Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 128/2020-T
Data da decisão: 2021-10-12  IRC IVA  
Valor do pedido: € 72.924,06
Tema: IRC/IVA: Regularização na pendência de procedimento inspectivo; Fundamentação e fundamento das liquidações.
Versão em PDF

SUMÁRIO:

Regularizada a situação tributária na pendência de processo de inspecção tributária, por meio da apresentação de declarações de substituição e periódicas, nos termos para os quais o projecto de relatório da inspecção apontava, a fundamentação e os fundamentos dos actos de liquidação subsequentes, assentam nas declarações apresentadas, e não no projecto de relatório da inspecção.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 26 de Fevereiro de 2020, A..., contribuinte n.º..., e B..., contribuinte n.º..., residentes na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... ..., apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando:

a)            a declaração de ilegalidade das demonstrações de liquidação de IRS n.º 2019 ... e n.º 2019..., da demonstração de acerto de contas n.º 2019... e n.º 2019..., da demonstração de juros compensatórios n.º 2019..., n.º 2019..., n.º 2019 ... e n.º 2019..., relativas aos anos de 2015 e 2016, respetivamente, no montante total de € 35.226,21 (trinta e cinco mil, duzentos e vinte e seis euros e vinte e um cêntimos);

b)           a declaração de ilegalidade das liquidações de IVA relativas aos quatro trimestres dos anos de 2015 e 2016 e respetivos juros compensatórios, no montante de € 18.303,31 e € 19.394.54, num total de € 37.697,85 (trinta e sete mil seiscentos e noventa e sete euros e oitenta e cinco cêntimos),

perfazendo o valor global de € 72.924,06 (setenta e dois mil, novecentos e vinte e quatro euros e seis cêntimos),

c)            assim como, a declaração de ilegalidade das decisões de indeferimento das reclamações graciosas que tiveram os referidos actos de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido, alegam os Requerentes, em síntese, o seguinte:

i.             a ordem de serviço n.º OI2016... de 14-11-2016 é ilegal por ter sido ultrapassado o período do procedimento inspectivo, sem que tenha sido suspenso ou fundamentado por superior hierárquico a sua continuidade;

ii.            vício de forma por falta de fundamentação;

iii.           erro sobre os pressupostos de facto e de direito;

iv.           ausência de fundamentação da liquidação de juros compensatórios.

 

3.            No dia 27-02-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 06-07-2020, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020.

 

7.            No dia 25-09-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pela Requerida, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações determinadas nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

 

11.          Os Requerente pedem a cumulação de pedidos respeitante à declaração de «ilegalidade dos actos liquidatários de IRS de 2015 e 2016, bem como dos actos de indeferimento das Reclamações Graciosas, por se encontrarem preenchidos, in casu, os requisitos de que depende tal cumulação nos termos do n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, a saber: o pedido de pronúncia ora formulado, e a respectiva procedência, depende da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito, como, de resto, se concluirá no presente Requerimento. ».

 

12.          Mais referindo quanto a esta matéria que «4. De facto, os actos liquidatários vêm precedidos de um mesmo relatório de inspecção e a apreciação da respectiva ilegalidade depende da aplicação das mesmas normas jurídicas como aqui ficará demonstrado.»

 

13.          Ora, a cumulação de pedidos, embora não tenha sido suscitada a sua ilegalidade por parte da Requerida, consubstancia uma exceção dilatória atípica, de conhecimento oficioso, a qual deverá ser apreciada e decidida, pelo presente tribunal arbitral.

 

14.          Assim, desde já se refira que, ao contrário do sustentado pelos Requerentes, a cumulação de pedidos não se prende com a apreciação da ilegalidade dos atos tributários (IRS 2015 e 2016) e a ilegalidade da decisão de indeferimento das Reclamações Graciosas, atendendo a que aquele é o pedido mediato, e este o imediato,

 

15.          … mas com o pedido de ilegalidade dos atos tributários de IRS dos anos de 2015 e 2016 e a ilegalidade dos atos tributários de IVA, dos quatro trimestres dos anos de 2015 e 2016.

 

16.          A cumulação de pedidos entre tributos como os em referência nos presentes autos (IRS/IVA) tem vindo a ser considerada, pela jurisprudência do Tribunal Arbitral, ilegal, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 3.º do RJAT, em virtude de a pretensão de anulação inerente a cada um deles assentar em normas próprias.

