Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 378/2020-T
Data da decisão: 2021-05-14  ISV  
Valor do pedido: € 3.165,14
Tema: ISV – liquidação (art. 11.º do CISV e art. 110.º do TFUE.)
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DECISÃO ARBITRAL

Sumário

O art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto esta norma impede que de termine o cálculo do imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro da UE sem ter em conta a depreciação dos mesmos, permitindo que o imposto aplicado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.

 

I – Relatório

1.  A…, NIF …, residente na Rua …,  vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a ilegalidade do acto de liquidação do ISV (Imposto Sobre Veículos) resultante da não aplicação da redução prevista no art. 11.º do CISV à componente ambiental, e condenar a Autoridade Tributária (AT) a restituir a quantia de € 3.165,14, acrescida de juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor à data do pagamento, desde a data do pagamento do imposto até à efectiva restituição.

 

2. O Requente alega ter importado do Reino Unido um veículo ligeiro de passageiros, de marca …, modelo …, ao qual foi atribuída a matrícula … .

 

3. O Requerente procedeu à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV pelo valor de € 15.253,82, imposto esse que foi pago integralmente.

 

4. Deste valor, € 6.210,55, corresponderam à componente cilindrada e € 9.043,27, à componente ambiental.

 

5. Sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor acolhia já uma dedução de 35% do seu montante, ou seja, € 3.344,15, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo.

 

6. O Requerente considera que a liquidação efectuada do ISV está ferida de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, porque, no seu entender, a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – art. 11º do CISV – viola o art. 110º. do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).

 

7. Recorda, em seu favor, os termos do próprio Tribunal de Justiça da UE quando afirmou que a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional – tal como resulta da jurisprudência do TJUE (cf. ac. de 16.06.2016, Comissão/Portugal, proc. C-200/15, n.º 25)

 

8. Ora, acontece que a redução do montante residual de imposto aplicada nos termos do CISV apenas incide sobre a componente da cilindrada, ignorando a componente ambiental,

 

9. O que permite à AT cobrar um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, o que gera uma discriminação fiscal proibida por aquela norma do TFUE.

 

10. Essa circunstância está na origem de um novo processo de infracção da Comissão europeia contra Portugal que – não tendo o nosso país adequado a sua legislação nos termos indicados no parecer fundamentado daquela instituição europeia – resultou na instauração, em 23.04.2020, do proc. C-168/2020.

 

11. A mesma circunstância foi já objecto de, pelo menos, oito decisões arbitrais do CAAD (duas delas transitadas em julgado) que, com base nos mesmo fundamentos, anularam parcialmente a liquidação de ISV na parte respeitante à não redução da componente CO2 (Proc.os 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2018-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 466/2019-T e 776/2019-T)

 

12. Pretende, por isso, o Requerente que a redução de 35% aplicada à componente cilindrada seja também aplicada à componente ambiental, o que implica uma descida do ISV a pagar, no caso em questão, em € 3.165,14 (35% de 9.043,27).

 

 

13. Em 21.07.2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 28.07.2020.

 

14. Em conformidade com os artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do tribunal arbitral singular que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

15. As partes, notificadas dessa designação em 9.9.2020, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º/1 a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, sendo o tribunal arbitral singular constituído em 12.10.2020.

 

16. Em 20.11.2020, a Requerida apresentou resposta, na qual se defende por excepção e por impugnação, pugnando pela improcedência do pedido e consequente absolvição, e juntou o processo administrativo.

 

17. Em matéria de excepção, a AT invoca a caducidade do direito de acção por força da extemporaneidade do pedido, já que este, apresentado em 20.07.2020, incide sobre o indeferimento (de 8.7.20202) do pedido de revisão oficiosa das liquidações apresentado em 30.12.2018.

 

18. Entende a AT que, alicerçando-se o pedido de revisão no 78.º/1 da LGT, não foi indicado se era feito ao abrigo da primeira parte (que fixa o prazo de 120 dias da reclamação administrativa) ou da segunda (que estabelece o prazo de 4 anos após a liquidação com fundamento em erro imputável aos serviços).

 

19. Considera nessas circunstâncias que, não havendo qualquer erro da parte da AT (uma vez que se limitou a aplicar uma norma em vigor (o art. 11.º do CISV)  – ao que estaria obrigada por força do princípio da legalidade), aplicar-se-á o prazo de 120 dias fixado na primeira parte do art. 78.º/1 da LGT, o qual estaria claramente ultrapassado. E, nesses termos, conclui pela caducidade do direito de acção e pede que seja, por isso, absolvida do pedido, nos termos do art. 576.º/3 do CPC.

