SUMÁRIO:
As perdas por diferenças cambiais derivadas do estrito cumprimento de um contrato celebrado no âmbito da actividade da empresa, e por causa dela, devem ser relevadas a título de dedução como gastos, para a determinação do lucro tributável, nos termos dos artigos 23.º, nº 1 e n.º 2, c), e 24.º, n.º 1, ambos do CIRS.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Juiz José Poças Falcão (árbitro-presidente), Dr. A. Sérgio de Matos e Dra. Maria Antónia Torres (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 01-04-2025, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A. (doravante “Requerente”), pessoa coletiva de direito português com o número de identificação de pessoa coletiva (“NIPC”) e de identificação fiscal (“NIF”) ..., com sede na ..., ..., n.º ..., com o código postal ...-..., Vila Real, veio, nos termos do disposto no número 1 do artigo 2.º e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, apresentar requerimento de constituição de tribunal arbitral coletivo em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, com vista à anulação do despacho notificado à Requerente no dia 14 de fevereiro de 2024, que indeferiu a reclamação graciosa n.º ...2023..., do acto de autoliquidação do IRC do período de tributação de 2021, que havia resultado na Demonstração de liquidação 2022..., mais pedindo que se considere na liquidação do IRC desse período a dedutibilidade fiscal do gasto decorrente da diferença cambial desfavorável sofrida, no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil, novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), o reembolso de 1.045,72 EUR (mil e quarenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos), correspondente à diferença entre o valor do total do imposto a pagar relativamente ao período de tributação de 2021 e a condenação da Autoridade Tributária ao pagamento das custas judiciais devidas.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
Em 24-01-2025, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e, automaticamente, notificado à AT.
Em conformidade com o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros deste Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As Partes, notificadas dessa designação, não manifestaram vontade de a recusar (artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD).
O Tribunal Arbitral ficou constituído em 01 de Abril de 2025.
Em 15-05-2025, a Requerida apresentou Resposta e juntou o processo administrativo.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) defendeu-se por excepção, invocando a incompetência do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, para validar o “quantum” do imposto apurado pela Requerente e condenar a AT ao pagamento de uma quantia determinada, e por impugnação, concluindo que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com as legais consequências.
Por despacho de 21-05-2025, foi a Requerente notificada para exercer o direito ao contraditório relativamente à matéria da excepção suscitada.
Esta respondeu por requerimento de 02-06-2025, no qual manifesta o entendimento de que, tratando-se de uma pretensão de declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação, o presente Tribunal Arbitral é competente para decidir em razão da matéria.
Após despacho, de 03-06-2025, para esclarecer discrepâncias entre o alegado no artigo 4.º do PPA e o documento nele referenciado, veio a Requerente, em 06-06-2025, juntar a Decisão Arbitral proferida no Proc. 638/2024-T que, incidindo na mesma matéria do actual, julgou verificada a exceção de incompetência do tribunal singular em função do valor da causa e absolveu a Requerida da instância.
Por despacho de 09-07-2025, foi dispensada a reunião prevista no art. 18.º do RJAT, concedido o prazo simultâneo de 15 dias para apresentação de alegações e pagamento da taxa de arbitragem remanescente, bem assim, ao abrigo do princípio da cooperação, o oferecimento dos articulados em formato editável.
Em 25-07-2025, a Requerente apresentou alegações escritas, nelas tendo mantido e desenvolvido o entendimento já por si expresso anteriormente.
A Requerida apresentou as suas alegações escritas, em 17-09-2025, portanto manifestamente para além do prazo consignado, pelo que serão desconsideradas.
II. INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
A Requerida invoca a incompetência do Tribunal Arbitral, em razão da matéria, para validar o “quantum” do imposto apurado pela requerente e condenar a AT ao pagamento de uma quantia determinada, excepção em abono da qual alega, em síntese:
- Como resulta dos artigos 86º e 87º pretende a Requerente que seja declarada ilegal a correção à matéria tributável no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos) e que, consequentemente, a situação tributária da Requerente seja alterada por força do impacto da anulação dessa correção. E que, em face do exposto, e uma vez que na autoliquidação do período de tributação de 2021 a Requerente apurou um total de imposto a pagar de 28.326,55 EUR (vinte e oito mil trezentos e vinte e seis euros e cinquenta e cinco cêntimos), e da correção em apreço é apurado um imposto a pagar de 27.280,83 EUR (vinte e sete mil duzentos e oitenta euros e oitenta e três cêntimos), decorrente do impacto de tal correção na Derrama Municipal e na dedução do crédito de imposto por dupla tributação jurídica internacional, apura-se assim um valor de imposto a recuperar pela Requerente no montante de 1.045,72 EUR (mil e quarenta e cinco euros e setenta e dois cêntimos).
- Tal pedido extravasa a competência do presente Tribunal, porque a competência dos tribunais arbitrais é, desde logo, circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
- Para além da competência para a apreciação direta da legalidade dos atos de liquidação ali elencados, poderão os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar atos de segundo ou
de terceiro grau que tenham por objeto a apreciação da legalidade de atos daqueles tipos, inexistindo no âmbito do RJAT qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas pelos tribunais arbitrais condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes declaratórios com fundamento em ilegalidade.
- Admitir que o Tribunal Arbitral tem competência para a apreciação deste pedido representaria a substituição do presente Tribunal Arbitral nas competências próprias da AT, porquanto a pretensão jurídica formulada pela Requerente reconduz-se ao reconhecimento de um direito ou ao pedido de condenação à prática de um ato devido, que não poderão ser obtidos por esta via.
- A incompetência do tribunal, em razão da matéria, consubstancia uma exceção dilatória impeditiva do conhecimento do pedido e, por isso, deve determinar a absolvição da Requerida da instância, atento o disposto nos artigos 576.º, n.º 1, e 577.º, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A Requerente pugna pela competência deste Tribunal, tendo respondido, em resumo:
- O disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT, conjugado com a Portaria n.º 112-A/2011, de 22
março, é inequívoco quanto à competência dos tribunais arbitrais para apreciarem a legalidade de atos de liquidação de tributos, incluindo os atos de autoliquidação, desde que precedidos dos necessários recursos administrativos.
- É neste contexto normativo que a Requerente se dirige a este Tribunal, peticionando precisamente a declaração de ilegalidade de um ato de autoliquidação em sede de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (“IRC”), com reflexo direto no valor do imposto liquidado, e em consequência, a anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa anteriormente submetido.
- A AT confunde a natureza do pedido de declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação com um pedido de condenação à prática de ato devido ou de reconhecimento de direito subjetivo, quando o que a Requerente solicita ao Tribunal é que aprecie e se pronuncie sobre a legalidade do indeferimento do pedido de reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC de 2021, relativamente à dedutibilidade fiscal do gasto associado às perdas cambiais materializadas no período de 2021, associadas aos pagamentos realizados pelo seu cliente.
- Conforme resulta da petição inicial, “pretende-se que seja declarada ilegal a correção à matéria tributável no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos) e que, consequentemente, a situação tributária da Requerente seja alterada por força do impacto da anulação dessa correção” (vide Ponto 86.º da PI).
