Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 281/2019-T
Data da decisão: 2020-01-22  IRC  
Valor do pedido: € 63.175,51
Tema: IRC - Artigo 88.º do CIRC – Despesas não documentadas
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros, Fernanda Maçãs (na qualidade de árbitro-presidente), Dra. Elisabete Flora Louro Martins (na qualidade de árbitro vogal) e Dra. Sofia Cardoso (na qualidade de árbitro vogal), foram designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o TRIBUNAL ARBITRAL COLETIVO, Tribunal este que foi constituído em 02 de Julho de 2019, acordam o seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

1. A..., S.A., (adiante designada apenas por Requerente), Pessoa Coletiva registada com o n.º..., com sede social na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, apresentou no dia 17 de Abril de 2019 pedido de pronúncia arbitral nos termos da alínea a do n.º 1 do art.º 2.º e dos artigos 15.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado apenas por RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, Requerida).

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede a anulação do despacho do Chefe do Serviço de Finanças Porto ..., proferido no uso da competência delegada pelo Senhor Diretor de Finanças do Porto (integrante da Requerida), que indeferiu expressamente o procedimento de Reclamação Graciosa n.º ...2018...), o qual teve por objeto a liquidação (relativa ao exercício de 2014) de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) e correspondentes juros n.º 2018..., no montante de EUR 56.676,95. A liquidação reclamada, teve origem nas correções resultantes das conclusões dos relatórios da ação inspetiva externa de âmbito parcial, realizada ao abrigo das Ordens de Serviço n.º OI2017..., OI2017... e OI2017... .

 

2. O pedido de pronuncia arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 18 de Abril de 2019 e notificado à Requerida em 24 de Abril de 2019.

 

3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 11 de Junho de 2019 ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT (Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, tendo todos (os árbitros designados) comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

4. Em 11 de Junho de 2019, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo foi constituído em 02 de Julho de 2019.

 

6. Em 02 de Julho de 2019, o Tribunal Arbitral proferiu Despacho Arbitral para notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo, e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. Deste Despacho foi a Requerida notificada em 03 de Julho de 2019.

 

7. Em cumprimento do despacho arbitral de dia 02 de Julho de 2019, em 18 de Setembro de 2019 a Requerente apresentou Resposta ao pedido de pronúncia arbitral e juntou aos autos o respetivo processo administrativo. Na mesma data, a Requerente foi notificada de tais diligências realizadas pela Requerida.

 

8. Em 21 de Setembro de 2019, foi proferido despacho arbitral, através do qual foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e fixado o dia 31 de Dezembro de 2019 como data limite para a prolação de decisão arbitral.

 

10.As partes não produziram alegações. 

 

11.Em 22 de Dezembro de 2019 foi proferido despacho arbitral — notificado às partes em 23 de Dezembro de 2019 — que determinou a prorrogação do prazo da arbitragem por dois meses e indicou como data limite para ser proferida decisão o dia 28 de Fevereiro de 2020.

 

12. Em termos sintéticos, a Requerente alega, a fundamentar o pedido Arbitral, que é um sujeito passivo de IRC, enquadrado no regime geral, que desenvolve como objeto principal a atividade de construção de imóveis, bem como a sua compra e venda. Com início em 15.05.2017, a Requerente foi alvo de uma ação inspetiva externa, de âmbito parcial, com as Ordens de Serviço n.º OI2017..., OI2017... e OI2017..., na sequência da qual lhe foi imposta a liquidação de IRC (Tributação Autónoma) e correspondentes juros n.º 2018 ..., relativa ao exercício de 2014, no montante de EUR 56.676,95. A Requerida justificou tal liquidação pelo facto de a Requerente alegadamente não ter suporte documental que permitisse a validação da natureza da operação registada, no ano de 2014, na conta SNC 4511 - “Investimentos financeiros em curso”, por contrapartida da conta 278111001 – “Devedores diversos – Diversos a regularizar”, no montante de EUR 94.461,58, determinando assim a sua sujeição a tributação autónoma, nos termos do nº 1 do artigo 88.º do CIRC. Tendo em vista a anulação da referida liquidação, a Requerente apresentou, em 26.06.2018, a Reclamação Graciosa n.º ...2018..., onde disponibilizou à Requerida o referido suporte documental. Com a apresentação do referido suporte documental, a Requerente julga ter demonstrado à Requerida que os valores em apreço respeitavam a dívidas dos anteriores sócios /administradores à Empresa (as quais haviam sido levadas à conta de Investimentos Financeiros em curso pelo anterior sócio/administrador). Sem prejuízo dos esclarecimentos prestados, foi a Requerente notificada do projeto de indeferimento da Reclamação Graciosa – entretanto tornado definitivo em 20.01.2019 – em que a Requerida considerou (simplesmente) que, pese embora a Requerente tenha apresentado o suporte documental que esclarece a natureza dos montantes em apreço, não demonstra a que título, em 2014, esses valores foram transferidos da conta de “Dívidas a Receber dos Sócios” para a conta de “Investimentos Financeiros em Curso”, desconhecendo-se a natureza de tal investimento. Assim, reiterou a Requerida que o referido movimento contabilístico não estava devidamente documentado, devendo ser objeto de tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC;