 

17.          Contudo, no caso em apreço, entende o presente Tribunal, por respeito ao princípio da economia processual, face às circunstâncias concretas do pedido em apreciação e aos respetivos fundamentos, designadamente, a ilegalidade da ordem de serviço, falta de fundamentação, erro sobre os pressupostos de facto e de direito [todas as liquidações assentam em declarações do contribuinte] e ausência de fundamentação da liquidação de juros compensatórios), que se deverá dar prevalência a uma solução que confira a tutela mais estável, pelo que se decide apreciar a matéria de fundo.

 

18.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O Requerente marido era, nos anos de 2015 e 2016, residente em território português e auferia rendimentos da Categoria B.

2-            O Requerente marido exerce a actividade de cafés (CAE 56301) e restaurantes tipo tradicional (CAE 056101).

3-            O Requerente marido estava enquadrado, em sede de IRS, no ano de 2015, no regime simplificado de tributação e, no ano de 2016, no regime de contabilidade organizada.

4-            Em sede de IVA, o Requerente marido estava, nos anos de 2015 e 2016, enquadrado no regime normal trimestral.

5-            Os Requerentes foram objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito geral/parcial, em sede de IRS e IVA, relativamente aos exercícios fiscais de 2015 e 2016, credenciada pelas Ordens de Serviço n.º OI2016... de 14-11-2016 e n.º OI2019... de 21-01-2019.

6-            A referida inspecção teve como objectivo a comprovação e verificação – controlo dos fluxos de pagamento com cartões de débito e crédito.

7-            Em sede inspectiva, a AT detectou, através do cruzamento do montante de rendimentos escriturados e declarados pelo sujeito passivo à AT com o montante anual dos recebimentos através de cartões de débito e de crédito, comunicados pelas instituições bancárias nas respetivas declarações Modelo 40, que os Requerentes omitiram no campo 402 do quadro 4A do Anexo B da Declaração de Rendimentos Mod. 3 de IRS, do ano de 2015, rendimentos da prestação de serviços de restauração e bebidas, no âmbito da actividade comercial de exploração do estabelecimento de restaurante e café/pastelaria denominado “...”, no montante de €79.579,62.

8-            Relativamente ao ano de 2016, a AT constatou, através do cruzamento do montante de rendimentos escriturados e declarados pelo sujeito passivo à AT com o montante anual dos recebimentos através de cartões de débito e de crédito, comunicados pelas instituições bancárias nas respetivas declarações Modelo 40, que os Requerentes omitiram na Declaração de Rendimentos Mod. 3 de IRS, do ano de 2016, rendimentos da prestação de serviços de restauração e bebidas, no montante de €101.439,46.

9-            Para o ano de 2016, o Requerente não apresentou o inventário da contagem física e respectiva mensuração que serviu de suporte ao registo do valor de €12.000,00 na rúbrica das existências finais de mercadorias, matérias primas, subsidiárias e de consumo.

10-         Na impossibilidade de comprovar documentalmente os inventários finais registados em 31-12-2016, o Requerente rectificou o Custo das Mercadorias Vendidas e as Matérias Consumidas, no exercício de 2016, de €39.252,38 para €51.252,68.

11-         Em 14-03-2019, no decurso da acção inspectiva, o Requerente regularizou voluntariamente as faltas/omissões apontadas pelos serviços de inspecção, submetendo as declarações de substituição modelo 3 de IRS e as declarações periódicas de IVA, para os anos de 2015 e 2016.

12-         Em sede de IRS, o Requerente procedeu às seguintes regularizações:

 

13-         Em sede de IVA, o Requerente efectuou as seguintes regularizações:

 

14-         Em 15-03-2019, os serviços da AT emitiram a demonstração de liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2015, no valor de €2.311,83, e a demonstração da liquidação de IRS n.º 2019..., relativa ao ano de 2016, e respetivas liquidações de juros compensatórios, no valor de €32.776,38.

15-         Na sequência da substituição das declarações periódicas de IVA relativas aos quatro trimestres dos anos de 2015 e 2016, os Requerentes foram notificados das respectivas demonstrações de liquidação de IVA e liquidação de juros compensatórios, no montante de € 18.303,31 e € 19.394,54, respetivamente, num total de € 37.697,85 (trinta e sete mil, seiscentos e noventa e sete euros e oitenta e cinco cêntimos).