- Resulta, pois, inequívoco que o objeto do presente pedido de pronúncia arbitral é a apreciação da legalidade subjacente à demonstração de liquidação do IRC do período de 2021, com o número 2022..., a qual a Requerente impugna por não ter sido considerada a dedutibilidade fiscal da diferença cambial desfavorável sofrida, no montante acima referido.
- A interpretação restritiva da competência dos tribunais arbitrais, preconizada pela AT, redundaria numa denegação de justiça e na inaceitável manutenção de atos ilegais no ordenamento jurídico, como sucederia com o não conhecimento do pedido, em flagrante violação do princípio da legalidade (artigo 266.º da CRP), do direito de acesso aos tribunais (artigo 20.º da CRP) e do direito à tutela jurisdicional efetiva (número 4 do artigo 268.º da CRP), princípios estruturantes do Estado de Direito.
Apreciando e decidindo a excepção suscitada, dir-se-á:
A questão da competência é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria como emerge claramente do artigo 13.º do CPTA, ex vi art. 29.º, n.º 1, c) do RJAT.
Objectivamente, o que a AT questiona é que os tribunais arbitrais que funcionam no CAAD tenham competência para pronunciar-se sobre a restituição de montantes, por conta da declaração de ilegalidade ou anulação de atos de liquidação, o que só pode ser determinado em sede de execução da decisão.
O artigo 24.º, n.º 1, do RJAT estabelece o seguinte:
1 - A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, alternativa ou cumulativamente, consoante o caso:
a) Praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto objecto da decisão arbitral;
b) Restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito;
c) Rever os actos tributários que se encontrem numa relação de prejudicialidade ou de dependência com os actos tributários objecto da decisão arbitral, designadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica de imposto, ainda que correspondentes a obrigações periódicas distintas, alterando-os ou substituindo-os, total ou parcialmente;
d) Liquidar as prestações tributárias em conformidade com a decisão arbitral ou abster-se de as liquidar.
Enquanto tal, resulta da conjugação do corpo do n.º 1 com a sua alínea b) que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, "restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito", em perfeita sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] onde se estabelece, que "a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei».
Assim, embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão "declaração de ilegalidade" para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, na qual se proclama, como primeira directriz, que "o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária" (Lei 3-B/2010, de 28 de Abril, artigo 124.º).
Como se exarou no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06-08-2017, processo n.º 06112/12, «o princípio da tutela jurisdicional efectiva com consagração constitucional (cfr. art.º 268, n.º4, da Constituição da República) somente é alcançado se as sentenças puderem ter todos os efeitos necessários e aptos a proteger o direito ou interesse apreciado pelo Tribunal, assim não podendo limitar-se à mera anulação do acto tributário e podendo o processo de impugnação revestir uma natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros» e que «o princípio da economia processual que exige que se ponha fim ao litígio utilizando do processo judicial tudo o que puder ser aproveitado para basear uma decisão do Tribunal de onde sai logo uma definição da situação tributária concreta sob análise que não careça de qualquer nova pronúncia da Administração Tributária».
Reiterando a mesma linha de pensamento, no Proc. 0608/13.4BEALM 0245/18, de 18-11-2020, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo (STA):
“I - Nos processos de impugnação judicial, apresentados na sequência de decisões, dos serviços competentes da autoridade tributária e aduaneira (AT) e equivalentes, como neste caso, dos serviços e responsáveis camarários, de indeferimento (mesmo que, por motivos formais) de reclamações graciosas, recursos hierárquicos e/ou pedidos de revisão oficiosa dos atos tributários, há muito, a jurisprudência, do STA, identificou (e vem afirmando) a existência de um objeto imediato (a decisão da reclamação….) e de um objeto mediato (os vícios, concretamente, imputados ao ato tributário de liquidação).
II - O meio processual tributário de impugnação judicial é de acionar em todas as situações onde se visem atos relativos a questões tributárias que impliquem, contendam com a apreciação (de qualquer ilegalidade) do ato de liquidação, ainda que, no mesmo processo se tenham de versar e dirimir questões relacionadas, em exclusivo, com um procedimento de cariz administrativo, quando este tenha tido, previamente, lugar.
III - Por contraposição, o meio processual da ação administrativa só pode utilizado, quando as questões tributárias levantadas (no procedimento administrativo e no tribunal) não impliquem apreciar-se da legalidade do ato de liquidação.”
Assim, toda a jurisprudência ante citada e a recente do Supremo Tribunal Administrativo é no sentido de que a Impugnação Judicial é o meio próprio de reacção processual, desde que no seu âmbito seja pedida a apreciação, quer da legalidade da decisão administrativa, quer da liquidação, independentemente de a decisão administrativa que constitui o objecto imediato da Impugnação Judicial versar sobre questão meramente formal, quer o indeferimento se funde no mérito ou não acolhimento dos vícios de mérito imputados à liquidação.[1]
Em consonância com o preceituado no artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, o artigo 2.º, n.º 1, do RJAT define a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária, para a apreciação das seguintes pretensões:
“a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos e autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria colectável quando não dê origem a liquidação de imposto, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.”
Sublinha-se a afirmação, evidenciada pela Requerente, de que, nos presentes autos, o pedido de anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa contra a autoliquidação do IRC do período de 2021 constitui mera consequência da procedência do pedido principal – a declaração de ilegalidade do ato de autoliquidação –, não se traduzindo num pedido autónomo de condenação à prática de ato devido ou reconhecimento de um direito. Assim, o Tribunal é também convocado a pronunciar-se sobre a legalidade do acto de indeferimento da Reclamação Graciosa, que teve por objecto a autoliquidação de IRC de 2021, relativamente à dedutibilidade fiscal do gasto associado às perdas cambiais materializadas nesse período fiscal que, não tendo sido considerado, conduziu à manutenção das correcções, em sede de IRC, emergentes do processo de inspecção tributária.
Enquanto tal, não restam dúvidas de que a Impugnação Judicial é o meio próprio de reacção processual contra os actos administrativos aqui focados, porquanto o que está em causa não é um pedido de condenação à prática de ato devido ou de reconhecimento de direito subjetivo, mas antes de uma pretensão de declaração de ilegalidade de ato de autoliquidação.
Em face do exposto, e à luz da subida Jurisprudência supra invocada, improcede a excepção da incompetência do Tribunal, suscitada pela Requerida.
III. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer da liquidação aqui posta em crise, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alíneas a) e b), 6.º, n.º 2, e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes estão devidamente representadas, gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Não foram identificadas outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, julgam-se provados os seguintes factos:
A. A Requerente é uma sociedade de direito português que desenvolve a sua atividade principal na área de consultoria de engenharia, na elaboração de estudos de engenharia de âmbito multidisciplinar e na fiscalização, administração e gestão global de projetos (incontrovertido).
B. No dia 25 de setembro de 2015, no âmbito do Consórcio “A...-B...”, formado pelas empresas A..., SA, sociedade Angolana e a Requerente (A..., SA, antes designada B..., SA), a Requerente celebrou um contrato de prestação de serviços com a C..., Lda. (doravante “C...”), mediante o qual se vinculava à prestação de serviços de revisão de projeto, auditoria dos trabalhos já executados e fiscalização da construção, no âmbito de um contrato celebrado entre a C... e o Ministério dos Transportes de Angola relativo à construção do novo aeroporto internacional de Luanda (Doc. n.º 3 junto com o PPA, que se dá por reproduzido).