 

13. Entende a Requerente, que a questão essencial a decidir no presente processo consiste em saber se a regularização dos saldos da conta de “Sócios” por contrapartida da conta de “Investimentos Financeiros em Curso” pode ser atribuída à realização de despesas não documentadas, e como tal sujeita a tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do CIRC. Para a Requerente a resposta não pode deixar de ser negativa, porque: (i) sendo possível identificar os respetivos beneficiários, as despesas identificadas não podem ser qualificadas como despesas não documentadas, para efeitos do artigo 88.º n.º 1 do CIRC; e (ii) os montantes em apreço não respeitam a gastos incorridos no exercício de 2014, pelo que, ao abrigo do princípio da especialização dos exercícios consagrado no n.º 1 do artigo 18.º do CIRC, nunca seriam tributáveis nesse período.

 

14. Em sede de Resposta, alega a Requerida que: (i) a “documentação” apresentada pela Requerente não é apta a suportar a (suposta) operação económica subjacente ao movimento contabilístico. A Requerida alega a existência das seguintes “discrepâncias, incoerências” no contrato de compra e venda de ações e parceria de investimentos”, assinado a 2011-12-27 (doravante, CCVAPI): (a) o contraente B... intervém numa dupla qualidade: a título de adquirente e, simultaneamente, enquanto outorgante da Requerente; (b) o contraente B... foi administrador único da Requerente entre 2011-12-28 e 2014-07-23; e (c) o contraente B... é contabilista da Requerente desde 2014-08-19, sendo assim incompreensível que uma parte contratante que é simultaneamente contabilista da Requerente (ou seja, de uma pessoa cujo grau de conhecimento e de discernimento é superior ao do normal cidadão) não cumprir as obrigações contabilísticas da própria empresa, previstas no CIRC, designadamente ter todos os lançamentos apoiados em documentos justificativos, ter todas as operações registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras e apresentar os documentos sempre que necessário, in casu logo durante o procedimento inspetivo. Estranha ainda a Requerida a “(suposta)” dificuldade da Requerente em apresentar tal documento em sede inspetiva, de ter tido o apoio de especialistas para o efeito e do desconhecimento do valor nas contas, ao que acresce não ter sido o documento apresentado para efeitos de imposto do Selo e não ter sido carimbado. Relativamente ao “aviso lançamento”, alega a Requerida que “qualquer leitor medianamente atento percebe que a esmagadora maioria dele contém rasuras, traduzidas na colocação de fita corretora branco em vários campos, com a aposição de novas menções nos espaços corrigidos/apagados”;

 

15. Alega ainda a Requerida que, na situação em apreço, aquilo que está em causa é o registo de uma operação, pela Requerente, no ano de 2014, na conta SNC 4511 – “Investimentos financeiros em curso”, por contrapartida da conta 278111001 – “Devedores diversos – Diversos a regularizar”. Como tal, a questão que se impunha à Requerente resolver é: qual é, então, o investimento financeiro em curso? Alega a Requerida que a Requerente não respondeu a estas questões e que o CCVAPI é insuscetível de demonstrar, por si só, as características essenciais da operação económica subjacente ao movimento contabilístico, e por conseguinte tal documento não demonstra a existência de qualquer investimento financeiro em curso;

 

16. No que respeita ao segundo argumento alegado pela Requerente (os montantes em apreço não respeitam a gastos incorridos no exercício de 2014), a Requerida alega que que a correção sub judice efetuada pela Requerida teve por objeto um movimento contabilístico efetuado pela Requerente na sua contabilidade, precisamente no exercício de 2014, pelo que só em 2014 (e não em 2011) é que ocorreu o movimento contabilístico que regulariza o valor da dívida, por contrapartida de investimentos financeiros. “Como tal, a questão suscitada pela Requerente é totalmente descabida, uma vez que a correção insere-se no âmbito do período inspecionado”.

