SUMÁRIO.
- O artigo 56.º do TFUE opõe-se às normas do CIRC que tributam as instituições financeiras não residentes pelos rendimentos de juros obtidos em Portugal, sem lhes dar a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em questão, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes. Tal constitui uma restrição à livre prestação de serviços.
- As liquidações feitas com base em normas nacionais incompatíveis com o Direito da União são de anular na sua totalidade.
DECISÃO ARBITRAL
A..., S.A., NIPC ..., com sede na ..., ..., ..., ...-... Lisboa, veio, nos termos legais, requerer a constituição de tribunal arbitral.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira.
I – RELATÓRIO
A) O pedido
A Requerente pede a anulação dos atos de retenção na fonte de IRC, ocorridos nos anos de 2023 e 2024, associados às guias de pagamento n.ºs ..., ..., ..., ..., ... e ..., num montante total de imposto de € 110.137,50.
Consequentemente, pede a anulação do despacho que indeferiu a reclamação graciosa por ela apresentada (n.º ...2024...).
Pede ainda a condenação da Requerida o pagamento de juros indemnizatórios.
b) O litígio
A Requerente alega que, ao abrigo do disposto nos artigos 87.º, n.º 4[1], e 94.º, n.º 3, alínea b)[2], do Código do IRC, os juros de fonte portuguesa auferidos por instituições financeiras não residentes são tributados, por via de retenção na fonte, a título definitivo, à taxa de 25% ou à taxa reduzida que resulte de CDT aplicável, sem possibilidade de dedução de despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade desenvolvida. Por outro lado, as instituições financeiras residentes são tributadas sobre os juros líquidos auferidos, podendo deduzir os encargos relacionados com a obtenção desses mesmos juros.
Entende assim a Requerente ser claro o seu tratamento discriminatório, comparativamente às instituições financeiras residentes, em violação do artigo 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [3].
c) Tramitação processual
O pedido foi aceite em 02/06/2025.
Os árbitros foram nomeados pelo Conselho Deontológico do CAAD, aceitaram as nomeações, as quais não foram objeto de oposição.
O tribunal arbitral ficou constituído em 11/08/2025.
A Requerida apresentou resposta e juntou o PA.
Foi dispensada, sem oposição, a realização da reunião a que se refere o art. 18ª do RJAT e a produção de alegações.
d) Saneamento
O processo não enferma de nulidades ou irregularidades.
Não foram alegadas exceções. Não existem questões que devam obstar ao conhecimento do mérito.
II- PROVA
II.1 - Factos Provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
a) A Requerente tem como objeto social o investimento de capitais obtidos junto dos seus acionistas, predominantemente em ativos imobiliários.
b) Em 18-07-2019, a Requerente (então com a denominação de B..., S.A.) celebrou um contrato de mútuo com a C..., nos termos do qual esta emprestou à primeira o montante de € 55.000.000, sobre o qual se venceram juros.
c) A C... (“C...”) é uma instituição financeira alemã, com sede nesse país e sem estabelecimento estável Portugal, que, tal como a Requerente, integra o grupo D..., especializado no investimento, desenvolvimento e gestão de ativos imobiliários.
d) Em 2023 e 2024, a Requerente pagou à C... juros relativos à concessão do aludido crédito.
e) Tais juros foram sujeitos a tributação, em sede de IRC, a título definitivo, nos termos dos artigos 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, à taxa liberatória de 15%, por força da aplicação do artigo 11.º, n.º 2, alínea b) da CDT celebrada entre Portugal e a Alemanha, como a seguir se discrimina[4]:
- em 20-02-2023, a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de EUR 18.356,25, titulada pela guia de pagamento...;
- em 20-05-2023, a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de 18.356,25, titulada pela guia de pagamento ...;
- em 31-08-2023, a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de 18.356,25, titulada pela guia de pagamento ...;
- em 20-11-2023 a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de 18.356,25, titulada pela guia de pagamento ...;
- em 20-02-2024, a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de 18.356,25, titulada pela guia de pagamento ...;
- em 20-05-2024, a Requerente sofreu uma retenção na fonte no montante de 18.356,25, titulada pela guia de pagamento....
f) A Requerente apresentou reclamação graciosa contra os referidos atos de retenção na fonte de IRC, tendo sido notificada do seu indeferimento expresso em 10-04-2025.
g) O fundamento de tal indeferimento foi: a respeito da conformidade de normas legais de incidência tributária com o direito europeu ou constitucional de normas legais, tem sido a posição da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não se pronunciar sobre o mérito de tais pretensões.
