Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 10/2011-T
Data da decisão: 2012-05-04  IRC  
Valor do pedido: € 682.181,60
Tema: Derrama
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DOS FACTOS

 

..., com sede em …, vem requerer a anulação do acto de liquidação de IRC nº …, na parte conexa com os montantes de derrama municipal, referentes ao ano de 2007, no quantitativo de € 682.181,60.

 

  1. Alega, em síntese, a caducidade do direito à liquidação, uma vez que esta não foi efectuada no prazo de 3 anos previsto no artigo 45º, nº 2, da LGT, por se tratar de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo.

  2. De facto, reportando-se a liquidação vertente ao exercício de 2007, temos que, por aplicação do mesmo normativo, o termo do prazo de caducidade ocorreu no dia 31.12.2010, sendo que o acto tributário em causa data de 26.09.2011.

  3. Bem assim, a violação da norma de incidência objectiva da derrama, pois que esta incide, nos termos do artigo 14º, nº 1, da Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro, (Lei das Finanças Locais), “sobre o lucro tributável sujeito e não isento de IRC”, sendo que, segundo prescreve o artigo 64º nº 1 do CIRC, por referência à unidade fiscal “grupo de sociedades”, o lucro tributável do grupo é calculado pela sociedade dominante, através da soma algébrica dos lucros tributáveis e dos próprios prejuízos fiscais apurados nas declarações periódicas individuais de cada uma das sociedades pertencentes ao grupo”.

  4. Ou seja, nas situações de aplicação do RETGS, o lucro tributável sujeito a IRC não é o lucro individual porventura apurado por cada uma das sociedades do Grupo Fiscal individual e isoladamente considerado, mas realidade diferente, qual seja a do lucro (porventura apurado) olhando ao Grupo Fiscal como um todo, isto é, somando os lucros individuais porventura apurados e subtraindo-se-lhes os prejuízos em que esta ou aquela sociedade tenha também, porventura, incorrido.

  5. Sempre que se aplique o RETGS, o lucro tributável sujeito a IRC (cfr. artigo 14.º, n.º 1, da Lei das Finanças Locais) não é o lucro individual de cada uma das sociedades integrantes do Grupo Fiscal mas o lucro (porventura apurado) do conjunto das sociedades perspectivado pela lei fiscal como a unidade tributária (em substituição das sociedades individuais).

  6. Concluiu no sentido de que “deve ser declarada a ilegalidade da liquidação adicional de derrama municipal, no valor de € 682.181,60”, e “consequentemente reconhecido o direito a indemnização pelos prejuízos resultantes de prestação de garantia e/ou, se for o caso, o direito a juros indemnizatórios contados à taxa legal desde a data do pagamento do imposto e montantes relacionados até à data do seu integral reembolso”.

 

Respondeu o Director Geral da AT, excepcionando a incompetência do tribunal Arbitral e a ilegitimidade passiva, ou, caso assim se não entenda, pugnando pela improcedência do pedido. Alega, em síntese, que:

 

  1. A derrama municipal assume a natureza de imposto municipal cujo sujeito activo são os municípios, com competência expressa para lançar o imposto, fixar a taxa e decidir de eventuais isenções.

  2. Assumindo-se como conflituantes os interesses dos vários municípios, consoante a forma de cálculo da derrama siga ou não o regime preconizado pelo Acórdão do STA de 2 de Fevereiro de 2011, todos os municípios configuráveis como sujeitos activos do imposto tem interesse directo na demanda, sendo como tal partes legítimas na demanda.

  3. A vinculação da AT -Autoridade Tributária e Aduaneira, decorrente da Portaria nº 112-N2011 de 22 de Março, não vincula os municípios.

  4. Consequentemente, uma decisão arbitral de mérito sobre a questão controvertida não vinculará os sujeitos activos do imposto.

  5. Assim, forçoso será concluir não só pela ilegitimidade passiva do Director-Geral da AT -Autoridade Tributária e Aduaneira, mas igualmente pela incompetência do tribunal arbitral.

  6. Sendo "erro evidenciado na declaraçãoapenas o erro que é detectável mediante simples análise dessa declaração, sem recurso a qualquer outra documentação externa, é manifesto que nos caso em apreço não estamos perante tal realidade, sendo assim aplicável o prazo geral de caducidade, e não o previsto no n° 2 do artigo 45° da LGT .

  7. A Lei das Finanças Locais aprovada pela Lei n° 2/2007 de 15 de Janeiro conferiu à derrama uma verdadeira autonomia face ao IRC.

  8. Autonomiaessa que todavia acolhe ainda a partilha de alguns elementos do IRC, ao nível de incidência e sujeição, e determinação do lucro tributável.

