Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 246/2025-T
Data da decisão: 2025-11-05  IVA  
Valor do pedido: € 224.069,85
Tema: IVA — Passeios marítimo-turísticos.
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SUMÁRIO: I — Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das normas jurídicas, dos quais, resulta que o percurso interpretativo da lei não se deve ater, apenas e só, à sua letra, mas reconstituir a partir dela o pensamento legislativo, contrapondo letra (o enunciado verbal) e espírito (o pensamento) da lei, devendo a atividade interpretativa, como não poderia deixar de ser, procurar este a partir daquela.

II­ — Na interpretação da verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA, o resultado interpretativo que melhor se coaduna com o pensamento legislativo e melhor se compatibiliza com o elemento histórico-sistemático e a teleologia da norma é o de que, através da utilização da locução conjuntiva “bem como” imediatamente antes do inciso “transporte de pessoas no âmbito de atividades marítimo-turísticas” o legislador pretendeu justamente estabelecer que, à semelhança do “serviço de transporte” e do “suplemento de preço exigido pelas bagagens e reservas de lugar”, também a atividade de prestação de serviços de transporte em passeios marítimos de natureza prevalen­te­mente lúdica e recreativa se subsume no âmbito de aplicação da taxa reduzida de IVA a que tal verba se refere.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

— I —

(relatório)

 

            A..., LDA., contribuinte n.º ..., com sede na Rua..., ..., em Albufeira (doravante “a requerente”), veio deduzir pedido de pronúncia arbitral tributária contra a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante “a AT” ou “a requerida”), peticionando a declaração da ilegalidade e anulação parcial dos atos de liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) relativos aos períodos tributários compreendidos entre o 2.º trimestre de 2021 e o mês de abril de 2024 (doravante “as Liquidações Impugnadas”).

Para tanto alegou, em síntese, que as Liquidações Impugnadas têm como fundamento vários relatórios de inspeção tributária elaborados no mês novembro de 2024 no âmbito das ações inspetivas credenciadas pelas ordens de serviços n.º OI2024... (para o exercício de 2021), n.º OI2024... (para o exercício de 2022), n.º OI2024... (para o exercício de 2023) e n.º OI2024... (para o exercício de 2024), todas elas desencadeadas na sequência do pedido de reembolso de IVA apresentada pela requerente na sua declaração periódica relativa ao mês de abril de 2024, no valor de EUR 579.774,86; que a atividade principal da requerente consiste na exploração da sua frota de embarcações e que estas se destinam exclusivamente à realização de passeios marítimo-turísticos, com rotas estruturadas, em águas marítimas, maioritariamente entre a costa litoral dos concelhos de Portimão e Lagoa, estando para esse efeito registada no Registo Nacional dos Agentes Animação Turística sob o n.º 847/2020 com a designação comercial “Atlantis Tours”; que, sobre os valores faturados aos seus clientes, a requerente liquidou IVA à taxa reduzida nos casos do serviço de transporte marítimo de passageiros com finalidade turística; que, porém, e no entendimento sufragado pela AT nas Liquidações Impugnadas, o serviço de transporte marítimo de passageiros com finalidade turística não integra a noção de “transporte de pessoas no âmbito das atividades marítimo-turísticas” na aceção da verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA, pelo que corrigiu a taxa de imposto aplicada às prestações de serviços de transporte de pessoas no âmbito das atividades marítimo-turísticas, de 6% para 23%, procedendo à liquidação adicional de IVA; que a alteração à redação da verba 2.14 da Lista anexa ao CIVA resultante da Lei do Orçamento de Estado para 2019 (“LOE 2019”) tem um sentido claro que foi o de esclarecer que o passeio marítimo turístico, como o que está em causa na presente arbitragem, é tributado como transporte de passageiros; finalmente, que o entendimento vertido nas Liquidações Impugnadas viola frontal e grosseiramente o comando normativo inserido no texto da verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA pela LOE 2019. 

Concluiu peticionando a declaração da ilegalidade e anulação parcial das Liquidações Impugnadas.

Juntou documentos e procuração forense, declarando não pretender proceder à designação de árbitro. Atribuiu à causa o valor de EUR 224.069,85 e procedeu ao pagamento da taxa de arbitragem inicial.

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            Constituído o Tribunal Arbitral Singular, nos termos legais e regulamentares aplicá­veis, foi determinada a notificação da administração tributária requerida para os efeitos previstos no art. 17.º do RJAT.