Isto porquanto entende a AT que não tem competência para apreciação da conformidade constitucional ou da legalidade de normas jurídicas, pelo que qualquer pronúncia decisória neste âmbito, se encontraria ferida de ilegalidade institucional.
Estes factos resultam da documentação junta aos autos, não tendo originado divergências entre as partes.
II.2 – Factos não provados
Não existem com relevância para a decisão da causa.
III – O DIREITO
III.1 - Compatibilidade dos art. 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC com o princípio da liberdade de prestação de serviços consagrado no art. 56º do TFUE
Há que tomar como ponto de partida para a análise desta questão o decidido pelo acórdão proferido pelo TJUE no processo n.º C-18/15 (Brisal),: [o] artigo 49.º CE [atualmente, o artigo 56.º do TFUE] opõe-se a uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, que, regra geral, tributa as instituições financeiras não residentes pelos rendimentos de juros obtidos no interior do Estado-Membro em causa, sem lhes dar a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em questão, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes.
Daqui decorre que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal, por força da qual as instituições financeiras não residentes são tributadas pelos rendimentos de juros obtidos no interior do Estado-Membro em causa, sem lhes ser dada a possibilidade de deduzir as despesas profissionais diretamente relacionadas com a atividade em causa, ao passo que essa possibilidade é reconhecida às instituições financeiras residentes, constitui uma restrição à livre prestação de serviços, proibida, em princípio, por força do artigo 49º CE. Ora, há que constatar que uma restrição como a que está em causa no processo principal não é necessária para garantir a eficácia da cobrança do IRC.
Sendo esta pronúncia do TJUE vinculativa para os tribunais nacionais, há que ponderar quais as suas consequências relativamente às liquidações de IRC (retenções na fonte) que tenham como fundamento legal normas de direito interno tidas pelo TJUE como incompatíveis com o Direito da União.
III.2 - Anulação total das liquidações impugnadas
Essa questão foi, desde logo, analisada pelo ac. do STA de 8 de março de 2017 (processo n.º 0298/13), na sequência do pedido de reenvio prejudicial nele formulado, o qual originou o citado acórdão Brisal.
Citamos: É certo que o TJUE não se furtou a enumerar algumas despesas de instituições não-residentes que devem ser passíveis de dedução (parágrafos 48 e 49), esclarecendo que «nada impede as autoridades fiscais em causa de exigirem ao não residente as provas que considerarem necessárias para apreciar se os requisitos de dedutibilidade das despesas previstas pela legislação em questão estão preenchidos e, consequentemente, se há ou não que conceder a dedução solicitada», sugerindo mesmo, como forma de obviar a esta dificuldade por parte dos Estados da fonte, que seja criado um mecanismo que permita que a dedução seja efetuada a posteriori (parágrafo 50)».
Mecanismo que terá de ser criado por via legislativa, de forma a ser accionado perante a administração tributária, não podendo ser os tribunais a criá-lo e a estabelecer quando e como podem tais despesas ser deduzidas, sob pena de afronta do núcleo essencial da função legislativa. E não constituindo os tribunais órgãos com competência para a tributação, não podem igualmente assumir a função de mecanismo ou aparelho primário de indagação oficiosa de eventuais despesas dedutíveis ou a função de recepção e selecção das despesas que as entidades não-residentes queiram apresentar e deduzir de forma a serem tributadas pelo rendimento líquido, sob pena de afronta do núcleo essencial da função administrativa-tributária.
Prossegue o STA
Resposta (do TJUE) da qual não se retira que o TJUE tenha dado indicação ao tribunal português para que proceda, no âmbito de um contencioso de mera anulação – como é o processo de impugnação judicial – à indagação oficiosa de despesas dedutíveis aos rendimentos auferidos em Portugal pelo B………… com vista à fixação da base tributável devida, fixação que só à administração tributária compete fazer. Com efeito, não cabe aos tribunais, substituindo-se à administração, fixar a matéria tributável ajustada ao caso e proceder ao acto tributário de liquidação ou de retenção do imposto. Tal violaria o núcleo essencial dos limites da competência dos tribunais tributários, dado que assim se deslocaria para a protecção jurídica destes tribunais a actividade administrativa da esfera da administração tributária, violando grosseiramente os princípios da indisponibilidade e da tipicidade de competências, bem como o princípio da separação de poderes constitucionalmente garantido.
