiveram de sair do país em consequência da crise económica que afetou Portugal”, enquadrada no Programa Regressar (de acordo com as “Medidas Fiscais de Apoio às Famílias” incluídas no Relatório do Orçamento do Estado para 2019 – pág. 42), interesse público extrafiscal, cuja proteção o legislador considerou superior ao da própria tributação que impede. Consagrando uma medida de caráter excecional, também aquela norma do artigo 12.º-A, do Código do IRS, é, ela própria, excecional, na medida em que contraria os efeitos decorrentes das normas de incidência, exonerando os respetivos beneficiários do pagamento de IRS sobre “50% dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais”, nas condições ali definidas”.

 

Para poder beneficiar deste regime excecional de tributação em IRS, dos rendimentos da categoria A, o Requerente teria de cumprir com todos os requisitos estabelecidos no art.º 12-A do CIRS.

 

Assim, o Requerente além de ter sido residente em território português antes de 31 de dezembro de 2015, e ter a sua situação tributária regularizada, também teria de não ter sido residente em território português em qualquer dos três anos anteriores ao ano de regresso a Portugal e não ter solicitado a sua inscrição como residente não habitual.

 

Pelos factos carreados para os autos e dados como provados, é manifesto que o único requisito que a Requerida entende não estar preenchido para poder usufruir deste regime fiscal aplicável a ex-residentes, é apenas o do Requerente “não ter sido considerado residente em território português em qualquer um dos três anos anteriores”, pois entende que, em 2016 e em 2018, o Requerente foi residente fiscal em Portugal, pelo simples facto de ter feito inscrever nas declarações modelo 3 de IRS respeitantes a esses anos a sua qualidade de residente fiscal no continente.

 

Ora, sucede que o artigo 12º-A do CIRS, em especial a correto interpretação a dar à parte sublinhada do requisito “Não tenham sido considerados residentes em território português em qualquer dos três anos anteriores”, não pode deixar de atentar aos critérios da residência previstos no artigo 16º do CIRS.

 

Com efeito, o artigo 16.º do CIRS, sob a epígrafe “Residência”, em vigor à data dos factos, estabelece que:

 

1 - São residentes em território português as pessoas que, no ano a que respeitam os rendimentos:

a) Hajam nele permanecido mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa;

b) Tendo permanecido por menos tempo, aí disponham, num qualquer dia do período referido na alínea anterior, de habitação em condições que façam supor intenção atual de a manter e ocupar como residência habitual;

c) Em 31 de dezembro, sejam tripulantes de navios ou aeronaves, desde que aqueles estejam ao serviço de entidades com residência, sede ou direção efetiva nesse território;

d) Desempenhem no estrangeiro funções ou comissões de carácter público, ao serviço do Estado Português.


2 - Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se como dia de presença em território português qualquer dia, completo ou parcial, que inclua dormida no mesmo.


3 - As pessoas que preencham as condições previstas nas alíneas a) ou b) do n.º 1 tornam-se residentes desde o primeiro dia do período de permanência em território português, salvo quando tenham aí sido residentes em qualquer dia do ano anterior, caso em que se consideram residentes neste território desde o primeiro dia do ano em que se verifique qualquer uma das condições previstas no n.º 1.


4 - A perda da qualidade de residente ocorre a partir do último dia de permanência em território português, salvo nos casos previstos nos n.os 14 e 16.

5 - A residência fiscal é aferida em relação a cada sujeito passivo do agregado.


6 - São ainda havidos como residentes em território português as pessoas de nacionalidade portuguesa que deslocalizem a sua residência fiscal para país, território ou região, sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, no ano em que se verifique aquela mudança e nos quatro anos subsequentes, salvo se o interessado provar que a mudança se deve a razões atendíveis, designadamente exercício naquele território de atividade temporária por conta de entidade patronal domiciliada em território português.


7 - Sem prejuízo do período definido no número anterior, a condição de residente aí prevista subsiste apenas enquanto se mantiver a deslocação da residência fiscal do sujeito passivo para país, território ou região, sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, deixando de se aplicar no ano em que este se torne residente fiscal em país, território ou região distinto daqueles.


8 - Consideram-se residentes não habituais em território português os sujeitos passivos que, tornando-se fiscalmente residentes nos termos dos n.os 1 ou 2, não tenham sido residentes em território português em qualquer dos cinco anos anteriores.


9 - O sujeito passivo que seja considerado residente não habitual adquire o direito a ser tributado como tal pelo período de 10 anos consecutivos a partir do ano, inclusive, da sua inscrição como residente em território português.


10 - O sujeito passivo deve solicitar a inscrição como residente não habitual, por via eletrónica, no Portal das Finanças, posteriormente ao ato da inscrição como residente em território português e até 31 de março, inclusive, do ano seguinte àquele em que se torne residente nesse território. 


11 - O direito a ser tributado como residente não habitual em cada ano do período referido no n.º 9 depende de o sujeito passivo ser considerado residente em território português, em qualquer momento desse ano.


12 - O sujeito passivo que não tenha gozado do direito referido no número anterior em um ou mais anos do período referido no n.º 9 pode retomar o gozo do mesmo em qualquer dos anos remanescentes daquele período, a partir do ano, inclusive, em que volte a ser considerado residente em território português.