C. A cláusula 4ª do contrato celebrado entre a Requerente e a C..., previa o principio “back to back” - transparência absoluta entre este contrato e o contrato celebrado pela C... (designada Consultora) - com o Ministério dos Transportes de Luanda (designado Cliente) assumindo a A... (designada Contratada), no que concerne à prestação dos serviços contratados, todas as obrigações e todas as responsabilidades para com a C..., que resultam do contrato de prestação de serviços firmado com o Ministério dos Transportes de Angola, daí emergindo, portanto, que qualquer alteração ao contrato inicial, celebrado com a entidade principal (Ministério dos Transportes de Angola), seria de igual forma aplicada ao contrato celebrado pela C... com a Requerente (cit. Doc. n.º 3 e incontrovertido).
D. A cláusula 5ª do contrato celebrado entre a Requerente e a C... estabelece o valor global do contrato em kwanzas e a sua correspondência em dólares americanos, mencionando que o valor de referência do contrato é expresso em dólares americanos, nos termos do estabelecido na cláusula 10ª do contrato da C... com o CLIENTE e respeitados os procedimentos fixados na mesma cláusula para garantia da paridade (cit. Doc. n.º 3).
E. O nº 3 da cláusula 10ª, do contrato celebrado entre o consultor – C... e o cliente - Ministério dos Transportes Angolano, estabelecia que "(...) para assegurar a manutenção da paridade fixa do valor do contrato expresso em dólares americanos as partes acordam que o cliente assumirá a manutenção do valor do contrato em dólares americanos. Para esse efeito as partes acordam
E. o seguinte:
a) Em cada fatura emitida pelo Consultor [C...] constará o valor em kwanzas e o seu equivalente em dólares americanos à data de emissão da fatura, de acordo com o câmbio comercial de venda de dólares americanos aos seus clientes praticadas pelo Banco BFA — Banco de Fomento de Angola, nessa data;
b) O pagamento deve ser efetuado em kwanzas pelo valor equivalente em dólares americanos;
c) O valor a ser pago nos termos da alínea anterior corresponde ao valor que efetivamente resultar da aplicação da taxa de câmbio comercial de venda de Dólares americanos aos seus clientes praticado pelo Banco BFA — Banco de Fomento de Angola, na data de liquidação da fatura;
d) ...
e) ... (cit. Doc. n.º 3).
F. No âmbito do contrato celebrado, a Requerente registou, relativamente à cliente C..., créditos vencidos nos exercícios de 2017, 2018 e 2019, os quais foram objeto de dois acordos de regularização de dívidas, celebrados entre a C... e a A..., em 22-02-2021, relativamente às dívidas de 2017 e, em 10-06-2021, relativamente aos exercícios de 2018 e 2019 (Doc. n.º 4 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e incontrovertido).
G. Estes acordos têm subjacentes os acordos de regularização de dívidas, celebrados em 11/12/2019 e 15/12/2020, entre a C... e o Estado Angolano – Ministério das Finanças, cujos valores reconhecidos pelo Estado angolano como estando em dívida perante a C..., com referência à faturação emitida nos anos de 2017, 2018 e 2019, se reportam ao valor expresso em KWANZAS (AKZ), à data de emissão das facturas, não obstante estas terem sido emitidas em dólares americanos (USD), assim modificando o anteriormente contratado (vide nº 3 da cláusula 10ª acima transcrita) e originando uma perda cambial significativa, face aos termos negociais inicialmente estabelecidos entre a C... e o Ministério dos Transportes de Angola, por efeito do princípio “back-to-back” previsto no contrato celebrado pela Requerente com a C... (cits. Docs. n.ºs 3 e 4 e incontrovertido).
H. Da cláusula 1.ª, n.º 2, desses acordos de regularização de dívida celebrados entre a C... e a Requerente, ficou a constar o seguinte:

(cit. Doc. nº. 4 e incontrovertido).
I. A 31 de dezembro de 2020, ainda não se tendo realizado o pagamento das faturas em dívida da cliente C..., a Requerente contabilizou nesse período as perdas cambiais potenciais enquanto uma perda por imparidade no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), porque à data do fecho das contas já decorriam as negociações para a celebração dos acordos de regularização de dívidas (Doc. n.º 5 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e incontrovertido).
J. No decurso de uma ação inspetiva, de âmbito parcial, em sede de IRC, ao período de 2020, que ocorreu em 2023, credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2022..., a AT veio a concluir que o procedimento adotado em sede deste imposto não foi o adequado quanto ao registo de uma perda por imparidade sobre as perdas cambiais potenciais (cit. Doc. n.º 5 - RIT notificado à ora Requerente, emitido pelos SIT da Direção de Finanças de Vila Real).
K. Entenderam os SIT que as perdas por imparidade constituídas em 2020 relativamente às dívidas da C..., não obedeciam aos parâmetros definidos pelo Código do IRC, na medida em que o acordo de regularização de dívidas em causa não consubstancia um acordo de pagamento, a prazo ou prestações, pelo que não cumpriam as condições de dedutibilidade fiscal previstas no artigo 28.º-A e artigo 28.º-B, ambos do Código de IRC, dado que o risco de incobrabilidade não se encontrava verificado, pelo que acresceram ao lucro tributável aquele montante, de 624.983,51€ (cit. Doc. n.º 5 e Doc. n.º 6 junto com o PPA, que se dá por reproduzido).
L. Ficou ainda a constar expressamente do RIT o seguinte:
(...)
“53. Face ao exposto, nos pontos anteriores, conclui-se que não existe risco de incobrabilidade para efeitos fiscais nos termos da alínea c) do n.º 1 e n.°2 do artigo 28.°-B conjugada com a alínea a) do n.°1 do artigo 28.°-A e alínea h) do n.°2 do artigo 23.°, todos do Código do IRC, uma vez que foram celebrados acordos de regularização que asseguram o pagamento da totalidade do valor da divida relativa aos créditos em mora, pelo que não se pode considerar os créditos em mora como em risco de não serem cobrados, e a diferença entre o valor faturado e o recebido, é resultante da atualização cambial da moeda”
(...) - (cit. Doc. n.º 5).
M. A requerente exerceu o direito de audição, alegando que não sendo a perda por imparidade aceite fiscalmente em 2020, o gasto tem de ser dedutível em IRC, no período de tributação de 2021, período em que se efetivou o pagamento das dívidas, materializando-se como perdas cambiais, tendo solicitado a retificação oficiosa da declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC de 2021, inscrevendo no campo 781 do quadro 07, o montante de € 624.983,51 e solicitando o reembolso do IRC pago em excesso (PA).
N. A tal pretensão da Requerente, expressa no direito de audição, reagiu a AT alegando que não cabia no âmbito do processo inspetivo proceder à retificação oficiosa da Declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, de 2021 (PA).
O. No dia 15 de Setembro de 2023, a Requerente deduziu um pedido de reclamação graciosa contra a autoliquidação do IRC, de 2021, solicitando para o efeito a dedutibilidade fiscal do gasto associado às perdas cambiais materializadas naquele período, associadas aos pagamentos realizados pela cliente C..., em conformidade com as conclusões da inspeção tributária conduzida pela AT ao período de 2020 (Doc. nº 2 junto com o PPA, que se dá por reproduzido e PA).