 

20. Por impugnação, refere a AT em síntese que quando a lei vigente não aplica a redução à componente ambiental do ISV prossegue as obrigações constitucionais e europeias de protecção do ambiente (previstas nos art.s 66.º CRP e 191.º TFUE) e bem assim as decorrentes do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris.

 

21. Refere ainda, em abono do critério acolhido no art. 11.º do CISV, o princípio da equivalência, que procura onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.

 

22. Afirma, por isso, que os critérios de redução aplicáveis à componente cilindrada não são aplicáveis à componente ambiental, por se tratar de questões distintas, sendo que, neste caso, se justificaria uma interpretação do art. 110.º TFUE à luz do art. 191.º da mesma convenção.

 

23. Insiste a AT que aquela componente ambiental constituirá uma prestação exigida pelo Estado enquanto compensação pelos efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente, que deve ser exigida tanto em relação a veículos usados como novos, por razões de coerência e justiça, já que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade.

 

24. Refere também a Requerida que a não aplicação da redução à componente ambiental não afecta a importação de veículos, a qual ocorre continuamente, o que demonstrará a inexistência de protecção.

 

25. Em defesa da inexistência de qualquer discriminação, refere também a AT que o disposto nos art. 7.º e 11.º do CISV se aplica tanto a veículos usados admitidos no território nacional – como é o caso em apreciação – como aos veículos matriculados no território nacional, nos casos de atribuição de matrícula definitiva após cancelamento voluntário da matrícula nacional e de transformação do veículo que implique a sua reclassificação fiscal (art. 5.º a) e b) do CISV).

 

26. Refere ainda a AT que a interpretação pretendida pelo Requerente constituirá uma inconstitucionalidade ao violar o princípio da legalidade (art. 266.º CRP) – na medida em que não se cumpriria o disposto numa lei válida e vigente –, do direito ao ambiente a qualidade de vida (art. 66.º/1 CRP), e, bem assim, dos princípios da justiça tributária, da igualdade, e da certeza segurança jurídicas.

 

27. E conclui referindo que, tendo o Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar a liquidação, a AT se encontra coarctada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, o que, a acontecer, configurará uma violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

 

28. Pronuncia-se ainda, a AT, relativamente ao pedido de juros indemnizatórios, lembrando que o direito a estes, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços (de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido), o que se lhe afigura impossível de conferir, na medida em que os ditos serviços, no caso, se limitaram a aplicar a lei.

 

II. Saneamento

29. O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cf. art.os 2.º/1 a) e 5.º do RJAT).

 

30. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º/1 a) do RJAT.

 

31. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. art.s 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.03).

 

32. O processo não enferma de nulidades e não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa sendo que, como se fundamentará infra, a excepção de caducidade do direito de acção suscitada pela Requerida não procede.

 

III. Matéria de facto

Factos provados

33. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:

A)           O Requente importou do Reino Unido um veículo ligeiro de passageiros, de marca … conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º … , datada de 10.04.2019, da Alfândega do Freixieiro.

B)           Tratando-se de um veículo com entre 3 e 4 anos de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 35%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.

C)           O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.

D)           A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 35% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.

E)            A liquidação do imposto fixou o valor total de € 15.253,82, montante esse que foi pago integralmente pelo Requerente.

F)            Este valor (de € 15.253,82) resulta do somatório de € 6.210,55 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 9.043,27 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 3.344,15 (valor que corresponde a 35% da primeira parcela).

 

Factos não provados

34. Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.

 

35. O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.

 

III. Matéria de Direito

36. Quanto à matéria de excepção invocada pela Requerida – a caducidade do direito de acção – esclareceu o Requerente que o pedido de revisão foi feito com base na segunda parte do art. 78.º/1 da LGT, ou seja, com fundamento em erro imputável aos serviços, beneficiando, por isso, do prazo de 4 anos, o qual não foi esgotado.

 

37. Subsiste, por isso, apenas a questão de saber se se verificou – ou não – o erro dos serviços que é condição do referido prazo.

 

38. É convicção deste tribunal que esse erro se verificou, tal como se explica infra, a propósito da questão dos juros indemnizatórios (cf. 77. ss). E nesses termos, improcede a excepção.

 

39. Quanto á questão de fundo, o presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do CISV, relevante na liquidação ora impugnada, por violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.