13 - Enquadra-se no disposto na alínea d) do n.º 1 o exercício de funções de deputado ao Parlamento Europeu.


14 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, um sujeito passivo considera-se residente em território português durante a totalidade do ano no qual perca a qualidade de residente quando se verifiquem, cumulativamente, as seguintes condições:

a) Permaneça em território português mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, nesse ano; e

b) Obtenha, no decorrer desse ano e após o último dia de permanência em território português, quaisquer rendimentos que fossem sujeitos e não isentos de IRS, caso o sujeito passivo mantivesse a sua qualidade de residente em território português.


15 - O disposto no número anterior não é aplicável caso o sujeito passivo demonstre que os rendimentos a que se refere a alínea b) do mesmo número sejam tributados por um imposto sobre o rendimento idêntico ou substancialmente similar ao IRS aplicado devido ao domicílio ou residência:

a) Noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal e que se preveja a cooperação administrativa no domínio da fiscalidade; ou

b) Noutro Estado, não abrangido na alínea anterior, em que a taxa de tributação aplicável àqueles rendimentos não seja inferior a 60 % daquela que lhes seria aplicável caso o sujeito passivo mantivesse a sua residência em território português.

16 - Um sujeito passivo considera-se, ainda, residente em território português durante a totalidade do ano sempre que volte a adquirir a qualidade de residente durante o ano subsequente àquele em que, nos termos do n.º 4, perdeu aquela mesma qualidade.

 

Além disso, o artigo 4º da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (cfr. Resolução Assembleia da República n.º 33/01 de 27 de Abril), sob a epígrafe “Domicílio fiscal ou residência”, dispõe que:

 

1 — Para efeitos desta Convenção, a expressão «residente de um Estado Contratante» significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar e aplica-se igualmente a este Estado e, bem assim, às suas subdivisões políticas ou administrativas ou autarquias locais.

 

2 — Quando, por virtude do disposto no n.o 1, uma pessoa singular ou física for residente de ambos os Estados Contratantes, a situação será resolvida do seguinte modo:

a) Será considerada como residente apenas no Estado em que tenha uma habitação permanente à sua disposição. Se tiver uma habitação permanente à sua disposição em ambos os Estados, será considerada residente do Estado com o qual sejam mais estreitas as suas relações pessoais e económicas (centro de interesses vitais);

b) Se o Estado em que tem o centro de interesses vitais não puder ser determinado ou se não tiver uma habitação permanente à sua disposição em nenhum dos Estados, será considerada residente apenas do Estado em que permanece habitualmente;

c) Se permanecer habitualmente em ambos os Estados ou se não permanecer habitualmente em nenhum deles, será considerada como residente apenas do Estado de que for nacional;

d) Se for nacional de ambos os Estados ou não for nacional de nenhum deles, as autoridades competentes dos Estados Contratantes resolverão o caso de comum acordo

 

Da matéria de facto dada como provada, e tal nunca foi colocado em causa pela AT, decorre que, nos anos de 2016, 2017 e 2018, o Requerente não permaneceu em território nacional mais de 183 dias, não dispunha em território nacional de habitação em condições que fizessem supor intenção de a manter e ocupar como residência habitual, não era em 31 de dezembro daqueles anos tripulante de navios e aeronaves, nem desempenhava no estrangeiro funções ou comissões de caráter público, incluindo as de deputado ao Parlamento Europeu.

 

Sendo que a residência fiscal se afere em relação a cada individuo, mesmo nos casos em que exista agregado familiar (cf. artigo 16.º, n.º 5, do CIRS).

 

É manifesto que in casu o Requerente não preenchia qualquer um dos critérios previstos no artigo 16.º, n.º 1, do CIRS para ser considerado residente fiscal em Portugal nos três anos anteriores a 2019, isto é, em 2016, 2017 e 2018.

 

A qualificação de uma pessoa singular como residente fiscal em território português depende da verificação, no ano a que respeitam os rendimentos, de algum dos critérios (“condições) previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 16º do CIRS, e não do facto de se declarar na declaração de rendimentos de IRS, por lapso ou intencionalmente, que se é residente fiscal em Portugal.

 

O conceito de não residência fiscal em Portugal resulta a contrario do próprio CIRS, uma vez que todos aqueles que não preencherem um dos critérios de residência fiscal previstos no artigo 16º do CIRS deverão ser considerados não residentes fiscais em Portugal.

 

Na verdade a AT nunca alegou que nos anos em questão o Requerente deveria ser considerado residente fiscal em território nacional por via de algum dos critérios estipulados pelo artigo 16.º, n.º 1, do CIRS.

 

Como bem refere o Requerente, o declarado nas declarações de IRS não é, em si mesmo, um critério que permita estabelecer a residência fiscal em território português, tenha ocorrido um lapso ou até mesmo ser essa a intenção do declarante.

 

Não é aquilo que é declarado pelo sujeito passivo que lhe atribui o estatuto de residente, mesmo que esta declaração tenha sido aceite pelos serviços da AT.

 

Sendo que, no caso dos autos, da própria informação cadastral relativa ao Requerente consta a não residência em Portugal nos três anos anteriores a 2019.