16-         Da notificação da liquidação de juros compensatórios referentes ao IRS do ano de 2016, consta o seguinte:

 

17-         O Requerente foi notificado do relatório de inspecção tributária onde consta, além do mais, o seguinte:

 

18-         As referidas liquidações n.º 2019..., relativa ao ano de 2015 e a liquidação de IRS n.º 2019 ..., relativa ao ano de 2016, não foram pagas.

19-         Na sequência disso, foram instaurados os processos de execução fiscal n.º ...2019... e n.º ...2019... para cobrança coerciva dos referidos montantes.

20-         Em 27-08-2019, os Requerentes apresentaram duas reclamações graciosas com vista à anulação dos actos de liquidação de IRS e IVA dos anos de 2015 e 2016.

21-         Através dos Ofícios n.ºs ... e ... de 25-11-2019, os Requerentes foram notificados dos despachos de indeferimento das reclamações graciosas.

22-         Da decisão de indeferimento da reclamação graciosa consta, além do mais, o seguinte:

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , o “relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

 

B. DO DIREITO

a. Do vício de falta de fundamentação

Alega a Requerente que os actos de liquidação objecto da presente acção arbitral padecem de vício de forma por falta de fundamentação, uma vez que, em seu entender, “o relatório de inspeção abstém-se de indicar como deduziu a matéria colectável nos anos indicados” e que “a fundamentação é obscura e insuficiente, porque o seu conteúdo não é bastante para explicar as verdadeiras razões por que foram praticados os atos ora reclamados”.

A este propósito, lembra a Requerida que “os actos tributários aqui impugnados resultam de regularizações voluntárias efectuadas pelo SP no decurso da acção inspectiva”, sustentando que “não merecem censura os actos tributários impugnados, porquanto a fundamentação em que se escoram foi integralmente apreendida pelo Requerente, caracterizando-se pela clareza, suficiência e congruência”.

Vejamos:

Como é sabido, a fundamentação é uma exigência dos atos tributários em geral, sendo uma imposição constitucional (268.º da CRP) e legal (art.º 77º da LGT).

Resumidamente, pode dizer-se que é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência nacionais que a fundamentação exigível tem de reunir as seguintes características:

1.            Oficiosidade: deve partir sempre da iniciativa da administração, não sendo admissíveis fundamentações a pedido;

2.            Contemporaneidade: deve ser coeva da prática do ato, não podendo haver fundamentações diferidas;

3.            Clareza: deve ser compreensível por um destinatário médio, evitando conceitos polissémicos ou profundamente técnicos;

4.            Plenitude: deve conter todos os elementos essenciais e que foram determinantes da decisão tomada. Esta característica desdobra-se em duas exigências, a saber: o dever de justificação (normas legais e factualidade – domínio da legalidade) e de motivação (domínio da discricionariedade ou oportunidade, quando é preciso uma valoração).

Ora, se a fundamentação é, nos termos referidos, necessária e obrigatória, tal não pode nem deve ser entendido de uma forma abstracta e/ou absoluta, ou seja, a fundamentação exigível a um acto tributário, deve ser aquela que funcionalmente é em concreto necessária para que aquele não se apresente perante o contribuinte como uma pura demonstração de arbítrio. Esta será – julga-se – a pedra de toque do cumprimento do dever de fundamentação: quanto, perante um destinatário médio colocado na posição do destinatário real, o acto tributário se apresente, sob um ponto de vista de razoabilidade, como um produto do puro arbítrio da Administração, por não serem discerníveis os motivos de facto e/ou de direito em que assenta, o acto padecerá de falta de fundamentação.

Neste mesmo sentido, se orienta a jurisprudência do STA que considera que “Apesar da não indicação expressa do preceito legal aplicável, a exigível fundamentação de direito do acto tributário será suficiente com a referência aos princípios jurídicos pertinentes, ao regime legal aplicável ou a um quadro normativo determinado, desde que, em qualquer caso, se possa concluir que aqueles eram conhecidos ou cognoscíveis por um destinatário normal colocado na posição em concreto do real destinatário.” , e que “A exigência legal e constitucional de fundamentação do acto tributário, decorrente dos arts. 268º da CRP, 77º da LGT e 125º do CPA, visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a Administração a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa.” .

O artigo 77.º/1 da LGT refere, assim, que: “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.”.