P. A AT indeferiu a reclamação graciosa, alegando que o gasto no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), que se pretendia ver deduzido na declaração de rendimentos modelo 22, do período de 2021, a título de perdas de natureza cambial, não preenche os requisitos estabelecidos pelos artigos 23.º e 24.º do CIRC, na medida em que não concorrem para a formação do lucro tributável as “variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades” (PA).
Q. O Tribunal Arbitral Singular, constituído em 16 de julho de 2024, proferiu, no âmbito do processo n.º 638/2024, em 7 de janeiro de 2025, decisão de indeferimento aos pedidos formulados pela Requerente, por julgar verificada a exceção de incompetência daquele tribunal (Doc. n.º 3, junto aos autos em 06-06-2025, que se dá por reproduzido).
R. O presente PPA foi apresentado em 13-01-2025 (SGP do CAAD).
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se revelam factos não provados com interesse para a Decisão a proferir.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
A convicção do Tribunal fundou-se nos factos alegados que não mereceram controvérsia, na análise dos documentos juntos aos autos com as peças principais e nos que foram sendo juntos ao longo da tramitação processual, conforme está reflectido em relação a cada facto considerado provado.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas Partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
V. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
1. QUESTÃO A DECIDIR
O objecto do presente PPA consiste na anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2023..., do ato de autoliquidação do IRC, do período de 2021, que resultou na Demonstração de liquidação 2022..., entendendo a Requerente que tal autoliquidação emerge de ilegalidade pela desconsideração, por força de correção inspetiva, da dedutibilidade fiscal das perdas por imparidade, sofridas por perdas cambiais, no montante de 624.983,51€.
A questão a sub judicio consiste, essencialmente, em decidir se a Requerente foi confrontada com uma situação de apuramento de perdas por diferenças de câmbio, como a própria defende, ou se o que se apresenta é uma liberalidade por si (A...) praticada que se traduziria numa variação patrimonial negativa não aceite fiscalmente, como ressalta da tese da Requerida.
2. POSIÇÃO DA AT
O entendimento da Requerida resume-se do modo seguinte:
- O pedido arbitral (PPA) em análise respeita ao exercício de 2021 e tem por objeto a requalificação pretendida pela requerente referente às perdas por imparidade registadas contabilisticamente em 2020 no montante de €624.983,51, passando este valor a ser considerado como perdas cambiais apenas para efeitos fiscais.
- Constitui facto aceite que a requerente contabilizou na conta SNC 6511, no período de tributação de 2020, perdas por imparidade em dívidas a receber da C..., no valor de € 624.983,51, bem como, que este gasto que afetou o resultado liquido e tributável de 2020, não foi aceite fiscalmente, por não cumprir com os critérios de dedutibilidade fiscal previstos no artº 28º-A e artº. 28º-B, ambos do CIRC.
- Após a não aceitabilidade desta perda por imparidade para efeitos fiscais em 2020, pretende agora a requerente requalificar a natureza daquela perda por imparidade invocando que o que está em causa afinal são perdas cambiais materializadas no período de 2021 associadas aos
pagamentos realizados pela MACE.
- Nem a requerente, nem a AT, dispõem do livre arbítrio de enquadrar determinado gasto consoante a sua conveniência, pois o mesmo obedece a critérios contabilísticos e posteriormente fiscais, pelo que desde logo seria de indeferir a pretensão da Requerente.
Sem conceder,
- Em termos contabilísticos e com referência ao período de tributação de 2021, vigorava o
disposto na Norma Contabilística e de Relato Financeiro 23 (NCRF 23), de acordo com cujos §§ 26 e 27 “as diferenças de câmbio resultantes da liquidação de itens monetários ou do relato de itens monetários de uma empresa a taxas diferentes das que foram inicialmente registadas durante o período, ou relatadas em demonstrações financeiras anteriores, devem ser reconhecidas nos resultados do período em que ocorram (…)”.
- Segundo prevê a cláusula 5ª do contrato celebrado entre a requerente e a C..., o qual remete para a cláusula 10º do contrato da C... com a ministério dos transportes de angola (cliente), que “Quanto ao valor que se destine ao pagamento de entidades subcontratadas estrangeiras, tendo em vista assegurar que o consultor efetivamente recebe o montante estipulado por referência aos dólares americanos (incluindo ao custo de conversão de moeda), o cliente assume suportar todos os custos de conversão da moeda e eventuais despesas decorrentes da operação de compra dos dólares americanos pelo consultor, junto do Banco BFA — Banco de Fomento de Angola ou outro escolhido por este, que apresentará ao cliente em prazo razoável após conclusão da operação de compra dos Dólares americanos”.
- Constata-se, também, da leitura dos referidos acordos, que muito embora o pagamento seja efetuado em Kwanzas, o valor a receber pela A... será o equivalente em dólares americanos à data da liquidação das faturas, conforme resulta da cláusula 5ª do contrato, não podendo daí resultar qualquer diferença cambial entre o valor expresso em kwanzas e o valor expresso em dólares americanos, portanto, as diferenças de câmbio a existirem, seriam entre dólares americanos e a moeda funcional, ou seja, o Euro.
- Em 2021, a Requerente apenas teria de reconhecer a diferença de câmbio, que pudesse existir do dólar americano face ao euro, no período que medeia entre 31-12-2020 e a data do recebimento efetivo, cuja prova do recebimento, sequer consta dos elementos do presente PPA.
- Igualmente não consta dos autos, o registo contabilístico que terá sido efetuado pela Requerente em 2021, aquando do recebimento do seu cliente da dívida em causa, evidenciando e comprovando o registo contabilístico da alegada perda cambial no montante de €624.983,51.
- Sem conceder, na eventualidade de a Requerente ter deliberadamente arcado com uma redução na dívida a receber, quando tinha mecanismos contratuais / legais para não o fazer (vide nº 3 da cláusula 10ª, do contrato celebrado entre a C... e o cliente [Ministério dos Transportes Angolano] aplicável conforme cláusula 4ª do contrato celebrado entre a requerente e a C..., que previa o princípio “back to back” [transparência absoluta entre este contrato e o contrato da C... - designada de consultor – com o Ministério dos Transportes de Luanda - designada de cliente], além de a requerente nunca ter apresentado qualquer nota de crédito emitida ao cliente, titulando essa redução que corresponde a cerca de 54% do valor total faturado, e respetivo registo contabilístico, tal gasto, a existir, ainda assim, estaria sujeito à verificação das regras de dedutibilidade fiscal, à luz do preconizado no artigo 23º do CIRC, e, bem assim, do artigo 24º do mesmo diploma, o qual prevê que não concorrem para a formação do lucro tributável “as variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades”.
3. POSIÇÃO DA REQUERENTE
Por seu turno, a Requerente defende, em síntese:
- Cumpre desde logo mencionar que as perdas cambiais não qualificaram como liberalidades, sendo falso que as mesmas decorrem da decisão dos órgãos de gestão da Requerente, no contexto da celebração dos acordos de pagamento.