 

Existindo prova suficiente da residência fiscal do Requerente no Brasil nos três anos anteriores a 2019 (2016, 2017 e 2018), incluindo na informação cadastral da AT, a condição prevista na alínea a), do n.º 1, do artigo 12.º-A do CIRS para poder beneficiar do regime aí consagrado está preenchida. Bom como todas as restantes como resulta da matéria de facto dada como provada.

 

Pelo exposto, é assim manifesto que o Requerente não poderá ser considerado residente para efeitos fiscais em Portugal nos anos de 2016 e 2018, nos termos previstos alíneas a), b) c) e d) do nº 1 art. 16.º do CIRS.

 

Na verdade, diga-se en passant, que o conceito de residência assume no Direito Fiscal e, em particular, na tributação do rendimento, uma particular importância.

 

Desde logo, a agora restringindo a análise ao CIRS, a residência é o critério adoptado para estabelecer o âmbito de aplicação do IRS, sendo os residentes sujeitos a um princípio de tributação de base mundial por contraposição com os não residentes, que apenas são sujeitos a tributação relativamente aos rendimentos obtidos em Portugal (cf. art. 15.º do CIRS).

 

Se o critério previsto na alínea a) do nº 1 do artº 16º do CIRS se cinge à presença física (corpus), em Portugal, considerando residentes os indivíduos que ‘permaneçam mais de 183 dias, seguidos ou interpolados, em qualquer período de 12 meses com início ou fim no ano em causa’, já a alínea b), exigindo uma ligação física menos qualificada, uma permanência inferior, impõe uma análise casuística que permita, ainda assim, assegurar que existe uma conexão efetiva relevante com o território português.

Esta conexão tem-se por verificada através de um elemento subjetivo mediato, a intenção de ser residente (animus), que deve ser analisado numa perspetiva objetiva, isto é, através de elementos imediatos que permitam a reconstrução da vontade do indivíduo a partir dos indícios por si revelados.

 

Centrando-nos, agora, na alínea b) do n.º 1 do art. 16.º do CIRS, refere-se usualmente que a referida norma impõe três requisitos, de cuja verificação cumulativa depende a qualificação como residente, no ano a que respeitam os rendimentos:

 

(i) a permanência em Portugal;

(ii) a disposição de uma habitação; e

(iii) a verificação de condições que façam supor que a habitação será mantida e ocupada como residência habitual.

 

No que respeita à permanência em Portugal, não será necessário discorrer sobre a verificação desde requisito, já que nem sequer se discute se o Requerente permaneceu em Portugal mais de 183 dias, estando no entanto provado que foi no Brasil onde permaneceu mais de 183 dias em cada um dos anos fiscais relevantes.

 

O certo, porém, é que dispondo o Requerente de uma habitação arrendada no Brasil, nem sequer a AT alegou que o Requerente dispunha de uma habitação em Portugal.

 

Mesmo admitindo que o imóvel que esteve arrendado nos anos de 2016 a 2018 foi, em parte desses anos, utilizado pelo Requerente, o certo é que a intenção que se pretende aferir na alínea b) do n.º 1 do art. 16.º do CIRS não é uma intenção de, no futuro, ocupar, ou não, a habitação como residência habitual, mas sim, como refere MANUEL FAUSTINO uma intenção atual (Vd. Manuel Faustino, “Os residentes…op. cit.”p. 125), que deve ser aferida mediante manifestações externas dessa vontade. (sublinhado nosso)

 

Importa assim atender à intenção atual do Requerente que permitam supor uma presença qualificada em Portugal, e não uma permanência passageira.

 

Sobre a questão do “domicilio fiscal” em Portugal no cadastro (registo central do número de constribuinte):

 

Invocar o estatuto de residente do sujeito passivo em Portugal, nos anos de 2016 a 2018, em que comprovadamente residia e trabalhava no Brasil, apenas no conceito de domicílio fiscal e com base no declarado nos modelos 3 de IRS, e com base nisso afastar a própria presunção do no cadastro fiscal, sem atender à realidade material do caso, afigura-se frágil, e alheado da suprema missão, que é também a da AT, da busca da verdade material com recurso ao princípio do inquisitório, que já abordamos infra e que se impunha nos termos da lei.

 

Nos termos do artigo 19.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT), o domicílio fiscal do sujeito passivo é – para as pessoas singulares – o local da sua residência habitual.

 

De acordo com o mesmo artigo 19.º, da LGT, é obrigatória a comunicação do domicílio à AT e é ineficaz a respetiva mudança enquanto a mesma não lhe for comunicada.

 

Todavia, retirar daí, como consequência, que o contribuinte que não atualizou ou comunicou a alteração do seu domicílio, fica, por essa razão, sujeito ao estatuto de residente fiscal, é ultrapassar o previsto na lei, seja na sua letra, seja no seu espírito.

 

É que da própria letra da lei decorre que o conceito de domicílio fiscal não pode ser entendido como sinónimo de residência, ou sequer, sem mais, de residência habitual.

 

Ou seja, a “distinção fundamental entre os conceitos jurídicos de residência e domicílio reside no facto de a residência integrar as normas fiscais substantivas, as quais, por sua vez, determinam a existência e a extensão do poder de tributar, enquanto o domicílio fiscal determina a competência territorial dos órgãos da administração fiscal e dos tribunais administrativos e fiscais, sendo, no caso da administração fiscal, o local onde os contribuintes podem ser contactados” (vd. Helena Gomes Magno, “A Residência Fiscal das Pessoas Singulares”, Porto, 2019, p. 32).