 

40. A questão que se coloca é saber se a liquidação de ISV relativa à viatura usada identificada nos autos padece ou não de ilegalidade parcial, devendo, em caso afirmativo, ordenar-se a anulação parcial daquele actos tributário (conforme pretende o Requerente) ou se, pelo contrário, como defende a Requerida, deverão aqueles actos de liquidação de ISV ser integralmente mantidos na ordem jurídica, por não enfermarem de qualquer ilegalidade.

 

41. De facto, a aplicação do referido art. 11.º do CISV aos veículos portadores de matrículas de Estados membros da UE tem em vista contemplar, no cálculo do imposto devido, a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevendo uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo – mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.

 

42. Defende a Requerente que a aplicação da referida norma leva a que seja cobrado aos veículos importados (a lei refere também o termo admitidos) de outros Estados membros da UE um imposto superior àquele que subsiste nos veículos idênticos transaccionados no mercado nacional, por não aplicar a redução à componente ambiental.

 

43. Tal circunstância configura uma discriminação fiscal proibida pelo art. 110.º TFUE.

 

44. A AT defende os termos da lei vigente explicando que, tratando-se de um encargo cobrado enquanto custo resultante do impacto ambiental, não deve ser entendido como contrária ao artigo 110.º do TFUE, devendo este ser lido em conjunto com as normas europeias e constitucionais que impõem esse desiderato.

 

45. A posição deste tribunal nesta matéria – que tem sido objecto de diversas decisões arbitrais – coincide com a expressa anteriormente no proc. 98/2020-T.

 

46. As taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV não incidem sobre o valor do automóvel, mas têm por base a cilindrada do motor (componente cilindrada) e a quantidade de CO2 emitida por quilómetro (componente ambiental) – sendo que foram estruturadas em taxa normal, taxa intermediária e taxa reduzida e taxa para veículos usados, nos termos do disposto nos artigos 7.º a 11.º do Código do ISV.

 

47. Para o cálculo do ISV devido por veículos usados portadores de matrículas atribuídas por outros Estados membros da UE, dispõe o artigo 11.º/1 e 2 do CISV o imposto  […] é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com excepção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional.

 

48. Esta matéria (da aplicação do ISV aos veículos importados de outros Estados membros) vem sendo objecto de um prolongado atrito entre as instituições europeias e o Estado Português, no tocante à legalidade do regime nacional  (que vem sendo objecto de sucessivas modificações).

 

49. No seguimento de algumas decisões desfavoráveis ao entendimento oficial nacional, o ac. de 22.02.2001 (Gomes Valente, proc.º C-393/98) do Tribunal de Justiça afirmou que o montante máximo do imposto aplicável aos veículos usados importados é determinado pelo do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional (n.º 24).

 

50. O legislador vem, todavia, introduzindo pequenos ajustamentos no regime, sem cuidar de o adequar às exigências resultantes do TFUE, o que deu origem a novas reacções por parte da Comissão Europeia e do TJUE.

 

51. A argumentação da AT na defesa do regime nacional é, quando muito, temerária.

 

52. Começaríamos pelo argumento novo (por confrontação com proc. 98/2020-T): a suposta inexistência de discriminação, que resultará do facto de o disposto nos art. 7.º e 11.º do CISV se aplicar tanto a veículos usados admitidos no território nacional  como aos veículos matriculados no território nacional.

 

53. Importará recordar o conceito de discriminação. Esta ocorre sempre que se trata de forma diversa situações semelhantes ou de forma idêntica situações diferentes.

 

54. Ora, a esta luz, o argumento da AT revela a sua própria inconsistência. De facto, a lei prevê a aplicação da regra do art. 11.º CISV a veículos nacionais, mas apenas em algumas situações: nos casos de atribuição de matrícula definitiva após cancelamento voluntário da matrícula nacional e de transformação do veículo que implique a sua reclassificação fiscal (art. 5.º a) e b) do CISV).

 

55. Essas situações não são, todavia, comparáveis. Desde logo porque se trata de situações muito raras e principalmente porque apenas relevaria se fossem aplicadas às transmissões de veículos com as mesmas idades – o que manifestamente não acontece.

 

56. Este argumento parece surgir enquanto desenvolvimento de um outro anteriormente usado pela AT: de que o regime em causa não prejudica a importação de veículos usados, visto que subsistem níveis razoáveis de importação. Também este argumento não colhe. Mesmo que fosse real (e para isso seria necessário conferir não apenas se existem importações, mas antes se o volume destas é ou não afectado), sempre seria irrelevante: o que o art. 110.º do TFUE exige é a neutralidade fiscal (enquanto expressão de um princípio de não discriminação) a qual pode, em cada caso, contribuir mais ou menos para o funcionamento do mercado interno, mas nem por isso varia o seu grau de exigência.