Descendo ao caso concreto, tal como resulta dos factos provados, verifica-se que os actos de liquidação em crise foram calculados com base nas declarações de substituição entregues pelos Requerentes, no decurso do procedimento de inspecção levado a cabo ao abrigo das ordens de serviço n.º OI2016... de 14-11-2016 e n.º OI2019..., de 21-01-2019, com incidência em sede de IRS e IVA, relativamente aos anos de 2015 e 2016, nas quais os Requerentes regularizaram voluntariamente os seguintes valores:

 

Neste contexto é seguro afirmar que as liquidações sindicadas não tiveram origem nas correcções efectuadas pela Administração Tributária, mas antes, nas regularizações voluntárias efectuadas pelos Requerentes mediante a entrega de declarações de substituição.

Assim, desde logo, a regularização da situação tributária pelos Requerentes, através da apresentação de declarações de substituição com os valores determinados pela Administração Tributária, demonstra que, no decurso do procedimento inspectivo, se conformaram com as correcções que tinham sido avançadas.

                Acresce que, decorrendo os actos tributários de liquidação das declarações de substituição entregues pelos Requerentes, a fundamentação do acto de liquidação é, exclusivamente, aquela que resulta das declarações de imposto, bem ou mal, apresentadas pelos Requerentes - e não, como parecem entender os Requerentes, a que resulta do relatório de inspecção -, pelo que não carecem de qualquer fundamentação adicional.

Deste modo, e acolhendo o entendimento vertido no Acórdão do TCA-Sul de de 24-01-2020, no processo n.º 267/07.3BEALM, “porque a liquidação se baseou nos elementos declarados pelos contribuintes resulta dos autos que o acto em crise se encontra devidamente fundamentado, não se verifica qualquer obscuridade, contradição ou insuficiência dos critérios utilizados, pois nele se expressam as razões, do conhecimento dos contribuintes a partir das suas próprias declarações, por que se tributou, sendo claros os motivos e os factos concretos ou de direito em que se fundou para decidir no sentido em que o fez, e ali se especificam os elementos determinantes dos critérios utilizados na quantificação do resultado fiscal relativo à liquidação adicional impugnada.”

Com efeito, uma vez que as liquidações impugnadas se fundamentam nas declarações apresentadas pelos Requerentes é do conhecimento destes os motivos pelos quais se sujeitou a tributação e os concretos factos que foram considerados na quantificação do imposto apurado, pelo que as liquidações impugnadas se encontram suficientemente fundamentadas.

Face ao exposto, nada haverá a censurar, na perspectiva do dever de fundamentação, aos actos tributários objecto do presente processo, não se mostrando violados qualquer dos normativos indicados pelos Requerentes, motivo pelo qual improcede o alegado vício de falta de fundamentação.

 

*

 

b. Da ilegalidade da ordem de serviço

Peticionam os Requerentes a declaração de ilegalidade da Ordem de Serviço n.º 2016..., de 14-11-2016, sustentando, para o efeito, que estando a referida Ordem de Serviço datada de 14-11-2016, foi ultrapassado o prazo de 6 meses, a que se refere o artigo 36.º, n.º 2 do RCPITA, de duração do procedimento inspetivo, “sem que tenha sido suspenso ou fundamentado por superior hierárquico a sua continuidade”. 

O processo arbitral tributário constitui uma “forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”, desenhando-se, dessa forma, como um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.

O objecto do processo arbitral, encontra-se delimitando pelo artigo 2.º do RJAT, nos termos do qual:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

Assim, o objecto do processo arbitral restringe-se às questões da legalidade dos actos dos tipos referidos no artigo 2.º, designadamente, actos tributários stricto sensu (actos de liquidação), pelo que não pode ser declarada, nesta sede, a (i)legalidade da ordem de serviço.

Acresce que, os Requerentes não retiram qualquer consequência da alegada ilegalidade da Ordem de Serviço para o objecto do processo. Dito de outro modo, não invocam os Requerentes em que medida a alegada ilegalidade da Ordem de Serviço influencia a legalidade dos actos de liquidação impugnados, motivo pelo qual não lhe poderá ser reconhecida a virtualidade de influir na legalidade das liquidações impugnadas.

Porém, ainda que se concluísse, nesta sede, pela ilegalidade da ordem de serviço, desde já se adianta, que tal circunstância nunca teria como efeito a anulação das liquidações impugnadas.