 

E, como ensina Rui Duarte Morais, “A questão de saber se alguém é ou não residente em Portugal é independente da do domicílio fiscal. Aquele que efetivamente transferiu a sua residência para o estrangeiro não pode mais ser considerado residente em Portugal, mesmo que nos registos da administração fiscal continue a figurar como domiciliado em Portugal (mesmo que por omissão dele, sujeito passivo, em promover a necessária alteração).

 

Assim, antecipando que, no direito tributário internacional, a residência e o domicílio são conceitos que não se confundem com o conceito de direito interno, acompanhamos igualmente as conclusões do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul 803/05.0BESNT, de 08-07-2021, que aqui se reproduz parcialmente:

 

Assim, considerar-se-á como residente em território nacional, para efeitos de tributação, quem se encontre em qualquer das situações enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS.

O conceito de “não residente” apura-se a contrario, devendo considerar-se como tal quem não se encontre em qualquer das situações previstas no n.º 1 e 2 do artigo 16.º do CIRS.

Saber de alguém é ou não residente em Portugal não está dependente do domicílio fiscal, por este não constituir, no plano internacional, qualquer presunção de residência.”

 

E, assim, em conclusão, não estão consequentemente verificadas condições que façam supor que o prédio urbano arrendado sito em Portugal tenha sido mantido e ocupado pelo Requerente como residência habitual, não estando, por isso, preenchido o critério previsto na alínea b) do nº 1 do artº 16º do CIRS.

 

Mas, atente-se:

 

Mesmo que se verificassem as condições que fizessem supor que o prédio arrendado sito em Portugal teria sido mantido e ocupado, em períodos determinados, como residência habitual, a posição defendida pela AT, para suportar a legalidade das liquidações de IRS em crise, nunca poderia ter vencimento.

 

É que a razão de ser das Convenções sobre Dupla Tributação (CDT) funda-se precisamente na circunstância de vários Estados soberanos terem considerado que as aplicações unilaterais das suas normas fiscais consubstanciam uma potencial fonte de conflitos.

 

A CDT entre Portugal e o Brasil procura resolver situações de dupla residência, em que alguém tem “contactos prolongados com mais de uma ordem jurídica” (vd. J. L. Saldanha Sanches, “Manual de Direito Fiscal”, Coimbra, 2007, pp. 339-340), através de diversas regras especiais (de desempate) cuja aplicação determinará a residência em apenas um dos Estados que reclamam a residência fiscal de um determinado sujeito passivo.

 

Como se referiu, a própria natureza dos rendimentos auferidos, trabalho assalariado ou dependente, auferidos numa base mensal durante a maior parte dos anos fiscais em causa, permitem ao Tribunal concluir, sem margem para dúvidas, que o Requerente era residente no Brasil, e aí habitava para desenrolar a sua atividade profissional laboral.

 

Nos termos do artigo 8.º n.º 2 da CRP as normas constantes das convenções internacionais regularmente ratificadas vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português não podendo por tal razão uma qualquer norma interna.

 

E caso subsistissem quaisquer dúvidas à AT, a comprovação da residência nos termos por si pretendidos poderia ser feita com facilidade através de meios especialmente vocacionados para a troca das informações necessárias para aplicar as CDT, previstos expressemente no seu artigo 26º da CDT Portugal-Brasil. 

 

Aliás, a fórmula utilizada na CDT Portugal-Brasil relativamente à «troca de informações», aponta no sentido da imperatividade da obtenção das informações necessárias para as aplicar.

 

No caso da CDT entre Portugal e o Brasil, o artigo 26.º estabelece o seguinte, sobre a «Troca de Informações»: 

 

1 — As autoridades competentes dos Estados Contratantes trocarão entre si as informações necessárias para aplicar esta Convenção ou as leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos por esta Convenção, na medida em que a tributação nelas prevista não seja contrária a esta Convenção, em particular para prevenir a fraude ou a evasão desses impostos. A troca de informações não é restringida pelo disposto no artigo 1.o As informações obtidas por um Estado Contratante serão consideradas secretas, do mesmo modo que as informações obtidas com base na legislação interna desse Estado, e só poderão ser comunicadas às pessoas ou autoridades (incluindo tribunais e autoridades administrativas) encarregadas do lançamento, cobrança ou administração dos impostos abrangidos por esta Convenção, ou dos procedimentos declarativos, executivos ou punitivos relativos a estes impostos, ou da decisão de recursos referentes a estes impostos. Essas pessoas ou autoridades utilizarão as informações assim obtidas apenas para os fins referidos. As autoridades competentes, mediante consultas, determinarão as condições, os métodos e as técnicas apropriadas para as matérias com respeito às quais se efectuarão as trocas de informações, incluídas, quando procedentes, as trocas de informações relativas à evasão fiscal.