- As perdas cambiais decorreram de ter sido estabelecido no contrato celebrado entre a Requerente e a cliente C..., no respetivo artigo 4.º, um princípio “Back to back”, em que qualquer alteração ao contrato inicial, celebrado com a entidade principal (Ministério dos Transportes de Angola), seria de igual forma aplicado ao contrato celebrado com a Requerente (subcontratada).
- A Requerente ficou vinculada, através do mencionado artigo 4.º, às conclusões das negociações realizadas entre a cliente C... e o dono da obra (Ministério dos Transportes de Angola), no caso, que o pagamento pelos serviços prestados seriam realizados, não em Dólares dos Estados Unidos da América, mas sim pelo valor equivalente ao registado em Kwanzas de Angola.
- A forte desvalorização do Kwanza entre 2017 e 2021, resultou em perdas cambiais para a Requerente em 2021, porque, aquando do pagamento das faturas emitidas nos períodos anteriores, o valor do Kwanza de Angola desvalorizou-se face ao Dólar Americano.
- O Sistema de Normalização Contabilística prevê que as diferenças de câmbio desfavoráveis apuradas devem ser contabilizadas na rúbrica #685 “Diferenças de câmbio desfavoráveis”, desde que resultantes da atividade corrente da empresa, sendo que, à luz da NCRF 23, é possível concluir que sempre que estejam em causa diferenças de câmbio apuradas no âmbito de conversão monetária as mesmas consideram-se realizadas e não potenciais, devendo ser reconhecidas nos resultados do período.
- Conforme se menciona no Processo nº 194/2021-T, CAAD, de 7 de dezembro de 2021, “Em termos fiscais, o CIRC não contempla nenhum regime específico no que a matéria em apreço diz respeito, o que equivale a dizer que, vigorando o modelo de dependência parcial da fiscalidade face à contabilidade, é acolhido o tratamento contabilístico antes enunciado.”
- As diferenças de câmbio desfavoráveis podem ser reconhecidas como perdas para efeitos da determinação do lucro tributável, por força da alínea c) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC, ou como variações patrimoniais negativas não refletidas nos resultados, nos termos do artigo 24.º do Código do IRC.
- No caso em apreço, as diferenças de câmbio registadas pela Requerente não se tratam de liberalidades, uma vez que não foi decisão da Requerente que tais diferenças de câmbio se materializassem, decorrendo as mesmas do contrato assinado com a C..., o qual previa que qualquer negociação realizada pela C... com o Ministério dos transportes de Angola, seria obrigatoriamente refletida no contrato entre a C... e a Requerente.
- Tais as diferenças cambiais reconhecidas pela Requerente como gastos são aceites, uma vez que as mesmas não foram liberalidades concedidas, nem foram um perdão de dívida, mas sim uma imposição contratual.
- Ora, se no período de tributação de 2020 as diferenças cambiais desfavoráveis eram meramente potenciais, com o pagamento do montante em dívida pela Cliente C... no período de tributação de 2021 a perda cambial tornou-se real e efetiva.
- No que diz respeito à dedutibilidade fiscal das imparidades de períodos de tributação anteriores, a mesma implica a sua não aceitação fiscal, em sede de IRC, no período da sua constituição – entendimento da AT, no contexto da inspeção tributária ao período de 2020 –, e a sua aceitação no período de tributação em que se verificam os critérios de dedução fiscal ou da materialização da perda subjacente à constituição da perda por imparidade – no caso, a materialização das perdas cambiais em 2021.
- Assim, e uma vez que entendeu a AT que a perda por imparidade não era aceite fiscalmente em 2020, a mesma tem de ser, no caso, necessariamente dedutível no período de 2021, aquando da verificação da causa que justificou o registo da perda por imparidade (as perdas cambiais).
- o entendimento da AT emitido no contexto da inspeção tributária de 2020 e do indeferimento da reclamação graciosa do IRC autoliquidado em 2021 representa a impossibilidade prática de deduzir as perdas cambiais sofridas no exercício de 2021 – circunstância que se reconduz à violação do princípio da justiça.
- A autoliquidação de IRC, do período de 2021, emerge de ilegalidade pela desconsideração, por força de correção inspetiva, da dedutibilidade fiscal das perdas por imparidade, sofridas por perdas cambiais, no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos).
4 – CUMPRE APRECIAR E DECIDIR
Antes de mais, importa realçar que parte do alegado pela Requerida nos artigos 79.º e 80.º da Resposta constitui fundamentação a posteriori que, como se sabe, é inadmissível e proibida por lei.
Efectivamente, as asserções “...a data do recebimento efetivo, cuja prova do recebimento, sequer consta dos elementos do presente PPA” e “...não consta dos autos, o registo contabilístico que terá sido efetuado pela requerente em 2021, aquando do recebimento do seu cliente da dívida em causa, evidenciando e comprovando o registo contabilístico da alegada perda cambial no montante de €624.983,51”, não integram a fundamentação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, como se alcança do PA.
Na verdade, o dever de fundamentação está consagrado, desde logo, no artigo 268.º, nº 3, da Constituição, nos artigos 152.º e segs. do CPA e no artigo 77.º da LGT, no encalço dos quais se tem decidido, superiormente, que a "fundamentação a posteriori", ou seja, a fundamentação que surge após a prática do ato administrativo, não é legalmente permitida ou admissível, pois não permite suprir insuficiências da fundamentação que deveriam ter sido expressas no próprio ato no momento da sua prática. Portanto, a fundamentação tem que ser coeva do próprio acto administrativo, porquanto a validade do mesmo é aquilatada com base nos fundamentos que presidiram à sua prática, e não por aqueles que lhe são aditados posteriormente – vide acórdão STA, prolatado no P.0347/19.2BEMDL, 08-03-2023, entre uma multitude de arestos no mesmo sentido.
Por outro lado, não constar dos autos a data do recebimento efetivo e o registo contabilístico que terá sido efetuado pela requerente em 2021, aquando do recebimento da dívida em causa, evidenciando e comprovando o registo contabilístico da alegada perda cambial no montante de €624.983,51, sendo (pretensamente) factos impeditivos do direito à anulação com fundamento na ilegalidade (arts. 268.º, n. 4, da CRP e 99.º do CPPT), fariam recair o ónus da prova sobre a AT, de harmonia com o preceituado no artigo 74.º, n,º 1, da LGT (que só impõe o ónus da prova dos factos constitutivos e não também dos impeditivos) e, sobretudo, à face do preceituado no art. 342,º, n.º 2, do CC: “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita”.
Para além disso, no nosso Direito as regras do ónus da prova situam-se a jusante do princípio do inquisitório (ac. do STA, de 21-10-2009, no Proc. n.º 583/09), só podendo a AT invocar a falta de prova de qualquer facto relevante para a procedência da pretensão do contribuinte quando, após ter realizado todas as diligências necessárias para o apurar (artigo 58.º da LGT), chegue a uma situação de non liquet.
Ora, não é esta a situação que aqui se nos coloca, pois não resulta dos autos que a Requerida tenha lançado mão de qualquer diligência para apurar quando o Requerente recebeu a questionada dívida e se fez o registo contabilístico da alegada perda cambial no montante de €624.983,51.
Enquanto tal, será desconsiderada aquela parte da alegação da Requerida.