 

II.            SANEAMENTO

 

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.          FACTOS PROVADOS

 

1)            A Requerente é um sujeito passivo de IRC, enquadrado no regime geral, que desenvolve como objeto principal a atividade de construção de imóveis, bem como a sua compra e venda;

2)            A Requerente foi alvo de uma ação inspetiva externa de âmbito parcial, com as Ordens de Serviço n.º OI2017..., OI2017... e OI2017..., em sequência da qual lhe foi imposta a liquidação (relativa ao exercício de 2014) de IRC (Tributação Autónoma) e correspondentes juros n.º 2018..., no montante de EUR 56 676,95, com fundamento no facto de alegadamente, não ter suporte documental que permitisse a validação da natureza da operação registada, no ano de 2014, na conta SNC 4511 - “Investimentos financeiros em curso”, por contrapartida da conta 278111001 – “Devedores diversos – Diversos a regularizar”, no montante de EUR 94 461,58, determinando assim a sua sujeição a tributação autónoma, nos termos do nº 1 do artigo 88.º do CIRC;

3)            Em 27 de Dezembro de 2011, foi celebrado o CCVAPI entre C... (Primeira Outorgante), B... (Segundo Outorgante) e a Requerente (Terceira Outorgante), através do qual a Primeira Outorgante (acionista da Requerente), vende ao Segundo Outorgante as 1530 ações que detém na Requerente pelo preço de EUR 100 000,00 (cem mil euros), sendo o preço da compra e venda liquidado mediante a assunção, até ao mesmo valor, da dívida (no valor de EUR 104 407,47) que a Primeira Outorgante mantém em relação à Requerente;

4)            No Extrato de Conta 26822911 de 1 de Janeiro de 2011 a 30 de Novembro de 2011, que apresentava em 30 de Novembro de 2011 um saldo de EUR 90 863,77 (débito), estão descritos os lançamentos efetuados nesta conta de sócios (2682911), os quais estão suportados pelos documentos de suporte anexos aos Avisos de Lançamento juntos aos autos pela Requerente;

5)            O Extrato de Conta 278111001 – “Sócios a Regularizar”, apresentava em 31 de Dezembro de 2011 um saldo (débito) no valor de EUR 104 407,47. Em 31 de Dezembro de 2013 o saldo (a débito) era no valor de EUR 95 093,17;

6)            De acordo com o balancete geral do ano de 2017, a conta do sócio B... (278111002) apresentava saldo (a débito) de EUR 94 461,58;

7)            B... renunciou ao cargo de gerente da Requerente com efeitos a 23 de Julho de 2014 e cedeu as suas ações na Requerente em 24 de Julho de 2014, conforme Contrato de Compra e Venda de Ações junto;

8)            A Requerida indeferiu a reclamação graciosa apresentada pela Requerente, por ter considerado que os documentos justificativos da transação não existem ou são insuficientes para demonstrar a realidade da transação que pretendem justificar, o que leva por conseguinte ao entendimento que a transação se deve considerar como não documentada e como tal, objeto de tributação autónoma, nos termos do n.º 1 do artigo 88.º do Código do IRC.

 

IV.          FACTOS NÃO PROVADOS E FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base na apreciação da prova documental junta aos autos pelas partes, particularmente pela Requerente.

Na impugnação dos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral (efetuada pela Requerida na sua resposta), a Requerida limita-se a fazer meras considerações e insinuações gerais no intuito de questionar a validade dos documentos de suporte apresentados pela Requerente, sem apresentar qualquer elemento de prova, em concreto, que permita a este Tribunal concluir que os elementos de prova apresentados pela Requerente não são idóneos para demonstrar os factos que estão traduzidos nos mesmos, designadamente, o facto de existir desde Dezembro de 2011 uma dívida da então sócia C... à Requerente, dívida que foi assumida por B... .