 

2 — A autoridade competente de um Estado Contratante poderá enviar à autoridade competente do outro Estado Contratante, independentemente de prévia solicitação, a informação que possua quando:

a) Tiver motivos para supor que houve pagamento a menos de imposto resultante da transferência artificial de lucros dentro de um grupo de empresas;

b) Do uso de informações anteriormente recebidas do outro Estado Contratante, surgirem novos dados ou antecedentes que sejam de utilidade para a tributação nesse outro Estado Contratante;

c) Qualquer outra circunstância leve à suposição de existência de perda de receitas para o outro Estado Contratante.

 

3 — A autoridade competente de um Estado Contratante fornecerá à autoridade competente do outro Estado Contratante, anualmente, mediante prévia identificação dos contribuintes, ou poderá fornecer, mesmo sem a sua prévia identificação, as seguintes informações normalmente prestadas pelos contribuintes:

a) Informações respeitantes aos lucros obtidos no seu território por pessoas jurídicas ou estabelecimentos estáveis aí situados, a remeter à autoridade competente do Estado Contratante onde esteja domiciliada a pessoa jurídica associada ou a matriz ou sede;

b) Informações sobre os lucros declarados por pessoas jurídicas domiciliadas no primeiro Estado Contratante relativos às operações desenvolvidas no outro Estado Contratante por pessoas jurídicas associadas ou estabelecimentos estáveis;

c) Qualquer outro tipo de informação que acordem trocar.

 

4 — A autoridade competente do Estado Contratante requerido poderá autorizar os representantes do Estado Contratante requerente a terem acesso ao primeiro Estado mencionado para os fins de presenciarem, na condição de observadores, a inquirição de pessoas e o exame de livros e registos que sejam realizados pelo Estado requerido.

 

5 — Os Estados Contratantes poderão consultar-se a fim de determinar os casos e procedimentos para a fiscalização simultânea de impostos. Considera-se fiscalização simultânea, para efeitos desta Convenção, um entendimento entre os Estados Contratantes para fiscalizar simultaneamente, cada um em seu território, a situação tributária de uma pessoa ou pessoas que possuam interesses comuns ou associados, a fim de trocar as informações relevantes que obtenham.

 

6 — O disposto nos números anteriores nunca poderá ser interpretado no sentido de impor a um Estado Contratante a obrigação:

a) De tomar medidas administrativas contrárias à sua legislação ou à sua prática administrativa ou às do outro Estado Contratante;

b) De fornecer informações que não possam ser obtidas com base na sua legislação ou no âmbito da sua prática administrativa normal ou nas do outro Estado Contratante;

c) De transmitir informações reveladoras de segredos ou processos comerciais, industriais ou profissionais, ou informações cuja comunicação seja contrária à ordem pública.

 

7 — Para os fins de mútua assistência e recíproco conhecimento em matéria de política fiscal e sistemas tributários de ambos os Estados Contratantes, as respectivas autoridades competentes poderão consultar-se mutuamente e promover o intercâmbio de pessoal qualificado, informações, estudos técnicos e sobre organização administrativa fiscal.

 

Os termos imperativos do n.º 1 do artigo 26.º da CDT não parecem deixar margem para dúvidas de que a troca de informações é obrigatória desde que elas sejam “necessárias para aplicar esta Convenção ou as leis internas dos Estados Contratantes relativas aos impostos abrangidos por esta Convenção, na medida em que a tributação nelas prevista não seja contrária a esta Convenção, em particular para prevenir a fraude ou a evasão desses impostos“.

 

Neste sentido veja-se a decisão do Processo 769/2020-T do CAAD:

diga-se, ainda, que a actuação  da Administração Tributária está subordinada ao princípio do inquisitório e da busca da verdade material, enunciado no artigo 58.º da LGT, que impõe à Administração Tributária o dever de «no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido».

À face deste princípio, a Administração Tributária não tem só a possibilidade, mas sim o dever de efectuar as diligências tendentes a obter as informações permitidas pelas CDT, o que se justifica acentuadamente por se tratar de um meio de prova especialmente qualificado, equiparado às próprias informações da Administração Tributária portuguesa (artigo 76.º, n.ºs 1 e 4 , da LGT).

Assim, numa perspectiva que tenha em mente a unidade do sistema jurídico (como impõe o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil), que pressupõe a sua coerência, a observância dos deveres decorrentes do princípio do inquisitório não é dispensada quando está em causa o accionamento das CDT, antes é por estas pressuposta, sendo essa a finalidade primacial da previsão da possibilidade de troca de informações entre as administrações tributárias. (…)

(…) Com efeito, como se referiu, mesmo quando a lei estabelece que o ónus da prova recai sobre o contribuinte, a Administração Tributária não está dispensada de «realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido» (artigo 58.º da LGT).  As regras do ónus da prova, no procedimento tributário, não têm o alcance de dispensar a Administração Tributária do cumprimento deste dever, mas apenas de estabelecer contra quem deve ser proferida a decisão no caso de, no final do procedimento, ficar com uma dúvida insanável sobre qualquer ponto da matéria de facto. O funcionamento destas regras, assim, ocorre apenas quando, após a actividade necessária para a adequada fixação da matéria de facto, directamente a partir dos meios de prova e indirectamente com base na formulação de juízos de facto, se chega a uma situação em que não se apurou algum ou alguns dos factos que relevam para a decisão que deve ser proferida. Nestes casos, por força das regras do ónus da prova, devem decidir-se os pontos em que se verifique tal dúvida contra a parte que tem o ónus da prova. (   ). Assim, no procedimento tributário (  ), o princípio do inquisitório, enunciado neste artigo 58.º da LGT, situa-se a montante do ónus de prova (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21-10-2009, processo n.º 0583/09), só operando as regras do ónus da prova quando, após o devido cumprimento daquele princípio, se chegar a uma situação de dúvida (non liquet) sobre os factos relevantes para a decisão do procedimento tributário, situação esta em que a matéria de facto é decidida contra a parte a quem é imposto tal ónus.