Senão vejamos:

A regulamentação do procedimento de inspecção tributária, tem, em primeira linha, uma finalidade essencialmente organizatória (ordenatória) e, na perspectiva dos sujeitos passivos, visará essencialmente definir quais as condições em que os efeitos jurídicos próprios de tal procedimento se reflectirão, eficazmente, na sua esfera jurídica, para além de assegurar a sua participação nas decisões que venham a ser tomadas.

Deste modo, a principal finalidade, sempre na perspectiva dos sujeitos passivos, da regulamentação do procedimento de inspeção tributária e da respectiva observação pela Administração Tributária, residirá na fixação dos condicionalismos legalmente necessários para que se reflitam eficazmente na esfera jurídica dos contribuintes, os efeitos jurídicos próprios do procedimento em questão, maxime a suspensão do prazo de caducidade do direito à liquidação dos tributos pela Administração, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 da LGT, bem como a sujeição dos visados às garantias e prerrogativas da inspeção tributária (artigos 28.º e 29.º do RCPITA), e à aplicação de medidas cautelares (artigos 30.º e 31.º do RCPITA).

                Com efeito, a instauração de um procedimento inspectivo externo, gera diversos deveres de colaboração e sujeição para o contribuinte, como sejam, por exemplo, o de facultar os elementos referidos nas als. c) e d) e o de acolher a inspecção nas suas instalações nos termos descritos nas als. a) e b), todas do n.º 2 do artigo 28.º do RCPITA.

                Para além disso, um procedimento inspectivo externo, como se viu já, tem a virtualidade de suspender o decurso do prazo de caducidade do direito à liquidação.

Daí que, conforme referido, a normação que disciplina o procedimento de inspecção tributária tenha subjacente, em primeira linha, regular os termos em que é legítimo à Administração Tributária impor ao contribuinte os deveres, sujeições e demais efeitos desfavoráveis inerentes àquele procedimento inspectivo.

Assim, tem sido entendimento jurisprudencial que as invalidades do procedimento de inspecção externa não se projectam, imediata e automaticamente, na validade do acto de liquidação, podendo ver-se nesse sentido, por exemplo, os Acs. do STA de 25-02-2015, proferido no processo 0709/14, do TCA-Sul 24-05-2011, proferido no processo 04311/10, e do TCA-Norte de 08-03-2018, proferido no processo 00270/11.9BEBRG, tudo na sequência de extensa jurisprudência que remonta, pelo menos, aos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27-02-2008, proferido no processo n.º 0955/07, de 07-05-2008, proferido no processo n.º 0102/08, e de 25-02-2015, proferido no processo n.º 0709/14.

Esta questão foi também apreciada, entre outras, na decisão arbitral proferida no processo 117/2019-T do CAAD, tendo o Tribunal ali concluído em sentido oposto ao pugnado pela Requerente.

Como se escreveu naquela decisão arbitral (suportada no entendimento vertido), embora o artigo 36.º, n.º 2 e 3 do RCPITA consagre o prazo de seis meses como prazo de duração máxima do procedimento de inspecção, podendo este ser prorrogado por mais dois períodos de três meses, “o excesso do prazo de inspeção não tem, só por si, efeito invalidante da notificação, apenas implicando a cessação do efeito suspensivo da caducidade do direito de liquidação previsto no n.º 1 do artigo 46.º da LGT”. 

Mais refere a citada decisão arbitral que, tal solução resulta actualmente da redacção do n.º 7 do artigo 36.º do RCPITA, aditado pela Lei n.º 75-A/2014 de 30 de Setembro, que estabelece expressamente que “o decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando porém o direito à liquidação dos tributos” (sublinhado nosso).

Deste modo, sendo a única ilegalidade apontada pelos Requerentes ao procedimento de inspecção, a ilegalidade da ordem de serviço decorrente do putativo excesso do prazo de 6 meses consagrado no art.º 36.º/2 do RCPITA, não decorrendo de tal excesso, ainda que verificado, a ilegalidade da liquidação, e não estando em causa a caducidade do direito de liquidar, deverá, também nesta parte, improceder o pedido arbitral.

 

*

c. Do erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

                Alegam os Requerentes que “os actos de liquidação ora reclamados sofrem de erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, como tal, consequentemente deverão ser anulados por serem ilegais.”.

