Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 125/2018-T
Data da decisão: 2018-07-06  Selo  
Valor do pedido: € 10.679,60
Tema: IS – Verba 28.1 da TGIS. Prédios urbanos em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente.
Versão em PDF

 

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

 
 

            I. RELATÓRIO

1. No dia 19 de março de 2018, a sociedade comercial A…, Unipessoal, Lda., NIPC…, com sede na Rua …, …, Lisboa (doravante, Requerente), apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade e a anulação das liquidações de Imposto do Selo [verba 28.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (doravante, TGIS)] respeitantes ao ano de 2014 e referentes ao prédio urbano, em propriedade vertical com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, inscrito sob o artigo … na matriz predial urbana da freguesia de …, concelho e distrito de Lisboa, no montante total de € 10.679,60.

A Requerente juntou 16 (dezasseis) documentos, não tendo requerido a produção de quaisquer outras provas. 

É Requerida a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, Requerida ou AT).

1.1. No essencial e em breve síntese, a Requerente alegou o seguinte:

As notificações para pagamento do imposto em apreço não contêm os elementos mínimos de qualquer ato tributário de liquidação, uma vez que lhes faltam: a indicação da autoridade que o praticou e a menção da delegação ou subdelegação de poderes, quando exista; a enunciação dos factos ou atos que lhe deram origem; a fundamentação mínima do ato; o conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto; e, a assinatura do autor do ato.

            Tais elementos consubstanciam o acervo mínimo de menções que deve acompanhar os atos administrativos e devem ser enunciados de forma clara, precisa e completa, de forma a poder determinar-se inequivocamente o sentido e alcance do ato e os seus efeitos jurídicos, sob pena de, na sua falta, o ato tributário dever ser considerado nulo, por vício de forma, invalidade que se invoca.

            A caderneta predial do imóvel em apreço, que não está constituído em propriedade horizontal, identifica 14 frações com afetação habitacional e com utilização independente que perfazem, nesta data, um VPT de € 1.067.960,00.

            As liquidações de Imposto do Selo controvertidas incidem sobre o VPT das diversas frações/divisões com utilização independente que compõem aquele prédio, o qual foi determinado separadamente e sem que algum ultrapasse o valor de € 1.000.000,00.

            Na aferição do critério que deve nortear a determinação do valor relevante para a incidência do Imposto do Selo sobre os prédios em propriedade vertical, deverá ter-se em conta que a inscrição na matriz deste tipo de imóveis, constituídos por diferentes partes, andares ou divisões com utilização independente, nos termos do CIMI, obedece às mesmas regras de inscrição dos imóveis constituídos em propriedade horizontal, sendo o respetivo IMI, bem como o Imposto do Selo, liquidados individualmente em relação a cada uma das partes, pelo que não oferece qualquer dúvida que o critério legal para definir a incidência da Verba 28.1 da TGIS tem de ser o mesmo.

            Tanto assim é que a própria Autoridade Tributária, na emissão das liquidações controvertidas, discrimina claramente os VPT de cada fração, fazendo, seguidamente, incidir a taxa de imposto correspondente à Verba 28.1 sobre o somatório de todos os VPT referentes às frações que compõem o prédio. E procede assim a AT em virtude de o critério legal impor a emissão de liquidações individualizadas para as partes autónomas dos prédios em propriedade vertical, nos mesmos moldes em que o estabelece para os prédios em propriedade horizontal.

            Nesta medida, só haverá lugar à incidência da Verba 28.1 da TGIS se alguma das partes, andares ou divisões com utilização apresentar um VPT superior a € 1.000.000,00, o que não sucede no caso concreto.

            O critério seguido pela AT como sendo o aplicável não encontra qualquer sustentação legal e é contrário ao critério que resulta aplicável em sede de CIMI e, por remissão, em sede de Imposto do Selo. A própria lei estabelece expressamente, na parte final da Verba 28 da TGIS, que o Imposto do Selo incide sobre os prédios urbanos de valor igual ou superior a € 1.000.000,00, “sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI”.

            Assim, a adoção do critério defendido pela AT viola os princípios da legalidade e da igualdade fiscal e, bem assim, o da prevalência da verdade material sobre a realidade jurídico-formal.

            Nessa medida, os atos tributários controvertidos devem ser anulados porquanto estão inquinados por erro nos pressupostos de direito, uma vez que o VPT relativo a cada um dos andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, com afetação habitacional, que constituem o referido imóvel, é inferior a € 1.000.000,00.

            Não pode a AT distinguir onde o próprio legislador entendeu não o fazer, sob pena de violar a coerência do sistema fiscal, bem como o princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 103.º, n.º 2, da CRP, e ainda os princípios da justiça, igualdade e proporcionalidade fiscal.

            A aplicação do critério adotado pela AT conduziria à situação inaceitável de, caso o imóvel em apreço se encontrasse em regime de propriedade horizontal, nenhuma das suas frações habitacionais sofreria a incidência da taxa correspondente à Verba 28 da TGIS; por isso, as liquidações de imposto controvertidas traduzem-se numa discriminação arbitrária e ilegal.                            