De resto, o dever de utilização de todos os meios de prova necessários resulta claramente de do artigo 50.º do CPPT que estabelece que «no procedimento, o órgão instrutor utilizará todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários ao correcto apuramento dos factos ...», independentemente de o ónus da prova recair ou não sobre o contribuinte, norma esta que está em sintonia com o artigo 72.º da LGT que estabelece que o «órgão instrutor pode utilizar para o conhecimento dos factos necessários à decisão do procedimento todos os meios de prova admitidos em direito».

As expressões “todas as diligências necessárias», «todos os meios de prova admitidos em direito» e «todos os meios de prova legalmente previstos que sejam necessários», utilizadas nos artigos 26.º e 72.º da LGT e 50.º do CPPT, não dão margem para interpretação restritiva quanto aos deveres de realização de diligências que a lei impõe à Administração Tributária e à não restrição dos meios de prova que deve utilizar.

Não há qualquer norma das CDT que afaste este dever que é imposto generalizadamente à Administração Tributária em todos os procedimentos tributários e é exigido para assegurar a concretização dos princípios constitucionais da prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, da justiça e da igualdade (artigo 266.º da CRP) que não se compatibilizam com a imposição de tributação em situações em que não se verificam os pressupostos substantivos da sua aplicação. Aliás, precisamente em situações deste tipo o Supremo Tribunal Administrativo, independentemente da apresentação ou não de formulário, várias vezes afirmou a preponderância da situação substantiva).”

 

Pelo exposto, a actuação da AT subjacente  à liquidação impugnada enferma igualmente de vício de violação do princípio do inquisitório e de erro de interpretação do artigo 26.º, n.º 1, da CDT entre Portugal e o Brasil.

 

Assim, e sem necessidade de maiores considerações, impõe-se concluir ser manifestamente errónea a interpretação da Requerida da alínea a) do nº 1 do artigo 12º-A  e das alíneas a), b), c) e d) do nº 1 do artigo 16.º, ambos do CIRS, do artigo 4.º e do artigo 26.º, n.º 1, ambos da CDT entre Portugal e o Brasil e vício de violação do princípio do inquisitório, enfermando o acto de liquidação de IRS em crise de erro nos pressupostos de facto e direito.

 

Por conseguinte, no ano de 2019, o Requerente tinha direito a ser tributado segundo o regime fiscal aplicável aos ex-residentes, estabelecido no artigo 12º-A do CIRS, por reunir todas as condições aí previstas.

 

Sendo que da aplicação de tal regime resulta que são “excluídos de tributação 50 % dos rendimentos do trabalho dependente e dos rendimentos empresariais e profissionais”.

 

Tendo o Requerente declarado ter auferido, no ano de 2019, a quantia de € 31.147,22 a título de rendimentos do trabalho dependente, e tendo tais rendimentos sido considerados na íntegra na liquidação oficiosa de IRS em crise, é manifesto que apenas 50% dos rendimentos do trabalho dependente deveriam ter sido tributados.

 

Quanto à questão de na liquidação de IRS elaborada oficiosamente pela AT não ter sido considerado o estado civil de casado do Requrente e os dois dependentes a seu cargo, entende também o Tribunal que ao Requerente assiste razão.

 

Na liquidação de IRS elaborada oficiosamente pela AT não foi considerado o estado civil de casado e os dois dependentes a seu cargo por a AT entender que, sendo o regime regra a tributação separada, a consideração da cônjuge, bem como dos seus dependentes na respetiva declaração, teria de ser efetuada pelo próprio Requerente e não oficiosamente.

 

Como resulta da matéria de facto dada como provada:

 

- Em 20 de maio de 2020, o Requerente apresentou a sua declaração modelo 3 de IRS relativa ao de 2019 (código ...-2019-...).

 

- A declaração de IRS do Requerente relativa ao ano de 2019, não foi validada pelo Sistema da AT devido a um erro central (código Z10), que assinala erro na declaração relativo ao "Regime Fiscal ex-residente não permitido - residente em PT nos últimos 3 exercícios".

 

- o Requerente foi notificado da não validação da sua declaração de IRS relativa ao ano de 2019 por parte da AT.

 

- A AT não procedeu à liquidação de IRS relativa ao ano de 2019 por entender que o Requerente não efetuaou a correção da menção à pretensão de ser tributado segundo o  regime fiscal de ex-residentes, tendo considerado que a sua entrega ficou em falta.