            Depois de devidamente notificada, a requerida veio apresentar resposta, na qual se defendeu por impugnação. Sustentou a requerida, em síntese, que a redação introduzida na verba 2.14 da Lista anexa ao CIVA pela LOE 2019 visa apenas abranger o transporte de passageiros com o objetivo final e último da satisfação da necessidade de mobilidade de um local para outro, limitando, dessa forma, a aplicação da taxa reduzida, tão só, às atividades marítimo-turísticas que se cinjam ao transporte de passageiros; finalmente, que o passeio marítimo-turístico poderá beneficiar da aplicação da referida verba do CIVA apenas se se resumir ao serviço de transporte de pessoas, sendo inegável que o serviço prestado pela requerente não é o transporte de passageiros propriamente dito, mas sim um conjunto de serviços em que o transporte é um dos elementos necessários mas não a finalidade da prestação de serviços, nem o elemento que a caracteriza, já que os clientes escolhem o destino que irão visitar em função da experiência turística que ambicionam ter, sendo o transporte apenas um elemento necessário e instrumental à prossecução dessa finalidade.

            Concluiu pela improcedência do pedido e sua consequente absolvição. Juntou um despacho de nomeação de mandatários forenses e processos administrativos.

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            Pelo despacho de 31-07-2020 foi indeferido o requerimento de produção de prova testemunhal apresentado pela requerente, dispensada a realização da reunião a que se refere o art. 18.º do RJAT e convidadas as partes a, querendo, procederem à apresentação de alegações escritas. Ambas as partes alegaram, mantendo no essencial as posições que já haviam sustentado nos respetivos articulados, tendo ainda a requerente juntado o comprovativo de pagamento do remanescente da taxa de arbitragem.

 

 

— II —

(saneamento)

 

Nos termos do art. 13.º do CPTA, aplicável à arbitragem tributária por via do art. 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT, o conhecimento da competência precede o de todas as demais matérias. Porém, uma vez que, por um lado, o âmbito de atuação da jurisdição arbitral tributária está li­mitado em razão do valor da causa (art. 3.º, n.º 1, da Port. n.º 112-A/2001) e, por outro lado, a competência funcional das formações, singulares ou colegiais, de julgamento está igualmente dependente do concreto valor fixado para cada arbitragem (art. 5.º, n.os 2 e 3, do RJAT), ter-se-á, primeiramente, de proceder à determinação do valor da causa que funciona assim como uma condição prévia à cognição da competência. 

Ora, nos termos do art. 97.º-A do CPPT, quando se impugnem atos de liquidação o valor atendível, para efeitos de custas, será o da importância cuja anulação se pretende. Tendo presente que a requerente peticiona a invalidação parcial de diversos atos tributários pelo montante total de EUR 224.069,85 que alega ter suportado indevidamente e não se vislum­brando qualquer motivo para divergir dessa quantificação, há que aceitar o montante indicado na p.i., que aliás não foi objeto de impugnação pela requerida. 

Fixa-se assim à presente arbitragem o valor de EUR 224.069,85.

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Fixado que está o valor da causa, e uma vez que este excede o dobro do montante da alçada dos tribunais centrais administrativos, é então possível concluir que o presente Tribu­nal Arbitral Colegial dispõe de competência funcional [art. 5.º, n.º 3, al. a), do RJAT]; atendendo ao montante fixado, conclui-se que dispõe igualmente de competência em razão do valor para conhecer da presente arbitragem (art. 4.º, n.º 1, in fine, do RJAT e art. 3.º, n.º 1, da Port. n.º 112-A/2011). 

Este Tribunal Arbitral é também competente em razão da matéria para conhecer da presente causa por força do art. 2.º, n.º 1, al. a), do RJAT e da vinculação à arbitragem tributária institucionalizada do CAAD por parte da administração tributária requerida, tal como resulta da Portaria de Vinculação.

*

Inexistem quaisquer questões prévias ou outras questões prejudiciais que obstem ao conhecimento do objeto da causa. Não se verificam igualmente nulidades processuais de que importe conhecer, quer por terem sido invocadas pelas partes, quer ainda por serem do conhe­cimento oficioso

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            Devidamente saneados os autos, a única questão decidenda é então a seguinte:

— ilegalidade parcial das Liquidações Impugnadas decorrente de erro nos pressupostos de direito, na medida em que os serviços prestados pela requeren­te no âmbito da sua atividade de passeios marítimos-turísticos se compreen­deriam no âmbito de aplicação da verba 2.14 da Lista anexa ao CIVA. 