                Não obstante, o que se verifica é que os requerentes persistem no pressuposto que os actos de liquidação se fundam no Relatório de Inspecção Tributária, quando, na realidade, se fundam na sua própria declaração.

                Daí que não tenha qualquer consistência, a alegação dos mesmos segundo a qual “o Relatório de Inspecção não distingue, claramente, qual o processo que usa para apuramento da matéria colectável, que se encontram a ser desconsideradas, tendo por base cruzamento de dados(devendo como tal o acto de liquidação dever ser anulado por vício de forma por falta de fundamentação), a Reclamante sempre dirá que pela AT foram erradamente considerados esses valores nos exercícios de 2015 e 2016.”, bem como a de que “a dúvida da AT quanto ao descritivo de alguns dos documentos externos apresentados não seja fundamentada nem consistente, devendo como tal nestes casos prevalecer o princípio declarativo”, já que é precisamente isto que se ocorre no caso, ou seja, deve prevalecer o declarado pelos Requerentes nas declarações de substituição que apresentaram.

                Daí que, não sendo sustentada em quaisquer factos, mas em meras considerações de direito e afirmações conclusivas e genéricas na matéria, as alegadas violações dos princípios da capacidade contributiva e da legalidade, não poderão as mesmas ser atendidas, improcedendo, como tal, também esta parte do pedido arbitral.

               

*

d. Da ilegalidade da liquidação de juros compensatórios

Alegam por fim os Requerentes que “o relatório de inspeção abstém-se de indicar quais os elementos em que se baseia para promover a liquidação de juros compensatórios sub judice, não fazendo qualquer menção à culpa dos Requerentes no suposto atraso na liquidação do imposto”, concluindo pela ausência de fundamentação da liquidação dos juros compensatórios, o que viola o disposto no n.º 1 do artigo 35.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º da LGT e no artigo 268.º, n.º 3 da CRP.

Na matéria em questão entendeu já o TCA-Sul  que “Os juros compensatórios funcionam como uma cláusula penal pelo retardamento da liquidação do imposto, imputável ao contribuinte, integrando-se na liquidação deste, onde vão buscar parte da sua fundamentação, para além de também exigirem um segmento de fundamentação própria, mas sobre a sua liquidação, não exige a lei que a AT proceda à audição prévia do contribuinte de forma autónoma e distinta da audição relativamente ao imposto donde provém.”

No que concretamente diz respeito à fundamentação da liquidação de juros compensatórios, tem entendido de forma unânime o STA que “A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante do imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem.” / , elementos esses que, conforme resulta da matéria de facto, constam das notificações que foram efectuadas aos Requerentes.

Com efeito, in casu, na liquidação de juros compensatórios a AT fez constar o motivo da liquidação, designadamente, que foi liquidada nos termos do art. 91.º do CIRS e 35.º da LGT por ter havido atraso na liquidação e entrega do imposto, por facto imputável ao sujeito passivo. Por outro lado, da liquidação também constam os elementos essenciais que presidiram ao apuramento dos juros compensatórios, designadamente, o montante do imposto em falta (valor base) sobre o qual incidem os juros, o período a que respeita, a taxa de juro aplicável (4%) e o valor dos juros apurado.

No que respeita, concretamente, ao apuramento da culpa no retardamento da liquidação, entendeu o TCA-Sul, (Ac. do TCA-Sul de 11-11-2008, proferido no processo 02020/07),  “no caso dos juros compensatórios e na sequência do acima referido, a factualidade em que há-de radicar o juízo de culpa, não pode ser outra que não aquela que subjaz ao apuramento de imposto entendido em falta, na exacta medida em que se integram neste, nos termos do n.° 8, do art.° 35.° da LGT.”

Compreendidas as coisas desta forma, facilmente se conclui que, conjugadas com as declarações de substituição relativas aos anos de 2015 e 2016, apresentadas pelos Requerentes em 14-03-2019, para além do prazo legal, as liquidações de juros compensatórios notificadas aos Requerentes contêm todos os elementos obrigatórios por lei, incluindo a respectiva fundamentação, devendo, por isso, improceder a arguida falta de fundamentação.

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:

a)            Absolver a Requerida do pedido;

b)           Condenar os Requerentes nas custas do processo, abaixo fixadas.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 72.924,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.448,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelos Requerentes, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 12 de Outubro de 2021

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Jorge Carita)

 

O Árbitro Vogal

(José Ramos Alexandre)