 

57. Veja-se, neste aspecto, o ac. de 7.03.2010 do TJUE, quando decide, declarando que [o] artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado Membro crie um imposto sobre a poluição que incide sobre os veículos automóveis no momento da sua primeira matrícula nesse Estado Membro, se esta medida fiscal for estruturada de tal maneira que desencoraje a colocação em circulação, no referido Estado Membro, de veículos usados adquiridos noutros Estados Membros, sem, por outro lado, desencorajar a compra de veículos usados da mesma idade e com o mesmo desgaste no mercado nacional. No mesmo sentido V. decisões de 8.04.2011, nos casos Obreja et Darmi (Proc.os C-136/10 e C-178/10), Ijac (Proc.º C-336/10), Sfichi et Ilaş (Proc.osC-29/11 e C-30/11), de 13.07.2011, Druţu (Proc.º C-438/10) e de 3.02.2014, Câmpean et Ciocoiu (Proc.º C‑97/13 et C‑214/13).

 

58. Insiste também a Requerida que o art. 110.º deve ser lido em conjunto (a intenção parece ser no sentido de que deve ser afastado) com as disposições relativas à protecção do ambiente. Tal pretensão não tem fundamento, nem tem cabimento.

 

59. Não é explicado – nem se percebe como poderia ser – porque há-de a defesa do ambiente justificar quaisquer discriminações. De facto, a preocupação ambiental pode ser entendida diversamente pelos diferentes Estados-membros, conduzindo a regimes mais ou menos exigentes, inclusivamente em termos fiscais, mas esses regimes hão-de respeitar o princípio da igualdade e não discriminação.

 

60. De facto, tal como refere a Comissão no pedido relativo ao processo C-168/20 – no qual questiona exactamente esta situação – [a] legislação portuguesa em causa consagra uma discriminação entre a tributação que incide sobre o veículo importado e aquela que incide sobre o veículo nacional similar. As modalidades e a forma de cálculo em vigor levam a que a tributação do veículo importado seja quase sempre mais elevada.

Esta situação é tanto mais preocupante quanto ela é contrária à jurisprudência assente do Tribunal de Justiça: a legislação portuguesa relativa ao cálculo do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros já foi objecto de procedimentos de infracção anteriores e de vários acórdãos do Tribunal de Justiça.

 

61. Na verdade (ao contrário do que pretende a AT), a leitura do art. 191.º TFUE (e bem assim das regras constitucionais relativas ao ambiente) não impõe qualquer adequação do princípio da neutralidade fiscal, pela simples razão que não existe qualquer conflito entre elas.

 

62. A invocação do princípio da equivalência merece a mesma apreciação: pode o legislador entender deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária – tal como refere a Requerida  –, mas isso não lhe permite taxar de forma agravada os veículos usados importados. E é sempre disso que se trata.

 

63. O argumento acessório da compensação pelos efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente perde coerência quando vê acrescentado que essa compensação deve ser exigida tanto em relação a veículos usados como novos. Isto porque, por um lado, é indiscutível que quanto mais antigo for um veículo, menor será a sua capacidade de poluir, na estrita medida em que se aproxima do limite da sua vida útil. E, por outro lado, não sendo essa compensação exigida na transacção de veículos nacionais usados, bem se vê que consubstancia uma clara discriminação fiscal.

 

64. O TJUE pronunciou-se expressamente sobre a matéria, no ac. de 7.03.2011 (Tatu, proc. C-402/09), explicando que a aplicação de uma taxa relativa à poluição aplicada aos veículos automóveis aquando da sua matrícula em território nacional apenas é admissível na medida em que, quando aplicável a veículos usados importados de outro Estado membro, não excede o montante residual da taxa incorporada no valor dos veículos usados já matriculados no território nacional (n.os 43 e 47). É isto que o legislador nacional insiste em não aceitar nas sucessivas alterações do regime, abstendo-se com isso de tomar as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos tratados (art. 4.º/3 §2 TFUE).

 

65. A liberdade argumentativa da AT assume mesmo algum excesso quando pretende que uma eventual aplicação dos níveis de redução previstos para a componente cilindrada à componente ambiental redundaria numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício.

 

66. Se, do que se trata, é sempre e apenas da neutralidade fiscal, desta não pode, por definição, resultar a atribuição de qualquer benefício. Pretender o contrário será mais do que discutível.