A Requerente remata o seu articulado inicial peticionando o seguinte:

«Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser proferida declaração de ilegalidade das notas de liquidação de Imposto do Selo relativas ao exercício de 2014 – 1.ª, 2.ª e 3.ª prestações, que fixaram um imposto no valor de € 10.679,60 (dez mil seiscentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos).»

2. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT em 23 de março de 2018.

            3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do Tribunal Arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

4. Em 10 de maio de 2018, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas b) e c), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

5. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 30 de maio de 2018.

6. No dia 25 de junho de 2018, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou, especificadamente, os argumentos aduzidos pela Requerente e concluiu pela improcedência da presente ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

A Requerida não juntou documentos, nem requereu a produção de quaisquer outras provas.

Na mesma ocasião, a Requerida juntou aos autos o respetivo processo administrativo (doravante, abreviadamente designado PA).

6.1. No essencial e também de forma breve, importa respigar os argumentos mais relevantes em que a Requerida alicerçou a sua Resposta:

            Quanto às notificações dos impostos periódicos, efetuadas por simples via postal nos termos do artigo 38.º, n.º 4, do CPPT, caso das liquidações de Imposto do Selo em análise nos autos, apesar de se atribuir a designação de notificações, não se trata de atos com a natureza das notificações previstas no artigo 36.º do CPPT, pois não têm subjacentes qualquer decisão procedimental da AT, qualquer ato em matéria tributária, antes são emitidas mecanicamente pelos serviços.

            Donde se conclui que as notificações remetidas à Requerente mais não são do que os documentos de cobrança subjacentes às liquidações processadas, com as devidas adaptações, nos termos do disposto no artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro e no artigo 119.º, n.º 1, do CIMI, aplicável por força do artigo 46.º, n.º 5, do CIS.

            A liquidação de Imposto do Selo em causa foi efetuada, pela Administração Tributária, tendo em conta a natureza do prédio urbano, nomeadamente as suas divisões afetas à habitação, à data do facto tributário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, as regras contidas no CIMI.

            Ora, tendo as liquidações de Imposto do Selo controvertidas sido emitidas de acordo com a informação que consta da caderneta predial do prédio em apreço, são válidas e não enfermam de qualquer ilegalidade.

              À data, a Requerente detinha a propriedade plena do prédio urbano em apreço, avaliado nos termos do CIMI, no âmbito da avaliação geral aos prédios urbanos, descrito como «prédio em propriedade total com andares ou divisões susceptíveis de utilização independente», com valor patrimonial tributário (VP) superior a € 1.000.000,00.

              Em cumprimento e nos termos do disposto no artigo 6º, n.º 2, da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, que aditou a Verba 28 à TGIS, com a alteração efetuada pela Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro e cuja respetiva norma de incidência refere prédios urbanos, avaliados nos termos do CIMI, com VPT igual ou superior a € 1.000.000,00 e, nos termos do seu n.º 28.1, afetação habilitacional, procedeu a AT à notificação dos documentos de cobrança para o pagamento da liquidação em causa.

              Apesar de a liquidação do Imposto do Selo, nas situações previstas na Verba 28.1 da TGIS, se processe de acordo com as regras do CIMI, a verdade é que o legislador ressalva os aspetos que careçam das devidas adaptações, a saber, aqueles em que, como é o caso dos prédios em propriedade total, ainda que com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente (muito embora o IMI seja liquidado relativamente a cada parte suscetível de utilização independente), para efeitos de Imposto do Selo releva o prédio na sua totalidade pois que as divisões suscetíveis de utilização independente não são havidas como prédio, mas apenas as frações autónomas no regime de propriedade horizontal, conforme resulta do n.º 4 do artigo 2.º do CIMI.

            Assim, deve o vício de violação de lei, por erro quanto aos pressupostos de direito, ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica as liquidações impugnadas por configurarem uma correta aplicação da lei aos factos.

            A AT entende que a previsão da Verba 28.1 da TGIS não consubstancia qualquer violação ao princípio da igualdade, inexistindo qualquer discriminação na tributação de prédios constituídos em propriedade horizontal e prédios em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, ou entre prédios com afetação habitacional e prédios com outras afetações.

            As normas de procedimentos de avaliação, as normas sobre a inscrição matricial e ainda as normas sobre a liquidação das partes suscetíveis de utilização independente, não permitem afirmar que deva existir uma equiparação do prédio em regime de propriedade total ao regime da propriedade vertical, isto porque seria ilegal e inconstitucional.

Estes regimes jurídico-civilísticos são diferentes, e a lei fiscal respeita-os.

É, assim, consequência de o facto tributário do Imposto do Selo da Verba 28.1 consistir na propriedade de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do CIMI, seja igual ou superior a € 1.000.000,00, o valor patrimonial relevante para efeitos da incidência do imposto ser o valor patrimonial total do prédio urbano e não o valor patrimonial de cada uma das partes que o componham, ainda quando suscetíveis de utilização independente.