  9. Lucro tributável esse que constitui a base de incidência da derrama, rejeitando qualquer influência que prejuízos fiscais -reportáveis em sede de IRC -possam ter em sede de derrama.

  10. Autonomia que desatende a quaisquer regimes especiais de tributação de IRC para efeitos de incidência ou sujeição a derrama.

  11. No caso concreto das sociedades que integrem o perímetro de um grupo de sociedades a que seja aplicável o RETGS, inexistia qualquer dimanação legal que condicione a derrama a s6 incidir sobre o "lucro tributável do grupo" e não sobre o "lucro tributável” de cada uma das sociedades, individualmente considerado.

  12. O legislador havia consagrado expressamente uma definição legal de "lucro tributável" no CIRC, que a Lei das Finanças Locais acolheu para ser a base de incidência da derrama.

  13. Não existe qualquer disposição legal que dê por não sujeitos ou isentos os lucros tributáveis das sociedades que integram o perímetro dos grupos a que seja aplicado o RETGS.

  14. Só esta interpretação do acervo legal que enforma este imposto -a derrama -é que permite concretizar o papel que a derrama assume enquanto instrumento de execução de desígnios constitucionalmente consagrado.

  15. O entendimento sufragado no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n° 0909/10 segue uma linha de raciocínio radicalmente diversa da aqui preconizada, que não sendo combatida poderá conduzir a um firmar de jurisprudência contrária aos interesses do legislador, e da própria Lei Fundamental (artigos 81.° e 238.°), o que para todos os efeitos legais desde já se invoca.

  16. Conclui requerendo que “deverão ser reconhecidas como verificadas as excepções suscitadas de ilegitimidade passiva e de incompetência do tribunal arbitral, absolvendo-se assim a AT -Autoridade Tributária e Aduaneira em conformidade, ou, caso assim não se entenda, deverá ser considerada procedente a argumentação vertida na presente resposta, e legal a liquidação sindicada”.

 

Em sede factual, vem apurado que:

 

  1. A liquidação impugnada procedeu a um aumento do valor da derrama em causa, inicialmente apurado, de € 2.325.392,42 para € 3.007.574, 02, com o consequente aumento de € 682. 181,60, ora impugnado.

  2. A ora requerente dedica-se à actividade industrial (indústria transformadora) na área da produção de pasta de papel e papel, constituindo a sociedade dominante de um grupo de sociedades (o Grupo …) sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) previsto e regulado, à data dos factos, nos artigos 63.º e seguintes do Código do IRC (actualmente, por força da renumeração operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, artigos 69.º e seguintes do Código do IRC).

  3. Em 30 de Maio de 2008 a ora requerente apresentou a Declaração Modelo 22 agregada, respeitante ao exercício de 2007.

  4. Em 12 de Agosto de 2008, a requerente recebeu uma primeira demonstração de liquidação de IRC (n.º …), relativa ao exercício de 2007, cuja liquidação datava de 2 de Julho de 2008, de onde não resultava qualquer pagamento adicional a efectuar ou qualquer reembolso de imposto.

  5. A 27 de Outubro de 2008, foi a requerente notificada de uma nova demonstração de liquidação de IRC referente a 2007, seguida da correspondente “demonstração de acerto de contas”, na qual lhe era exigidoum valor adicional de € 682.181,60.

  6. Aquela liquidação viria, posteriormente, a ser anulada em sede de recurso hierárquico (processo n.º 2607/2009), apresentado na sequência do indeferimento de reclamação graciosa, com fundamento em preterição do direito de audição prévia do contribuinte, plasmado no artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT),

  7. Por intermédio do Ofício n.º2865 de 9 de Fevereiro de 2011, foi a Requerente notificada para exercer o seu direito de audição prévia com respeito ao projecto de acto de liquidação, de onde constava a intenção de corrigir novamente o valor referente à derrama municipal respeitante ao exercício de 2007 (alteração de € 2.325.392,42 para € 3.007.574, 02, no valor adicional de € 682.181,60).

  8. A requerente exerceu, efectivamente, aquele direito a 18 de Fevereiro de 2011.

  9. Posteriormente, foi a requerente notificada da liquidação ora controvertida (liquidação de IRC, n.º 2011 8310005411), na qual se apura imposto a pagar no montante de € 1.514.266,97 e se opera a referida correcção dos montantes devidos a título de derrama municipal, no valor de € 682.181,60.

 

Os factos referidos resultam provados através dos documentos juntos pelas partes e constantes do processo administrativo. Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa.

 

DO DIREITO

 

 

Há que conhecer, em primeiro lugar, das invocadas excepções de incompetência do Tribunal Arbitral e da ilegitimidade passiva.

