Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 132/2014-T
Data da decisão: 2015-03-05  IRS  
Valor do pedido: € 2.398,09
Tema: IRS – Qualificação do rendimento, comissões
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

  1. A, contribuinte n.º …, residente na …, doravante designada Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º n.º 1 a) e 10.º n.º 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a declaração de ilegalidade das liquidações oficiosas de IRS de 2009, 2010, 2011 e 2012 (N.ºs de liquidação 2013 ...5, 2013 ...4, 2013 ...6 e 2013 ...1), bem como o pagamento de juros indemnizatórios sobre os valores pagos.

 

  1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 17-02-2014.

 

  1. Nos termos do disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. a), 6.º, n.º 1 e 11.º. n.º 1, al. a) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

  1. Em 02-04-2014 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

  1. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral singular foi constituído em 17-04-2014.

 

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu ao requerimento inicial apresentado, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente, por não se verificar o vício de violação de lei.

 

  1. No dia 18-09-2014, teve lugar, na sede do CAAD, a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT.

 

  1. A testemunha arrolada pela Requerente foi ouvida no dia 09-10-2014 sobre os factos descritos nos artigos 22.º a 42.º do pedido de pronúncia arbitral.

 

  1. Na mesma data, as partes apresentaram alegações orais, reafirmando e desenvolvendo as posições anteriormente sustentadas.

 

  1. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

 

  1. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

  1. O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

  1. As alegações que sustentam o pedido de pronúncia arbitral do Requerente são, em súmula, as seguintes:

 

Alegações da Requerente

           

13.1 O requerente é trabalhador dependente da sociedade comercial B, onde exerce as funções de vendedor comissionista em exclusividade.

 

13.2 No exercício da sua prestação e horário de trabalho, o Requerente visita restaurantes, bares, hotéis e discotecas para promover e/ou acordar com os donos desses estabelecimentos a venda de bebidas armazenas e comercializadas pela sua entidade empregadora.

 

13.3 Para aumentarem as suas vendas, alguns fornecedores propuseram à empregadora do Requerente atribuir “prémios” aos trabalhadores que efectuassem recomendações de consumos.

 

13.4 Assim, por solicitação da sua entidade patronal e no exercício da sua actividade, o Requerente recomenda aos clientes que comprem produtos de determinada marca; em contrapartida, recebe “dinheiros, unilateralmente atribuídos por fornecedores da sua empregadora.”

 

13.5 Reafirma o Requerente que nunca se obrigou perante os fornecedores a qualquer prestação, nunca assinou qualquer contrato, nem nunca invocou perante aqueles qualquer direito.

 

13.6 Estes rendimentos foram enquadrados como uma liberalidade concedida pelos fornecedores.

 

13.7 Assim, por serem gratificações atribuídas ao ora Requerente por fornecedores da sua entidade empregadora, em razão, e por efeito directo da prestação de trabalho realizada, estes rendimentos foram enquadrados na al. g) do n.º 3 do artigo 2.º do Código do IRS.

 

13.8 Alega, por fim, que estes rendimentos não podem ser enquadrados na Categoria B (artigo 3.º do Código do IRS) porque o Requerente nunca desenvolveu qualquer actividade “independente” ou “por conta própria” ou estabeleceu qualquer relação de prestação de serviços, mandato ou comissão com as entidades que atribuíram a comissão.

 

Resposta da Requerida

 

  1.  Na resposta, a Requerida alega que a atribuição ao Requerente por parte de fornecedores de uma compensação pela prestação de serviços de sugestão de consumo não pode subsumir-se na previsão da al. g) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS.

 

14.1 Conforme entendimento veiculado pelo Ofício Circulado n.º 20037, de 07-03-2001, da Direcção de Serviços de IRS, as importâncias pagas por entidades a trabalhadores de outra entidade, a título de compensação por recomendação dos seus serviços a terceiros, configuram comissões, estando assim sujeitos a tributação em IRS no âmbito da Categoria B – Rendimentos Empresariais e Profissionais.

 

14.2 In casu, o Requerente aufere uma comissão por um serviço prestado a uma terceira entidade – distinto e autonomizável dos serviços prestados à sua entidade patronal – por contrapartida da promoção de determinados produtos fornecidos pela entidade pagadora.

 

14.3 Esta prestação de serviços aproxima-se, assim, do contrato de agência e dos seus elementos essenciais: obrigação de promoção de celebração de contratos, actuação por conta do principal, autonomia, estabilidade e retribuição.

 

14.4 Conclui afirmando que a remuneração deste serviço distingue-se das gratificações previstas na al. g) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS, comummente designadas de gorjetas, por corresponderem a meras liberalidades que não têm uma finalidade retributiva, ao contrário dos pagamentos aqui previstos.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão final.