Posto isto, e visto que a norma contida no art.º 80º, nº 2, al. c), do CIRC foi considerada incompatível com o Direito Europeu, por violação do art.º 49º do TCE, a sua aplicação fica necessariamente afastada, já que as normas comunitárias prevalecem sobre as normas de direito ordinário nacional, sendo a consequência jurídica deste primado do Direito Comunitário a não aplicação das disposições internas contrárias à disposição comunitária.
Tendo concluído pela anulação dos atos impugnados.
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do STA de 22 de março de 2017 (processo n.º 0165/13): encontra-se decisivamente inquinada a quantificação da matéria tributável que suporta os actos de retenção de imposto na fonte. Quantificação que exige a prática de novo acto tributário, sendo impraticável a reforma dos actos impugnados porque o tribunal não pode substituir-se à administração na fixação de outra matéria tributável, sob pena de estar a invadir o núcleo essencial da função administrativa-tributária, substituindo-se à administração na tarefa de determinar e fixar as despesas que as entidades financeiras não-residentes podem deduzir aos rendimentos auferidos em Portugal por forma a tornar a retenção na fonte compatível com o artigo 49º do TCE.»
Com o STA, entendemos estar em causa uma ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação, que se distingue da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado.»
Relevante é, assim, o facto de a jurisprudência do STA ser pacífica no sentido de que as liquidações de IRC, por retenção na fonte, feitas ao abrigo do disposto nos art. 87.º, n.º 4, e 94.º, n.º 3, alínea b), e n.º 5, do Código do IRC, estarem de tal forma inquinadas por violação do princípio de liberdade de prestação de serviços, ora constante do artº 56º do TFUE, que aos tribunais tributários mais não resta que as anular na totalidade.
Do que não vemos razões para divergir.
III.3 – Juros indemnizatórios
A liquidação e cobrança de imposto em violação do Direito da União Europeia confere ao contribuinte o direito a receber juros indemnizatórios, o que é jurisprudência pacífica (cf. neste sentido, entre outros, a decisão arbitral proferida no processo n.º 114/2022-T e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14.10.2020, proferido no processo n.º 01273/08.6BELRS).
Só que, porque num primeiro momento o erro apenas pode ser imputável ao substituto (e não à AT), há que observar o decidido pelo STA no acórdão de uniformização de jurisprudência de 29.06.2022, proferido no processo n.º 093/21.7BALSB: em caso de retenção na fonte e havendo lugar a impugnação administrativa do ato tributário em causa (v.g. reclamação graciosa), o erro passa a ser imputável à A. Fiscal depois de operar o indeferimento do mesmo procedimento gracioso, efetivo ou presumido, funcionando tal data como termo inicial para cômputo dos juros indemnizatórios a pagar ao sujeito passivo, nos termos do artº. 43, nºs.1 e 3, da L.G.T.
No caso, os juros indemnizatórios são devidos desde a data em que ocorreu o indeferimento expresso da reclamação graciosa.
V – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os árbitros em:
a) Anular, na totalidade, as liquidações impugnadas.
b) Reconhecer o direito do Requerente a, além da devolução do imposto indevidamente pago, receber juros indemnizatórios, a serem calculados nos termos legais desde 10-04-2025.
Valor: € 110.137,50
Custas, no montante de € 3.060,00, a cargo da Requerida por ter sido total o seu decaimento.
30 de novembro de 2025
Os árbitros
Rui Duarte Morais (relator)
Sofia Quental
Paulo Ferreira Alves
[1] O qual reza: Tratando-se de rendimentos de entidades que não tenham sede nem direção efetiva em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual os mesmos sejam imputáveis, a taxa do IRC é de 25%, (,,,).
[2] O qual reza: As retenções na fonte têm a natureza de imposto por conta, exceto nos seguintes casos em que têm carácter definitivo:
(…)
b) Quando, não se tratando de rendimentos prediais, o titular dos rendimentos seja entidade não residente que não tenha estabelecimento estável em território português ou que, tendo-o, esses rendimentos não lhe sejam imputáveis.
(…)
[3] O qual reza: No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado-Membro que não seja o do destinatário da prestação.
O Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, podem determinar que as disposições do presente capítulo são extensivas aos prestadores de serviços nacionais de um Estado terceiro e estabelecidos na União.
[4] O montante bruto dos juros pagos em cada uma destas prestações foi de EUR 122.375,00.