Deste modo, não se pode concluir por uma alegada discriminação em violação do princípio da igualdade quando estamos perante realidades distintas, valoradas pelo legislador de forma diferente.

Ademais, a tributação em sede de Imposto do Selo obedece ao critério de adequação, na exata medida em que visa a tributação da riqueza consubstanciada na propriedade de imóveis de elevado valor, surgindo num contexto de crise económica que não pode de todo ser ignorado.

Assim, encontra-se legitimada a opção por este mecanismo de obtenção da receita, o qual apenas seria censurável, face ao princípio da proporcionalidade, se resultasse manifestamente indefensável, o que não se verifica, porquanto tal medida é aplicável de forma indistinta a todos os titulares de imóveis com afetação habitacional de valor superior a € 1.000.000,00.

A Requerida remata assim o seu articulado:

«Nestes termos, e nos demais que V. Exa. doutamente suprirá,

Deve ser julgado improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados, absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.»

7. Em 25 de junho de 2018, foi proferido despacho a dispensar a realização da reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, bem como a apresentação de quaisquer alegações e a fixar o dia 28 de setembro de 2018 como data limite para a prolação da decisão arbitral.     

***

            II. SANEAMENTO

            O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente.

O processo não enferma de nulidades.

            As partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, encontram-se devidamente representadas e são legítimas.

            Admite-se a cumulação de pedidos – estão em causa diversos atos de liquidação de Imposto do Selo, sendo peticionada a declaração de ilegalidade e a anulação de cada um deles –, em virtude de se verificar que a procedência dos pedidos formulados pela Requerente depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito (cf. artigo 3.º, n.º 1, do RJAT).

Não há quaisquer outras exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.

***

III. FUNDAMENTAÇÃO                      

III.1. DE FACTO

§1. FACTOS PROVADOS

Consideram-se provados os seguintes factos:

a) No ano de 2014, a Requerente era proprietária do prédio urbano, em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, sito na Rua …, n.ºs … a…, freguesia de…, concelho e distrito de Lisboa, então inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo … (atual artigo …). [cf. documento n.º 16 anexo à P.I.]   

b) Naquele mesmo ano, o referido prédio urbano estava descrito na respetiva matriz predial como um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, com o valor patrimonial total de € 1.067.960,00. [cf. documentos n.ºs 2 a 16 anexos à P.I.]

c) Os andares ou divisões suscetíveis de utilização independente integrantes daquele mesmo prédio urbano são todos afetos a habitação e têm valores patrimoniais tributários próprios, apurados nos termos do Código do IMI, os quais em 2014 eram inferiores a € 1.000.000,00. [cf. documentos n.ºs 2 a 16 anexos à P.I.]

d) Em 20 de março de 2015, a AT liquidou Imposto do Selo, reportado ao ano de 2014 e referente aos andares ou divisões com utilização independente integrantes do aludido prédio urbano, no montante total de € 10.679,60. [cf. documentos n.ºs 2 a 15 anexos à P.I.]

e) As liquidações de Imposto do Selo referidas no facto provado anterior resultaram da aplicação da Verba 28.1 da TGIS a todos e cada um dos sobreditos andares ou divisões com utilização independente. [cf. documentos n.ºs 2 a 15 anexos à P.I.]

f) Na sequência das mencionadas liquidações de Imposto do Selo, foram emitidos em nome da Requerente os seguintes documentos de cobrança [cf. PA junto aos autos]:

g) A Requerente não efetuou o pagamento voluntário dos montantes indicados no facto provado anterior, atinentes às sobreditas liquidações de Imposto do Selo, pelo que foram extraídas as respetivas certidões de dívida e instaurados os correspondentes processos de execução fiscal, suspensos por prestação de garantia, que se passam a indicar [cf. PA junto aos autos]:

            h) Em 28 de agosto de 2015, a Requerente deduziu reclamação graciosa contra as indicadas liquidações de Imposto do Selo, a qual foi autuada sob o n.º …2015… e foi indeferida por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa…, proferido em 13 de dezembro de 2017. [cf. PA junto aos autos]

i) Em 19 de março de 2018, a Requerente apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral que deu origem ao presente processo. [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD]

j) Em 12 de abril de 2018, o Chefe do Serviço de Finanças de Lisboa … proferiu despacho a determinar a instauração de procedimento de revisão oficiosa, tendo por objeto as mencionadas liquidações de Imposto do Selo, o qual foi autuado sob o n.º …2018…, tendo por fundamento “injustiça grave ou notória” e ao qual subjaz a seguinte informação/proposta dos respetivos serviços [cf. PA junto aos autos]:

*

§2. FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a apreciação e decisão da causa, não há factos que não se tenham provado.

*

§3. MOTIVAÇÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO

A convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa, nos documentos e no processo administrativo juntos aos autos.