 

Inexistem quaisquer outras questões a apreciar, designadamente em consequência de pedidos acessórios, que não foram deduzidos.

 

 

— III —

(fundamentação de facto)

 

FACTOS PROVADOS:

Com relevância para a decisão da questão decidenda na presente arbitragem, consideram-se provados os seguintes factos:

A.   A requerente prossegue, entre outras, as seguintes atividades: “[…] Agências de viagens e de turismo; Organização de atividades de animação turística; Organização de passeios turísticos; Serviços marítimo turísticos; Serviços de barcos de recreio […].

B.    A requerente solicitou, na declaração periódica de IVA referente ao mês de abril de 2024 (2024-04), um reembolso de IVA (n.º...), no montante de 579.774,86 €. 

C.   Na sequência do referido pedido foi instaurada a ação inspetiva credenciada pela ordem de serviço n.º OI2024... com extensão ao mês de abril de 2024. 

D.   Da análise efetuada resultaram as ordens de serviço internas n.º OI2024..., n.º OI2024... e n.º OI2024..., com extensão aos exercícios de 2021, 2022 e 2023, tendo sido também incluídos os meses de janeiro, fevereiro e março de 2024 na ação inspetiva credenciada pela ordem de serviço n.º OI2024...;

E.    No âmbito das referidas ações inspetivas foi apurado que a requerente aplicou a taxa reduzida de IVA aos serviços de “passeio marítimo-turístico” que prestava, com fundamento no enquadramento de tais atividades na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA.

F.    As atividades referidas em E. consistiam, de um modo geral, em proporcionar pas­seios recreativos de barco pela costa com características lúdicas e de lazer incluindo, designadamente, visitas a grutas, atividades de pesca ou o avistamento de cetáceos, acompanhados de pessoal que presta informações turísticas aos passageiros.

G.   Dos relatórios definitivos das ações inspetivas referidas em C. D. (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido) consta a conclusão de que os serviços presta­dos pela requerente, referidos em F., não tinham enquadramento na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA, devendo ser tributados à taxa normal de imposto de acordo com o previsto no art. 18.º, n.º 1, al. c), do CIVA.

H.   Na sequência dos relatórios inspetivos referidos em C. D., e remetendo as respetivas fundamentações para o teor destes relatórios, a requerida emitiu as seguintes liquidações adicionais de IVA com referência à requerente:

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao período tributário 2024-03 da qual resultava um crédito de imposto a recuperar (Campo 94) no montante de EUR 352.407,15 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 4.885,40;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao período tributário 2024-02 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 301.397,17 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 2.536,59;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2024-01 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 289.466,77 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 2.042,93;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-12 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 271.646,99 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 6.043,16;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-11 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 279.947,42 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 5.553,01;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-10 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 279.167,67 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 27.317,21;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-09 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 316.666,84 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 13.011,12;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-08 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 338.041,27 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 19.833,53;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-07 da qual resultava um excesso de imposto a reportar pa­ra o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 372.705,01 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 5.426,55;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao pe­ríodo tributário 2023-06 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 324.932,13 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 6.252,95;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao período tributário 2023-05 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 335.737,75 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 11.912,07;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2023-04 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 340.865,13 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 6.583,65;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2023-03 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 337.419,17 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 3.256,66;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2023-02 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 265.584,40 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR2.228,46;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-...relativa ao perío­do tributário 2023-01 da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 216.269,35 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 1.983,23;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2022-12T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 189.463,08 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 45.726,09;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2022-09T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 166.233,32 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 7.699,70;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2022-06T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 155.783,68 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 15.110,00;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2022-03T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 115.386,35 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 18.622,68;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2021-12T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 101.543,21 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 19.064,39;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2021-09T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 42.757,73 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 1.158,92;

— Em 11-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao perío­do tributário 2021-06T da qual resultava um excesso de imposto a reportar para o período tributário seguinte (Campo 96) no montante de EUR 43.137,48 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 13,46;

— Em 13-12-2024 a emitiu a Liquidação n.º 2024-... relativa ao período tributário 2024-04, da qual resultava um valor a reembolsar de EUR 349.862,02 e uma correção aos valores originalmente declarados pela requerente no montante de EUR 4.070,54.

 

 

FACTOS NÃO PROVADOS:

Com relevância para a decisão da causa de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito inexistem quaisquer factos que se devam considerar como não provados.