 

Ora, como atrás se viu, entende o Tribunal que, tendo o Requerente apresentado a sua declaração de IRS modelo 3 dentro do prazo legal e tendo indicado na mesma o seu estado civil de “casado”  e o facto de ter dois dependentes, seus filhos, factos que nunca foram impugnados pela Requerida, a liquidação de IRS deveria também ter considerado essa sua situação pessoal para efeito das deduções legais aplicáveis, não se aceitando as considerações da AT de que tal declaração não foi validada e ficou em falta, desde logo, porque tal decorreu do entendimento da AT (do seu “sistema informático”) de que o Requerente não poderia beneficiar do regime fiscal aplicável aos ex-residentes.

 

Impunha-se à AT um comportamento diverso, e, diga-se, legal, sem prejuízo de, após a apresentação da declaração de IRS modelo 3 pelo Requerente, exigir-se ao mesmo a apresentação de eventuais comprovativos da sua situação pessoal declarada.

 

Pelo exposto, a actuação da AT subjacente  à liquidação impugnada enferma igualmente de vício de violação, nomeadamente das normas relativas às deduções à coleta em sede de IRS, nomeadamente o artigo 78º do CIRS.

 

Todos estes vícios justificam a declaração da sua ilegalidade e consequente anulação da liquidação de IRS impugnada, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

Sucede que o Requerente pede que a liquidação de IRS deve ser totalmente anulada, pois solicita o reembolso do montante global por si pago.

 

A questão agora a decidir é se a anulação da liquidação de IRS nº 2022..., de 2022-05-24, referente ao período de tributação de 2019, deverá ser total ou apenas parcial.

 

Como ficou dito no Acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 2018, proferido no processo n.º 888/05.9BEPRT, «de forma a compreender se o acto de liquidação deve ser total ou parcialmente anulado, o recente Acórdão deste Supremo Tribunal proferido a 12 de Julho de 2017 no Processo n.º 0636/17 [ora invocado como acórdão fundamento] reitera que “há que determinar o tipo de ilegalidade que o inquina e analisar se ela é susceptível de o afectar no seu todo, caso em que ele tem de ser integralmente anulado”». …”.

 

Com esta base para a nossa análise, temos que o critério para determinar se o acto deve ser total ou parcialmente anulado passa por determinar se a ilegalidade afecta o acto tributário no seu todo, caso em que o acto deve ser integralmente anulado, ou se apenas em parte, caso em que se justifica a anulação parcial.

 

O Supremo Tribunal Administrativo, no Acórdão uniformizador de 09-12-2020, processo n.º 75/20.6BALSB, embora não se pronuncie expressamente sobre a questão, aceitou a anulação parcial ao não alterar a decisão arbitral proferida no processo n.º 846/2019-T, em, que se decidira anular a liquidação aí impugnada «na parte correspondente ao acréscimo de tributação resultante da consideração total da mais-valia imobiliária».

 

Sendo um acórdão uniformizador, é de seguir essa jurisprudência, pelo que será de anular a liquidação, na parte em que não excluiu de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e não considerou o estado civil de casado e os dois dependentes a cargo do Requerente.

 

Na verdade, estando em causa a mera redução da base de incidência do imposto, a aplicação da mesma tabela de taxas gerais e a consideração do estado civil de casado e os dois dependentes a cargo do Requerente, justifica-se, face ao princípio da economia processual, a anulação parcial da liquidação de IRS impugnada.

 

 

1.3. Da legalidade da liquidação de juros compensatórios

 

O Requerente pede a anulação da liquidação de juros compensatórios n.º 2022..., no montante de € 76,23 (setenta e seis euros e vinte e três cêntimos).

 

Como resulta da matéria de fato dada como provada, sendo que a própria Requerida expressamente aceita:

 

- Em 20 de maio de 2020, o Requerente apresentou a sua declaração modelo 3 de IRS relativa ao de 2019 (código ...-2019-...).

 

- A declaração de IRS do Requerente relativa ao ano de 2019, não foi validada pelo Sistema da AT devido a um erro central (código Z10), que assinala erro na declaração relativo ao "Regime Fiscal ex-residente não permitido - residente em PT nos últimos 3 exercícios".

 

- o Requerente foi notificado da não validação da sua declaração de IRS relativa ao ano de 2019 por parte da AT.

 

- A AT não procedeu à liquidação de IRS relativa ao ano de 2019 por entender que o Requerente não efetuaou a correção da menção à pretensão de ser tributado segundo o  regime fiscal de ex-residentes, tendo considerado que a sua entrega ficou em falta.

 

Estabelece o nº 1 do artigo 91º do CIRS, sob a epígrafe “Juros compensatórios”, que:

 

Sempre que, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária, acrescem ao montante do imposto juros compensatórios nos termos do artigo 35.º da lei geral tributária.

 

Por sua vez, dispõem, na parte que aqui interessa, os números 1, 3, 6 e 8 do artigo 35º da LGT, sob a epígrafe “Juros compensatórios”, que:

 

1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.

3 - Os juros compensatórios contam-se dia a dia desde o termo do prazo de apresentação da declaração, do termo do prazo de entrega do imposto a pagar antecipadamente ou retido ou a reter, até ao suprimento, correcção ou detecção da falta que motivou o retardamento da liquidação.

6 - Para efeitos do presente artigo, considera-se haver sempre retardamento da liquidação quando as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais.

8 - Os juros compensatórios integram-se na própria dívida do imposto, com a qual são conjuntamente liquidados.