*

III.2. DE DIREITO

A Requerente começa por arguir a existência de diversos vícios formais que, segundo ela, inquinam as notificações das liquidações de Imposto do Selo controvertidas; concretamente, a Requerente invoca a falta dos seguintes elementos que, como propugna, são geradores de nulidade: a indicação do autor do ato; a enunciação dos factos que lhe deram origem; a fundamentação mínima do ato; o conteúdo ou o sentido da decisão e o respetivo objeto; e, a assinatura do autor do ato.

Em seguida, a Requerente alega que os atos tributários controvertidos padecem de diversos vícios materiais, a saber: por um lado, a violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade e, por outro lado, a violação da norma de incidência tributária constante da verba 28.1 da TGIS.

O artigo 124.º do CPPT, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. a), do RJAT, estatui que o tribunal deve apreciar prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, seguidamente, os vícios que conduzam à sua anulação (n.º 1). No concernente aos vícios que consubstanciem inexistência ou nulidade, o julgador deve conhecer prioritariamente dos vícios cuja procedência determine, segundo o seu prudente critério, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos. No tocante aos vícios que constituam anulabilidade, é estabelecido o mesmo critério, que só não será aplicável se o impugnante tiver estabelecido uma relação de subsidiariedade entre os vícios imputados ao ato – o que é permitido pelo art. 101.º do CPPT – pois nesse caso é dada primazia à sua vontade (desde que o Ministério Público não tenha arguido outros vícios) (n.º 2).

As regras emanadas desta norma legal sobre a ordem de conhecimento de vícios destinam-se a tutelar o interesse do impugnante com a máxima economia processual, omitindo pronúncia sobre vícios invocados quando o vício ou vícios já reconhecidos impedem a renovação do ato com o mesmo sentido. Efetivamente, o estabelecimento desta ordem de conhecimento dos vícios pressupõe que, conhecendo de um vício que conduza à eliminação jurídica do ato impugnado, o tribunal deixará de conhecer dos restantes, pois, se o julgador tivesse de conhecer de todos os vícios imputados ao ato, seria indiferente a ordem de conhecimento. Isto significa, pois, que o reconhecimento da existência de um vício implica que se considere prejudicado o conhecimento dos restantes vícios.

A tutela dos interesses ofendidos é mais estável quando a decisão impede a renovação do ato lesivo dos interesses do impugnante e será mais eficaz quando permitir ao interessado, em execução de julgado, obter uma melhor satisfação dos seus interesses, ofendidos pelo ato anulado.

Assim, se se tratar, por exemplo, de um vício de violação de lei – como seja uma norma de incidência tributária –, a anulação do ato impedirá a prática de um novo ato tributário em que se aplique a mesma norma que baseou o ato anterior, o que se traduzirá na impossibilidade de praticar um novo ato que imponha tributação ao impugnante.

Como se infere do que se vem de dizer, é tendo em consideração a execução do julgado anulatório e a influência que nela tem o tipo de vício que fundamentou a anulação que se justifica o estabelecimento de uma ordem de conhecimento dos vícios do ato impugnado.

Volvendo ao caso concreto, consoante acima já se frisou, a Requerente aponta diversos vícios formais às notificações das liquidações de imposto controvertidas e diversos vícios materiais aos próprios atos de liquidação.

Acontece que se as ditas notificações padecerem efetivamente de algum ou mesmo de todos os vícios formais que lhes são assacados pela Requerente, com a consequente invalidade das mesmas, tal não afetará a validade dos atos de liquidação notificados, os quais serão, então, meramente ineficazes (artigo 36.º, n.º 1, do CPPT).

Destarte, vamos então começar por conhecer os vícios imputados pela Requerente aos atos de liquidação impugnados, pois são estes que fornecem mais estável e eficaz tutela dos seus interesses, entre os quais a Requerente não estabeleceu uma relação de subsidiariedade.    

Dentre estes, começar-se-á pela apreciação do vício de violação da norma de incidência tributária constante da verba 28.1 da TGIS, pois, a verificar-se, afastará definitivamente a possibilidade de impor à Requerente um novo ato tributário praticado ao abrigo daquela mesma norma. Além disso, só importará proceder à apreciação das questões de inconstitucionalidade (violação dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça, da igualdade e da proporcionalidade) se e na medida em que a interpretação e concretização da solução normativa resultante da verba 28.1 da TGIS envolver a subsunção à respetiva previsão legal da situação sub judice.   

Posteriormente, se a interpretação e concretização da solução normativa resultante da mencionada verba 28.1 envolver efetivamente a subsunção à respetiva previsão legal da situação sub judice, passar-se-á, na medida do que for necessário em ordem à resolução do litígio, à apreciação dos apontados vícios de inconstitucionalidade e, por fim, dos vícios formais invocados quanto às preditas notificações.  

Isto posto.

A questão essencial a resolver sobre o mérito do litígio prende-se com determinar se, para efeitos de incidência da verba 28.1 da TGIS, nos casos de um prédio em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, se deve atender ao valor total do prédio resultante da soma dos valores patrimoniais tributários dos diversos andares ou divisões (com afetação habitacional), ou se se deve antes dar relevância ao valor patrimonial tributário da cada andar ou divisão com afetação habitacional.