***
O argumento final da Requerida para indeferir a Reclamação Graciosa foi o de que se estava perante uma decisão dos orgãos de gestão da A..., de abdicar de uma parte substancial da facturação emitida à C..., entre os anos de 2017 e 2019, mediante a celebração de acordos de regularização de dívida que não estava contratualmente obrigada a aceitar. Conclui, assim, que não se se trata de uma situação de apuramento de perdas por diferenças de câmbio, mas antes, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 24.º do CIRC, de uma liberalidade praticada pela empresa A..., que se traduziria numa variação patrimonial negativa não aceite fiscalmente.
Este entendimento da AT não só ignora os contratos celebrados entre a Requerente e a C... e entre esta e o Estado Angolano, incluindo os posteriores acordos de regularização de dívidas - cujos termos se reflectiram directamente nos primeiros, por via do princípio “back to back” -, como constitui uma deriva de posições anteriormente por si assumidas.
Tanto é o que se revela da prova recolhida, a saber:
- A cláusula 4ª do contrato celebrado entre a Requerente e a C..., previa o principio “back to back”,ou seja, a transparência absoluta entre este contrato e o contrato celebrado pela C... (designada Consultora) com o Ministério dos Transportes de Luanda (designado Cliente) assumindo a A... (designada Contratada), no que concerne à prestação dos serviços contratados, todas as obrigações e todas as responsabilidades para com a C..., que resultam do contrato de prestação de serviços com o Ministério dos Transportes de Angola, daí emergindo, portanto, que qualquer alteração ao contrato inicial, celebrado com o Cliente seria de igual forma aplicada ao contrato celebrado pela C... com a Requerente – Facto C.
- No âmbito do contrato celebrado, a Requerente registou, relativamente à cliente C..., créditos vencidos nos exercícios de 2017, 2018 e 2019, os quais foram objeto de dois acordos de regularização de dívidas, celebrados entre a C... e a A..., em 22-02-2021, relativamente às dívidas de 2017 e, em 10-06-2021, relativamente aos exercícios de 2018 e 2019 – Facto F.
- Estes acordos têm subjacentes os acordos de regularização de dívidas, celebrados em 11/12/2019 e 15/12/2020, entre a C... e o Estado Angolano – Ministério das Finanças, cujos valores reconhecidos pelo Estado angolano como estando em dívida perante a C..., com referência à faturação emitida nos anos de 2017, 2018 e 2019, se reportam ao valor expresso em KWANZAS (AKZ), à data de emissão das facturas, não obstante estas terem sido emitidas em dólares americanos (USD), assim modificando o anteriormente contratado (vide nº 3 da cláusula 10ª acima transcrita) e originando uma perda cambial significativa, face aos termos negociais inicialmente estabelecidos entre a C... e o Ministério dos Transportes de Angola, por efeito do princípio “back-to-back” previsto no contrato celebrado pela Requerente com a C...– Facto G.
- Da cláusula 1.ª, n.º 2, desses acordos de regularização de dívida celebrados entre a C... e a Requerente, ficou a constar o seguinte:

- Facto H.
- A 31 de dezembro de 2020, ainda não se tendo realizado o pagamento das faturas em dívida da cliente C..., a Requerente contabilizou nesse período as perdas cambiais potenciais enquanto uma perda por imparidade no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), porque à data do fecho das contas já decorriam as negociações para a celebração dos acordos de regularização de dívidas – Facto I.
- No decurso de uma ação inspetiva, de âmbito parcial, em sede de IRC, ao período de 2020, que ocorreu em 2023, credenciada pela Ordem de Serviço nº OI2022..., a AT veio a concluir que o procedimento adotado em sede deste imposto não foi o adequado quanto ao registo de uma perda por imparidade sobre as perdas cambiais potenciais, na medida em que o acordo de regularização de dívidas em causa não consubstancia um acordo de pagamento, a prazo ou prestações, pelo que não cumpriam as condições de dedutibilidade fiscal previstas no artigo 28.º-A e artigo 28.º-B, ambos do Código de IRC, dado que o risco de incobrabilidade não se encontrava verificado, pelo que acresceram ao lucro tributável aquele montante, de 624.983,51€ – Factos J e K.
- Ficou ainda a constar expressamente do RIT o seguinte:
(...)
“53. Face ao exposto, nos pontos anteriores, conclui-se que não existe risco de incobrabiłidade para efaitos fiscais nos termos da alínea c) do n.º 1 e n.° 2 do artigo 28.°-B conjugada com a alínea a) do n.° 1 do artigo 28.°-A e alínea h) do n.° 2 do artigo 23.°, todos do Código do łRC, uma vez que foram celebrados acordos de regularização que asseguram o pagamenło da totatidade do valor da divida relativa aos créditos em mora, pelo que não se pode considerar os créditos em mora como em risco de não serem cobrados, e a diferença entre o valor faturado e o recebido, é resultante da atualizaçào cambial da moeda” – Facto L.
- A requerente exerceu o direito de audição, alegando que não sendo a perda por imparidade aceite fiscalmente em 2020, o gasto tem de ser dedutível em IRC, no período de tributação de 2021, período em que se efetivou o pagamento das dívidas, materializando-se como perdas cambiais, tendo solicitado a retificação oficiosa da declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC de 2021, inscrevendo no campo 781 do quadro 07, o montante de € 624.983,51 e solicitando o reembolso do IRC pago em excesso, pretensão à qual a AT respondeu que não cabia no âmbito do processo inspetivo proceder à retificação oficiosa da Declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, de 2021 – Factos M e N.
- A Requerente deduziu um pedido de reclamação graciosa contra a autoliquidação do IRC, de 2021, solicitando para o efeito a dedutibilidade fiscal do gasto associado às perdas cambiais materializadas naquele período, associadas aos pagamentos realizados pela cliente C..., em conformidade com as conclusões da inspeção tributária conduzida pela AT ao período de 2020 - Facto O.
- A AT indeferiu a reclamação graciosa, alegando que o gasto no montante de 624.983,51 EUR, que se pretendia ver deduzido na declaração de rendimentos modelo 22, do período de 2021, a título de perdas de natureza cambial, não preenche os requisitos estabelecidos pelos artigos 23.º e 24.º do CIRC, na medida em que não concorrem para a formação do lucro tributável as “variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades” – Facto P.