 

II. QUESTÃO A DECIDIR

 

A questão fulcral a decidir é se os rendimentos auferidos pelo Requerente nos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012: devem ser qualificados como gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho (rendimentos da categoria A), nos termos previstos no artigo 2.º n.º 3, al. g) do CIRS, como defende o Requerente, ou rendimentos decorrentes de uma prestação de serviços, conforme previsto no artigo 3.º n.º 1 al. b) do mesmo Código (rendimentos da Categoria B), como defende a Requerida?

 

A. MATÉRIA DE FACTO

 

A.1. Factos dados como provados

 

 

1-  O Requerente é trabalhador dependente da sociedade comercial B, pessoa colectiva n.º …, com sede na …, desde 01-06-2000, empresa que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de bebidas.

 

2-  Conforme definido na cláusula primeira do contrato de trabalho, o trabalhador desempenha na empresa “sob a direção e autoridade daquela (…) as funções respeitantes à categoria profissional de Vendedor Comissionista, cuja caracterização sumária do seu conteúdo é a seguinte: apresentação e venda dos produtos comercializados pela Primeira Contratante, responsável pela cobrança do preço dos produtos transacionados na sua área de actuação, efectuar visitas calendarizadas a clientes e recolher dados pormenorizados que importam aumento de vendas na sua zona”.

 

3-   Nos termos comunicados pela sua Entidade Empregadora, foi-lhe solicitado, que recomendasse o consumo de determinadas bebidas.

 

4- Em contrapartida do aumento de vendas alcançado com aquela recomendação, o Requerente auferiu rendimentos que declarou, nos anos de 2009 a 2012, como gratificações no campo 402 do Quadro 4 do Anexo A – gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela respectiva entidade patronal (al. g) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS).

 

5- A Autoridade Tributária e Aduaneira procedeu à correcção oficiosa das declarações entregues, enquadrando-as como rendimentos da Categoria B, por considerar que se tratam de comissões.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

 

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, a prova documental, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, de resto consensualmente reconhecidos e aceites pelas partes.

 

 

B. DO DIREITO

 

É, em síntese, colocada a questão de saber se os rendimentos supra identificados devem ser enquadrados como gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho (rendimentos da categoria A), nos termos previstos no artigo 2.º n.º 3, al. g) do CIRS ou rendimentos decorrentes de uma prestação de serviços, conforme previsto no artigo 3.º n.º 1 al. b) do mesmo Código (rendimentos da Categoria B).

 

Vejamos.

 

O artigo 2.º do Código do IRS tipifica adopta um conceito muito amplo de rendimentos resultantes do trabalho dependente. Há, claramente, uma intenção de abranger nesta categoria todos os rendimentos, incluindo vantagens acessórias, num sentido mais amplo do que o previsto na legislação laboral.

 

Com efeito, o artigo 258.º n.º 1 do Código do Trabalho estabelece que “Considera-se retribuição a prestação que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.”. No n.º 2 esclarece-se que a retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie. Afastam-se portanto, algumas remunerações tributáveis nos termos do artigo 2.º do CIRS que não são regulares e periódicas, nomeadamente gratificações de balanço ou prémios de assiduidade; ou, então, ajudas de custo, alimentação ou transporte, por não serem contrapartida do seu trabalho, etc. Tal diferença de conceitos resulta obviamente dos fins a que se destinam e efeitos que produzem: no Direito do Trabalho, os efeitos de irredutibilidade da prestação e especial tutela dos créditos retributivos do trabalhador; no Direito Fiscal a intenção de tributar todos os rendimentos.

 

Neste contexto, a al. g) do n.º 3 do artigo 3.º estabelece ainda que são considerados rendimentos de trabalho dependente “as gratificações auferidas pela prestação ou em razão da prestação do trabalho, quando não atribuídas pela entidade patronal”.

 

Trata-se, desde logo, de rendimentos que a generalidade da doutrina laboral afasta do conceito de retribuição e da própria relação laboral. “Crê-se que a qualificação como retribuição destas prestações é de afastar pelo facto de não serem atribuídas nem devidas pelo empregador, não podendo assim corresponder a qualquer contrapartida do trabalho prestado” (MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho, 3.ª Ed., Almedina, 2010, p. 638). No mesmo sentido, BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER refere: “Pensamos que tais gratificações não podem ser consideradas como retribuição pela própria circunstância de não serem correspondidas pelo empregador.” (Manual do Direito do Trabalho, 2.ª Ed., Babel, 2014, p. 601). Ou seja, à partida, estes rendimentos estão afastados da relação laboral estabelecida entre o trabalhador e a entidade empregadora, pelo que, em termos fiscais, não constituiriam remunerações provenientes de trabalho por contra de outrem prestado ao abrigo de contrato de trabalho, nos termos previstos na al. a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IRS.