§1. DA INTERPRETAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO ÂMBITO DE INCIDÊNCIA OBJETIVA DA VERBA 28.1 DA TGIS

No epicentro do dissenso que opõe as Partes neste processo, está a norma de incidência tributária constante da verba 28.1 da TGIS, pelo que se impõe, naturalmente, começar por proceder à interpretação desta norma, tendo em vista aferir o seu escopo e, dessa forma, delimitar aquele que é o seu campo de aplicação.

 A Lei n.º 55-A/2012, de 29 de outubro, introduziu diversas alterações ao Código do Imposto do Selo e aditou à TGIS a verba 28 (cf. artigo 4.º), com a seguinte redação:

“28 — Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1 000 000 — sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:

28.1 — Por prédio com afetação habitacional— 1 %;

28.2 — Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças — 7,5 %.”

Posteriormente, a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014), alterou a redação da verba 28.1 da TGIS (cf. artigo 194.º), tendo esta passado a ter o seguinte teor [aplicável ratione temporis à situação sub iudice]: 

 “28.1 — Por prédio habitacional ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI— 1 %”

A interpretação da norma de incidência constante da verba 28.1 da TGIS não poderá deixar de ser efetuada com base nas diretrizes hermenêuticas que dimanam do artigo 11.º da LGT e do artigo 9.º do Código Civil, normas que estatuem o seguinte:

“Artigo 11.º [LGT]

Interpretação

1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.

2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.

3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender -se à substância económica dos factos tributários.

4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.”

“Artigo 9.º [CC]

Interpretação da lei

1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de cor respondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

A propósito desta tarefa interpretativa, data venia, apropriamo-nos aqui dos seguintes considerandos vertidos na decisão arbitral proferida no processo n.º 53/2013-T do CAAD:

«A relevância do texto da lei é especialmente acentuada em matéria de interpretação de normas de incidência do Imposto do Selo, que se reconduzem a uma amálgama, sob uma denominação comum, de um conjunto incongruente de tributos de naturezas completamente distintas (sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o património, sobre actos, etc.), que não deixa margem apreciável para aplicação do critério interpretativo primordial, que é a unidade do sistema jurídico, que reclama a sua coerência global.

A reconhecida falta de coerência do Imposto do Selo é particularmente exuberante no caso desta verba n.º 28.1, apressadamente incluída à margem do Orçamento Geral do Estado, por um legislador fiscal sem orientação fiscal global perceptível, que vai implementando sucessivamente normas de agravamento fiscal à medida dos revezes da execução orçamental, das imposições dos credores institucionais internacionais (representados pela «troika») e da fiscalização do Tribunal Constitucional.

Na verdade, embora na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 96/XII/2.ª, em que se baseou a Lei n.º 55-A/2012, se faça referência à louvável preocupação do Governo de «reforçar o princípio da equidade social na austeridade, garantindo uma efectiva repartição dos sacrifícios necessários ao cumprimento do programa de ajustamento» e ao seu empenho «em garantir que a repartição desses sacrifícios será feita por todos e não apenas por aqueles que vivem do rendimento do seu trabalho», é manifesto, por um lado, que essas razões de equidade, decerto existentes, não começaram a valer em meados de 2012, já existindo no início do ano, quando entrou em vigor o Orçamento Geral do Estado e, por outro lado, que o alcance da verba n.º 28.1, ao tributar acrescidamente os prédios com afectação habitacional e não também os prédios que a não têm, deixa entrever que as preocupações de equidade social e a proclamada intenção de repartição dos sacrifícios por todos, atinge muito mais alguns do que propriamente todos.

Neste contexto, não existindo elementos interpretativos seguros que permitam detectar coerência legislativa na solução adoptada na referida verba n.º 28.1 ou o acerto ou desacerto da solução adoptada (relevante para efeitos interpretativos à face do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), o teor do texto legal tem de ser o elemento primacial da interpretação, em conformidade com a presunção, imposta pelo mesmo n.º 3 do artigo 9.º, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Dito isto. Analisada a redação – quer a primitiva, quer a atual – da verba 28.1 da TGIS, verificamos que esta norma possui um cariz fulcralmente remissivo, pois o respetivo conteúdo regulativo relevante depende da normatividade ad quam constante do Código do IMI.

Na verdade, seja quanto à incidência objetiva, com a referência a “prédios urbanos” e ao “valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis”, seja quanto à fixação da matéria coletável, com a referência ao “valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI”, o teor regulativo desta verba 28 da TGIS resulta da devolução – nos termos de uma remissão geral – para o conjunto regulativo que se encontra no Código do IMI.

Aliás, esse aspeto resulta reforçado pelo n.º 2 do artigo 67.º do CIS, que determina que às matérias não reguladas no CIS respeitantes à verba 28 da TGIS aplica-se, subsidiariamente, o disposto no Código do IMI.

Nesta parametria, cumpre então coligir as normas do Código do IMI que se afiguram pertinentes para a compreensão e, logo, para a aplicação da verba 28.1 da TGIS.