 

MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

Os factos constantes do probatório resultam provados pela prova documental junta pelas partes nos seus articulados ou durante a fase da instrução da causa, em especial do Processo Administrativo junto pela requerida (factos A. G. do probatório) e do documento n.º 1 junto com a p.i. da requerente (facto H. do probatório).

 

 

— IV —

(fundamentação de direito)

 

A única questão decidenda é, como se deixou antevisto em sede de saneamento, a de saber se os serviços prestados pela requerente no contexto das atividades melhor descritas no ponto F. do probatório são subsumíveis na previsão da parte final da verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA e, portanto, sujeitas a tributação em sede de IVA à taxa reduzida.

Com efeito, dispõe-se nesse preceito legal (na redação aditada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro—LOE 2019) que estão sujeitos à taxa reduzida de IVA os serviços de “[t]rans­porte de passageiros, incluindo aluguer de veículos com condutor. Compreende-se nesta verba o serviço de transporte e o suplemento de preço exigido pelas bagagens e reservas de lugar, bem como o transporte de pessoas no âmbito de atividades marítimo-turísticas” (realce adicionado)

Trata-se, portanto, de uma questão que é essencialmente de interpretação normativa.

A esse respeito dispõe-se no art. 11.º, n.º 1 da LGT que “[n]a determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação da leis”, os quais, como é sabido, estão consagrados no capítulo introdutório do Código Civil, acrescentando-se, por fim, que em caso de “dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários” (n.º 3) e que “[a]s lacunas resultantes das normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica” (n.º 4).

Ora, estabelece-se no art. 9.º do Código Civil: 

1 — A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circuns­tâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 — Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 — Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consa­grou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

 

Assim, em conformidade com o preceito acabado de citar, a letra da lei não só funciona como o ponto de partida da interpretação, mas, também, como um limite intransponível da tarefa hermenêutica (n.º 2). Como tal, “[r]esumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. [§] Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a crité­rios de carácter objetivo, como são os que constam do n.º 3” (PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, CC Anotado, vol. I, Coimbra Ed., 1987, pp. 58-59, ortografia atualizada). 

No mesmo sentido, embora a propósito da interpretação da lei penal mas com plena pertinência para o caso presente, discreteia TAIPA DE CARVALHO (in Direito Penal – Parte Geral – Questões Fundamentais, 2.ª ed., Coimbra Ed., 2008, p. 165, ortografia atualizada) que

o nosso Código Civil, art. 9.º, indica os critérios ou fatores de interpretação. De acordo com este artigo, cujas disposições são válidas não apenas para o direito civil mas para todos os ramos do direito, incluindo o penal, o intérprete-aplicador deve procurar descobrir qual é “o pensamento legislativo”, isto é, qual é a finalidade e o âmbito normativo da lei: as situações fácticas ou os casos concretos abrangidos pela norma jurídica.

Para conseguir este objetivo, o intérprete deve atender quer às circunstâncias históricas em que a lei foi elaborada quer às circunstâncias atuais em que a lei é chamada a ser aplicada, bem como à ratio ou teleologia da norma. Mas há um outro fator da interpretação que não pode ser esquecido: o texto legal ou enunciado linguístico, pois que é este o meio de comunicação entre o legislador e os destinatários da norma jurídica, é este o mediador da normatividade jurí­dica sobre a realidade fáctica. Ora, o Código Civil, art. 9.º, atribui, correta­mente, ao texto legal ou teor literal duas funções essenciais: por um lado, e lo­gicamente, o texto legal é o ponto de partida da interpretação (artigo 9.º-1); por outro lado, e também corretamente, o texto legal impede uma interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art. 9.º-2)» 

 

Desse modo, o percurso interpretativo da lei não se deve ater, apenas e só, à sua letra, mas reconstituir a partir dela o pensamento legislativo, contrapondo letra (o enunciado verbal) e espírito (o pensamento) da lei, declarando-se que a atividade interpretativa deve, como não poderia deixar de ser, procurar este a partir daquela. E, face a tal, a letra (o enunciado linguístico) sendo o ponto de partida, exerce também a função de um limite, já que de acordo com o n.º 2 do art. 11.º do Cód. Civil, entre os sentidos diversos sentidos possíveis do enunciado normativo, aquele pensamento legislativo (espírito ou sentido da lei) tem de ter na literalidade da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Essa operação pode, ainda, conduzir à necessidade de uma interpretação extensiva ou restritiva ou até, porventura, a uma interpretação corretiva quando a fórmula verbal tiver sido infeliz, confusa ou imprecisa. Todavia, mesmo nesta última hipótese, será necessário que do texto falhado dimane, ainda que subtilmente, uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Daí que haja de reconhecer à letra da lei (ao seu enunciado verbal) uma terceira função hermenêutica — a de dar um mais forte apoio àquela que, de entre as possíveis interpretações, melhor condiga com o significado natural e correto das expressões verbais utilizadas.