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V.           DA APRECIAÇÃO JURÍDICA

 

Está em causa, no presente pedido de pronúncia arbitral, a legalidade do enquadramento da operação registada pela Requerente no ano fiscal de 2014 na conta SNC 4511 - “Investimentos financeiros em curso”, por contrapartida da conta 278111001 – “Devedores diversos – Diversos a regularizar”, no montante de EUR 94.461,58 como como “despesas não documentadas”, sujeitas a tributação autónoma nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 88.º n.º 1 do CIRC.

 

A sujeição de determinadas despesas a tributação autónoma foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 192/90 de 9 de Junho, no que respeita às despesas confidenciais ou não documentadas, e posteriormente foi aplicada a um leque diversificado de situações que estão previstas no atual artigo 88.º do Código do IRC.  No que respeita às despesas não documentadas, o artigo 88.º n.º 1 do Código do IRC (na redação introduzida pela Lei n.º 2/2014 de 16 de Janeiro, aplicável aos períodos de tributação que se iniciem em 1 de Janeiro de 2014), prevê que as mesmas “(...) são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A”.

 

Seguindo de perto a doutrina do Acórdão do CAAD de 10 de Julho de 2019, proferido no processo n.º: 542/2018-T:

 

“Importa começar por dizer para um melhor enquadramento da questão que vem colocada, que a tributação autónoma constitui a principal excepção à tributação do rendimento segundo o princípio do rendimento líquido ou rendimento real, pelo qual o rendimento das pessoas singulares é apurado depois de deduzidas as despesas feitas para a sua obtenção e a tributação das sociedades é determinada de acordo com o lucro apurado pela contabilidade (SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 406).

 

A introdução desse mecanismo é justificada por se reportar a despesas cujo regime fiscal é difícil de discernir por se encontrarem numa “zona de interseção da esfera privada e da esfera empresarial” e tem em vista prevenir e evitar que, através dessas despesas, as empresas procedam à distribuição oculta de lucros ou atribuam rendimentos que poderão não ser tributados na esfera dos respetivos beneficiários, tendo também o objetivo de combater a fraude e a evasão fiscais (idem, pág. 407).

 

Para além disso, a tributação autónoma, embora regulada normativamente em sede de imposto sobre o rendimento, é materialmente distinta da tributação em IRC, na medida em que incide não diretamente sobre o lucro tributável da empresa, mas sobre certos gastos que constituem, em si, um novo facto tributário  (que se refere não à perceção de um rendimento mas à realização de despesas). E, desse modo, a tributação autónoma tem ínsita a ideia de desmotivar uma prática que, para além de afetar a igualdade na repartição de encargos públicos, poderá envolver situações de menor transparência fiscal, e é explicada por uma intenção legislativa de estimular as empresas a reduzirem tanto quanto possível as despesas que afetem negativamente a receita fiscal.

 

Naquelas situações especiais elencadas na lei, o legislador optou, por isso, por sujeitar os gastos a uma tributação autónoma como forma alternativa e mais eficaz à não dedutibilidade da despesa para efeitos de determinação do lucro tributável, tanto mais que quando a empresa venha a sofrer um prejuízo fiscal, não haverá lugar ao pagamento de imposto, frustrando-se o objetivo que se pretende atingir que é o de desincentivar a própria realização desse tipo de despesas.

 

A tributação autónoma incide, nestes termos, sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas , e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

 

A lógica da tributação autónoma parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para efectuar gastos que envolvem situações de menor transparência fiscal e afectam negativamente a receita fiscal. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas.

 

Como tem sido frequentemente assinalado, a tributação autónoma começou por se reportar a despesas confidenciais e não documentadas (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/90, de 9 de junho), passando depois a abranger os encargos com viaturas, as importâncias pagas a pessoas com regime fiscal mais favorável e as despesas de representação, e, mais tarde, os encargos com ajudas de custo ou despesas de deslocação. Com a Lei do Orçamento do Estado de 2010 (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), a tributação autónoma veio ainda a incluir os encargos relativos a indemnizações pagas a gestores, administradores ou gerentes por virtude de cessação de funções, e, em certas condições, os encargos relativos a bónus e outras remunerações variáveis pagas a gestores, administradores ou gerentes.