Assinale-se, desde já, que a argumentação da AT não quer levar em conta a prova contida no Facto G, donde emerge que, aquando da celebração dos acordos de regularização de dívidas, os valores reconhecidos pelo Estado Angolano, quanto à facturação emitida pela C... entre 2017 e 2019, se reportam ao valor expresso em KWANZAS (AKZ), à data de emissão das facturas, embora estas tenham sido emitidas em dólares americanos (USD). Apesar de reconhecer que tal constituiu um desrespeito em relação ao inicialmente contratado, a Requerida insiste em trazer à liça o estabelecido no n.º 3 da cláusula 10ª do contrato entre a C... e o Estado Angolano, o que não faz qualquer sentido, porque tal disposição foi modificada, deixando de se fazer referência à manutenção do valor do contrato em dólares americanos. Do mesmo modo, por efeito do princípio “back-to-back”, ficou ultrapassada a cláusula 5ª do contrato celebrado entre a Requerente e a C... onde se estabelece o valor global do contrato em kwanzas e a sua correspondência em dólares americanos, mencionando que o valor de referência do contrato é expresso em dólares americanos (facto D). Ora, a supressão da referência do valor da facturação em dólares americanos, que tinha por finalidade assegurar a manutenção da paridade fixa do valor do contrato expresso nas duas moedas - kwanzas e o seu equivalente em Dólares americanos -, originou uma perda cambial significativa ou mesmo drástica.[2]
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Por seu turno, a prova recolhida no Facto H demonstra cabalmente as perdas cambiais registadas pela Requerente não resultam de uma decisão dos orgãos de gestão da A..., de abdicar de uma parte substancial da facturação emitida à C..., entre os anos de 2017 e 2019, mediante a celebração de acordos de regularização de dívida que não estava contratualmente obrigada a aceitar, como sustenta a AT. Pelo contrário, a C... viu-se “compelida” a aceitar o acordo que lhe foi imposto pelo Ministério das Finanças de Angola para obter o pagamento do que lhe era devido e, reflexamente, por força do princípio “back to back” a que se encontrava vinculada, a Requerente não teve alternativa a aceitar os mesmos termos de regularização de dívidas firmados com o Estado Angolano. E assim, como é evidente, as perdas sofridas pela Requerente não resultaram de qualquer liberalidade ou perdão de dívida, ao invés do que sustenta a Requerida.
É igualmente assinalável que, no termo da acção inspectiva, os SIT entenderam que o registo de uma perda por imparidade sobre as perdas cambiais potenciais não era o adequado, porque que o acordo de regularização de dívidas em causa não consubstancia um acordo de pagamento, a prazo ou prestações, não cumprindo as condições de dedutibilidade fiscal previstas no artigo 28.º-A e artigo 28.º-B, ambos do Código de IRC, dado que o risco de incobrabilidade não se encontrava verificado, assim tendo acrescido ao lucro tributável aquele montante, de 624.983,51 EUR.
Notável é, também, constatar que da fundamentação do RIT, concretamente do respectivo ponto 53 ficou a constar: “conclui-se que não existe risco de incobrabilidade para efeitos fiscais nos termos da alínea c) do n.º 1 e n.°2 do artigo 28.°-B conjugada com a alínea a) do n.°1 do artigo 28.°-A e alínea h) do n.°2 do artigo 23.°, todos do Código do IRC, uma vez que foram celebrados acordos de regularização que asseguram o pagamento da totalidade do valor da divida relativa aos créditos em mora, pelo que não se pode considerar os créditos em mora como em risco de não serem cobrados, e a diferença entre o valor faturado e o recebido, é resultante da atualização cambial da moeda” – sublinhado nosso.
Entretanto, após o exercício do direito de audição, o argumento da AT para recusar a pretensão do Contribuinte muda de figurino, deixando de contender com o risco de incobrabilidade da dívida ou com a atualização cambial da moeda, passando ao argumento formal de não caber no âmbito do processo inspetivo proceder à retificação oficiosa da Declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, de 2021.
Por último, dos Factos provados O e P emerge que volta a AT a inflectir o seu pensamento para afirmar que o que antes era resultado da atualização cambial da moeda passaram a ser “variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades”, não preenchendo os requisitos estabelecidos pelos artigos 23.º e 24.º do CIRC, na medida em que não concorrem para a formação do lucro tributável.
Decorre do exposto que a posição da AT para recusar a pretensão do SP foi variando do modo seguinte:
I) “conclui-se que não existe risco de incobrabilidade para efeitos fiscais... uma vez que foram celebrados acordos de regularização que asseguram o pagamento da totalidade do valor da divida relativa aos créditos em mora, pelo que não se pode considerar os créditos em mora como em risco de não serem cobrados, e a diferença entre o valor faturado e o recebido, é resultante da atualização cambial da moeda” – sublinhado nosso, vide RIT;
II) argumento formal de não caber no âmbito do processo inspetivo proceder à retificação oficiosa da Declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, de 2021 – vide decisão após o exercício do direito de audição;
III) o que antes era resultado da atualização cambial da moeda passaram a ser “variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades”, que não concorrem para a formação do lucro tributável – vide decisão de indeferimento da RG.
Fica a nota, como curiosidade, porque este tipo de variações argumentativas não constitui, de modo algum, um timbre procedimental da AT, desvelando, pelo contrário e no caso concreto, uma marcada instabilidade na base de sustentação das sucessivas decisões, mormente na de indeferimento da RG.
Avançando, preceitua o parágrafo 27 da NCFR 23, que “as diferenças de câmbio resultantes da liquidação de itens monetários ou do relato de itens monetários de uma empresa a taxas diferentes das que foram inicialmente registadas durante o período, ou relatadas em demonstrações financeiras anteriores, devem ser reconhecidas nos resultados do período em que ocorram”.
Tal como já se evidenciou, mas para que não reste a mínima dúvida, as perdas cambiais em causa nestes autos não resultaram de liberalidades assumidas pelos órgãos de gestão da Requerente, como aventa a AT, mas antes dos acordos de regularização de dívidas, celebrados entre a C... e o Estado Angolano, cujos valores reconhecidos por este como estando em dívida perante a C..., com referência à faturação emitida nos anos de 2017, 2018 e 2019, se reportam ao valor expresso em KWANZAS (AKZ), à data de emissão das facturas, não obstante estas terem sido emitidas em dólares americanos (USD). Ora, foi precisamente esta alteração da expressão da dívida em Dólares americanos para KWANZAS que esteve na origem da perda cambial bradada pela Requerente, porquanto, em face do princípio “back-to-back” estabelecido no contrato celebrado entre a Requerente e a C..., tudo quanto se modificou nos acordos/contratos firmados entre a C... e o Estado Angolano, foi reflexamente transposto para os acordos firmados entre a C... e a Requerente.
Neste aspecto, é particularmente impactante a parte do clausulado que constitui o Facto provado H), segundo o qual a C... revela que “... os termos e condições do presente Acordo de Regularização de Dívida estão vinculados e refletem o Acordo que ... se viu compelida a assinar com o Ministério das Finanças para garantir o pagamento do que lhe é devido...” sublinhado nosso.
De notar ainda que a 31 de dezembro de 2020, ainda não se tendo realizado o pagamento das faturas em dívida da cliente C..., a Requerente contabilizou nesse período as perdas cambiais potenciais enquanto uma perda por imparidade no montante de 624.983,51 EUR (Facto provado I). A a AT veio a concluir que o procedimento adotado em sede deste imposto não foi o adequado quanto ao registo de uma perda por imparidade sobre as perdas cambiais potenciais, na medida em que o acordo de regularização de dívidas em causa não consubstancia um acordo de pagamento, a prazo ou prestações, pelo que não cumpriam as condições de dedutibilidade fiscal previstas no artigo 28.º-A e artigo 28.º-B, ambos do Código de IRC, dado que o risco de incobrabilidade não se encontrava verificado, pelo que acresceram ao lucro tributável aquele montante, de 624.983,51€ (Factos provados J e K). De qualquer modo, ficou a constar do RIT, além do mais, que a “...a diferença entre o valor faturado e o recebido, é resultante da atualização cambial da moeda” (Facto provado L).