 

A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a respectiva liquidação de IRS e pressupõe que o retardamento da liquidação ocorra por facto imputável ao sujeito passivo e sempre que “as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais” .

 

Tendo o Requerente apresentado a sua declaração modelo 3 de IRS dentro do prazo legal (20 de Maio de 2020), e só não tendo a mesma sido validada porque a AT entendeu que existiu erro na declaração relativo ao "Regime Fiscal ex-residente não permitido - residente em PT nos últimos 3 exercícios",  tendo considerado que a sua entrega ficou em falta, o que veio a originar a liquidação oficiosa de IRS e a correspondente liquidação de juros compensatórios, entende o Tribunal que, atendendo ao pressuposto subjacente à liquidação e ao momento do início da contagem desses juros, se impõe, nesta situação, a anulação total da liquidação de juros compensatórios impugnada nº 2022..., por não serem devidos, independentemente da anulação apenas parcial da liquidação do imposto n.º 2022..., de 2022-05-24, referente ao período de tributação de 2019.

 

1.4. Do pedido de restituição da quantia paga e de juros indemnizatórios

 

O Requerente formula pedido de restituição da prestação tributária paga a título de IRS de 2019 e juros compensatórios no montante total de € 4.028,97, acrescida de juros indemnizatórios.

 

A AT defende que, não sendo ilegal a liquidação de IRS contestada, os pedidos deverão ser julgados improcedentes.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

 

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

 

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

Por outro lado, dependendo o direito a juros indemnizatórios do direito ao reembolso de quantias pagas indevidamente, que são a sua base de cálculo, está ínsita na possibilidade de reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a possibilidade de apreciação do direito à restituição dessas quantias.

 

Cumpre, assim, apreciar o pedido de reembolso dos montantes indevidamente pagos e de pagamento de juros indemnizatórios.

 

Pelo que se referiu, o pedido de pronúncia arbitral procede apenas parcialmente quanto à liquidação de IRS n.º 2022..., de 2022-05-24, referente ao ano de 2019, na parte em que não excluiu de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e não considerou o estado civil de casado e os dois dependentes a cargo do Requerente.

 

Já no que respeita ao pedido de anulação da liquidação de juros compensatórios, o pedido de  pronúncia arbitral procede totalmente.

 

Ao serem excluídos de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente auferidos pelo Requerente, ao ser considerado o estado civil de casado e os dois dependentes a cargo do Requerente, resulta manifesto que, após a aplicação das taxas gerais e depois das deduções legais, o imposto apurado relativamente à liquidação de IRS seria inferior, a que acresce o necessário reembolso do montante dos juros compensatórios.

 

Por isso, o Requerente tem o direito de ser reembolsada da quantia liquidada em excesso pela AT e indevidamente paga, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado».

 

A ilegalidade das referidas liquidações é imputável à AT, pois emitiu-as por sua iniciativa, com errada interpretação da lei, erro nos pressupostos de facto e de direito.

 

Consequentemente, o Requerente tem direito a juros indemnizatórios, nos termos dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, relativamente à quantia que for determinada em execução desta decisão arbitral

 

Os juros indemnizatórios serão pagos desde a data em que o Requerente efectuou o pagamento até ao integral pagamento do montante que deve ser reembolsado, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

V. Decisão

 

Em face do exposto, o Tribunal Arbitral decide:

 

A) Julgar procedente o presente pedido de pronúncia arbitral quanto à declaração de ilegalidade e a consequente anulação parcial do ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 2022..., de 2022-05-24, referente ao período de tributação de 2019, na parte em que não excluiu de tributação 50% dos rendimentos do trabalho dependente e não considerou o estado civil de casado e os dois dependentes a cargo do Requerente.

 

B) Julgar totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral quanto à declaração de ilegalidade e a consequente anulação total do ato de liquidação de juros compensatórios n.º 2022 ... .

 

C) Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a reembolsar o Requerente da quantia que for determinada em execução desta decisão arbitral.

 

D) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao reconhecimento do direito a juros indemnizatórios a favor do Requerente, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar ao Requerente  a quantia que for liquidada em execução da presente decisão arbitral, a contar sobre o valor do imposto a restituir, desde a data em que foi efetuado o pagamento (6 de julho de 2022) até à data de emissão do reembolso, à taxa legal supletiva.

 

E) Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira AT nas custas do processo nos termos do decidido em VII, por ter dado causa às liquidações ilegais.

 

VI. Valor do Processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2, e 297.º, n.º 2 do C.P.C., do artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do C.P.P.T. e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 4.028,97 (quatro mil, vinte e oito euros e noventa e sete cêntimos), atribuído pelo Requerente, sem contestação da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

VII. Custas

 

De acordo com o previsto nos artigos 22.º, n.º 4, e 12.º, n.º 2, do RJAT, no artigo 2.º, no n.º 1 do artigo 3.º e nos n.ºs 1 a 4 do artigo 4.º do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, bem como na Tabela I anexa a este diploma, fixa-se o valor global das custas em € 612,00 (seiscentos e doze euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

 

Lisboa, 21 de setembro de 2023

 

O Árbitro,

 

 

 

Pedro Miguel Bastos Rosado