No particular âmbito das normas de direito fiscal importa ainda reiterar o já aludido princípio de que se encontra absolutamente vedada a interpretação ou aplicação analógica no âmbito das matérias incluídas na competência legislativa reservada do Parlamento.

Portanto: a norma em causa na presente arbitragem deverá ser interpretada a partir dos termos em que se encontra redigida e procurando fazer-se coincidir o elemento literal com o pensamento legislativo.

Ora, está em causa o sentido a atribuir ao inciso (aditado pela LOE 2019) em que o legislador inclui “o transporte de pessoas no âmbito de atividades marítimo-turísticas” no âmbito dos serviços de transporte de passageiros a que se deve aplicar a taxa reduzida de IVA. Ao fazer tal aditamento, terá o legislador pretendido, como sustenta a requerida, excluir do âmbito material de aplicação daquele inciso legal as atividades recreativas e lúdicas que acompanham certos serviços de transporte de passageiros, restringindo tal taxa apenas aos serviços que se destinem, principalmente ou de modo prevalente, a satisfazer a necessidade de locomoção e de deslocação dos seus destinatários? Ou, como sustenta a requerente, estará em causa, precisamente, abranger no âmbito de aplicação daquela taxa os serviços de transporte de passageiros que estão predominantemente orientados a assegurar aos seus destinatários uma atividade lúdica e recreativa, mais do que o mero transporte do local para o local B?

Procurando proceder a uma interpretação declarativa e tentando apurar os motivos subjacentes à disposição aqui em causa, importa atentar na exposição de motivos da Proposta de Alteração n.º 680C que, no quadro do debate na especialidade da Proposta de Lei n.º 156/XIII/4.ª (que está na origem da LOE 2019), serviu de causa determinante à introdução do referido inciso legal na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA. Ora, na nota justificativa desta Proposta de Alteração adiantava-se a seguinte motivação:

A Atividade de transporte de pessoas com finalidade turística, o denominado “passeio turístico”, pode ser difícil de separar em concreto da atividade de transporte de passageiros, sendo que a qualificação como transporte de passageiros é relevante para aplicação da taxa reduzida de 6% ao abrigo da Tabela I, verba 2.14, do CIVA.

A Autoridade Tributária (AT) tem vindo a ter o entendimento que “o transporte de passageiros, individual ou coletivo, por qualquer via ainda que o fim seja um passeio turístico, é passível de imposto à taxa reduzida (6%), por enquadramento na citada verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA.”, entendimento este que foi inclusive assumido em diferentes informações vinculativas.

A existência de refeições incluídas no preço, ou de outras atividades, não deve excluir a qualificação como transporte de passageiros das restantes componentes do preço, desde que discriminadas as atividades na fatura. Contudo, mais recentemente, a Autoridade Tributária tem vido, em certos casos, a assumir um entendimento que o serviço de transporte de passageiros, quando praticado no âmbito de atividades marítimo turísticas, deverá ser tributado com uma taxa de (23%).

Esta disparidade de entendimentos da Autoridade Tributária coloca as empresas perante uma incerteza e uma imprevisibilidade fiscal que pode poderá ser geradora de situações de gritante distorção da concorrência, ou até de retroatividade fiscal, atendendo a que há informações vinculativas num e noutro sentido, ao que se alia uma prática generalizada do setor das marítimo-turísticas, no que se reporta ao transporte de passageiros, de uma tributação em sede de incidência de IVA de (6%), o que decorre daquela que até aqui era a orientação da Autoridade Tributária.

Também neste setor foram feitos muito investimentos baseados numa previsão de taxas reduzidas de IVA e assim foram analisados e aprovados pelos organismos do Estado responsáveis pela concessão de apoios ao investimento.

[...]

Face às dúvidas que se colocaram e à incerteza criada pela recente prática da Autoridade Tributária em de [sic] recusar a aplicação da taxa reduzida no transporte de passageiros em passeios turísticos, é conveniente que o sentido da lei seja esclarecido.