Na sequência do exercício do Direito de Audição, a AT entendeu que não cabia no âmbito do processo inspetivo proceder à retificação oficiosa da Declaração de rendimentos Modelo 22, de IRC, de 2021 (Facto provado N) e, por fim, no despacho de indeferimento da RG, argumentou a Requerida que “o gasto no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), que se pretendia ver deduzido na declaração de rendimentos modelo 22, do período de 2021, a título de perdas de natureza cambial, não preenche os requisitos estabelecidos pelos artigos 23.º e 24.º do CIRC, na medida em que não concorrem para a formação do lucro tributável as “variações patrimoniais negativas (…) que consistam em liberalidades” (Facto provado P). Não repetiremos aqui o que já foi dito acerca da invulgar variabilidade argumentativa da AT para recusar a pretensão reclamada pela Requerente ao longo do PA.
Conforme já visto, à luz do parágrafo 27 da NCFR 23, as diferenças de câmbio devem ser reconhecidas nos resultados do período em que ocorram, acrescendo que se existir uma diferença entre o câmbio pelo qual foi registado inicialmente o item monetário e o câmbio à data da sua liquidação, essa diferença (positiva ou negativa) deve ser reconhecida nos resultados do período da referida liquidação.
Outrossim, à vista do n.º 1 e da alínea c) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC, as diferenças de câmbio negativas estão expressamente previstas como gastos dedutíveis, pelo que apenas pode ser afastada a sua dedutibilidade se não se comprovar que as mesmas decorreram de atividade levada a cabo no interesse da empresa. Acresce notar que as diferenças de câmbio desfavoráveis podem ser reconhecidas como perdas para efeitos da determinação do lucro tributável, por força da alínea c) do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IRC, ou como variações patrimoniais negativas não refletidas nos resultados, nos termos do artigo 24.º do Código do IRC (DA de 29 de outubro de 2012, no P. n.º 76/2012-T, e DA de 30 de março de 2022, no P. n.º 46/2021-T).
No caso em apreço, as diferenças de câmbio registadas pela Requerente não constituem liberalidades decididas pelos órgãos de gestão da Requerente, pelo contrário decorrem do contrato assinado com a C..., o qual previa que qualquer negociação realizada pela C... com o Ministério dos transportes de Angola, seria obrigatoriamente refletida no contrato entre a C... e a Requerente (Clª 4ª – princípio Back to Back).
Aqui chegados, é de evidenciar que se no período de tributação de 2020 as diferenças cambiais desfavoráveis eram meramente potenciais, com o pagamento do montante em dívida pela Cliente C... no período de tributação de 2021 a perda cambial tornou-se real e efetiva. Sendo igualmente indiscutível que o gasto questionado foi efetivamente suportado pela Requerente, no contexto da prossecução da sua atividade, pelo que tem de ser considerado como gasto dedutível, em sede de IRC e relevado para efeitos do apuramento do lucro tributável do período de tributação de 2021.
Acontece que o entendimento da AT emitido no contexto da inspeção tributária de 2020 e do indeferimento da reclamação graciosa do IRC autoliquidado em 2021 representa a impossibilidade prática de deduzir as perdas cambiais sofridas no exercício de 2021 – circunstância que se reconduz à violação do princípio da justiça conforme foi já exarado das DA´s n.º 666/2018-T e n.º 588/2015-T.
No mesmo trilho segue a Doutrina, nomeadamente, Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes De Sousa: “Esta é uma situação em que o exercício de um poder vinculado (correcção da matéria colectável em face da violação do princípio da especialização dos exercícios) conduz a uma situação flagrantemente injusta e em que, por isso, se coloca a questão de fazer operar o “princípio da justiça”, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2 da C.R.P. e 50.º da L.G.T., para obstar à possibilidade de efectuar a referida correcção. Há, nesta situação, dois deveres a ponderar, ambos com cobertura legal: um é o de repor a verdade sobre a determinação da matéria colectável dos exercícios referidos, dando execução ao princípio da especialização, reposição essa que a administração fiscal deve efectuar mesmo que não lhe traga vantagem; outro é o de evitar que a actividade administrativa se traduza na criação de uma situação de injustiça.” – v. Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Lisboa 2012, Encontro da Escrita, a pp. 453-454.
Seguindo idêntica vereda, já entendeu o STA, P. 0119/21.4BALSB, de 23.02.2022, o seguinte: uma interpretação rígida que corte o direito à dedução “de um gasto que efetivamente suportou na sua atividade e por causa dela, conduziria a um resultado antitético à teleologia do artigo 23.º do Código do IRC, que se alicerça numa relação de estrita causalidade económica (o gasto tem de ser realizado no interesse da empresa), interpretado em conformidade com o princípio da tributação fundamentalmente pelo lucro real, contemplado no artigo 104.º, n.º 2 da Constituição”
Decorre linearmente do exposto que deve proceder o pedido de pronúncia arbitral sub juditio.
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VI. Decisão
De harmonia com o supra exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar improcedente a excepção de incompetência do Tribunal;
b) Julgar procedente o pedido de anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa da autoliquidação do IRC do período de 2021, considerando, assim, na liquidação do IRC desse período, a dedutibilidade fiscal do gasto decorrente da diferença cambial desfavorável sofrida, no montante de 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil, novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos);
c) por não se considerar suficientemente habilitado com os elementos que permitiriam determinar o montante do eventual reembolso, o Tribunal remete tal questão para a execução do julgado e
e) Condenar a Requerida nas custas do processo arbitral.
VII. Valor do Processo
Fixa-se o valor do processo em 624.983,51 EUR (seiscentos e vinte e quatro mil, novecentos e oitenta e três euros e cinquenta e um cêntimos), valor indicado pela Requerente e que a Requerida não contestou, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, e dos artigos 296.º e 306.º, n.º 2, do CPC, ex vi artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
VIII. Custas
Custas no montante de 9.180,00 € (nove mil, cento e oitenta euros), a cargo da Requerida, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, 4.º, n.º 5, do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de outubro de 2025
Os Árbitros,
(Juiz José Poças Falcão - Presidente)
(A. Sérgio de Matos - relator)
(Maria Antónia Torres - vogal)
[1] Neste sentido, podem ver-se também os acórdãos do STA de 13-10-2021, processo n.º 0129/18.9BEAVR; de 02-02-2022, processo n.º 0848/14.9BEAVR; de 13-09-2023, processo n.º 0294/12.9BEPRT 0326/18; de 06-03-2024, processo n.º 0946/18.0BELRA.
[2] Entre 2017 e 2021, o Kwanza angolano sofreu uma desvalorização profunda e estrutural face ao Euro, impulsionada pela forte dependência da economia angolana das receitas do petróleo, a implementação de um regime de câmbio flutuante e uma série de choques económicos externos e internos. A desvalorização foi uma ferramenta política do Banco Nacional de Angola (BNA) para estabilizar as reservas internacionais e ajustar a economia aos novos preços do petróleo – informação disponível em Banco Nacional de Angola (BNA): · Estatísticas Monetárias e Cambiais: https://www.bna.ao/#/estatisticas · Relatórios Anuais: https://www.bna.ao/#/publicacoes/relatorios-anuais/