 

É o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea b), do Código do IRC que especifica como encargos não dedutíveis para efeitos fiscais, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação, as "despesas não documentadas". Por sua vez, o artigo 88.º, n.º 1, declara que as "despesas não documentadas" são tributadas autonomamente à taxa de 50% sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A.

 

Importa ainda ter presente que nos termos do disposto no artigo 123.º, n.º 1, do Código do IRC, "as sociedades comerciais (...) que exerçam, a título principal, uma actividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direcção efectiva em território português (...), são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável", sendo que nos termos do disposto no artigo 123.º, n.º 2, alínea a), "na execução da contabilidade (...) todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário"

 

Dito isto, cabe passar à caracterização das despesas não documentadas.

 

Como despesas não documentadas devem entender-se aquelas que não têm por base qualquer documento justificativo ou de suporte documental a nível contabilístico, e, como tal, não especificam a sua natureza, origem ou finalidade (acórdão do TCA Sul de 7 de Fevereiro de 2012, Processo n.º 04690/11). Havendo de distinguir-se entre as despesas não documentadas e as despesas não devidamente documentadas, isto é, aquelas cujo suporte documental não obedece aos requisitos legalmente exigidos, embora permita identificar os beneficiários e a natureza da operação" e que apenas acarretam a não dedutibilidade para efeitos fiscais.

 

Ainda segundo o acórdão do STA de 7 de Julho de 2010 (Processo n.º 0204/10), "[a] apreciacão da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se substancia a despesa" (a despesa confidencial encontra-se integrada agora no conceito amplo de despesas não documentadas)”.

 

Nos termos do disposto no artigo 74.º n.º 1 da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito da AT de praticar o ato de liquidação adicional de imposto, cabe à AT, na medida em que o ato de liquidação adicional de imposto constitui um ato lesivo da esfera jurídica do contribuinte, o que determina que a atuação da AT seja uma atuação vinculada pelo princípio da legalidade na sua dimensão princípio de preferência de lei. “(...) esta dimensão do princípio da legalidade determina que a Administração Fiscal só pode praticar o ato tributário quando a lei o permitir, cabendo-lhe nomeadamente o ónus de demonstrar os pressupostos da sua atuação, enquanto factos constitutivos do direito de tributar, por aplicação nomeadamente dos artigos 74.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária bem como do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, sob pena de ilegalidade do ato.”

 

Assim, “Cabe à AT, enquanto fundamentação formal do acto de liquidação, a invocação do preenchimento dos concretos pressupostos legais de que depende o seu direito à liquidação, com elementos claros, suficientes e congruentes, de molde a permitir ao administrado ajuizar da correcção/legalidade da mesma de molde a com ela se possa conformar ou vir a impugná-la, graciosa ou judicialmente, se a entender eivada de algum vício que a afecte na sua legalidade”, pelo que “As despesas confidenciais ou não documentadas pressupõem a existência das operações a que respeitam. Daí a sua tributação autónoma”»” .

 

A emissão do ato de liquidação de IRC, com base no disposto no artigo 88.º n.º 1 do CIRC (tributação autónoma de despesas não documentadas), exige o cumprimento (por parte da AT) do ónus da prova (o que é absolutamente essencial para reconhecer o direito da AT de emitir o ato de liquidação): (i) da realização (por parte do contribuinte) da despesa que a AT pretende sujeitar a tributação autónoma e (ii) que o beneficiário da despesa considerada não é conhecido ou cognoscível.

 

Reportando-nos ao caso concreto, teremos de concluir que nenhum dos pressupostos identificados foi demonstrado pela Requerida. Desde logo, a Requerida pretende sujeitar a tributação autónoma a operação contabilística registada pela Requerente no ano fiscal de 2014 e não as despesas que em concreto foram realizadas pela Requerente (entre 2011 e 2013) e que deram origem ao saldo objeto da operação em causa nos autos .

 

Ora, na tributação das despesas não documentadas, conforme exposto supra, “A tributação autónoma incide, nestes termos, sobre certas despesas tipificadas na lei fiscal que tenham sido efetuadas pela empresa, e apenas sobre essas despesas, e não visa a tributação dos rendimentos empresariais que tenham sido auferidos no respetivo exercício económico. E o objetivo do legislador - como se referiu – é o de desincentivar a realização de despesas que possam repercutir-se negativamente na receita fiscal e reduzir artificiosamente a própria capacidade contributiva da empresa.