 

  1. SOBRE A ILEGITIMIDADE E A INCOMPETÊNCIA

 

  1. A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante, AT) é um serviço da administração directa do Estado que tem por missão administrar os impostos, e que para isso prossegue, entre outras atribuições, as de assegurar a liquidação e cobrança de tributos e de outras receitas, de exercer tarefas inspectivas, de exercer a acção de justiça tributária e representar a Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais, e de informar os contribuintes sobre as suas obrigações fiscais (arts. 1º e 2º do DL nº 118/2011, 15/12).

  2. Cabe, portanto, à AT ser agente dos credores dos impostos e outras receitas do Estado e de outras pessoas colectivas de direito público.

  3. A AT não é ela própria credora dessas receitas, limitando-se a agir por conta e no interesse desses credores; quando muito pode ser-lhe atribuída uma percentagem das cobranças efectuadas a favor das entidades que são as credoras de tais receitas (art. 8º do DL nº 118/2011, 15/12).

  4. Resulta portanto da lei que à AT é cometida uma tarefa por conta e no interesse de outrem; mais ainda, resulta da própria lei que em princípio essas tarefas devem ser exercidas em exclusivo pela AT, à qual são atribuídas prerrogativas de autoridade de que os próprios credores não dispõem, já que só àquela é confiada a missão genérica de administrar os impostos (art. 2º do DL nº 118/2011, 15/12); não existindo, portanto, uma legitimidade concorrente, ou sobreposta, entre os credores de impostos e a AT, e menos ainda qualquer concorrência ou sobreposição susceptíveis de perturbarem a própria missão da AT.

  5. Assim, quando, por força da Portaria nº 112-A/2011, 22/3, a AT passou a estar vinculada à jurisdição dos tribunais arbitrais relativamente a litígios subordinados ao regime do DL nº 10/2011, 20/1, foi o interlocutor do contribuinte – o interlocutor exclusivo na ampla maioria das relações juridico-tributárias – que ficou vinculado, e através dele os credores que, naquelas situações e relações, a AT representa (credores que só através da intervenção da AT vêem os impostos administrados, e, logo, obtidas as respectivas receitas).

  6. Isso não é perturbado pela atribuição legal de competências aos credores de imposto, que pode implicar até que a administração lhes caiba, na sua totalidade (veja-se o art. 1º, 3 da LGT): é que, ou a lei estatui o afastamento da AT da relação tributária para permitir ao credor directamente, ou a uma outra entidade que aja por conta e no interesse do credor, o exercício das tarefas que são por regra atribuídas à AT (possibilidade que resulta, de resto, dos arts. 11º segs. da Lei nº 2/2007, 15/1, Lei das Finanças Locais); ou então é a outra regra, estabelecida – melhor, reafirmada – pelo DL nº 118/2011, 15/12, que prevalece em termos gerais.

  7. É o que sucede no caso subiudice. Não obstante todos os poderes que a Lei das Autarquias Locais (Lei nº 169/99, de 18 de Setembro) e a Lei das Finanças Locais (Lei nº 2/2007 de 15 de Janeiro) atribuem aos Municípios por força da sua posição de credores da derrama municipal, nenhuma daquelas leis afasta a regra de que é a AT que administra esses impostos, especificamente no sentido de protagonizar os momentos decisivos da relação com os contribuintes, incluindo os momentos de subordinação de litígios à adjudicação judicial ou arbitral. O mesmo resulta do art. 14º da Lei nº 2/2007, 15/1, Lei das Finanças Locais, que comete à AT o papel de interlocutor directo dos contribuintes de derramas.

  8. Bem podem invocar-se preceitos como o do art. 7º do CPPT (DL nº 433/99, 26/10) para sustentar que as derramas municipais são "tributos administrados por autarquias locais", ou o art. 54º, 2 do ETAF (Lei nº 13/2002, 19/2) para, persistindo no entendimento de que as derramas municipais são "receitas fiscais lançadas e liquidadas pelas autarquias locais", sustentar que a representação da Fazenda Pública deixa de caber à AT: porque o que decorreria da aplicação dessas normas – aliás, em contradição com o activo protagonismo da AT documentado no presente processo – seria a ilegitimidade da intervenção da AT nesta sede; só que agora qualquer intervenção, e não somente a intervenção que se consubstancie na sujeição, ou não, à arbitragem tributária.

  9. Não parece, pois, aceitável querer-se, por um lado, que seja a AT a desempenhar a maior parte das tarefas administrativas e a interagir em exclusivo com o contribuinte, e pretender, por outro lado, furtar a AT à jurisdição arbitral com o argumento de que não é à AT que cabe aquela administração, ou que não lhe cabe em exclusivo.