O esclarecimento é que o transporte de pessoas com finalidade de passeio turístico é tributado como transporte de passageiros, independentemente da presença de outros elementos no serviço, desde que estes estejam discriminados e aplicando-se a este a sua taxa própria.

 

Torna-se assim evidente que esta intervenção legislativa foi mirada a reagir ao sentido de diversas informações vinculativas da AT que vinham propugnando a exclusão da aplicação da verba 2.14 aos serviços de transporte com finalidades lúdicas e recreativas, circunscrevendo aquela norma apenas às atividades de transporte strictu sensu.

Em função deste desiderato, o legislador redigiu a norma em causa estabelecendo, precisamente, que também o transporte de pessoas no âmbito de atividades marítimo-turísticas se compreenderia na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA. A utilização da locução conjuntiva “bem como” imediatamente antes do inciso legal ora em análise pretende justamente estabelecer que, à semelhança do “serviço de transporte” e do “suplemento de preço exigido pelas bagagens e reservas de lugar”, também “o transporte de pessoas no âmbito de atividades marítimo-turísticas” se subsume no âmbito de aplicação da taxa reduzi­da de IVA a que se refere a verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA.

É certo que o legislador poderia ter adotado uma redação mais clara, que evitasse dúvidas acerca da sua intencionalidade. A letra da lei poderia, com efeito, ter sido mais precisa e rigorosa, não deixando margem para as incertezas que agora perpassam pela requerida. Porém, afigura-se como manifesto que o legislador quis submeter as prestações de serviços de passeio marítimo de natureza lúdica e recreativa à taxa reduzida de IVA.

Por fim, a interpretação desta norma na linha do posicionamento que ora se propugna não viola nem o princípio da legalidade nem os já citados cânones legais de interpretação normativa, uma vez que esta interpretação, cabendo ainda no sentido possível do texto legal sob análise, sempre conduz ao resultado interpretativo que melhor se coaduna com o pensamento legislativo e que melhor se compatibiliza com o elemento histórico-sistemático e a teleologia normativa. Trata-se, portanto, de uma interpretação conforme aos critérios de interpretação (art. 9.º do Cód. Civil) que reconstitui “o pensamento legislativo”, adequadamente expresso com “correspondência verbal na letra da lei”, tendo em conta “as circunstâncias em que a lei foi elaborada”.

Em conclusão, resulta da verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA que a prestação de servi­ços de passeio marítimo de natureza lúdica e recreativa, da natureza daqueles melhor descritos no ponto F. do probatório, está sujeita à taxa reduzida de IVA.

Procede assim este vício assacado às Liquidações Impugnadas, na sequência do qual, a final, se irá determinar a anulação desses atos tributários nos segmentos em que, ao proceder ao apuramento do imposto devido, não aplicaram às operações de prestação de serviços de pas­seios marítimo-turísticos realizadas pela requerente a taxa reduzida prevista na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA.

 

DA RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS DA ARBITRAGEM,

            Vencida na presente arbitragem, é a requerida responsável pelas custas — art. 12.º, n.º 2, do RJAT e arts. 4.º, n.º 5, e 6.º, al. a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária do CAAD (doravante “o Regulamento”).

Desse modo, tendo em conta o valor fixado ao processo em sede de saneamento, por aplicação da Tabela I anexa ao mencionado Regulamento, a final fixar-se-á a taxa de arbitragem no montante de EUR 4.284,00, em cujo pagamento será condenada a requerida.

 

 

— V —

(dispositivo)

 

            Assim, pelos fundamentos expostos, acordam os Árbitros que compõem o presente Tribunal Arbitral em julgar a presente arbitragem procedente e em consequência:

a)    Declarar ilegais e anular parcialmente os seguintes atos tributários, nos segmentos em que cada um desses atos, ao proceder ao apuramento do imposto devido, não aplicou às operações de prestação de serviços de passeios marítimo-turísticos reali­zadas pela requerente a taxa reduzida nos termos previstos na verba 2.14 da Lista I anexa ao CIVA:

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-...;

— Liquidação de IVA n.º 2024-....

 

b)    Condenar a requerida Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas do presente processo arbitral tributário, cuja taxa de arbitragem se fixa em EUR 4.284,00.

 

Notifiquem-se as partes.

 

CAAD, 5 de novembro de 2025

 

 

 

O Tribunal Arbitral,

 

(José Poças Falcão)

Presidente

 

 

(Elisabete Martins Cardoso)

 

 

 

(Gustavo Gramaxo Rozeira)

Relator