 

Assim sendo, visa-se tributar uma realidade específica que, não constituindo rendimentos de trabalho, com ele estejam relacionados porque atribuídas pela sua prestação ou em razão da prestação.

 

Como refere XAVIER DE BASTOS, “Esta disposição tem uma longa história que vem já da vigência do Imposto Profissional, onde a hipótese de incidência dera origem a diversos contenciosos. Não estando expressamente prevista a incidência do imposto sobre estas gratificações, punha-se em questão a sua natureza de rendimento de trabalho. Tais prestações não são pagas pela entidade patronal, pelo que não são rigorosamente a contrapartida pela prestação de trabalho. Estão conexas com a actividade do trabalhador, mas são geralmente prestadas pelos beneficiários ou clientes da empresa onde ele desenvolve a actividade. São as já designadas, em português corrente, gorjetas que, através desta disposição são equiparadas a rendimentos de trabalho.” (JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTOS, IRS –Incidência Real e Determinação dos rendimentos Líquidos, Coimbra Editora, 2007,p.132.)

 

Com esta disposição não se pretende tributar qualquer rendimento pago por terceiros que esteja relacionado com a prestação do trabalho mas apenas as gratificações, entendidas como uma liberalidade, um acto unilateral. “…Uma gratificação é uma esportulação livre, decorrente da vontade de quem a dá, assumindo a natureza de que a dá, assumindo a natureza de mera liberalidade, sendo apenas, portante de natureza unilateral. (…)” – Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 481/04, a propósito da constitucionalidade desta disposição).

 

Isto é, o legislador ao falar de “gratificação” e não de “importâncias” ou “remuneração” visa apenas abranger as primeiras, no sentido acima descrito: transferência livre ou unilateral de património, conforme usos e práticas sociais (acto de simpatia ou generosidade). A contrario, qualquer prestação pré-determinada, autonomizável da prestação de trabalho do beneficiário ou em resultado de qualquer serviço ou contrapartida específica, está fora do âmbito desta norma[1]. De outro modo, a taxa de tributação autónoma de 10% a que estes rendimentos estão sujeitos, nos termos do n.º 3 do artigo 72.º, constituiria um benefício desproporcionado e violador do princípio da igualdade.

 

Face ao exposto, caberá, agora, aferir se as importâncias pagas ao Requerente objecto da presente impugnação podem constituir gratificações, nos termos previstos nesta alínea g) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS. Trata-se de uma liberalidade ou acto unilateral, sem qualquer contraprestação específica?

 

Conforme supra descrito, as importâncias pagas ao Requerente resultam de um “programa de incentivos” pré-determinado (conforme esclarecimento prestado por uma das entidades pagadoras – artigo 21.º da Resposta) que consiste em fazer “recomendações de consumo” (artigo 17.º da P.I.).

 

Ou seja, o trabalhador aufere uma remuneração por contrapartida da recomendação de compra de determinado produto, de entre os vários produtos que vende. Não se trata, portanto, de qualquer liberalidade ou acto unilateral mas de uma compensação cujos pressupostos de pagamento estão pré-definidos e exigem uma acção clara do trabalhador em incentivar junto dos seus clientes a aquisição daquele produto em detrimento de outros de natureza análoga ou similar.

 

Assim sendo, estes pagamentos não constituem uma qualquer liberalidade mas a contraprestação de um serviço específico (incentivo de determinados produtos), cuja remuneração está previamente determinada. Por outro lado, a especial relação do serviço prestado com o próprio objecto do contrato de trabalho não afasta a qualificação fiscal aqui presente.

 

Não sendo enquadráveis estes rendimentos na Categoria A - por não constituírem rendimento de trabalho dependente nem gratificações pagas por terceiras entidades – e tratando-se de um serviço prestado pelo Requerente de que resulta o pagamento de uma quantia específica, não restam dúvidas de que estes rendimentos são enquadrados e tributados na Categoria B, nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS.

 

*

C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

a)      Julgar improcedente o pedido de declaração de ilegalidade das liquidações oficiosas de IRS de 2009, 2010, 2011 e 2012 (N.ºs de liquidação 2013 ...5, 2013 ...4, 2013 ...6 e 2013 ...1), bem como o pagamento de juros indemnizatórios sobre os valores pagos;

b)      Condenar o Requerente ao pagamento das custas do processo, no montante de € 612,00, tendo-se em conta o já pago.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 2.398,09, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelo Requerente, uma vez que o pedido foi integralmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa

5 de Março de 2015

 

 

O Árbitro

 

 

(Amândio Silva)

 



[1] Como bem refere o Requerente, este nosso entendimento colide com o entendimento versado no Despacho n.º 1665/2003, de 2 de Julho, do Secretario de Estado dos Assuntos Fiscais.