  10. A entender-se de outro modo, qualquer alegação de que ao credor de imposto sempre restam alguns poderes de administração inutilizaria o regime estabelecido pela Portaria nº 112-A/2011, 22/3 com uma persistente alegação de ilegitimidade processual passiva. Mais ainda, isso poderia colocar em xeque toda a legitimidade conferida à AT para administrar impostos como as derramas municipais, cabendo perguntar-se se uma mesma linha argumentativa, relativamente aos mesmos tributos, não feriria a sua legitimidade processual activa ou passiva, mas agora também junto dos tribunais tributários.

  11. Por sua vez, a subordinação à arbitragem dos credores das derramas municipais, se ela viesse a ser admitida em alternativa à actual subordinação da AT, constituiria uma solução particularmente desvantajosa – bastando pensar-se que, no caso subiudice, ficaria cometida aos municípios envolvidos a defesa de um ofício circulado que está na origem do litígio, sendo que esse ofício foi emitido pela própria AT, dando-se o caso de ser a AT a única vinculada pelo entendimento nele vertido.

  12. Mas mais decisiva, em termos jurídicos, é a interpretação da própria Portaria nº 112-A/2011, 22/3: quando aí, no art. 1º, se estabelece que ficam vinculados os serviços hoje incorporados na AT, e no art. 2º se define o objecto da vinculação, é bem evidente que se omitem todas as demais entidades às quais sejam cometidos episódicos poderes de administração de tributos. E a razão é a de que essas outras entidades estão vinculadas, sim, à arbitragem tributária; só que o estão através da vinculação do seu agente, a AT.

 

  1. SOBRE A CADUCIDADE DO DIREITO À LIQUIDAÇÃO DA DERRAMA.

 

  1. O artigo 45.º, 2 da LGT determina que no caso de erro evidenciado na declaração do sujeito passivo, o prazo de caducidade é de três anos.

  2. No caso em análise o erro foi evidenciado na declaração, pois dela se podia concluir pela desconformidade entre a declaração e o relevo jurídico atribuído pela AT à situação de facto subjacente.

  3. Aliás a AT teve um comportamento significativo do relevo imediato da declaração para efeitos de imposto: no mesmo ano, passados cerca de cinco meses, manifestou a sua discordância, sem necessitar de mais diligências, nomeadamente de uma fiscalização. Estando em condições de ultimar o procedimento no prazo de três anos, e devendo fazê-lo atendendo à diligência que lhe é exigível.

  4. Não é aplicável ao caso em juízo o disposto na al. d) do n.º 2 do artigo 46.º da LGT. Com efeito, tal norma prevê situações em que a configuração do facto gerador do tributo está dependente de reclamação ou impugnação, não sendo até à decisão destas o facto gerador cognoscível em todos os seus elementos. Suponha-se que só através de uma decisão administrativa ou judicial pode ser criado um direito ou reconhecida a sua inexistência. Não é o que sucede no caso em análise em que o facto gerador já era, desde o início, configurável. Não resultando o direito a liquidação de reclamação ou impugnação mas já existindo desde o início.

 

Não há que apreciar a questão referente aos juros indemnizatórios, uma vez que os autos não demonstram que a derrama tenha sido paga, nem há notícia da prestação de qualquer garantia, pelo que igualmente não há que considerar a questão da indemnização por indevida prestação daquela.

 

Conclui-se, assim, que:

 

  1. O tribunal arbitral é competente, nos termos do DL nº 10/2011, 20/1 e da Portaria nº 112-A/2011, 22/3.

  2. A AT tem legitimidade processual passiva.

  3. A decisão do tribunal arbitral, vinculando a AT, vinculará os credores dos impostos que, no caso em apreço, a AT administrou e administra, nada obstando a que o Tribunal Arbitral profira uma decisão de mérito no caso.

  4. O direito à liquidação caducou.

 

Termos em que se decide:

 

  1. Julgar improcedentes as arguidas excepções de incompetência do Tribunal Arbitral e ilegitimidade passiva.

  2. Julgar procedente a impugnação, consequentemente se anulando a liquidação de IRC nº …, referente a 2007, na parte respeitante à derrama no montante de € 682.181,60.

 

Fixa-se o valor da causa em € 682.181,60.

 

Custas pela Requerida, dado o seu decaimento – artigos 12º nº 2 e 22º nº 4 do RJAT e 4º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Lisboa, 04 de Maio de 2012.

 

Os Árbitros

 

 

Domingos Brandão de Pinho

 

 

Diogo Leite de Campos

 

 

Fernando Araújo