No Código do IMI, o conceito de “prédio” surge assim definido no seu artigo 2.º:

1. Para efeitos do presente Código, prédio é toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência, desde que faça parte do património de uma pessoa singular ou colectiva e, em circunstâncias normais, tenha valor económico, bem como as águas, plantações, edifícios ou construções, nas circunstâncias anteriores, dotados de autonomia económica em relação ao terreno onde se encontrem implantados, embora situados numa fracção de território que constitua parte integrante de um património diverso ou não tenha natureza patrimonial.

2. Os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios.

3. Presume-se o carácter de permanência quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano.

4. Para efeitos deste imposto, cada fracção autónoma, no regime de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio.”

Seguidamente, nos artigos 3.º a 5.º do CIMI, são enumeradas as espécies de prédios existentes, a saber:

Prédios rústicos (artigo 3.º):

“São prédios rústicos os terrenos situados fora de um aglomerado urbano que não sejam de classificar como terrenos para construção, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º, desde que:

a) Estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas, tais como são considerados para efeitos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS);

b) Não tendo a afectação indicada na alínea anterior, não se encontrem construídos ou disponham apenas de edifícios ou construções de carácter acessório, sem autonomia económica e de reduzido valor.

2 – São também prédios rústicos os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano, desde que, por força de disposição legalmente aprovada, não possam ter utilização geradora de quaisquer rendimentos ou possam ter utilização geradora de rendimentos agrícolas e estejam a ter, de facto, esta afectação.

3 – São ainda prédios rústicos:

a) Os edifícios e construções directamente afectos à produção de rendimentos agrícolas, quando situados nos terrenos referidos nos números anteriores;

b) As águas e plantações nas situações a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º

4 – Para efeitos do presente Código, consideram-se aglomerados urbanos, além dos situados dentro de perímetros legalmente fixados, os núcleos com um mínimo de 10 fogos servidos por arruamentos de utilização pública, sendo o seu perímetro delimitado por pontos distanciados 50 m do eixo dos arruamentos, no sentido transversal, e 20 m da última edificação, no sentido dos arruamentos.”

Prédios urbanos (artigo 4.º):

“Prédios urbanos são todos aqueles que não devem ser classificados como rústicos, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte.”

Prédios mistos (artigo 5.º):

“1. Sempre que um prédio tenha partes rústica e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal.

2. Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto.”

Posteriormente, no artigo 6.º do CIMI, são indicadas as espécies de prédios urbanos:

1. Os prédios urbanos dividem-se em:

a) Habitacionais;

b) Comerciais, industriais ou para serviços;

c) Terrenos para construção;

d) Outros.

2. Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.

3. Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território, estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos.

4. Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3.”

Sobre o “valor patrimonial tributário”, o artigo 7.º do CIMI estatui o seguinte:

 “1. O valor patrimonial tributário dos prédios é determinado nos termos do presente Código.

2. O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos com partes enquadráveis em mais de uma das classificações do n.º 1 do artigo anterior determina-se:

a) Caso uma das partes seja principal e a outra ou outras meramente acessórias, por aplicação das regras de avaliação da parte principal, tendo em atenção a valorização resultante da existência das partes acessórias;

b) Caso as diferentes partes sejam economicamente independentes, cada parte é avaliada por aplicação das correspondentes regras, sendo o valor do prédio a soma dos valores das suas partes.

3. O valor patrimonial tributário dos prédios mistos corresponde à soma dos valores das suas partes rústica e urbana determinados por aplicação das correspondentes regras do presente Código.”

Sob a epígrafe “conceito de matrizes prediais”, o artigo 12.º do CIMI estatui o seguinte:

“1. As matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários.

2. Existem duas matrizes, uma para a propriedade rústica e outra para a propriedade urbana.

3. Cada andar ou parte de prédio susceptível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respectivo valor patrimonial tributário.

4. As matrizes são actualizadas anualmente com referência a 31 de Dezembro.

4. As inscrições matriciais só para efeitos tributários constituem presunção de propriedade.”

 Ainda a propósito das matrizes prediais, importa atender ao n.º 1 do artigo 13.º do CIMI, do qual decorre que [a] inscrição de prédios na matriz e a actualização desta são efectuadas com base em declaração apresentada pelo sujeito passivo”.

No respeitante à determinação do valor patrimonial tributário, importa aqui convocar o artigo 38.º do CIMI, epigrafado “Determinação do valor patrimonial tributário”:

“1. A determinação do valor patrimonial tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da seguinte expressão:

Vt = Vc x A x Ca x Cl x Cq x Cv

em que:

Vt = valor patrimonial tributário;

Vc = valor base dos prédios edificados;

A = área bruta de construção mais a área excedente à área de implantação;

Ca = Coeficiente de afectação;

Cl = coeficiente de localização;

Cq = coeficiente de qualidade e conforto;

Cv = coeficiente de vetustez.

2. O valor patrimonial tributário dos prédios urbanos apurado é arredondado para a dezena de euros imediatamente superior.”