A lógica da tributação autónoma parece ser esta. A empresa revela disponibilidade financeira para efectuar gastos que envolvem situações de menor transparência fiscal e afectam negativamente a receita fiscal. Nessa circunstância, o contribuinte deverá estar em condições de suportar um encargo fiscal adicional relativamente a esses mesmos gastos (que poderiam ser evitados) e que se destina a compensar a vantagem fiscal que resulta da redução da matéria coletável por efeito da realização dessas despesas”. 

 

Em suma, a tributação autónoma incide sobre despesas individualmente consideradas (não suportadas por documentos), pagas pelo Sujeito Passivo com o intuito de reduzir a sua base tributável. A taxa de tributação autónoma é aplicada individualmente a cada despesa, sendo que a operação de liquidação se traduz apenas na agregação, para efeitos de cobrança, do conjunto de operações sujeitas a tributação autónoma.

 

No caso concreto, a Requerida não identifica que despesas (não documentadas) realizadas pela Requerente pretende sujeitar a tributação autónoma. E não demonstra: (i) que as despesas que pretende sujeitar a tributação autónoma foram efetivamente realizadas pela Requerente, nem (ii) que o registo das despesas em causa (custo do exercício) tenha gerado um benefício ilegítimo para a Requerente (designadamente a redução da base tributável para efeitos de IRC).

 

E, no que respeita à prova de que o beneficiário da despesa considerada não é conhecido ou cognoscível, no registo contabilístico efetuado pela Requerente na conta de Sócios (26822911), consta o descritivo dos lançamentos efetuados durante o ano de 2011 de despesas efetuadas pela Requerente em benefício dos respetivos sócios, o que gerou uma dívida dos sócios à Requerente. Também da análise dos documentos é possível perceber que o saldo da conta de Sócios (26822911) passa em 30 de Novembro de 2011 para a conta de Sócios a Regularizar (278111001), a qual em 31 de Dezembro de 2011 regista um saldo (a débito) no valor de EUR 104 407,47, valor este que corresponde ao valor da dívida que no Considerando Segundo do CCVAPI a então sócia C... assume e no mesmo contrato transmite a B... .

 

Uma vez que a partir da contabilidade da Requerente conseguimos apurar que as despesas em causa estão efetivamente registadas na conta de sócios, teremos de concluir que os destinatários das mesmas são efetivamente conhecidos (são os então sócios da Requerente, que estão identificados nos autos, designadamente no CCVAPI). O facto de o beneficiário das despesas identificadas ser conhecido, determina que as despesas lançadas na contabilidade da Requerente em 2011 — e que geraram o saldo objeto da operação contabilística em causa nos autos —, não podem ser objeto de tributação autónoma enquanto despesas não documentadas, o que confirma a ilegalidade do ato de liquidação objeto dos autos que não poderá assim manter-se no ordenamento jurídico.

 

Por ser manifestamente inútil, uma vez que a apreciação efetuada determina a procedência total do pedido de pronúncia arbitral, o Tribunal não conhece a segunda questão alegada pela Requerente no que respeita à violação por parte da Requerida do princípio da especialização do exercício.

 

Face ao direito aplicável e ao facto tributário em questão, é julgado totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, com todas as consequências legais.

 

VI.          DECISÃO

 

Termos em que se decide:

a)            Julgar totalmente procedente o presente pedido de pronúncia arbitral, e por conseguinte:

b)           Anular o despacho do Senhor Chefe do Serviço de Finanças Porto ... que indeferiu expressamente a Reclamação Graciosa apresentada pela Requerente;

c)            Anular a liquidação de IRC e correspondentes juros n.º 2018 ..., relativa ao exercício de 2014, no montante de EUR 56.676,95, com todas as consequências legais;

d)           Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.

 

VII.         VALOR DO PROCESSO

 

Em conformidade com o disposto nos arts. 306.º, n.º 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 63 175,51.

 

VIII.       CUSTAS

 

Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT e no artigo 4.º, n.º 4, e na Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em EUR 2 448,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.

 

Notifique-se.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2020.

 

 

Fernanda Maçãs (presidente) 


Drª Elisabete Flora Louro Martins (árbitro vogal)

Drª Sofia Cardoso (árbitro vogal)