 

67. A realidade é que, ao contrário do que pretende a Requerida, se o montante do imposto de registo que incide sobre os veículos usados importados excede o montante residual deste incorporado no valor dos veículos usados similares já registados no mercado nacional, tal arrisca se a favorecer a venda de veículos usados nacionais e a desencorajar assim a importação de veículos usados similares (ac. 19.12.2013, X, Proc.º C 437/12, n. 31)

 

68. De facto, o montante do imposto cobrado no momento da matrícula de um veículo automóvel é incorporado no valor desse veículo. Quando um veículo matriculado com pagamento de um imposto num Estado Membro é, posteriormente, vendido nesse Estado Membro como veículo usado, o seu valor comercial compreende o montante residual desse imposto. Se o montante do imposto que, na data da sua matrícula, incide sobre um veículo usado importado do mesmo tipo, com as mesmas características e o mesmo desgaste exceder o referido montante residual, há violação do artigo 110.o TFUE (ac. 9.12.2016, Budișan, Proc. C 586/14, n. 38).

 

69. A AT prossegue a sua argumentação invocando toda uma série de inconstitucionalidades. Mas nenhuma colhe.

 

70. Sobre o problema de qualquer inconstitucionalidade sempre se recordarão, em geral, os termos do art. 8º/4 da CRP: as disposições dos tratados que regem a UE e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.

 

71. É, portanto, a própria Constituição que reconhece que a aplicação do direito da UE se faz nos termos definidos pela UE. E a propósito, os Estados membros convieram que, em conformidade com a jurisprudência constante do TJUE, os tratados e o direito adoptado pela União com base nos tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência (Declaração 17 anexa ao TFUE).

 

72. Pena é que a AT persista numa perspectiva incompreensivelmente nacionalista, ignorando que o princípio de legalidade não se esgota no ordenamento interno. Pelo contrário, este princípio impõe a devida ponderação do direito da UE que é directamente aplicável na ordem interna, nos termos constitucionais referidos.

 

73. O último argumento da Requerida refere que, sendo-lhe desfavorável a decisão, terá meios de reacção muito limitados o que configurará uma violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.

 

74. Não pode deixar de se estranhar que a AT, que beneficia dos maiores privilégios legais em matéria jurisdicional, venha invocar o direito a uma tutela efectiva, sendo que, mais uma vez, o regime não é mais favorável para o Requerente.

 

75. Nestes termos, entende este tribunal arbitral que o art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto aquela norma não pode, em conformidade com o que esta dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de forma a que o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.

 

76. A par do pedido de declaração da ilegalidade parcial das liquidações de ISV identificadas no processo, o Requerente peticiona ainda juros indemnizatórios.

 

77. No que diz respeito ao pagamento de juros indemnizatórios, de acordo com o disposto no art. 24.º/5 do RJAT é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do acto tributário.

 

78. De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º/1 b) do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a actos tributários (v.g. de liquidação), que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.

 

79. Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos art. 43.º/1 e 2, e 100.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

80. O direito a juros indemnizatórios depende, assim, da verificação de um erro imputável aos serviços da Requerida, do qual tenha resultado um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

 

81. Na sequência da declaração de ilegalidade parcial dos actos de liquidação de ISV identificados, na medida do peticionado pelo Requerente, e nos termos do disposto no art. 24.º/1 b) do RJAT (em conformidade com o que aí se estabelece), a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, pelo que terá de haver lugar ao reembolso do montante pago pelo Requerente, relativo ao ISV na parte em que a liquidação se deve considerar anulada, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade já assinalada.

 

82. Tratando-se de matéria na qual o Estado português vem sendo sucessivamente condenado – facto esse que é do pleno conhecimento dos serviços – e bem assim, porque se têm repetido decisões no sentido de impor à AT a correcção da situação em apreço – decisões essas que os serviços insistem em ignorar, mantendo uma visão da legalidade que nem no plano formal alcança sustentação, consideram-se preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, aos quais o Requerente terá direito, à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente, os quais serão contados de acordo com o disposto no art. 61.º/3 do CPPT, ou seja, desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito.

 

IV. Decisão

Em face do supra exposto, decide-se

1.            Julgar procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de ISV identificadas no pedido arbitral, determinando-se a sua anulação parcial e ordenando-se o reembolso ao Requerente da quantia paga em excesso, no montante de € 3.165,14;

2.            Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;

3.            Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.

 

V. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em 3.165,14 € (três mil cento e sessenta e cinco euros e catorze cêntimos) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

VI. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 612 € (seiscentos e doze euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 14 de Maio de 2021

 

O Árbitro

Rui M. Marrana

 

Texto elaborado em computador, nos termos do disposto

no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.