Como normas densificadoras dos valores e coeficientes referidos neste preceito legal, temos os artigos 39.º (“Valor base dos prédios edificados”), 40.º (“Tipos de áreas dos prédios edificados”), 40.º-A (“Coeficiente de ajustamento de áreas”), 41.º (“Coeficiente de afectação”), 42.º (“Coeficiente de localização”), 43.º (“Coeficiente de qualidade e conforto”) e 44.º (“Coeficiente de vetustez”) do CIMI. 

À face do teor literal da verba 28.1 da TGIS (redação aplicável ratione temporis à situação sub judice), estão sujeitos a esta norma de incidência tributária os prédios urbanos habitacionais de valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00.

Atentas as normas do CIMI acima citadas, temos que são habitacionais os edifícios ou construções licenciadas pelos municípios para esse fim ou, na falta de licenciamento, que tenham como destino normal essa utilização (artigo 6.º, n.º 2, do CIMI); assim, são prédios habitacionais os referidos edifícios ou construções, sendo, pois, estes que estão sujeitos à verba 28.1 da TGIS.  

A correção desta interpretação, quanto ao âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS é confirmada pela ratio legis percetível da restrição do campo de aplicação da norma aos prédios habitacionais – restrição que se manteve quanto à afetação (habitação) na alteração legislativa que veio alargar o âmbito de incidência aos terrenos para construção –, no contexto das “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, que o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil também consagra como elementos interpretativos.

Efetivamente, a limitação da aplicação do imposto aos prédios habitacionais e, posteriormente, aos terrenos para construção em que esteja prevista ou autorizada a construção de habitação, revela a intenção de não onerar o setor produtivo e as empresas em geral e, nesse sentido, não se pretendeu abranger no âmbito de incidência do imposto nem os prédios afetos a serviços, indústria ou comércio, isto é, os prédios afetos à atividade económica, nem os terrenos para construção relativamente aos quais esteja prevista ou autorizada edificação para esses outros fins. Tal resulta compreensível num contexto em que a economia se encontrava em espiral recessiva, publicamente proclamada ao mais alto nível, com as taxas de desemprego a atingir níveis históricos, com avalanche de encerramento de empresas devido a insustentabilidade económica. Sobre a ratio legis da introdução da verba 28 da TGIS, vejam-se, entre outras, as decisões proferidas nos processos n.ºs 50/2013-T, 132/2013-T 132/2013-T, 181/2013-T, 182/2013-T, 183/2013-T, 185/2013-T, 100/20114-T, 238/2014-T, 290/2014-T, 428/2014-T, 518/2014-T, 707/2014-T e 756/2014-T do CAAD.    

            Tendo presente essa situação e sendo consabido e público que a reanimação da atividade económica e o aumento das exportações são as portas de saída para a crise, compreende-se que, pese embora a necessidade premente de aumentar as receitas fiscais, não se tomassem medidas legislativas que dificultassem a atividade económica, designadamente o agravamento da carga fiscal que a dificulta e afeta a competitividade em termos internacionais.

            Por isso, é de concluir que os elementos interpretativos disponíveis, inclusivamente as “circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, apontam claramente no sentido de não se ter pretendido abranger no âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS os prédios não habitacionais e, posteriormente, também os terrenos para construção relativamente aos quais esteja autorizada ou prevista a edificação para fins diferentes da habitação. 

A encerrar esta exegese da verba 28.1 da TGIS, importa, ainda, salientar que os citados artigos 38.º a 46.º do CIMI não têm qualquer relação com a classificação dos prédios urbanos, pois naquelas normas apenas são indicados os fatores a ponderar na respetiva avaliação. 

Posto isto. Resulta da análise conjugada dos citados preceitos do CIMI que neste compêndio legal não é feita qualquer distinção entre prédios constituídos em regime de propriedade horizontal ou total. Com efeito, pese embora o n.º 4 do artigo 2.º refira expressamente que as frações autónomas dos prédios constituídos em regime de propriedade horizontal constituem, cada uma delas, um prédio, a verdade é que não exclui de tal classificação as divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total ou vertical.

E, onde a lei não distinguiu, não pode o intérprete fazê-lo.

 Analisada, pois, a definição de prédio ínsita no n.º 1 do artigo 2.º do CIMI, não vislumbramos qualquer razão para aqui não incluir as divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total, pois que estas constituem uma fração de território que faz parte integrante do património de uma pessoa singular ou coletiva e que tem valor económico.

Assinale-se que a cada uma dessas divisões ou frações é atribuído um valor patrimonial tributário.

Assente que está a classificação das divisões com utilização independente dos prédios constituídos em regime de propriedade total como “prédios”, nos termos e para os efeitos do CIMI, parece-nos evidente constituírem cada uma destas divisões, quando esse seja o fim a que se destinam, prédios habitacionais.

No caso dos autos, como resultou provado, todas as divisões ou andares do prédio urbano em apreço são suscetíveis de utilização independente, sendo que todas elas estão afetas à habitação. 

Aliás, não fossem as divisões ou andares em causa nos presentes autos individualmente classificadas como “prédios” e não teria qualquer sentido ou lógica a elaboração, no caso, de uma liquidação do Imposto do Selo por cada uma dessas unidades.

É certo que a aplicação subsidiária do CIMI poderia inculcar a ideia de que só as frações autónomas, no regime de propriedade horizontal, é que são havidas como prédios à luz do disposto no n.º 4 do artigo 2.º do CIMI.

Todavia, se se atentar na redação dessa norma legal, logo se verificará que o pressuposto da constituição do regime de propriedade horizontal apenas é necessário para efeitos de tributação em IMI.

  Assinale-se, por outro lado, que, à luz do disposto no artigo 12.º, n.º 3, do CIMI, “cada andar ou parte do prédio suscetível de utilização independente é considerado separadamente na inscrição matricial, a qual discrimina também o respetivo valor patrimonial tributário”.

Acresce ainda que, como acima já se disse, a introdução da verba 28 na TGIS teve como objetivo a tributação dos prédios urbanos de elevado valor com afetação habitacional, tributando a riqueza, exteriorizada na propriedade, usufruto ou direito de superfície, de prédios urbanos de luxo, ou suas frações ou divisões autónomas, com afetação habitacional.

Ora, se o objetivo da lei foi adequar a tributação em sede de Imposto do Selo à capacidade contributiva dos contribuintes, parece não revestir qualquer relevância a distinção entre prédios constituídos em regime de propriedade horizontal ou vertical.

Manifestamente, não é por aí que se revela a maior ou menor capacidade contributiva, tanto mais que, como é sabido, a propriedade horizontal é um instituto jurídico relativamente recente, sendo certo que uma grande parte dos prédios antigos não se encontram sequer constituídos neste regime, apesar de, na prática, funcionarem como tal.

Ora, o princípio da prevalência da substância sobre a forma impõe que a AT deva valorizar a verdade material. E, no caso dos autos, a verdade material consiste na inexistência de qualquer diferença substantiva entre as divisões suscetíveis de utilização independente integrantes do prédio urbano em causa e as frações de um prédio constituído em propriedade horizontal.

Ou, dito doutro modo, sendo a constituição da propriedade horizontal operação meramente jurídica e não factual, não se descortinam razões para diferenças de tributação nesta sede, porquanto o que relevará é sempre o valor individual de cada uma das frações, esteja ou não o prédio constituído no regime de propriedade horizontal.

Em face de tudo quanto ficou exposto, dúvidas não restam de que o valor patrimonial tributário relevante para efeitos de incidência do Imposto do Selo nos casos de prédios constituídos em regime de propriedade total, compostos por várias divisões com utilização independente, é o valor patrimonial tributário de cada uma das divisões do prédio e não o valor patrimonial tributário global do prédio, correspondente à soma de todos os valores patrimoniais tributários das divisões que o compõem.

Assim, em conclusão, relativamente aos prédios em propriedade total com andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, deve atender-se exclusivamente ao valor patrimonial tributário próprio de cada andar ou divisão com afetação habitacional, constante da matriz, para efeitos da aplicação da verba 28.1 da TGIS.

            §2. DO CASO SUB JUDICE

Como resultou provado, nenhum dos andares ou divisões com utilização independente, descritos na matriz predial como afetos à habitação, do prédio urbano em apreço, possui um valor patrimonial tributário igual ou superior a € 1.000.000,00.

Nessa medida e atento o acima exposto, uma vez que o valor patrimonial tributário de cada um dos indicados andares ou divisões com utilização independente afetos à habitação é inferior àquele valor a que se reporta a verba 28.1 da TGIS, segue-se que tais andares ou divisões não se subsumem na norma de incidência tributária constante dessa verba 28.1, pelo que as liquidações controvertidas padecem de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação da verba 28.1 da TGIS, o que implica a declaração da sua ilegalidade e sequente anulação.

O mesmo vício invalidante fulmina a decisão da reclamação graciosa n.º …2015…, uma vez que manteve as liquidações de Imposto do Selo controvertidas, determinando a declaração da sua ilegalidade e sequente anulação.

*

Atenta a procedência da peticionada declaração de ilegalidade das liquidações de Imposto do Selo controvertidas, por vício que impede a renovação desses atos, fica prejudicado, por inútil, o conhecimento dos restantes vícios invocados pela Requerente. 

***

IV. DECISÃO

Nos termos expostos, este Tribunal Arbitral decide:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, consequentemente, por vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação da verba 28.1 da TGIS, declarar ilegais e anular as liquidações de Imposto do Selo impugnadas nos presentes autos, respeitantes ao ano de 2014 e referentes ao prédio urbano inscrito sob o artigo … na matriz predial urbana da freguesia de …, concelho e distrito de Lisboa, com todas as legais consequências;
  2. Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do presente processo.

*

VALOR DO PROCESSO

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de € 10.679,60 (dez mil seiscentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos).

*

CUSTAS

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, o montante das custas é fixado em € 918,00 (novecentos e dezoito euros), nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

*

Lisboa, 6 de julho de 2018.

 

O Árbitro,

 

(Ricardo Rodrigues Pereira)